REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia...

516

Transcript of REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia...

Page 1: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 2: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 3: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

REVISTA DA ACADEMIADE LETRAS DA BAHIA

Page 4: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 5: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

REVISTA DA ACADEMIADE LETRAS DA BAHIA

Março de 2015 — Número 53

ISSN 1518-1766

Page 6: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

IMpRESSo No BRASIL

Revista da Academia de Letras da Bahia / Academia de Letras da Bahia. – Ano 1, vol. 1, n. 1 (Ago. 1930). – Salvador: Academia de Letras da Bahia, 1930 –

A partir do número 25 foi retirado ano e volume. o ISSN começou no número 44. AnualISSN 1518-1766

1. Literatura brasileira – periódicos . I. Academia de Letras da Bahia. II. Título.

CDU 869

Copyright © by Academia de Letras da Bahia, 2015

ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA

Avenida Joana Angélica, 198, Nazaré40050-000 – Salvador, Bahia, Brasil

Telefax (71) 3321-4308www.academiadeletrasdabahia.org.br

[email protected]

Nesta revista optou-se pela flexibilização de normas de atualização e padronização de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada texto, a exemplo de Ruy Barbosa e Rui Barbosa. Optou-se, igualmente, pela total responsabilidade de redação e de revisão

de cada autor sobre o seu texto, só sendo feitas, pela produção editorial, as correções óbvias e mais visíveis, em particular de erros de digitação.

Revista Anual de Literatura, Artes e Ideias

Ficha Catalográfica elaborada por Gislene Soares Guerra CRB-5/1382

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

Page 7: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

EDIToRIALUma revista singular e fundamentalArAmis ribeiro CostA

Artigos e ensAios

ENTRELAÇANDo CENAS DE AMoR Leituras de Castro AlvesevelinA Hoisel

o CoNTo DE HÉLIo pÓLVoRA Uma visão de conjunto a partir do primeiro livroArAmis ribeiro CostA

DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃOCleise mendes

o pRoTESTo No CoNTo Do CANTo Do ACALANToYedA PessoA de CAstro

A LUTA COM O CORAÇÃO HUMANOHélio PólvorA

YEATS: SUA VISÃO DE BIZÂNCIOWAldir FreitAs oliveirA

HOMENAGEM A OLEGÁRIO MARIANOConsuelo Pondé de senA

AS ARTES SE DISTRAÍRAM, E A EXPLOSÃO DE DADÁ CAMINHA PARA OS 100 ANOSFlorisvAldo mAttos

11

15

31

43

53

71

79

101

113

SUMÁRIO

Page 8: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

O FUNDADOR ARLINDO FRAGOSO E SEUS 150 ANoSedivAldo m. boAventurA

O JOGO FANTÁSTICO DE JÚLIO CORTÁZARCYro de mAttos

BREVE REFLEXÃO SOBRE A IRONIA TRÁGI-CA EM UM DRAMA SHAKESpEAREANoordeP serrA

SoBRE UM AMoR DE FLoR BELAmAnuel de novAes CAbrAl

BICENTENÁRIO DE NASCIMENTODE UM SÁBIO BAIANO E BRASILEIROJoão euriCo mAttA

PoesiA

poEMAS: CARTÕES poSTADoSFernAndo dA roCHA Peres

poEMAS E SoNEToSGláuCiA lemos

DoIS poEMASruY esPinHeirA FilHo

CINCo poEMASFlorisvAldo mAttos

CINCo SoNEToS Do RIoCYro de mAttos

143

157

165

173

199

207

211

217

221

227

Page 9: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

TUDE CELESTINopoeta de Ipitanga, do Amor e da BoemiatinA tude

FiCÇÃo

A ÚLTIMA PORTAHélio PólvorA

ALÔ, SOLIDÃO!GláuCiA lemos

SISINACArlos ribeiro

OS PASSARINHOS SÃO OS MESMOSMAYrAnt GAllo

DisCUrsos

À MEMÓRIA DA ACADÊMICA CoNSUELo NoVAIS SAMpAIoSessão de saudadeJoão euriCo mAttA

JAMES AMADoSessão de saudademYriAm FrAGA

A REVIVESCÊNCIA DE ANNA AMÉLIA VIEIRA NASCIMENToSessão de saudadeedivAldo m. boAventurA

233

247

257

265

269

275

285

295

Page 10: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

À MEMÓRIA Do ACADÊMICo GERSON PEREIRA DOS SANTOSSessão de saudadeJoão euriCo mAttA

DISCURSo DE poSSEordeP serrA

DISCURSO DE RECEPÇÃO A ORDEP SERRAluís Antonio CAJAzeirA rAmos

DISCURSo DE poSSEurAniA tourinHo Peres

DISCURSO DAS MÃOS DADASRecepção a Urania Tourinho PeresArAmis ribeiro CostA

DISCURSo DE poSSEGuilHerme rAdel

DISCURSO DE RECEPÇÃO A GUILHERME RADELJoACi Góes

A INVENÇÃO DO ESCRITORDiscurso de posseJoão CArlos sAlles

DISCURSO DE RECEPÇÃO A JOÃO CARLOS SALLESPAulo CostA limA

309

317

337

347

373

385

397

407

431

Page 11: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

EDIVALDo M. BoAVENTURAoitenta anos do acadêmicoluís Antonio CAJAzeirA rAmos

Diversos

Efemérides

Quadro social da ALB

Endereços dos acadêmicos

451

467485499

Page 12: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 13: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 11

EDIToRIAL

Uma revista singular e fundamental

o artigo primeiro do Estatuto da Academia de Letras da Bahia é definidor: “A Academia de Letras da Bahia (...) tem por objetivos o cultivo da língua e da literatura nacionais, a preser-vação da memória cultural baiana e o amparo e estímulo às ma-nifestações da mesma natureza, inclusive nas áreas das ciências e das artes”.

Não seria pouco. São objetivos que valem todo um pro-grama de funcionamento. Mas a reunião de intelectuais destaca-dos em suas áreas de atuação, com esses propósitos, amparados pelas condições favoráveis do prestígio da Academia e do recur-so da ampla e bela sede à qual não temos o pudor de chamar de “Palacete”, levou também a instituição a se tornar um impor-tante núcleo difusor de cultura, com uma programação intensa, quase toda voltada para o público interessado em eventos cultu-rais e, em particular, literários. De março a dezembro, o chamado “ano acadêmico”, no qual desenvolvemos as nossas atividades, o Palacete Góes Calmon tem sido palco de palestras, conferências, edições e lançamentos de livros, cursos, seminários, concursos, encontros e debates, além, naturalmente, das atividades específi-cas da instituição, como sessões ordinárias, eleições de membros efetivos e correspondentes, sessões de saudade, comemorações de centenários e datas importantes, posses solenes.

Muito de tudo isso, que pode ser verificado pormenoriza-damente nas Efemérides, na sessão Diversos, seria perdido para a posteridade, se não tivéssemos esta revista. Ela tem acom-panhado não apenas as atividades da instituição, não apenas registrado a produção circunstancial ou institucional de seus

Page 14: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

12 ◄◄

membros efetivos e correspondentes, com a publicação dos discursos e conferências, mas refletido os diversos momentos culturais e intelectuais da Bahia, o que vem fazendo ao longo de oitenta e cinco anos e cinquenta e três números, tornando-se hoje uma referência indispensável a muitos e variados assun-tos. Não é por acaso que uma coleção completa da Revista da Academia de Letras da Bahia é hoje uma raridade bibliográfica em qualquer biblioteca, chegando a valer uma pequena fortuna no mercado livreiro.

Este número revela uma circunstância singular do ano aca-dêmico de 2014, no qual tivemos de eleger cinco membros efetivos e empossar quatro, além de eleger três membros correspondentes e empossar um deles. Isso, somado às sessões especiais de sauda-de e comemorativas dos centenários de nascimento, aumentou bastante a sessão dos discursos. O que não desmerece a revista, pelo contrário, pois esses discursos trazem com muita substância e muita propriedade, nas suas informações, aquela “preservação da memória cultural baiana” que o nosso Estatuto nos determina. Mas, aqui também estão, com a riqueza e a diversidade habituais, os ensaios, os artigos, a poesia, os contos.

Trata-se, é bom que se registre, de uma revista com caracte-rísticas próprias, que propositadamente não segue as normas das publicações científicas ou universitárias, nem tem a liberdade de edição dos hoje raríssimos periódicos simplesmente literários. E, de fato, não é nem pretende ser qualquer dessas categorias. É uma revista acadêmica, no sentido de academia de letras, que cumpre à perfeição os objetivos da instituição, constituindo-se, igualmente, numa fonte bibliográfica fundamental para a cultura baiana.

A isto, naturalmente, esperamos sempre acrescentar o prazer da leitura.

Aramis Ribeiro Costapresidente

Page 15: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

ARTIGOS E ENSAIoS

Page 16: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 17: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 15

ENTRELAÇANDo CENAS DE AMoRLeituras de Castro Alves

evelinA Hoisel

I

o título aqui proposto remete a uma ambiguidade ou, pelo menos, a uma duplicidade propositalmente sugerida. Lei-

turas de Castro Alves pode, em primeira instância, indicar que vamos desfiar alguns fios das diversas leituras que o poeta Cas-tro Alves empreendeu em sua trajetória de caminheiro erran-te e que deixam seus rastros nos textos que escreveu. Trata-se, portanto, de focalizar Castro Alves como leitor: leitor de uma tradição literária e cultural, mas, também, leitor dos signos do mundo, questão que o situa de maneira particular no código do romantismo. Leituras de Castro Alves indicia ainda a possibili-dade de acompanharmos a trajetória da sua produção poética através dos tempos, indagando sobre a possibilidade de atuali-zação de seus textos na contemporaneidade, sua permanência e seus deslocamentos — suas rasuras, verificando a fertilidade de uma poesia que, desde o seu aparecimento, tem sido marca-da por polêmicas e controvérsias, por admiradores e opositores, por vezes, veementes e apaixonados.

Hoje celebramos Castro Alves em mais um curso ofertado a todos nós, amantes de sua poesia, pela Academia de Letras da Bahia. Aqui, resgatamos a sua memória e revisitamos a sua pro-dução lírica. Através do seu corpo poético, reapropriamo-nos de seu corpo histórico, político, social, constituído pelos poemas que escreveu e pelas leituras que suscitou. Leituras literárias, ar-tísticas e críticas.

Page 18: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

16 ◄◄

Sabemos todos que, para Castro Alves, o estético, o ético, o político, o biográfico são inseparáveis. São signos que se en-trelaçam e se esgarçam, do mesmo modo que, entre o privado e o público, entre sua lírica amorosa, subjetiva, íntima e a poe-sia social, libertária e humanitária, as fronteiras se superpõem e se redobram. O privado e o público são forças que acionam a produção poética de Castro Alves e mobilizam o leitor, que, inevitavelmente, terá que transitar pelas diversas instâncias atra-vés das quais o poeta excursionou. Os limites são tênues. As fronteiras, quase indemarcáveis. Isso porque Castro Alves viveu delirantemente os limites do extremo, transformando a dor físi-ca, a cicatriz corporal — tanto a do seu corpo físico, quanto as do corpo social e político de sua época — em letra, em registro poético, reinscrevendo-os em cada ritmo, em cada imagem, em cada personagem criado ou recriado. Nas cordas da sua lírica, a história social e coletiva é o pretexto para fazer soar a história pessoal e subjetiva do poeta condoreiro.

Ler Castro Alves é, dentre tantas possibilidades, compre-ender como o corpo poético e o corpo histórico e político do escritor se interseccionam. É procurar entender as estratégias que possibilitaram que as vibrações e modulações da voz, a exuberância de uma gestualidade, as irrupções dos movimen-tos empreendidos pela carne e pelo corpo dilacerados sejam os ingredientes de uma produção que tem sua eficácia tanto em nível da vida privada, da subjetividade do eu poético, quanto do ponto de vista de sua atuação social e política, isto é, da vida pública.

Castro Alves registrou com exuberância e delicadeza, com suavidade e encantamento líricos, bem como com rompantes imagéticos, retórica persuasiva, pathos dramático e gestualidade teatral, os diversos signos que encontrou. Avidamente, recolheu e redistribuiu os signos da natureza, e da história pessoal e cole-tiva. Leu e disseminou palavras. Fragmentou-se e multiplicou-se em textos. Através de eloquentes ou singelos processos de dra-

Page 19: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 17

matização e de teatralização do sujeito e da vida, construiu o seu próprio mito, que se atualiza a partir das diversas apropriações do seu corpo poético pelos seus descendentes.

Edilene Matos, em sua abordagem sobre Castro Alves: ima-gens fragmentadas de um mito (2001), faz um levantamento das va-riadas leituras realizadas em diversas áreas, que têm corroborado para a permanência desse mito, tanto na tradição literária, apon-tando algumas reapropriações de Castro Alves menos conheci-das, como o poema concretista de Décio Pignatari que, aprovei-tando-se do último verso de “O navio negreiro” — “Colombo! Fecha a porta de teus mares!” —, explora o aspecto gráfico da letra O, para construir um poema visual de protesto, que põe em diálogo os aspectos gráficos — o mapa das Américas, onde aparece, na região norte do mapa, em cima de cada letra O da palavra CoLoMBo, um pássaro (um urubu? um condor? um gavião?). No extremo sul do mapa, inscreve-se o verso “fecha a porta de teus males!”, modificando-se assim o texto romântico, a partir da substituição de “mares” por “males”: “fecha a porta de teus males!” (MATOS, 2001, p. 79).

Edilene Matos destaca outras produções artísticas, como a música, citando a antológica referência do tropicalista Caetano Veloso, que parodiou os versos de Castro Alves na letra da canção “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”. Nas artes plásticas, cita as telas de Mário Cravo Júnior, Juarez paraíso, Jenner Augusto, prisciliano Silva; os desenhos de Lydia Sampaio e Ângelo Roberto; a escultura de Mário Cravo Neto, além das diversas releituras de Castro Alves pela literatura de cordel. Nesse sentido, por uma via distinta da nossa, vez que ela está interessada nos processos de construção de um mito, Edilene Matos incursio-na pelas diversas leituras ou, melhor, releituras de Castro Alves, que atestam a sua permanência na cultura brasileira.

Ao abordar as leituras de Castro Alves — as de Castro Al-ves como leitor (item II), ou as dos leitores de Castro Alves (item III) —, interesso-me não pela construção de um mito, porém pela

Page 20: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

18 ◄◄

existência de um movimento textual através do qual a literatura se constitui. As remissões textuais são formas de preenchimentos de vazios, de atualizações de sentido, de inseminação de traços, que atestam a concepção borgiana do escritor como leitor: leitor da prosa do mundo — o Livro do Mundo — ou dos livros dos antepassados, armazenados nas prateleiras das bibliotecas e da memória, elas, também, rastros da prosa do mundo.

II

Castro Alves é um leitor voraz. Para ele, a noção de texto é bastante abrangente, pois o próprio mundo natural se apresenta como uma escrita que é lida e decifrada pelo poeta no momento da criação. É o poeta quem lê e ouve os sons da natureza, que é percebida como um imenso poema. o poeta interpreta, tradu-zindo e recodificando os signos da natureza no corpo do poema. Essa problemática aparece inscrita em trechos do poema “Mur-múrios da tarde”. ouçamos:

Ontem à tarde, quando o sol morria, A natureza era um poema santo, De cada moita a escuridão saía, De cada gruta rebentava um canto. Ontem à tarde, quando o sol morria. [...]Larga harmonia embalsamava os ares! Cantava o ninho — suspirava o lago...E a verde pluma dos sutis palmares Tinha das ondas o murmúrio vago...Larga harmonia embalsamava os ares. (ALVES,

1960, p. 150).

Outras vezes, como no poema “Ao romper d’alva”, a ge-ografia física da América, pintura e poema do grande Criador,

Page 21: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 19

é manchada pela geografia social e política, onde a ação do homem — a escravidão — funciona como elemento de distúr-bio, e cujos signos são também apreendidos e traduzidos, isto é, lidos, pelo poeta:

Oh! Deus! não ouves dentre a imensa orquestraQue a natureza virgem manda em festa Soberba, senhoril, Um grito que soluça aflito, vivo, o retinir dos ferros do cativo, Um som discorde e vil?

Senhor, não deixes que se manche a tela Onde traçaste a criação mais bela De tua inspiração. o sol de tua glória foi toldado... Teu poema da América manchado. Manchou-o a escravidão. (ALVES, 1960, p. 216-

17).

pode-se perceber como em Castro Alves esse procedi-mento tradutório é utilizado como um efeito retórico, reafir-mando-se, ainda, o código romântico, onde a natureza aparece como refúgio e inspiração do poeta.

Se afirmo que Castro Alves é um leitor voraz, é porque as marcas de suas múltiplas leituras são explicitamente oferta-das ao leitor no corpo de sua escrita. Em primeira instância, a partir das variadas epígrafes que emolduram os seus poemas e detonam o sentido de cada texto. São inúmeras as poesias de Castro Alves que vêm acompanhadas por epígrafes, às vezes até duas ou mais citações. Dentre os principais autores epigrafados, encontram-se Dante, Byron, Virgílio, Alfred de Musset, Victor Hugo, Lamartine, Shakespeare, Fagundes Varela, Junqueira Frei-re, José de Alencar, apenas para referenciar os autores presentes

Page 22: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

20 ◄◄

no livro Espumas flutuantes. Através dessas epígrafes, Castro Al-ves fornece programaticamente os primeiros índices de filiação de sua escrita. As ramificações genealógicas são de distintas pro-cedências, possibilitando que, no entrelaçamento dos textos — da epígrafe e do poema —, produza-se um novo sentido, pelo processo de inserção ou atualização contextual. Por sua vez, o que é vivenciado pelo sujeito poético, ou aquilo que é por ele verbalizado, faz parte de um estoque de escritas e serve para confirmar a universalidade do tema poetizado, colocando-o em outro contexto literário, histórico e cultural.

As inscrições textuais também se inserem no corpo de cada poema, onde nomes de personagens, imagens mitológicas e poéticas, ritmos de diversas procedências são recuperados e in-seminam novos significantes. Através da apropriação de figuras míticas, literárias e históricas, Castro Alves delineia o perfil do poeta, do sujeito criador, como um dos fios da tessitura de sua poesia, onde o eu lírico assume diversas faces: é um personagem errante e forasteiro, que corporifica a constituição do sujeito poético como um ser nômade, desfiliado e desterritorializado, percorrendo constantemente novos espaços, para, em seguida, abandoná-los em busca de outros territórios.

Ainda seguindo essa mesma linha de leitura, o poema “O fantasma e a canção” dramatiza a história do rei banido, que pro-cura pouso sem encontrar. “O fantasma e a canção” tem uma estrutura explicitamente dramática, onde o rei-fantasma, cober-to de cãs — uma alusão ao rei Lear, da tragédia de Shakespeare — erra pela noite tempestuosa, sem encontrar refúgio. A figura do rei-fantasma, que é também uma projeção da figura do poe-ta, só encontra morada, só pode se territorializar no espaço da escritura poética, reino que o consagra, restituindo-lhe o trono perdido. Assim, Castro Alves fornece um sentido suplementar à tragédia shakespeariana, onde o rei Lear morre sem encontrar morada. Em situação diferente, no texto de Castro Alves, a voz poética diz:

Page 23: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 21

— Entra, pois! Sombra exilada,Entra! O verso — é uma pousadaAos reis que perdidos vão.A estrofe — é a púrpura extrema,Último trono — é o poema!Último asilo — a Canção!... (ALVES, 1960, p. 97).

Do ponto de vista da lírica amorosa, o sujeito poético encena-se a partir de personagens literárias, como em “Os três amores!”, quando o sujeito se identifica com Tasso, Romeu e D. Juan, e a amada, com Eleonora, Julieta e Julia, a Espanhola. As identificações são significativas do tipo de relação amorosa que se realiza entre os amantes. Iniciando com uma imagem onírica e sublimadora, representada por Tasso e Eleonora, termina por teatralizar a relação carnal e voluptuosa de D. Juan e Julia, a Es-panhola. No território dessa lírica, amante e amada passam por processos de encenação através dos quais personagens remetem a personagens, histórias atualizam outras histórias. É assim no poema “Uma página da escola realista”, cujo subtítulo é “Dra-ma cômico em quatro palavras”, onde os conflitos nas relações amorosas são representados a partir da história de George Sand e Musset, que projeta e ilumina o conflito das relações amorosas de Castro Alves com Eugênia Câmara.

Ainda recorrendo ao repertório das tragédias shakespea-rianas, Castro Alves, no poema “Boa-noite”, efetua uma leitura da cena amorosa entre Romeu e Julieta, agora enformada pela paisagem local, acentuando para isso a noção de sensualidade, e adequando-a ao cenário da brasilidade. A encenação do desejo se efetua em uma espécie de delírio alucinante em que os signi-ficantes que traduzem o objeto amoroso se alternam na cena do enunciado do poema. O processo de substituição do nome su-perpõe e identifica Maria-Julieta-Consuelo. Nesse poema, ao qual já dediquei uma leitura mais minuciosa e verticalizada (HOISEL, 1996, p. 365-75), Castro Alves retoma a famosa cena V do ato III

Page 24: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

22 ◄◄

da tragédia Romeu e Julieta, onde o cantar do rouxinol opõe-se ao da cotovia, como o cantar do amor na noite que finda. Se os dois amantes escutam o rouxinol, permanecem unidos, mas se expõem à morte. Se creem na cotovia, salvam suas vidas, porém devem separar-se.

Reconfigurando o espaço/tempo onde transcorre a ação da peça — a noite abençoada dos jardins do Capuleto — Castro Alves, através de um processo de dramatização de personagens e de signos da tragédia renascentista, promove a identificação do eu lírico com os personagens shakespearianos, optando por outro encaminhamento para a resolução dos impasses do conflito amo-roso: separar-se ou não da amada. Em “Boa-noite”, enquanto a calhandra — espécie de cotovia — anuncia a aurora, portanto a separação dos amantes, o canto da amada, corporificada agora em Julieta, substitui o do rouxinol e serve como elemento de sedução que enfeitiça o amante, fazendo-o esquecer dos perigos da aurora que se aproxima. Se somente a continuidade da noite pode dar prosseguimento ao ritual romântico e amoroso, estrategicamente o desejo voluptuoso do eu lítico, que se inscreve na cena textual a partir da figura de Romeu, tece uma situação que possibilita a con-tinuidade da celebração amorosa, porque afirma a expansão e a permanência da noite, sem a separação que se verifica na tragédia de Romeu e Julieta. O modo como esse conflito é resolvido é um dos momentos de maior força e singularidade da poesia de Castro Alves, pois, sob o olhar erótico do amante, os cabelos pretos da amada anunciam o prolongamento da noite, reconstruindo um cenário que possibilita a realização do desejo:

Se a estrela-d’alva os derradeiros raiosDerrama nos jardins do Capuleto,Eu direi, me esquecendo da alvorada: “É noite ainda em teu cabelo preto!” [...]É noite, pois! Durmamos, Julieta! (ALVES, 1960, p.

122).

Page 25: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 23

Acrescentando um significado suplementar à cena an-tológica da tragédia renascentista, emprestando-lhe uma ou-tra significação, vez que cria um espaço poético que propicia a realização do desejo incontido dos amantes, Castro Alves, com a leitura que faz dessa tragédia, efetua uma atualização da cena dos jardins do Capuleto pela dramatização de seus signos, propiciando a abertura de outras vertentes interpreta-tivas na literatura brasileira que, sob a mediação de seu texto poético, rearticulam personagens, temas e imagens do texto de William Shakespeare a partir da força expressiva e inovadora de sua lírica.

Se perguntarmos quais são as leituras de Castro Alves, poderemos resgatá-las a partir das marcas deixadas no cor-po de seus textos poéticos, nos quais epígrafes, temas, per-sonagens, imagens, sonoridades, ritmos são importantes para construir o seu perfil como um leitor voraz de uma tradição literária e não literária. É a partir desses resíduos, dessas ruínas de leituras, enquanto rastros apreendidos pela escrita, que se pode perceber também o projeto de autoconsagração históri-ca de Castro Alves (no que diz respeito a esse projeto, lembro aqui o famoso verso do poeta: “Eu sinto em mim o borbulhar do gênio!”). Esse projeto de autoconsagração e de glorifica-ção, que traduz o movimento de perquirir e estabelecer o seu próprio lugar na tradição literária, faz-se a partir desses trânsi-tos discursivos e do estabelecimento de diálogos intertextuais, recorrendo aos textos de uma tradição na qual pretende se inserir. Essa condição de leitor, por sua vez, é um traço impor-tante para assinalar a atualidade da produção de Castro Alves, cuja permanência pode ser conferida pelas sucessivas leituras de sua produção poética — as diversas apropriações do seu corpo poético, inseminando-se e disseminando outros corpos.

Page 26: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

24 ◄◄

III

Reporto-me, mais uma vez, ao poema “Boa-noite” para dele extrair alguns desdobramentos que situam a sua trajetória — e, portanto, a de seu criador, Castro Alves, leitor de Shakes-peare — na história da literatura e da cultura brasileiras. Recor-to também a metáfora da noite expandida através dos cabelos pretos da amada, onde o diálogo do poema castroalvino se repete pela citação da primeira estrofe do poema “Boa-noite”, reconfigurando, agora, outros personagens no cenário de um texto do modernismo brasileiro: “Ao menos diga boa-noite, Juca... / ‘Boa-noite, Maria, eu vou-me embora...” Refiro-me, agora, ao conto de Mário de Andrade “Vestida de preto” (AN-DRADE, 1972a, p. 7-18), no qual o narrador rememora a sua primeira experiência amorosa e o relato dessa experimentação, tal como acontece com o sujeito poético no poema “Boa-noi-te”, mediatizado por um texto literário. Os fios se entrelaçam, as histórias se repetem, e a cabeleira preta da amada instaura a noite idílica dos amantes, aqui sem a ameaça da separação e da despedida, tema tão caro aos poetas românticos e, par-ticularmente, a Castro Alves. Esse tema, que já está também inscrito na tragédia shakespeariana, é subvertido pelo texto de Mário de Andrade, que promove o encontro amoroso na sua plenitude:

Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! Até que meu nariz tocou num pescocinho roliço. [...] Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação para trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. (ANDRADE, 1972a, p. 10).

Page 27: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 25

A posse do objeto amoroso, que se dá pela realização do desejo erótico e carnal, suscita no narrador uma sensação de perfeição, fazendo-o comentar: “é engraçado como a perfeição fixa a gente” (p. 10). Por isso, a apropriação e a citação do verso de Castro Alves “— Ao menos diga boa-noite, Juca... / ‘Boa-noite, Maria, eu vou-me embora...” (p. 17) — só se efetua depois da relação amorosa, quando os amantes se despedem.

Referir-se a essa releitura literária de Mário de Andrade sobre um texto de Castro Alves é importante porque nos faz pensar no espaço de liberdade em que é produzida a obra de arte, rompendo com conceitos ou até pré-conceito afirmados em outras instâncias pelo escritor. É por ser produzida em um espaço de liberdade que resulta o caráter paradoxal da criação literária ou artística. Ao se apropriar do texto de Castro Alves, atualizando-o em outro território discursivo e em outro tempo, Mário de Andrade certamente está contribuindo, através de um processo de renovação das suas significações, para a permanên-cia dessa poesia no modernismo brasileiro e, consequentemente, na atualidade, apesar da contundência com que leu negativamen-te muitos aspectos e procedimentos do poeta romântico, na crí-tica que efetuou no texto intitulado “Castro Alves”, inserido na coletânea de ensaios Aspectos da literatura brasileira (ANDRADE, 1972b, p. 109–123).

Considerando Castro Alves “como um dos valores mais contraditórios do nosso Brasil” e a [...] “imagem mais possível da mentalidade nacional”, mas ressaltando logo em seguida, “o que é uma pena para a mentalidade nacional” (p. 123), a releitura de Mário de Andrade tece críticas muito severas ao poeta, efetu-ando uma revisão de valores que teve uma enorme repercussão, ao salientar que o condoreirismo levou

Castro Alves a imagens de mau gosto repulsivo, mas [...] o maior mal dessa oratória é que Castro Alves, como Rui Barbosa, foi um encompridador. Delirava escutando o som da própria voz, falou, falou, falou. Às vezes, chega

Page 28: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

26 ◄◄

a ser inconcebível que, hábil artista por um lado, não te-nha visto o quanto falseava a curteza dos seus temas, se encompridando com a tenacidade de um advogado. Não sabia absolutamente pautar o tamanho das suas poesias. (ANDRADE, 1972b, p. 122).

Dentre os exemplos citados por Mário de Andrade, des-taco os poemas “O laço de fita”, que, “com quatro estrofes ape-nas seria uma joia” (p.122), “Adeus, meu canto” e “Cachoeira de Paulo Affonso”, que, se “reduzida de uma terça parte, seria excelente” (p. 122).

Apenas a título de uma questão que será introduzida no final da minha leitura, abro aqui um pequeno parágrafo, pro-curando indicar alguns ecos dessa controvertida leitura da po-esia de Castro Alves, remetendo as considerações de Mário de Andrade para aquelas do crítico Antonio Candido, no capítulo “Poesia e oratória em Castro Alves”, no seu livro Formação da literatura brasileira (1971). No subtítulo intitulado “Aspectos ne-gativos”, Antonio Candido refere-se à “pujança que embriaga o leitor”, pois

Nem sempre se contenta com o essencial ou a sugestão: uma vez embriagado — sobretudo no discurso humanitá-rio — vai implacável às últimas consequências. Para citar um caso apenas, veja-se o “Epílogo” do poema “Lúcia”, espécie de moral da fábula do pior gosto; ou os detalhes pueris e desnecessários de “Tragédia no lar” — que tor-nam realmente pesado o tributo cobrado pela oratória. (CANDIDo, 1971, p. 272).

Volto ao texto de Mário de Andrade para salientar que, em muitos outros trechos de suas reflexões, ele reconhece — como o fará também Antonio Candido — uma série de aspectos importantes, até marcantes, na poesia de Castro Alves, como a sua preocupação social, considerando-o, nesse aspecto, “como

Page 29: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 27

um dos nossos poetas de que mais nos podemos orgulhar, atu-almente” (ANDRADE, 1972b, p. 115), destacando também “O navio negreiro” e “Vozes d’África” como “capítulo dos mais culminantes da rapsódia nacional” (p. 115). Afirmou ainda que “o grande valor social era fruto do engenho e da força de um artista admirável que [...] é vivaz, é loquaz, é admiravelmente in-ventivo e imaginoso, [...] e que, sem ser um gênio propriamente, tenha sido genial, é incontestável” (p. 110). por sua vez, refere-se a alguns poemas, “O voo do gênio, “O tríplice diadema”, “O fantasma e a canção”, “Os anjos da meia-noite”, “O adeus de Tereza”, como provas decisivas para uma mudança profunda na concepção temática de amor na poesia do Brasil, ou como pro-vas de insuspeitada beleza, como é o caso da “Tragédia no lar”, ao contrário de Antonio Candido, que destaca os “detalhes pue-ris e desnecessários” nesse poema. (CANDIDo, 1971, p. 272).

As veementes e ambivalentes críticas de Mário de Andra-de ao poeta condoreiro suscitaram obviamente diversas contro-vérsias, pois a sua leitura objetivava uma revisão de valores e, de maneira polêmica, suscitava “a cólera e os insultos dos ‘donos’ de Castro Alves”. A crítica de Mário é realizada em 1939, quando já tinham passado os arroubos da juventude — e ele mesmo de-clara esse aspecto: “Releio Castro Alves cuidadosamente. Releio com amor e até com patriotismo. Confesso, antes de mais nada, que ele me fadiga muito agora, neste ano de 1939, e nesta minha idade já de retorno para o silêncio final” (ANDRADE, 1972b, p. 109). A loquacidade do poeta romântico, aquele mesmo que lhe emprestou a vigorosa e belíssima metáfora para a representação dos impasses amorosos de uma primeira experiência amorosa, é agora percebida sob outra perspectiva de leitura, que não anula, todavia, a interlocução poética que revigora e atualiza o texto de Castro Alves no cenário da literatura brasileira. (Vale esclarecer que Contos novos foi publicado em 1943 e que “Vestido de preto” está assim datado: Rio, 1939 — S. paulo — 17/11/43. As duas leituras coincidem assim do ponto de vista temporal.)

Page 30: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

28 ◄◄

Já a título de conclusão, observo que esses impasses e essas polêmicas que se verificam no território das leituras críticas muitas vezes suscitam outras estratégias de diálogos entre os textos de uma cultura, propiciando o aparecimento de novos textos que, in-tencionalmente ou não, respondem a determinadas questões crí-ticas, com uma eficácia tão contundente quanto as polêmicas tra-vadas nos meios literários e acadêmicos. Reporto-me aqui a uma leitura contemporânea de Castro Alves, efetuada por uma drama-turga baiana, que é também acadêmica, a escritora Cleise Mendes. Trata-se da peça Castro Alves, que a autora apresenta como um drama lírico-sentimental e histórico, que restitui ao poeta Castro Alves o espaço que lhe era mais caro: o palco.

Cleide Mendes considera que Castro Alves manteve com a teatralidade relações viscerais, profundas, comoventes, e que a utilizou como uma estratégia poética e política, afirmando tam-bém que o palco é o lugar por excelência do poeta: “Palco que ele soube improvisar onde quer que passasse, nas praças, nas sa-cadas, nos salões, e até nos camarotes dos teatros” (MENDES, 2003, p. 20). Cleise Mendes escreve então um texto dramáti-co, que foi montado em 1994, no Teatro Castro Alves, a partir de fragmentos de textos do poeta, episódios da sua biografia, bem como da história política, social e cultural da época. Esses elementos dialogam e se mesclam com elementos da contem-poraneidade, utilizando-se de uma multiplicidade de discursos e formas culturais como o folhetim, a novela de televisão, o melo-drama musical, o drama histórico moderno, em um processo de colagem que se apropria do corpo poético, histórico e político de Castro Alves, atualizando-o não apenas do ponto de vista de uma arte inserida em uma tradição culta estabelecida, mas apelando para outras formas que revigoram as diversas poten-cialidades contidas no texto castroalvino, enfatizando os seus excessos como uma estratégia poética e política, sem deixar de considerar também a problemática do mau gosto, evidenciada em algumas leituras críticas sobre Castro Alves, como a de Má-rio de Andrade e a de Antonio Candido.

Page 31: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 29

Nesse sentido, é bastante arguto o comentário de Eneida Leal Cunha em seu texto “A boa ‘conspiração cultural’”, que serve de apresentação ao livro de Cleise Mendes (2003, p. 7-13), quando afirma:

Ao recuperar para a cena atual a figura do poeta Castro Alves, Cleise Mendes, deliberadamente ou não, inscreve a sua voz numa das mais duradouras polêmicas literá-rias brasileiras. Seu texto, de certa forma, é uma réplica contundente ao restritivo, mas célebre, diagnóstico de Antonio Candido, na Formação da literatura brasileira. para Candido, em que pese a “máscula energia do poeta hu-manitário” (que, aliás, já havia sido ressaltada por Mário de Andrade), marca a obra do poeta baiano [...] a “incon-tinência verbal tão brasileira, expressa pela floração de oradores que constituem a expressão intelectual mediana do povo” (CUNHA, 2003, p. 11).

As sucessivas leituras e releituras de um texto afirmam, portanto, a sua fertilidade, a sua potencialidade para ser ressig-nificado ao longo dos séculos, suscitando múltiplas indagações, que, muitas vezes, não são imediatamente assimiladas. Ao mor-rer aos 24 anos de idade, Castro Alves legou à posteridade um conjunto de textos que nem todos os poetas que tiveram um transcurso de vida mais longo conseguiram legar. pois Castro Alves conhecia a função fabuladora da literatura de capturar a vida, entrelaçá-la na constelação dos seus signos, das suas pala-vras. Todas as epígrafes que aparecem em seus poemas, todas as citações literárias, míticas, bíblicas que se disseminam em seus textos revelam o desejo de vivificação, de construção de uma genealogia, de uma nação de poetas, ofertando à humanidade, a cada época, a cada ser, uma possibilidade de sermos errantes, nômades, voluptuosos, amorosos, libertários, universais.

Page 32: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

30 ◄◄

REFERÊNCIAS

ALVES, Castro. Obra completa. (Org., fixação do texto, cronologia: Eugênio Gomes). Rio de Janeiro: Aguilar, 1960.ANDRADE, Mário. Contos novos. 3ª. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972a.ANDRADE, Mário. Castro Alves. In: ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972b.CANDIDo, Antonio. Formação da literatura brasileira. (Momentos deci-sivos). 4ª ed. São Paulo: Martins, 1971, vol. 2. (1836-1880).CUNHA, Eneida. A boa “conspiração cultural” In: MENDES, Cleise. Castro Alves, Marmelada, Uma comédia caseira, Noivas. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 2003. (Dramaturgia da Bahia).HOISEL, Evelina. A estética do espelho. Uma leitura do poema “Boa noite”, de Castro Alves. In: Revista da Academia de Letras da Bahia. nº 42. Salvador: Academia de Letras da Bahia, março de 1996, p. 365-375.MAToS, Edilene. Castro Alves: imagens fragmentadas de um mito. São Pau-lo: EDUC/FApESp, 2001.MENDES, Cleise. Castro Alves. In: MENDES, Cleise. Castro Alves, Marmelada, Uma comédia caseira, Noivas. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 2003. (Dramaturgia da Bahia).1

Evelina Hoisel é ensaísta, pesquisadora do CNPq, professora titular da Universidade Federal da Bahia, mestre em letras pela pontifícia Uni-versidade Católica do Rio de Janeiro e doutora em teoria da literatura e literatura comparada pela Universidade de São Paulo, já tendo pu-blicado diversos livros, bem como artigos em jornais e revistas. Eleita presidente da ALB para o biênio 2015-2017. Desde 2005 ocupa a Ca-deira número 34 da ALB.

Page 33: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 31

o CoNTo DE HÉLIo pÓLVoRAUma visão de conjunto a partir do primeiro livro

ArAmis ribeiro CostA

o contista Hélio Pólvora inicia-se com o conto “Os galos da aurora”. Esse conto, que muito mais tarde foi reescrito,

além da alegria da primeira criação literária, proporcionou-lhe a de vencer, em fevereiro de 1958, o concurso de contos de A Cigarra, dirigido por Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai. O texto, além de estampado na revista de circulação nacional, mereceu elogioso parecer dos julgadores:

o conto é de primeira ordem: vivo, excelentemente escri-to, e com algo de poético. obra de escritor feito. Lembra o admirável Miguel Torga, sobretudo o Torga dos Bichos.

Uma lembrança no mínimo curiosa, considerando haver, nesse livro do autor português, um conto, “Tenório”, que é, jus-tamente, a história de um galo.

o sucesso do primeiro conto motivou a coletânea de es-treia, sob o título do texto premiado. E, ainda em 1958, sur-gia o livro Os galos da aurora, publicado pela Editora Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia. Assim mesmo, apresentando essa tríplice naturalidade, com capa e ilustrações de Barboza Leite, um livro que, naquele mesmo ano, iria receber, juntamente com Os incoerentes, do catarinense Harry Laus, o prê-mio Jornal do Comércio, para o melhor livro publicado.

É também de 1958, 20 de agosto, a crítica de Adonias Fi-lho no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, assim iniciada:

Page 34: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

32 ◄◄

Esse baiano do sul cacaueiro — que quase sempre serve de cenário aos contos — hoje fazendo jornalismo no Rio, é escritor da geração que estreia. De estreante, em con-sequência, o seu livro. Tendo-o lido nos originais, posso assegurar que em suas páginas se encontrará um ficcionista de expressão segura, que não ignora, por outro lado, os segredos do ofício. Preferindo o conto, embora seja fácil verificar que não tardará a chegar ao romance, conseguiu realizá-lo em inúmeras atmosferas como a demonstrar não temer a variação temática e as consequências técnicas. Os episódios, que se movimentam sobretudo no plano da aventura interior, não se encerram naquela tessitura descri-tiva sempre responsável pela falta de caracterização psico-lógica. Sendo um narrador, e capaz de captar a paisagem e a vida no cotidiano, Hélio Pólvora não esquece o sangue ficcional que se identifica com a própria natureza humana.

Após outras considerações críticas, amplamente favorá-veis, Adonias Filho encerra a sua apreciação com uma afirmativa e um vaticínio:

o estreante Hélio pólvora assina um compromisso, ao qual já não pode faltar, com a moderna ficção brasileira. E a verdade é que muito temos que esperar da obra que se inicia com Os galos da aurora.

À apreciação do novelista de O Largo da Palma seguiram-se várias outras, igualmente elogiosas, como as emitidas por Nelson Werneck Sodré, Ricardo Ramos, Guedes de Amorim, em Lis-boa, e Jorge Amado. o primeiro livro, portanto, além de dupla-mente laureado, o conto-título e o próprio livro, não passou des-percebido de um importante editor, da crítica e, provavelmente, também do público. Curiosamente, apesar de sua qualidade e de sua importância histórica, o autor praticamente retirou-o de sua bibliografia, ao reescrevê-lo e reestruturá-lo inteiramente, pon-do, em seu lugar, outro livro com o mesmo título.

Page 35: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 33

Como registro histórico, é interessante observar que essa coletânea inaugural, hoje substituída, era formada por doze con-tos: “Os galos da aurora”, “Os morcegos”, “Filhotes de pas-sarinho”, “A ninfa e o repuxo”, “O diabo em Baixa Grande”, “Gedeão e os medianitas”, “O caminho do mar”, “Cadeia”, “Os velocípedes”, “A velha Joana”, “Aventura ao anoitecer” e “O violão e a bicicleta”, num total de 143 páginas. Eram tex-tos relativamente curtos, considerando, principalmente, a ten-dência posterior do autor para o conto mais longo. Entretanto — como, aliás, ocorreria com todos os demais contos de Hélio pólvora daí por diante —, eram verdadeiramente contos, com núcleos ficcionais definidos e sempre narrando algo, não poden-do ser confundidos com nenhum outro gênero breve.

Apesar da simplicidade das tramas, já se notavam, no volu-me de estreia, os primeiros esboços de experimentações técnicas, podendo servir como exemplo o mais longo daqueles contos, “A ninfa e o repuxo”, no qual o fio condutor eram as anotações do diário de um adolescente com perturbações mentais. A lingua-gem, em todas as narrativas, apresentava-se clara e correta, em-bora sem a extraordinária precisão de termos e expressões, e a riqueza vocabular que mais tarde seriam alcançadas, e denunciava, pela objetividade, a influência do jornalista, habituado, por força do ofício, à comunicação imediata com o grande público.

Os contos desse primeiro livro giravam, quase sempre, em torno de episódios particularmente ligados à infância de um menino e seus conflitos, impulsos e remorsos, desejos e frustrações, e fluíam impregnados de uma emoção que se diria contínua, discreta e pungente, como costumam ser os senti-mentos que nos retornam da infância. O menino ou adoles-cente — personagem constante, em narrativas ora na primeira, ora na terceira pessoa, havendo, em “Os velocípedes”, curio-sa substituição de narrador, do filho para o pai — era acom-panhado de personagens recorrentes, como Jacinto e a negra Ana, galos e passarinhos, e atormentado, permanentemente,

Page 36: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

34 ◄◄

por necessidades da infância e da adolescência, seguidas de consequentes embates de consciência.

A sugestão do conjunto é a da farta utilização de material autobiográfico, vivências ou relatos de vivência ligados à infân-cia do autor, o que, aliás, estaria concordante com uma declarada teoria de Hélio Pólvora sobre a utilização do elemento auto-biográfico como um dos componentes fundamentais da feitura do conto. Entretanto, a realidade ou a memória da realidade já entrava nos seus textos ficcionais curtos, desde esse primeiro livro, apenas como um detonador da imaginação, levando-o a, alicerçado nela, construir a sua arte ficcional, e não a utilizá-la integralmente, como um relato de experiências.

É bem conhecida a estreita relação realidade-memória-fic-ção, não sendo poucas as teorias erguidas sobre estes três pilares que, muitas vezes, se confundem e se completam, mas que pos-suem feições e objetivos diversos. Apresentando-se, além de fic-cionista, como ensaísta e crítico, Hélio oferece, em sua ensaística sobre o conto, gênero de sua preferência, algumas importantes pistas para as diretrizes e motivações de seus métodos criativos, desenvolvidos, ampliados e aperfeiçoados a partir do primeiro livro. Uma delas encontra-se, curiosamente, não num ensaio, porém na boca do personagem-narrador de um de seus contos mais festejados, “Meu compadre Tirésio”, que integra a versão definitiva da coletânea Os galos da aurora:

Linha reta é ilusão, é o caminho mais longo, muitas vezes a verdade está escondida nas curvas de um acontecimento que alguém conta assim como eu, de manso. Tem de ser de manso, porque por mais que o dia dure, ou a noite insista em ficar, ninguém completa um conto, fica sempre o não dito, o esquecido. Quem narra, puxa por sua imaginação e pela dos outros.

Nessa afirmação de um personagem-narrador há, sem dúvida, todo um código de criação do autor, traduzido na

Page 37: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 35

forma de arquitetar e desenvolver as tramas, mas, por igual, importante revelação das suas fontes narrativas, buscadas e encontradas, justamente, “nas curvas de um acontecimento”, curvas que, de repente, submetidas aos artifícios da imagina-ção, se transformam em novos e, por vezes, bem mais interes-santes acontecimentos que os originais. Desta maneira, para Hélio Pólvora, o conto não se finda, constituindo, ele próprio — o texto concretizado —, inesgotável veio de novas circuns-tâncias e interpretações, a instigar e seduzir para a reescrita, possivelmente na tentativa de, enfim, dizer “o não dito”, ou lembrar “o esquecido”.

Paradoxalmente se, por um lado, o conto não se finda, porque não se esgotam as suas possibilidades técnicas e aborda-gens temáticas de recriação, e há sempre, nas entrelinhas, o não dito, sugerido ou esquecido, em condição latente para uma nova feitura, por outro, ao prosseguir sendo reescrito na imaginação do autor, o conto completa-se — ou acrescenta-se — com o tempo, na medida em que os conflitos que o motivam vão sendo resolvidos — ou melhor avaliados.

Na sua maturidade de criação e estudo de literatura, o fic-cionista e ensaísta Hélio pólvora assim se expressou:

...a visão interior buscada pelo conto há de refletir a per-sonalidade e os conflitos do autor-narrador. O conto seria então um meio de busca e averiguação. Autobiográfico, quase sempre. O conto é a maneira de o autor-narrador conviver com certos conflitos básicos. Nesse caso, Dide-rot-Borges têm razão: o conto completa-se com o correr do tempo. (A Tarde Cultural, 21/02/1998).

Dessa forma, e na visão particular desse autor, a obra de arte literária seria também um meio de estabelecer definições interiores de temas e situações de vida, bem como de determi-nar o ângulo de visão mais adequado para o eterno binômio ficção-realidade.

Page 38: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

36 ◄◄

A evolução do contista, a partir do primitivo Os galos da aurora, foi direcionada, nos seus componentes formais, para a linguagem e a técnica, não apenas como elementos funcionais e fundamentais do estilo, mas também e, principalmente, como recurso de expressão — no tocante à linguagem — e artifício de aprofundamento e ampliação do espaço ficcional dentro dos limites do conto — no que diz respeito à técnica —, na intenção conjunta de enriquecer o gênero e esgotar as suas possibilidades narrativas.

Sobre a linguagem, além da evidente riqueza vocabular e sua exatidão, acentuadas ao longo da obra, é curioso observar a facilidade que o autor adquiriu em mesclar o idioma escorreito e, não raras vezes, erudito, ao linguajar vário e criativo do povo, expressões incultas, mas absolutamente pertinentes ao contexto narrativo, em particular no ambiente rural, formando, com pala-vras desiguais, um conjunto harmônico, e revestindo a prosa de especial colorido, sem descair no desagradável, no inconvenien-te ou no chulo. Aqui está um exemplo, em “A guerra dos fogue-tões machos”, conto igualmente integrante da versão definitiva de Os galos da aurora:

Os foguetões vieram mais tarde, adepois que mandou buscar noiva, ou mulher de papel passado ou rapariga em Sergipe, já então aboletado na vida, estabelecido na sesma-ria da Jurubeba, com ares, haveres, vagares e melindres de coronel das brenhas — título despachado pelos pobres e remediados em razão do crescimento das safras e do es-parrame dos seus desassossegos temperamentais.

Note-se como, dentro de uma concordância gramatical impecável, convivem, num mesmo período, uma palavra como adepois com outras, como desassossegos, haveres, vagares e melindres; observe-se a peculiar conotação de vocábulos como aboletado e esparrame; verifique-se como o mesclado dos termos enriquece, personaliza e exatifica a narração.

Page 39: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 37

Alternando o ambiente ficcional entre a zona do cacau do sul da Bahia e os centros urbanos, Salvador e Rio de Janeiro, variando o nível social e cultural dos personagens e também a pessoa do narrador, entre a primeira e a terceira, essa linguagem sofreu variações de conto para conto, permanecendo, entretan-to, com as suas características básicas de riqueza e exatidão voca-bular, onde se inclui a mescla do coloquial com o erudito.

Também é preciso registrar que foi o domínio da lingua-gem, unido à observação sagaz do ficcionista — observação não apenas do cotidiano representado pelas pessoas, suas ações, senti-mentos e reações, mas também do cenário onde os acontecimen-tos se passam —, que o fez primoroso na descrição de cenas e situações, bem como na ambientação das suas histórias, resultado obtido com poucas palavras e uma precisão que se diria fotográ-fica, ou, considerando a dinâmica do entrecho, cinematográfica. A abertura do conto “A caderneta”, também integrante da versão definitiva d’Os galos da aurora, serve de ilustração:

Don’Ana finca os cotovelos numa das janelas da sala que dá para o quintal. E assim fica uns minutos, o rosto colhido na concha das mãos qual haste de flor murcha. Olha sem ver, como através de uma névoa, a goiabeira de goiabas bichadas, o pé de laranja-da-terra, a cacimba de onde pu-lam sapos no inverno. Além da cerca, no estreito terreno em declive, há um moinho de trigo, e depois o rio escuro.

perceba-se como, num parágrafo de poucas linhas e es-cassos adjetivos, é apresentada a personagem, situada no am-biente, revelado o seu estado de espírito e descrito o cenário que se descortina diante dela, tudo isso de maneira concisa, exata e suficiente.

Na técnica, após o domínio dos modos usuais de desen-volvimento de enredo, o contista partiu para uma experimenta-ção que o levou a fixar-se, particularmente, na superposição das tramas, como uma forma de ampliar o fechado círculo narrativo

Page 40: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

38 ◄◄

do conto. Ou seja: chegado ao limite máximo de extensão per-mitido pelo gênero — o horizontal — sem desfigurá-lo, trans-formando-o em novela, o autor ampliou-o verticalmente, super-pondo tramas e conflitos que se cruzam e se completam como as malhas de uma mesma rede, ou espirais que sobem e descem, na expansão e aprofundamento do próprio universo ficcional: uma história dentro da outra história, dentro da outra história, e todas na vastidão interminável das hipóteses.

Naturalmente que, nessa atitude, estaria aquele desejo da busca da verdade “nas curvas de um acontecimento”, já expres-so pelo personagem-narrador de “Meu compadre Tirésio”, e permanentemente demonstrado pelo autor. Desta maneira, cada conto de Hélio pólvora passou a ser uma surpresa na sua forma de contar, o que o tornou, pelo êxito dessas experimentações, um mestre da técnica narrativa do gênero.

A caminhada evolutiva, a partir do primitivo Os galos da aurora, não se deu, entretanto, apenas nos seus aspectos formais, mas também nos temas e significados. A matéria ficcional pros-seguiu, como não podia deixar de ser, fartamente haurida do autobiográfico e da realidade cotidiana, com interessantes in-cursões, sobretudo de significados, na mitologia, na História e na Bíblia, esta última já encontrada no livro de estreia, no conto “Gedeão e os medianitas”. Os seus enredos, densos e reflexi-vos, mas sem abdicarem do núcleo ficcional, ou seja, narrando sempre uma história, como determina a mais pura tradição do gênero, passaram a refletir, cada vez com mais intensidade, o inesgotável universo da experiência humana, traduzido, sobre-tudo, nos conflitos e nas emoções dos personagens, valorizando mais os pensamentos que os dizeres, mais as íntimas reações que as atitudes, mais os significados que as aparências.

De 1958, ano da publicação do primeiro Os galos da au-rora, a 2002, da publicação do novo Os galos da aurora, Salvador, Casa de Palavras, Fundação Casa de Jorge Amado — esta con-siderada, por Hélio Pólvora, como a edição definitiva do seu

Page 41: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 39

livro de estreia, embora seja, na verdade, outro livro —, período que parece fechar o ciclo mais produtivo do autor no gênero, foram quarenta e quatro anos de exercício e experimentação do conto, demonstrados em quinze livros de ficção curta, incluindo os dois Os galos da aurora: A mulher na janela, Rio de Janeiro, A Estante publicações, 1962; Estranhos e assustados, Rio de Janeiro, Lidador, 1966; Noites vivas, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1972; O menino do cacau, parceria com Telmo padilha, Rio de Ja-neiro, Antares, 1979; Massacre no km 13, Rio de Janeiro/Brasília, Antares/INL, 1980; O grito da perdiz, São Paulo, Difel, 1983; 10 Contos escolhidos, Brasília, Horizonte, 1984; Aquém do umbral, Rio de Janeiro, Pão de Açúcar, 1985; Mar de Azov, São Paulo, Melho-ramentos, 1986; Xerazade, Rio de Janeiro, José olympio, 1989; Três histórias de caça e pesca / Troisrécits de chasse et pêche (edição bilín-gue, com versão para o francês de Jacques Delabie), Salvador, Mythos, 1996; O rei dos surubins, Rio de Janeiro/Salvador, Imago / Fundação Cultural do Estado da Bahia, Coleção Bahia: Prosa e poesia, 2000; e A guerra dos foguetões machos, Alenquer, Portu-gal,orabem Editora, 2000 — este último uma antologia pessoal do autor para a editora portuguesa, dentro da coleção Enredos Brasileiros.

Durante esse tempo o contista foi inserido em diversas antologias, incluindo estrangeiras, e colaborou com inúmeros suplementos literários e revistas culturais do país. Além dos já mencionados prêmios de A Cigarra e do Jornal do Comércio, con-quistou outros, como o da Fundação Castro Maya, em 1966, com Estranhos e assustados e venceu, na categoria conto, por duas vezes, 1982 e 1986, a Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, pri-meiro com O grito da perdiz, e depois com Mar de Azov. Nes-se extenso e aplaudido trajeto, distanciou-se evolutivamente do contista do primitivo Os galos da aurora, aprimorando estilo e técnica narrativa, aprofundando e alargando tecnicamente as tramas, enriquecendo o vocabulário numa costura muito parti-cular de expressões de língua padrão e coloquial, desdobrando

Page 42: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

40 ◄◄

ou esgotando temas, criando tipos, penetrando cada vez mais fundo na alma e na condição humanas, construindo, enfim, uma obra verdadeiramente extraordinária na ficção curta, tanto pela quantidade quanto pela qualidade da produção.

Após o segundo Os galos da aurora, houve apenas a pu-blicação de um volume contos inéditos em livro: Contos da noite fechada, Ilhéus, Editus-Editora da Universidade Estadual de San-ta Cruz, 2004, um conjunto de quatorze contos, quase todos anteriormente publicados em jornais ou revistas. Porém a sua trajetória de contista foi consagrada por três acontecimentos editoriais da máxima relevância, particularmente para a fixação de textos definitivos, e para a comprovação da qualidade e da importância desse ficcionista para as letras nacionais. O primeiro deles a publicação do volume Melhores contos, com introdução, bibliografia e seleção de André Seffrin, São Paulo, para a Global Editora, em 2011. O segundo a republicação, em coleção padro-nizada, de quatro de seus melhores livros de contos, Noites vivas, Massacre no km 13, O grito da perdiz e Mar de Azov, pela editora Casarão do Verbo, Anagé, 2013. E, finalmente, a publicação, em dois volumes de mais de quatrocentas páginas cada, dos Contos e novelas escolhidos, selecionados e prefaciados pelo próprio Hélio Pólvora, integrando a importante Coleção Mestres da Literatura Baiana, volumes dois e três, da Academia de Letras da Bahia e da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, Salvador, 2013, uma reunião de cinquenta e cinco contos que, entretanto, ainda deixou de fora mais de seis dezenas, à espera de uma futura e necessária obra completa.

Ensaísta, crítico e ficcionista para quem a literatura não tem segredos, o ensaio, a crítica, a crônica e o romance de Hélio pólvora também oferecem material largo e fundo para leitura e estudo, apresentando os diferenciais de qualidade e as inven-tivas que são a marca registrada desse autor. Aqui, entretanto, tratamos apenas do conto. Motivo de um trabalho permanente ao longo de toda uma vida de escritor, a sua produção nesse

Page 43: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 41

gênero, além de um fértil material para estudo, observação e análise, constitui um monumento de arte e talento singular da literatura brasileira, digno de ladear qualquer produção nesse mesmo gênero em qualquer literatura.1

REFERÊNCIAS

COSTA, Aramis Ribeiro. “O caminho da eterna aurora”, estudo intro-dutório de Os galos da aurora & outros contos. Salvador, Casa de palavras, 2002.pÓLVoRA, Hélio. Os galos da aurora. Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Editora Civilização Brasileira S.A, 1958.pÓLVoRA, Hélio. Os galos da aurora & outros contos (edição definitiva). Salvador, Casa de palavras, 2002.

Aramis Ribeiro Costa é médico, também graduado em letras. É escri-tor, autor de duas dezenas de livros de ficção e poesia, entre eles Uma varanda para o jardim (1993), O mar que a noite esconde (1999), O fogo dos infernos (2002) e Os bandidos (2005). É sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e membro do Instituto Genealógico da Bahia. Foi membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. presidiu a Aca-demia de Letras da Bahia na gestão 2011-2013, sendo reeleito para o período 2013-2015. Desde 1999 ocupa a Cadeira número 12 da ALB.

Page 44: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 45: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 43

DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃO

Cleise mendes

Uma das bem conhecidas brincadeiras sérias do crítico Harold Bloom é sua afirmação de que Shakespeare foi

o verdadeiro inventor da psicanálise, e Freud fez apenas sis-tematizar, “explicar” aquele desfile de paixões encarnadas em figuras cênicas que compõem uma espécie de mosaico da alma humana.1 Como toda frase espirituosa, esta exibe uma refle-xão travestida em jogo de palavras. Algo que merece nossa atenção brilha à tona desse gracejo. Ele nos faz lembrar que a dramaturgia — não apenas a de Shakespeare, é claro —, em seu trabalho de produzir imagens de ações humanas, foi talvez a primeira prática de objetivação dos nossos medos e desejos. Ao criar um repertório de personagens que se debatem com as ansiedades de seu próprio espaço e tempo, cada autor dramá-tico ofereceu valioso material para o estudo desses comporta-mentos em outras áreas de saber – não só a psicanálise.

Se quisermos fantasiar uma origem, podemos imaginar que a dramaturgia surgiu no momento em que os humanos criaram seus primeiros deuses e demônios, pois a partir daí engendra-se uma poderosa matriz para a contínua recriação de um sem número de histórias, e mais importante: de um sem número de combates, de situações de enfrentamento entre

1 “A menos que se seja um religioso freudiano, essa é a antiga história da influência literária e suas ansiedades. Shakespeare é o inventor da psicanálise; Freud, seu codificador.” BLOOM, 1995, p.361.

Page 46: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

44 ◄◄

forças rivais, empenhadas numa luta de dimensões cósmicas. Quando criamos os deuses e demônios, à nossa imagem e se-melhança, passamos a contar com protagonistas e antagonistas de grande poder e largo fôlego; imortais, e portanto envolvi-dos num conflito eterno. Ora, com uma construção simbólica tão potente, não é de admirar que em várias tradições teatrais os primeiros textos dramáticos de que temos notícia surjam como recriações desse painel de figuras míticas. Os mais anti-gos poemas dramáticos já descobertos são textos egípcios que falam de combates entre divindades do bem e do mal. E alguns datam de 1500 anos a.C.!

porém, num determinado ponto dessa história, os dra-maturgos deixaram o palco cósmico e começaram a projetar nossas angústias em cenários bem terrenos. passaram das titâ-nicas batalhas pelo poder no Universo para guerras fratricidas, para chacinas em nome da fé, para dilemas racionalistas entre o amor e o dever, para indagações filosóficas, para os segredos e escândalos da casa burguesa, para a militância política, para os momentos lacrimosos de reencontro entre pais e filhos, e daí para as pequenas lutas diárias pela sobrevivência.

Mas, tendo como cenário o céu ou a terra, o que persiste no modo dramático de figuração do mundo é a incorporação das ânsias e temores de cada época em recortes precisos, antropo-mórficos. Aquilo que Nietzsche chamou de “princípio de indi-viduação”: as paixões desordenadas que brotam da lava dio-nisíaca precisam das formas apolíneas para serem moldadas, contempladas, vivenciadas e... talvez, talvez... compreendidas. precisamos do corpo forte e negro do guerreiro otelo para vi-venciar sua destruição pela picada da pequena vespa do Ciúme; ciúme que surge não como ideia abstrata, mas encarnado num corpo branco de mulher e nas palavras tão concretas quanto gotas de veneno que Iago pinga em seu ouvido. Precisamos do corpo magro, ágil e amarelo de João Grilo para encarnar a esperteza, esperteza sem a qual o seu sangue “de pouca tinta”, como o

Page 47: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 45

do Severino de João Cabral, não conseguiria mantê-lo vivo por mais um dia.

Por isso vejo esse trabalho milenar do dramaturgo como um esforço constante para dar corpo às paixões, para torná-las vi-síveis e tangíveis, por meio da figuração de conflitos humanos. A história do drama é não apenas a história da representação de nossas paixões, mas também a história da produção de diferentes modos de perceber e vivenciar esses afetos, investidos em imagens corporais que portam, carregam, significam os embates passio-nais em cada época e ambiente social. por isso a via dramática é também uma via erótica: qualquer ideia, qualquer conceito, qualquer questão a ser debatida exige o trânsito pela corporei-dade, exige que nossa imaginação seja projetada em seres que agem e padecem, ou seja, são animados pelo pathos em todos os seus movimentos. De Sófocles a Shakespeare, de Brecht às rapsódias contemporâneas, o drama é sempre uma experiência de corpo a corpo, de choque de sensibilidades.

Em seu livro Gilberto Gil: a poética e a política do corpo, Cás-sia Lopes chama atenção para o fato de que “Se o corpo pode ser lido como uma metonímia do social, isso se deve ao fato de abrigar uma carga elevada de tensão, de conflito, conforme diferentes perspectivas críticas diante da lei, do éthos, sem os quais não se sustenta o desejo.” (LOPES, 2012, pág.19) No espaço do drama, esse efeito de condensação atinge um grau máximo, pois acessamos as significações sociais e éticas por meio da corporeidade, e os movimentos do desejo têm olhos e bocas, pernas e braços.

A piada do crítico que citei há pouco revela também uma disputa insistente que passa pela reivindicação da origem: qual o primeiro farol que iluminou a base submersa de nossa perso-nalidade? Seriam os mitos gregos levados ao palco, há dois mil e quinhentos anos, ou a explicação freudiana? A querela existe, por mais engraçada que pareça, uma espécie de disputa pela paternidade do Édipo. Mas para explorar também o caminho

Page 48: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

46 ◄◄

do humor, eu arriscaria dizer que o pai do analista foi o dramaturgo. E pode-se dizer que é o próprio Freud quem autoriza essa filia-ção, ao analisar sonhos de personagens como sonhos de pesso-as reais, justificando a análise de uma obra de ficção pelo fato do escritor trabalhar com o mesmo material do comportamento humano observável, auxiliado por sua imaginação e pela intui-ção dos profundos impulsos que movem suas ações. “A descri-ção da mente humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido o precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica.” (1997, p.48).

Ciente de que a percepção de motivações inconscientes sempre alimentou o prazer oferecido pela ficção, Freud dedi-cou-se à análise das obras de muitos dramaturgos modernos, como Ibsen e Schnitzler. Não só das tragédias gregas, de onde parte o grande insight para o Édipo; Shakespeare é citado, a todo instante, para mostrar, por exemplo, como o dramaturgo faz seus personagens cometerem atos falhos, e de que modo esse recurso contribui para revelar as motivações do seu agir. Mas o que importa, aqui, nessa nítida atração do analista para a dra-maturgia e para o teatro em geral, é observar como isso pode lançar luz sobre a representação das paixões por meio dos cor-pos em cena. Com tais exemplos, não pretendo (apenas) ressal-tar a dramaturgia como modo de apresentação de vários níveis conflituais, desde os que podem ser objetivados na ação até os mais subjetivos, ou que traçam mais sutis motivações de com-portamento. Trata-se de ver como o drama se constituiu como “arena das paixões”, e como a proliferação da ficção dramática em novas mídias só fez adensar essa questão, hoje bem mais do que na época de Freud. É do embate das paixões, diversamente corporificadas, que se alimentam não só o teatro, mas a televisão e o cinema, assim como a crescente produção de jogos intera-tivos em ambiente digital.

Como se sabe, o desejo de compreender as paixões huma-nas ocupou boa parte do pensamento ocidental, muito antes da

Page 49: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 47

psicanálise. E as explicações produzidas são elas próprias muito apaixonadas! Daí que acompanhar a história de nossas paixões não é tarefa simples. Em cada época as paixões se expressam de modo diferente e são também diferentemente percebidas e qua-lificadas; no interior de um mesmo sistema de ideias, sua des-crição é confusa e até contraditória. A impressão que se tem é que as paixões são regidas por deuses polimorfos. Há paixões para tudo, para o bem e para o mal: as que conduzem à ação e as paixões paralisantes, as que movem a criação e as que geram destruição; há paixões da solidão e do convívio, paixões antigas e modernas. O resultado disso é que nossa razão, que se pen-sava única, absoluta, ao tratar com as paixões acaba também se multiplicando. A Razão faz-se plural: razões.

Nesse caminho, aquele que queira encontrar uma base estável de oposição entre razões e paixões, vê-se diante de um quadro complicado. Por isso é possível dizer, sem exagero, que apesar da preciosa contribuição dos filósofos, foi no espaço do drama, ao longo de séculos, que as paixões, ao serem objetivadas em personagens e situações, puderam atrair a atenção e a reflexão não só de filósofos e analistas, mas do público em geral. E isso vai da tragédia grega à telenovela brasileira.

Como tópico dos estudos filosóficos, as paixões já fo-ram consideradas como “afecções da alma”, por seu poder de contaminar os nossos julgamentos. De Platão parte uma certa linha de pensamento, chegando até o cristianismo, que consi-dera a paixão uma afecção a ser curada, para se atingir a sabe-doria, ou a santidade. É contra o pano de fundo desse quadro ascético — a-pático — que se torna importante a vizinhança das paixões com a Retórica e a poética, em Aristóteles. Ao in-vés de condenar as paixões, como Platão, o filósofo se dedica a um reconhecimento exaustivo de sua importância, por consta-tar que as opiniões oscilam de acordo com os afetos. Na Ética a Nicômaco, encontramos o exame de onze paixões; no livro II da Retórica são analisadas quatorze paixões. Isso porque a retórica

Page 50: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

48 ◄◄

não pode ser meramente demonstrativa. Ela tem que ser tam-bém patética, para colocar a audiência numa certa “disposição de ânimo”. Mas o que chama atenção é que os conselhos do filósofo ao orador e ao tragediógrafo são muito parecidos. Co-nhecer as paixões e contar com elas deve ser o primeiro cuidado de ambos.

Ora, outra coisa não fez a dramaturgia, desde então, seja na tragédia ou na comédia, como tentei mostrar em estudo anterior (MENDES, 2008). Mas com uma diferença, com a sua diferença. Em vez de confiar apenas no efeito patético de sua fala, como o orador, os primeiros autores de tragédias e co-médias inventaram um modo de lidar com as paixões criando um circuito que vai de um sujeito a outro sujeito, de um desejo a outro desejo. Nesse processo, cabe à personagem, em sua inscrição corporal, em sua persona, estabelecer o jogo de proxi-midade e distância que permite ao espectador a experiência de conhecer o seu próprio desejo.

Na ficção dramática, argumenta-se com o corpo, ou com o choque entre corpos que não podem ocupar o mesmo lu-gar no espaço. Sentimos prazer ao participar do modo como as personagens “portam” suas paixões, como agentes de um querer, um querer que coloca em movimento o mundo ao seu redor. Quando não existe alguém que deseje algo tanto a pon-to de transformar o seu impulso em ações, ações que trans-formam situações... então é a própria possibilidade do drama que entra em colapso, e disso temos abundantes exemplos na dramaturgia contemporânea. Se outro alguém deseja o mesmo que eu, nossos esforços entram em colisão, e os obstáculos po-dem ser materializados. Mas a partir do drama moderno, con-temporâneo do advento da psicanálise, as coisas se complicam. Começamos a encontrar personagens apáticas, que não conhe-cem o próprio desejo, e com isso perdem autonomia dramática e se desintegram como unidade psicofísica. Ou seja: se as pai-xões saem de cena, os corpos se despedaçam, até se tornarem

Page 51: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 49

fragmentos, vestígios, farrapos, como vemos nas últimas peças de Samuel Beckett.

A paixão que se dá a conhecer é fatalmente represen-tação, astúcias de mímese, jogo de espelhos; a paixão que se comunica é linguagem, retórica, com todo seu poder de mover os afetos da audiência. Mas é no trânsito pelo corpo que a ficção dramática exerce a sua força. A paixão que se encena está an-corada em imagens corpóreas que são inseparáveis das marcas his-tóricas ou psicológicas. E isso se torna ainda mais concreto na passagem do dramático ao cênico. A atriz que está diante de Branca Dias — personagem da peça O Santo Inquérito, de Dias Gomes — só pode acessar sua ingenuidade, sua alegria, através do belo corpo de uma jovem e de uma voz que afirma sentir a presença de Deus nas coisas que lhe dão prazer. “No vento que me fustiga os cabelos quando ando a cavalo, na água do rio que me acaricia o corpo quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentada, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto.” (1979, p.30). É pela mediação desse corpo tão devoto e tão desejante que se torna pal-pável também a crueldade dos senhores da Igreja que precisam destruí-lo para acalmar os seus próprios medos.

Quando escrevi minha peça teatral Joana D’Arc — uma das muitas construções possíveis dessa figura que oscila entre a história e o mito — percebi que tão importante quanto os acontecimentos que tecem essa incrível biografia era o fato de que foram vividos por uma camponesa saudável, robusta, num corpo de 17 anos. Um corpo intocado pela experiência sexual e que conhece seu êxtase no furor das batalhas. Um dos seus maiores inimigos, o Conde de Warwick, representante da Co-roa Inglesa e advogado ferrenho de sua condenação à fogueira, não acredita que, depois de libertar Orléans e coroar o rei Car-los, Joana queira deixar os combates e voltar a sua vida pacata. Diz Warwick:

Page 52: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

50 ◄◄

Ir embora? Longe disso! Claro que o rei Carlos já tem a sua coroa, e agora daria tudo para que essa donzela fosse embora! É uma garota muito incômoda, sempre com a mesma conversa de vozes e batalhas. Sempre a mesma ladainha de “Deus salve a França, e extermine nossos ini-migos”. Sempre insaciável, pedindo homens, armas, pro-visões. Sim, o rei adoraria ter um pouco de sossego, coi-tado, de poder voltar aos seus jantares, às suas caçadas... e que ela voltasse para sua aldeiazinha, para sua vidinha, para rezar na sua igrejinha... Mas, ela? A Donzela guerrei-ra? Ir embora? Não conte com isso! Agora a virgenzinha sentiu o gosto do sangue, a excitação da luta, o prazer de comandar homens e de rolar no chão roçando com a morte! Agora o seu corpo intocado sentiu o fogo das batalhas! A castidade dessa moça se alimenta da guerra, está viciada em guerra! Não, acredite! Ela não vai em-bora de boa vontade! Nós temos que providenciar isso! (MENDES, 2009) 2

O que permite que a saga de Joana seja uma história do século XV e também do século XXI está cifrado nesse corpo de mulher que usa roupas masculinas como proteção, como armadura, e isso vai da comédia shakespeareana ao sertão ro-siano de Diadorim. A cada vez que entra em cena, no tablado da História, o corpo produz um desconcerto, exibe o seu poder de escândalo: seja exposto e multiplicado em vitrines, seja quei-mado até as cinzas.

Em As formações do inconsciente, tratando das fantasias do sujeito obsessivo, Lacan nos oferece esta observação preciosa: “Toda vez que falamos de fantasia, não convém desconhecer-mos o aspecto de roteiro ou de história, que constitui uma de suas dimensões essenciais. (...) Ela é algo que não apenas o sujeito articula num roteiro, como no qual ele próprio se

2 Joana D’Arc estreou em novembro de 2010, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, sob a direção de Elisa Mendes.

Page 53: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 51

coloca em cena.” (1983, p. 421). Em nossos muitos palcos, internos e externos, o desejo é posto em movimento em co-reografias complexas, gerando novas e novas cenas, que são variações incessantes da cena de um querer que nos antecede, e que sobrevive a nós; mas esses quereres não surgem diante de nós idealizados, apenas como “movimentos da alma” ou como conflitos psíquicos; eles estão materializados na corcunda de Ricardo III, nos grunhidos grotescos de Calibã, no nariz de Cyrano de Bergerac, nos pés arrastados de Mãe Coragem, nos pés inchados dos vagabundos de Beckett, na pele sem manchas da Dorotéia de Nelson Rodrigues.

É isso que me faz ver a arte do dramaturgo como um ofício de dar corpo às paixões. Dar-lhes um corpo e uma voz. Uma persona. Personificá-las. Presentificá-las, produzi-las em nossa presença, como realidade física, material, sonora, visual; compartilhá-las no banquete entre palco e plateia. Pois se elas, as paixões, não tiverem um corpo e uma voz, o que será de nós? Como vamos reconhecê-las?

REFERÊNCIAS:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco: Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987._____. Retórica das Paixões. Prefácio de Michel Meyer. São Pau-lo: Martins Fontes, 2000. BLooM, Harold. O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.DIAS GOMES. O Santo Inquérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 1979.FREUD, Sigmund. Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen. Rio de Janei-ro: Imago, 1997.LACAN, Jacques. O Seminário: as formações do inconsciente. Livro 5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983.LopES, Cássia. Gilberto Gil: a poética e a política do corpo. São Paulo: perspectiva, 2012.

Page 54: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

52 ◄◄

MENDES, Cleise F. Joana d’Arc. Texto e programa da montagem de 2009. Cópia reprográfica. Salvador: Da Rin Produções Culturais, 2009.MENDES, Cleise F. A gargalhada de Ulisses: a catarse na comédia. São paulo: perspectiva, 2008. (Estudos, 258)3

Cleise Furtado Mendes é autora teatral, atriz e professora de Drama-turgia e Análise de Texto na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. É também ensaísta, contista e poeta. Entre suas obras para o teatro, encontram-se Castro Alves, drama histórico em dois atos, e A casa de Eros, peça em quatro atos. Foi membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Desde 2004 ocupa a Cadeira número 6 da ALB.

Page 55: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 53

o pRoTESTo No CoNToDo CANTo Do ACALANTo

YedA PessoA de CAstro

Este tema não é novo, mas vai ser tratado a partir da análise de um novo tipo de dado obtido através da pesquisa de

natureza etnolinguista que tomou como verdadeiro o princípio epistemológico de que a língua natural de um povo é o testemu-nho vivo mais antigo da história desse povo, cuja tradição oral é depositária e transmissora do acúmulo de experiências materiais e espirituais por ele vivenciadas.

os resultados obtidos dimensionaram de maneira mais re-alista as privações inerentes à mulher negra e mãe no contexto socioeconômico em que ela foi colocada durante o escravismo colonial no Brasil. Ao mesmo tempo, desvendaram formas co-tidianas de resistência em apoio aos seus valores matriciais, até então encobertos pelo comando do silêncio com que ela atuou na intimidade da família senhorial e na constituição identitária do povo brasileiro.

A MATRIZ AFRICANA

Na condição de país ponte de extremos socioculturais, o Brasil participa, sucessiva e conjuntamente, de três espaços legítimos:

— o espaço sulamericano, devido a sua situação geográ-fica continental;

— o espaço ocidental, eurocêntrico, com predominância no domínio da produção econômica e da tecnologia;

Page 56: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

54 ◄◄

— o espaço africano, com maior incidência no âmbito cultural em consequência da própria história do Brasil.

Tendo em vista que a cultura é traço fundamental da iden-tidade de um povo, conclui-se que o espaço africano foi uma parcela das mais significativas na configuração do perfil da iden-tidade brasileira, no que pese a herança colonial portuguesa e a ancestralidade de seus povos indígenas. Ainda sob essa óptica de interpretação, temos de considerar a interação sociolinguística dos seus principais agentes, no caso, os falantes africanos em contato com o português arcaico no Brasil colonial.

Explicar o avanço do componente africano nesse proces-so é uma questão que deve ser encarada sem as reações racistas e classistas que se lhe antepõem. Em outros termos, focalizar o negro como personagem atuante e verdadeiro no desenrolar dos acontecimentos que lhe foram favoráveis para exercer um tráfico de influência de interesses complementares, através de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido inverso, de aportuguesamento explícito do africano so-bre uma base indígena preexistentee mais localizada no Brasil.

Ao longo dessa trajetória de interação étnica e cultural e ao mesmo tempo em resistência a ela, uma confluência de moti-vos preponderantes deve ser levada em consideração. Primeiro, uma população negra majoritária durante três séculos consecu-tivos, o que determinaria, no sec. XVIII, o desaparecimento de uma língua franca corrente no Brasil que se dizia de base tupi, e uma percentagem de 75% de afrodescendentes em sua popula-ção total, segundo o censo demográfico de 1822. Em seguida, o isolamento territorial e social em que foi mantida a colônia até 1808 sob o modelo patriarcal da casa-grande e senzala, que con-dicionou um tipo de vida de aspecto conservador e de tendência à aceitação de aportes culturais mútuos de interesses comuns e niveladores (cf. CASTRo, 2001/ 2005).

Nesse contexto histórico destaca-se a influência socializa-dora da mulher negra na condição de mãe-preta no âmbito da

Page 57: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 55

família colonial brasileira e sua influência, uma vez falando por-tuguês como ladina, na formação psicolinguística da criança. No presente caso, não apenas da criança branca. Sabemos que a ex-ploração sexual da mulher negra, de preferência mucamas e crias-da-casa, logo cedo resultou no processo de miscigenação biológi-ca que ainda prevalece no Brasil, àquela época, devido ao número relativamente menor de mulheres brancas, mas, sobretudo, como uma forma de dominação, em geral interpretada por este ângulo: o “senhor” que se torna objeto no qual se realiza a superexcitação provocada pelos atributos físicos e nudez da escravizada, o que torna inevitável a investida sexual (cf. GIACOMINI, 1988).

Exemplo significativo dessa falsa visão de moral burguesa é a imagem da lendária Xica da Silva que foi veiculada com su-cesso pelo filme do mesmo nome, produzido por Cacá Diegues nos anos 80. No filme, interpretada pela atriz negra Zezé Mota, aquela crioula de origem mina, que vivia na região de Diamantina em Minas Gerais do século XVIII, é transformada em “heroína-sexo” do tempo da escravidão no Brasil, representando o sím-bolo de exageração da lascívia que chega às raias da ninfomania, conseguindo fama e fortuna sob a proteção do rico contratador português João Fernandes, apesar de toda a reprimenda que sofria por parte da sociedade local (cf. MoURA, p.98). pode até ter sido, mas é preciso observar que a mulher negroafricana, a priori, sem o ensinamento do cristianismo, desconhecia a noção do “pecado original” não sentindo, por conseguinte, vergonha de mostrar o corpo e exibir a sua sexualidade num desprendimento que a tor-nava presa fácil do apelo sexual provocado pela sua nudez ante os olhos do colonizador europeu, temente a Deus.

Em relação ao seu desempenho na condição de mãe-pre-ta, o componente subjetivo presente nos atos de amamentar, acalentar e cuidar da criança branca serviu para projetar a ima-gem da “boa ama” que teria se caracterizado pelas relações har-moniosas com os “senhores”, graças ao reconhecimento pelo privilégio de gozar da sua vida familiar. Entretanto, o que surge

Page 58: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

56 ◄◄

da pesquisa e de forma surpreendente é o protesto negro con-tido na delicadeza e ternura do seu canto de acalanto.Nele, a expressão carinhosa e de aparência ingênua disfarça uma canti-ga-de-mal-dizer, ou seja, a crítica sutil, mas acerba, da revolta de quem serve para quem esta obrigatoriamente servindo. Se não, vejamos o que diz o acalanto.

o CoMANDo Do SILÊNCIo

Mais do que omissa na História do Brasil é a imagem que ficou da mulher negra no papel de dublê, silente e anônimo, que lhe coube representar, episodicamente, na condição inevitável de escravizada servindo de mãe-preta, ou seja, posta em cena para correr os riscos, sem perdão pelo erro, na função ingrata de criar o filho da mulher branca do colonizador europeu, autores e execu-tores reconhecidos do seu drama. De sua parte, presa inexorável daquela trama cruel, sua personagem representava a imagem do conformismo feito de uma abnegação irracional, quase covarde, perante uma plateia tão alheia à sua condição humana de mulher e mãe que a identificava pela cor preta como se fosse um animal ou alguma coisa inanimada circundante à margem de um elenco de protagonistas brancos, que, no entanto, dela extorquiam o instinto maternal e o afeto em benefício próprio.

Enfocada sob essa ótica racista e bestial, ou seja, pela eventualidade de sua serventia de fêmea-objeto de uso domés-tico como ama-de-leite no mundo dos brancos, depois por eles chamada, pateticamente, pela alcunha de “mãe-preta” como um mecanismo psicológico de compensação, esse tipo de mulher era apreciado pelo aconchego da corpulência e seios fartos de uma maternidade bem sucedida, que determinaria a sua escolha para ser escrava dos cuidados e da amamentação dos filhos-família, herdeiros da casa-grande. No entendimento dos mesmos autores, um ato de imposição brutal dessa natureza devia ser considerado como um privilégio que, à semelhança de um animal domesticado,

Page 59: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 57

ela estava obrigada a agradecer com o silêncio reverente da obedi-ência e o gesto de subserviência respeitosa e passiva sob qualquer circunstância, enquanto vivesse, e que, na realidade, não aconte-ceu bem assim.

Do seu lado, como personagem atuante no processo, aque-la mulher solitária e heroica vivia, no suplício terrível da escravi-dão, o conflito íntimo e desesperado da mãe forçada a criar um desconhecido, multiplicador em potencial de outras amas-de-leite e mães-pretas iguais a ela. Para aumentar seu tormento, aquele ser indefeso era uma forma inocente de vida, de cuja vida dependia a sobrevivência dela e a do seu próprio filho, quando cedo não lhe tinha sido arrancado impiedosamente, e a quem ela terminaria por entregar o carinho, movida pelo sentimento feminino de re-compensa por uma maternidade frustrada. Em troca, esse gesto de amor se transformaria em objeto de chantagem sentimental de quem lhe tirava o afeto, enquanto dela exigia os caprichos de-vidamente realizados e as mágoas prontamente consoladas, sem consideração para a possibilidade humana de erro.

Frente à crueldade desse jogo arbitrário de vida e morte, onde a morte era um trunfo que significaria a perda inevitável de um duplo investimento para o patrimônio colonial, de um lado, o desaparecimento de um herdeiro da família qualquer que fosse a sua causa, e, fatalmente, do outro, a punição sobre a sua escra-va propriedade doméstica, é preciso ver, na imagem abnegada e silente representada pela mulher negra na condição de mãe-pre-ta com notável dedicação, uma estratégia de luta paciente e cora-josa, ou melhor, a manifestação sensata e contida do inconfor-mismo, declarado sob maneira pacífica, mas sem a passividade inconsequente que aparentava. Seus gestos e ações de protesto e de resistência, horas sutil, horas frontalmente contra a opressão cotidiana do mundo hostil e estranho ao seu redor, ela por vezes e certamente os levava ao extremo de acabar com a própria vida, única opção para provar que, em se matando, logo existia, antes que se deixasse levar pelo instinto mais forte de sobrevivência.

Page 60: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

58 ◄◄

Assim encarada sob a ótica de um espectador mais atento, sua personagem, embora construída pela força do ressentimen-to recôndito de revolta por que passa uma mãe cujo filho é tira-do do seu carinho, ela foi animada pela feição cordata e singela que, no convívio diário da casa-grande, representava sua arma de defesa feita em ternura contra possíveis torturas físicas. Ao mesmo tempo, constituía uma forma de resistência velada de ameaça sobre quem sabia do seu poder tradicional de lidar com ervas e raízes de várias espécies medicinais. Hipótese muito pro-vável, quando casos não faltam para contar de morte inusitada ou por envenenamento provocado a donos de escravizados em todos os tempos (cf. VILHENA, 1921, Tomo II, p. 138).

o pRoTESTo Do CANTo

Diante dessas circunstâncias sóciopsicológicas eventual-mente favoráveis à luta empreendida sem trégua pela sua integri-dade física e dignidade humana, a mulher negra, como “mãe que no parto sente dor” 1 e que apenas se mostrava resignada com a dor que sentia, aproveitava, com argúcia e sutileza, os raros mo-mentos de liberdade menos vigiada, para romper, “em seu seio a transbordar carinho” 2 o protesto contido na cantiga entoada do seu canto, enquanto no embalo do acalanto (Cf. VIANNA, 1957):

1 Autoria de Tatau, do Bloco Afro olodum, Protesto Olodum, Salvador, 1989. Cf. Gênesis, III, 16: “E à mulher diz...com dor parirás”.2 Do famoso soneto Ser Mãe do poeta maranhense Coelho Neto (1864-1934)

Page 61: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 59

Su, su, su, su, menino “assu”Cara de gato, nariz (inho) de peru.Su, su, su, menino mandu,Cara de gato (pato), nariz de peru;Su, su, su, menino manduQuem te pariu que te dê caruru

Cantiga de ninar muito conhecida na Bahia, o verso final, em alto e bom tom português, equivale a dizer “quem pariu os seus (dito Mateus), que o embale/balance”, ou então, na expres-são baiana, “que cuide do seu mandu”, isto é, cada um que assu-ma a responsabilidade da consequência dos próprios atos e não a transfira para quem nada tema ver com isso. No presente caso, a criação do filho branco do colonizador, cuja mulher deixava aos cuidados de uma negra parida como se ele fosse um estorvo para a rotina já enfadonha da sua vida senhorial. Nas palavras da mãe negra, um “mandu” que, mais parecia um albino (“assu”, aço) pela brancura dos traços físicos, ou alguma espécie de bi-chinho estranho, de cara esquisita, do que filho nascido de gente igual a ela, a quem não lhe cabia alimentar, muito menos com sua comida nativa, o caruru feito com quiabo (Hibiscus esculentus) trazido de Angola (cf. CASTRo, 2001/2005).

Essa mágoa desabafada pelo canto carregado de ironia jo-cosa torna-se mais incontida na variante do verso final, “quem te pariu, que te beije no cu”,ora, que se curve ao tormento de contentar seus caprichos e humilhações absurdas e descabidas, quando se sabe de exemplos de casos reconhecidos de sadis-mo praticados em todos os tempos nos escravizados (FREYRE, 1964, Tomo II, p.513-515).

Ainda o desprezo pela figura humana da mulher negra e mãe dava margem à permissividade que lhe servia para usar da expressão nua e crua no trato carinhoso com a criança. Em si-tuações como tais, o riso largo e superficial no seu rosto, que disfarçava, no canto, a timidez nervosa do choro recolhido da

Page 62: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

60 ◄◄

sua dor, tomava, aos olhos alheios, a conotação racista de uma manifestação histriônica, supostamente natural em uma “cara preta” igual à dela. Sob essa ótica distorcida, ela era vista como um corpo sem rosto humano, um arremedo de caricatura engra-çada e amedrontadora pela feiura absurda que lhe era atribuída à semelhança da “careta do boi”,também de “cara preta”, cuja imagem mete medo ao “menino branco bonitinho”, em um dos mais populares acalantos do Brasil (cf. pEDREIRA, 1978):

Não, não, nãoNão, coitadinho,Não pegue este meninoQue ele é muito bonitinho.

De sua parte, contrapondo esse tipo de visão grotesca e racista da pessoa do negro como “bem de uso” no mundo dos brancos, a mãe negra comparava maliciosamente aquele “meni-no aço”, que embalava, à figura de um “mandu”, para ela visua-lizado com a delicadeza infantil de um boneco fora do comum, por isso, feio, ou melhor, “bonitinho”. Ele era branco, de olhos claros, lábios afinados, que ela imaginava tendo a graça da cara de um gato ou pato, e, ao chorar, ficava com o nariz vermelho igual ao do peru, animais domésticos com os quais certamente convivia e também ajudava a criar.

A demonstração desse sentimento de desconforto diante daquele “mandu” e do desejo de afrontar seus opressores tor-na-se mais explícito no descompasso encontrado na variante da quadra seguinte (Cf. BASTOS, 192; VIANNA, 1957):

Page 63: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 61

Este menino não quer se criar, os anjos do céu que lhe venham buscar (ninar)Este menino é do céu não se cria, tem um buraco no c... (umbigo) que assovia.

o TESTEMUNHo Do ACALANTo

Por sua vez, para o colonizador, o uso da expressão irreve-rente, de teor escabroso em cantigas de berço já era uma tradição conhecida em portugal, e, portanto, trazida por ele para o Brasil. Os exemplos seguintes, tirados dos autos de Gil Vicente (1946, Tomo I, p. 68 e 365), muito populares à época em que foram escri-tos, século XVI, coincidentemente nos primórdios da colonização do Brasil, podem ter sido transformados pelo canto da mulher negra na versão ouvida na Bahia, devido àssuas semelhanças de traços formais básicos e temáticos em português arcaico:

Ro, ro, ro,Nuestro Dios e Redentor, no lloreis que dais dolor, a la Virgem que os parió. (Auto da Sibila Cassandra, 1511, Cena II)Ru, ru, ru,menina, ru, ru, mourão as velhas e fiques tu co’a tranca no cu.(Comédia de Rubena, 1521, Cena II)

Se assim aconteceu, o menino mandué testemunho do protesto negro rompido no seio da família escravista no Brasil,

Page 64: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

62 ◄◄

enquanto objeto e instrumento da influência socializadora exer-cida pela mulher negra no papel de mãe-preta sobre um elenco de protagonistas brancos. Como palco, o espaço circundante à convivência diária no cenário interior da casa-grande.

A atuação sociodinâmica da sua personagem na intimidade desse ambiente doméstico e conservador projetava, necessaria-mente, a interação de ambos em plano moral de interesses oposto, mas necessários. No presente caso, a partir da resistência da mu-lher negra e mãe, manifestando-se como afirmação de auto iden-tidade por meio de componentes de natureza cultural e emocional do seu cotidiano face a outros costumes sociais e representações simbólicas. Entre eles, ingredientes e pratos da sua dieta habitual que enriqueceram a mesa do colonizador e tornaram a cozinha baiana uma das mais famosas do Brasil, a exemplo do apimentado caruru no (azeite de) dendê versus o bacalhau com azeite (de oliva) que “sabe bem” na expressão portuguesa, e a conotação do termo mandu ante o significado amedrontador dos papões e similares trazidos nos acalantos de Portugal ao encontro dos tutus e quim-bundos do mundo angolano (pEDREIRA,1978;CASTRo,1978).

Page 65: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 63

o DESAFIo No CoNTo Do CANTo

O mesmo pode-se dizer da sua atuação no processo de socialização psicolinguística da criança a quem, enquanto ladina, ensinava modos de dizer e formular elementos comuns e es-senciais da comunicação diária com o português, mas em alto e bom tom africano, isto é, decalcando o português ouvido do co-lonizador a sons e conotações conhecidos da sua língua nativa, a exemplo da onomatopeia “ru”, na cantiga de berço portuguesa, para “su”, também com o sentido angolano de dormir, no aca-lanto brasileiro. Esse tipo de fenômeno linguístico, considerado natural em uma situação de bilinguismo por parte de quem co-meça a falar uma língua estrangeira, cuja tendência é transferir para a língua adquirida hábitos de sua língua materna, no pre-sente caso, do português para uma língua africana, a princípio pode ser visto, no regime da escravidão, como um mecanismo psicológico de resistência do negro contra o fato de se sentir coagido a saber usar com clareza uma língua determinada para melhor atender a seus donos, tal qual um animal domesticado em cativeiro.

No caso da mulher negra, a nível prático de interação so-cial dentro do ambiente familiar da casa-grande, aquele falar de algum modo aprendido a contragosto, mas necessário porque lhe conferia um certo prestígio individual de que gozavam os es-cravizados ladinos, terminaria, consequentemente, elevado por ela como um desafio ante o “senhor”. Ao falar português, no caso, a língua do branco que o branco estimava como “língua de gente”, ou seja, articuladamente humana, podia mostrar em tom de ameaça velada, mas a viva voz, que era um ser racional entre muitos outros, com direito humano à liberdade, nem que fosse rebeldia, pela fuga até o refúgio e proteção dos quilombos.

Sob a condição de ladina e, depois de crioula, já nascida no Brasil, portanto, mais desligada de sentimentos nativistas em relação África e suscetível à aceitação de valores coloniais euro-

Page 66: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

64 ◄◄

peus então predominantes, a mãe negra atuaria na família e na vida doméstica da sociedade escravocrata do seu tempo como figura mestra no processo de formação do perfil da “estrutu-ra mental” do brasileiro. Poder falar, enquanto bilíngue, a duas comunidades culturalmente diferenciadas e delas participar, era um exercício que lhe permitia praticar um tráfico de influências sobre um número maior de ouvintes, no seu caso, desde a in-fância, através de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido inverso, do aportuguesamento do afri-cano, justificando, portanto, o ditado popular “diante de ladino melhor ficar calado”. Como lhe deve ter ocorrido e também a crioulos em outros afazeres que não domésticos, o intento, antes de tudo, era querer impor e comprovar, pelo próprio exemplo, a existência social do negro por força da comunicação oral proje-tada em plano factível de entendimento comum entre diferentes locutores africanos por um lado e, por outro, entre esses e o português, como verdadeiramente aconteceu.

Ao EMBALo Do ACALANTo

A consequência, entre outras, da amplitude e profundida-de do alcance desse entendimento comum naquele processo de influências psicolinguísticas múltiplas, deu ao português do Brasil um caráter próprio que o identifica como uma língua diferente da que é falada em Portugal e permeou, no campo religioso, a estru-tura de pensamento maniqueísta de formação ocidental e judaico-cristã do brasileiro com a visão negroafricana e não cartesiana do mundo no processo que foi chamado de sincretismo religioso. Em outros termos, o brasileiro aprendeu uma lição de vida que não é nova, ao entender o fato de que não há conflito de fé em praticar duas religiões ao mesmo tempo, se cada qual mantém a sua identi-dade assinalada por planos diferentes de adoração, com apelações próprias e praticas rituais em espaços adequados, a partir do prin-cipio universal de que a essência de Deus é Única, independente

Page 67: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 65

dos diferentes nomes pelos quais Ele costuma ser invocado por cada grupo humano, e do ensinamento de sabedoria ancestral da eterna Yalorixá Olga de Alaketu, segundo a qual “cada favor tem seu merecimento”. Assim sendo, divindades do panteão africano e santos católicos não passam de expressões culturais da Sua Von-tade Suprema. São equivalentes em traços míticos, mas não são iguais (cf. CASTRo, 2008).

Caso notável desse tipo de interação provocada pela for-ça de resistência da mensagem ressentida de protesto da mulher negra querendo dizer, numa citação muito popular na Bahia,“mãe é quem cria, não é quem pare”, ou seja, não é um mero proces-so biológico, está na consagração da palavra caçula pelo seu uso corrente no português brasileiro. De tal maneira essa palavra foi integrada em forma e conteúdo pela ação socializadora de sua personagem na vidada família brasileira em suas raízes históricas que se perdeu da memória dos brasileiros a sua origem africana e tomou o lugar, por falta de uso, da palavra portuguesa benjamim, como se diz em Portugal,com o mesmo significado de “filho mais moço”. para assinalar mais ainda o dimensionamento psicossocial da sua atuação nesse processo, o caçula continua sendo visto,a-través de uma expressão corrente no Brasil, como “o dengo da família”, herdeiro da tradição do dengo, dos mimos e das vontades sempre atendidas, na voz angolana de quem o criou. Nesse con-texto,“dengo” também é sinônimo de caçula em língua angolana, e, por sua vez, o termo benjamim passou a nomear um conector de corrente elétrica no português do Brasil.

Através dessa ótica realista de interpretação, o desempe-nho daquela mulher servindo de mãe-preta durante a escrava-tura no Brasil não pode ser separado do contexto sociocultural mais amplo em que ele se insere nesta história, a começar de casa. Dentro dessa, sua personagem decididamente aproveitou-se da oportunidade para exercer influência em família, incorpo-rando-se à vida cotidiana, fazendo parte de situações realmente vividas e interferindo no comportamento da criança através de

Page 68: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

66 ◄◄

determinados mecanismos de natureza psicossocial e dinâmi-cos. Entre eles, o afeto e o mimo expressos no dengo devotado ao caçula, alimentado no embalo do aconchego de seu canto de acalanto,onde ela introduz, no conto dos versos,palavras da sua língua materna que terminariam apropriadas pelo português brasileiro, enriquecendo e alargando o imaginário simbólico da língua portuguesa como um todo3.

Diante da realidade desses e de outros acontecimentos diários que, provavelmente, eram percebidos pelo colonizador como uma intrusão indevida e inóspita em seu domínio particu-lar, visto que interagiam dentro de casa, a projeção da imagem da mãe-preta abnegada e omissa veio atender à convivência de prevenir a rebeldia e assegurar, no anonimato, a submissão de sua personagem. Posta em prática, o objetivo era circunscrever o âmbito de suas ações, colocando-a,conforme a expressão po-pular, “no seu devido lugar”, no caso, à margem da intimidade do convívio familiar, onde ela devia permanecer silente e passi-va, coisificada como preta e escrava-doméstica “que conhecia o seu lugar”, ou seja, os limites de comportamento que então lhe eram impostos e para quem todo dia era “dia de branco”, sem domingo para folgar.4

Por esse motivo inconfessado, aquela imagem foi masca-rada pela suposta irracionalidade atribuída ao comportamento do negro por questão de racismo, tomando para tanto deter-minadas características individuais facilmente identificáveis, en-quanto mulher, com o preconceito sexista da ideia de fragilida-de feminina. Em outros termos, uma fragilidade concebida por

3 Para a verificação das etimologias dos vocábulos de base africana, aqui denominados de angolanos, cf. CASTRO 2001/2005.4 De referência ao dito corrente “segunda-feira é dia de branco” que certamente foi usado pela escravaria em alusão a uma nova semana de trabalho forçado no eito após a folga de domingo em obediência às obrigações religiosas impostas pela Igreja Católica.

Page 69: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 67

oposição à brutalidade da força física postulada para o homem. por esse falso pressuposto, a mesma força o predispõe a ações de coragem e heroísmo, ao contrário do que se espera do ímpeto da mulher, ou seja, certa covardia inerente à sua natureza sub-missa e conformada pelo instinto da maternidade, o que tam-bém não é verdadeiro.

Assim, durante o escravismo no Brasil, a figura humana e sofrida da mãe negra representou o ideal de imagem da resig-nação feita de um conformismo quase animal, vivendo o papel da mãe-preta na criação do colonizador. Ao mesmo tempo, essa imagem, que aparentava, servia-lhe de propósito, como um re-curso necessário ao processo constante de luta, paciente e co-rajosa, contra a crueldade brutal de que era duplamente vítima como mulher e mãe. Desmascarando, portanto, todo o tipo de preconceito contido sob a conotação afetiva que foi dada à alcu-nha de mãe-preta pelo seu criador, a começar da “cor preta” que, em português, qualifica animais irracionais e seres inanimados, é possível revelar e reconhecer a atuação daquela mulher solitária e heroica na história que ela, com carinho e mágoa, também se dedicou a fazer para o povo Brasileiro, mais por uma tenacidade sobre-humana do que pela comiseração do seu sofrimento dra-mático, romanceado pela literatura brasileira em prosa e verso.

QUEM CANTA UM CoNTo

para surpresa dos autores e espectadores dessa trama vio-lentamente engendrada por um elenco de protagonistas brancos na era da colonização do Brasil, a mãenegra,na função de dublê da maternidade alheia, transformou em voz de protesto e em ações de resistência o silêncio e a subserviência que eram exigi-dos de sua personagem face à inevitabilidade da situação que lhe fora imposta como escravizada na obrigação de cuidadora e nu-triz dos filhos alheios, vivido em um enredo familiar na casados seus próprios donos.

Page 70: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

68 ◄◄

A sua estratégia cotidiana, como agente socializadora e figura atuante nesse processo ao mesmo tempo de domina-ção e de rebeldia incontáveis, vai dar um curso inesperado ao desenrolar dessa história. No conto dos versos do seu canto, ela acrescenta com habilidade mais um ponto que lhe vale de recusa a ser tratada vagamente pela alcunha de africana, uma escravizada entre tantas outras sem identidade qualquer como se passou durante o escravismo colonial no Brasil. Ao romper o silêncio na voz dos acalantos, usou componentes simbólicos do seu universo linguístico e material como marcas identitárias para se dizer angolana. No papel de mãe-preta, tornou-se a figura emblemática da grande mãe ancestral dos brasileiros.

REFERÊNCIAS

BASToS, J. Teixeira. Folclore brasileiro. In Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, n. 51, 1925, p.CASTRo, Yeda pessoa. Contos populares da Bahia. Salvador, DAC / pre-feitura Municipal de Salvador, 1978.CASTRo, Yeda pessoa. As vozes saber. In Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, n.103, 2008, p. 13-24.CASTRo, Yeda pessoa. Falares africanos na Bahia. Rio de Janeiro: Aca-demia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora, 2001/2005.FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Liv. José olympio Ed., Segundo Tomo, 11ªed., 1964.GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava. petrópolis: Ed. Vozes, 1988.MoRAES FILHo, Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia., 1946.MoURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo : EDUSp, 2004.NEIVA, Arthur. Estudos da Língua Nacional. São Paulo: Editora Nacio-nal, 1940.pEDREIRA, Esther. Contos e Cantigas de Ninar. In Folclore musical da Bahia. Salvador: Fundação Cultural do Estado do da Bahia, 1978.

Page 71: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 69

VIANNA, Hildegardes. “A história do homem que come o diabo”. Comunicação ao III Congresso Brasileiro de Folclore. Salvador, 1957.VIANNA, Hildegardes. “Do entrudo ao carnaval da Bahia”. In Revista Brasileira de Folclore, n. 13. Rio de Janeiro, 1965, p. 283-298.VICENTE, Gil. Obras completas, 2 Tomos. São Paulo: Cultura, 1946.VILHENA, Luiz dos Santos. Recompilação de notícias soteropolitanas e bra-sílicas. 3 Tomos. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1921.5

Yeda pessoa de Castro é doutora (phD) em Línguas Africanas pela Universidade Nacional do Zaire, República Democrática do Congo. Consultora técnica na Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) na Univer-sidade do Estado da Bahia — Uneb. Condecorada pelo Itamaraty no Grau de Comendadora da Odem do Rio Branco por serviços prestados ao País na política de aproximação cultural Brasil-África. Entre suas obras, A língua mina-jeje no Brasil (2002) e Falares africanos na Bahia (2005). Desde 2008 ocupa a Cadeira número 11 da ALB.

Page 72: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 73: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 71

A LUTA COM O CORAÇÃO HUMANO

Hélio PólvorA

Memphis. Esta cidade do Tennessee desperta recordações ficcionais. Foi aqui — penso, enquanto deixo a mala num

escaninho da estação rodoviária — que a mulher do reverendo Gail Hightower, personagem de Luz em agosto, morreu. “Cer-ta noite de sábado mataram-na numa casa, ou coisa que o va-lha, de Memphis”, depõe alguém naquele romance de William Faulkner. O reverendo, que revivia o sonho épico do avô derru-bado do cavalo por um tiro, numa carga de cavalaria durante a Guerra Civil, dizia à congregação que a mulher estava internada numa “instituição para raparigas delinquentes de Memphis”. O fato, porém, é que ela ia a Memphis pecar — e todo mundo, na cidade de Jefferson (oxford, no mapa real do Estado de Missis-sípi) comentava a sua ninfomania.

Também em Memphis decorrem cenas de Santuário. Afi-nal, não foi para a casa de uma certa Miss Reba que o pistoleiro popeye levou Temple Drake, depois de estuprá-la com um sa-bugo de milho, numa destilaria clandestina de uísque? A cidade, para mim, está ligada a estas cenas ficcionais. Para escrever San-tuário, Faulkner visitou-a várias vezes, em companhia do amigo Phil Stone, que pagou a edição do seu livro de estreia, The Marble Faun, em 1924, quando ele tinha 27 anos, e lhe serviu de conse-lheiro literário.

Enquanto espero o ônibus da Greyhound, começo a sentir o Sul Profundo. Vejo os primeiros aleijados. O homem que me vende um exemplar do jornal local, o Memphis Press-Scimitar, é sem dúvida retardado mental. Um dos títulos da primeira página diz

Page 74: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

72 ◄◄

que o êxodo de brancos para a escola particular vai prosseguir: querem evitar a campanha de integração racial na escola pública.

Na tentativa de amenizar este e outros conflitos, ostensivos ou latentes, e tão propícios ao ficcionismo de Faulkner, Carson McCullers, Flannery O’Connor, Erskine Caldwell, Robert Penn Warren e outros, as cadeiras do salão de espera têm no braço um pequeno televisor. Basta introduzir uma moeda adequada para a máquina ativar-se. Os gadgets também invadiram o Velho Sul.

A viagem de poucas horas revela paisagem atraente. Es-tou a caminho de Oxford, onde William Faulkner viveu quase a vida inteira, a partir dos cinco anos de idade. oxford, sede do Condado de La Fayette, que o ficcionista transformou no condado imaginário de Yoknapatawpha. De quando em quando, algodoeiros em flor. Bosques. A temperatura, o ar e as árvores são de uma suavidade outonal. O ônibus deixa Holly Springs e, antes de New Albany (onde Faulkner nasceu a 25 de setembro de 1897), dobra à esquerda. Passamos pela pequena localidade de Pontotoc e, depois, surge Oxford — a Jefferson do fluxo romanesco de Faulkner.

Serei hóspede da Alumni House, é o que me informa o Sr. George Street, um sulista bem humorado, diretor de Relações Pú-blicas da Universidade de Mississípi. Enquanto não chega o mo-mento de ir a Rowan oak, a casa de Faulkner, repasso informa-ções e tento ajustar lembranças de seus romances ao cenário em que foram localizados. Oxford, que tinha então 13.846 habitantes, vive em função da Universidade, a Ole Miss, inaugurada em 1848. Grande centro educacional, aqui se realizam, na primeira semana de agosto, seminários sobre a obra faulkneriana, dos quais parti-cipam especialistas do porte de um Joseph Blotner, autor de uma admirável biografia de Faulkner, em dois alentados volumes.

o autor de O som e a fúria, que jamais passou do curso secundário, estudou aqui e aqui trabalhou. Cabia-lhe alimentar à noite as fornalhas, e entre uma pazada e outra escreveu em pou-cas semanas Enquanto agonizo (1930). É a glória local, o orgulho de

Page 75: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 73

Oxford, simplesmente Bill. Mas em vida uma figura contraditória. No livro William Faulkner of Oxford, editado em 1965 por James W. Webb e A. Wigfall Green, tiro depoimentos conflitantes. “Ar-rogante”, para uns. Na visão de outros, “tímido”. Andava des-calço, vestia-se mal, passava semanas inteiras sem cumprimentar pessoas e, sentado num banco da praça do Fórum, observava transeuntes. Em outras ocasiões encharcava-se de uísque de mi-lho numa taverna próxima. Não é de admirar que tenha cau-sado controvérsia em Oxford, “onde a formalidade é essencial à preservação da dignidade”, no dizer de Webb, presidente do Departamento de Inglês da ole Miss.

Sentir o ficcionista na ambiência que o gerou, eis um raro privilégio. A obra tende a iluminar-se mais. Eis o Monumento ao Soldado Confederado, erigido em 1907, com fundos coletados por Maud Butler, mãe do escritor. Lê-se na base: “Aos nossos mortos confederados, este tributo dos seus companheiros so-breviventes”. E mais: “Os filhos dos veteranos unem-se nesta comprovação da fé de seus pais”. O soldado tem o rosto voltado para o Sul. William Faulkner comentou certa vez que ele “esque-cera a retaguarda”. E o Professor Webb acrescenta agora: “Está esperando reforços”.

Perto deste monumento, Benjy, o idiota de O som e a fúria, chorou uma vez quando o guardião negro que o levava a passeio guiou a caleça para o lado contrário. E aqui a família de Enquanto agonizo, depois de enterrar a mãe apodrecida, espera o pai, que chega e lhes apresenta a nova Sra. Bundren.

Sim, Phil Stone tem razão: “Nada é mais fatal à criação de uma arte viva do que a mão morta da cultura”. Isto explica o Sul, o Deep South com suas características peculiares, com sua multiplicidade de apelos ficcionais. Webb adverte-me que “os sulistas gostam de contar histórias. Muitas dessas histórias — contos, anedotas, etc. — são narradas oralmente. Em sua maior parte, contos extensos, narrados de forma humorística. O exagero e os adornos são característicos. Os sulistas amam o

Page 76: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

74 ◄◄

passado tradicional. Até mesmo aspectos trágicos são narrados frequentemente, com um traço irônico”.

o passado tradicional. Do outro lado desta praça, a do Monumento ao Soldado Confederado, “onde até hoje todo mundo para parabater-papo com amigos”, vejo um letreiro: Du-vall’s. Howard Duvall, proprietário dessa antiga loja de roupas masculinas, costumava olhar a praça do segundo andar, onde ficavam a loja e o escritório. O edifício sediou o primeiro banco de oxford, o banco fundado por J. W. T. Falkner, avô do es-critor, que o descreve em Sartoris. “Creio”, disse Duvall (não a mim, é claro), “que a praça conserva a aparência que tinha por volta de 1900”. o prédio e outros em volta foram limpos com jatos de areia para exibir a integridade dos tijolos originais. Com poucas exceções, tudo está como outrora.

Sente-se “o espírito do lugar”. Ainda se fala na “guerra”. Entenda-se: a Guerra Civil, quando Oxford foi sede de uma companhia de combatentes confederados. Quando uma igreja centenária foi substituída pela filial de um empório, Bill Faulkner escreveu um panfleto contra “o progresso moderno” e publi-cou-o no jornal Eagle. De Nova Iorque, em carta a um amigo, confessou uma vez: “Senti pena de milhões de pessoas aqui, por não viverem em Oxford”.

Oxford é legendária, tal como o Sul. “Faulkner”, lembra o Professor Webb, “retratou muita coisa do Velho Sul. Muito do Velho Sul e suas tradições ficaram, mas o Sul tem mudado. O mundo também mudou”. o professor Webb louva algumas mu-danças das quais participa a juventude. “Uma das coisas boas”, diz ele, “é que não precisamos ser nenhum Flem Snopes (perso-nagem de The hamlet/O povoado) para introduzir inovações”. por Snopes deve-se entender a riqueza sem raízes, a ambição aventu-reira, corrupta e, portanto, espúria, alheia ao “espírito do lugar”.

Ainda a praça do Fórum. Ao Norte, a estrada por onde Faulkner seguia durante quilômetro e meio, antes de tomar a direção Leste, para a sua fazenda. Rowan Oak, sua propriedade

Page 77: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 75

urbana, está junto ao campus universitário. Construída por um pioneiro em 1840, e localizada num bosque de carvalhos e ce-dros, a casa e as terras foram adquiridas pelo escritor (ao todo, 33 acres) em 1930, e tornou-se desde então seu refúgio, até o falecimento em 1962. Faulkner levou oito anos para pagá-la e lutou com hipotecas. A casa foi assim chamada pela família de-vido à lenda da sorveira brava, como está consignada em Golden Bough, de Sir James Fraser. Segundo a história, camponeses es-coceses colocavam uma cruz de sorveira brava em suas soleiras para afugentar maus espíritos e dar aos moradores a sensação de abrigo, privacidade e paz — as coisas que Faulkner mais buscou, sobretudo depois que o Prêmio Nobel de 1950 lhe consolidou a glória literária.

Tem-se acesso à casa por “um duplo renque de cedros can-tantes”. Na sala de estar, a lareira onde Mammy Callie Barr, que nasceu escrava e merecia o respeito dos Falkners, tinha lugar cer-to, para contar histórias e fazer reprimendas. Ela é a Dilsey, talvez a única personagem realmente boa de O som e a fúria. No peque-no gabinete que projetou e acrescentou à mansão, foram escritas as obras-primas: Sartoris, Enquanto agonizo, O som e a fúria, Luz em agosto, Absalão! Absalão! Faulkner chamava o gabinete de escri-tório, na tradição das antigas casas-grandes, onde o proprietário assentava o Deve e o Haver e conferia contas com o capataz. Ali ele preparou o esboço de Uma fábula e escreveu-o na parede, com sua letra apertada e vertical. Vê-se a velha máquina Underwood, portátil, na arranhada mesa de madeira, uma cama em que des-cansava durante o dia, uma garrafa de linimento para cavalos e um cinzeiro feito com uma casca de obus, tais como ele os deixou. Na sala contígua ao escritório, a família, ao retornar de curta viagem, encontrou a ressonar, completamente bêbado, o negro contratado para impedir com bons modos que o escritor bebesse — enquan-to o escritor, sóbrio, escrevia furiosamente.

Em cima, os quartos. No quarto de casal, sob a cama, os sapatos de tênis, enlameados, de Faulkner. No canto, o piano

Page 78: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

76 ◄◄

que Estelle, exímia pianista, tocava para ele adormecer, quando voltava, pela manhã, do emprego noturno na Universidade. Nos fins de tarde, Faulkner sentava-se na soleira do lado leste. Com a fama, protegeu-se: um muro de tijolos foi erguido a partir do canto daquele pórtico, em direção aos bosques. Há um estábulo que ele próprio construiu. Terraços de tijolo e balaústres, em cada lado do corredor da frente, aumentaram a casa. Atrás, a cozinha e o quarto do cozinheiro. Na cozinha construída pelo primeiro proprietário, o escritor assava bacon, presuntos e sal-sichas. Sinais de recolhimento, de uma individualidade bizarra. “Faulkner”, recorda Webb, “era habitualmente quieto, taciturno, lacônico, embora de maneiras corteses. os ansiosos olhos casta-nhos tinham muita expressividade”.

E prossegue: “Encontrei Faulkner pela primeira vez em 1948, mas só vim a conhecê-lo melhor durante seus últimos anos. Basicamente um homem tímido, recluso. ouvia mais do que falava. Maneiras corteses e dignas. Excelente observador, dono de boa memória e emoções profundas. Escondia às vezes sua grande compaixão com uma certa rudeza. Suas cóleras eram devastadoras. Por apreciar demais a intimidade, dificultou seu exato conhecimento pelos outros. Mas nunca esqueço uma tarde em que ele falou à vontade, enquanto andávamos pelos terrenos de Rowan oak”, diz Webb.

Naquela casa, Faulkner travou “a batalha com o coração humano”. Adquirida pela Universidade de Missisípi, da filha do escritor, Sra. Jill Faulkner Summers (de Charlottesville, Virginia), será um grande centro cultural quando lhe forem acrescentados os terrenos de John Faulkner, um dos irmãos. Destes, apenas John acrescentou o u (resultante de um equívoco editorial) ao sobrenome. Todos estão mortos, restando apenas sobrinhos.

Isso me leva ao St. Peter’s Cemetery, raso, cheio de flo-res, mais parecendo um parque, sem cercas, do que o vale dos mortos de oxford. Sopra a brisa. As árvores perto do túmulo do escritor vergam-se ligeiramente. O Sr. George Street lembra

Page 79: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 77

versos de Faulkner, intitulados My epitaph, dos quais traduzo aqui o segundo e último quarteto:

Dormirei, porém, o sono de um mortoEnquanto neste outeiro azulado e dormenteEstiver enraizado qual árvore? Embora ausenteHei de respirar no chão deste meu horto.

Estelle e Bill repousam lado a lado. Foram namorados de infância em Oxford e ele jamais a esqueceu, embora ela houves-se desposado outro, Cornell Franklin, de quem teve dois filhos. “Amor, culpa e um sentimento de traição”, diz Joseph Blotner em Faulkner: a biography, permaneceram sempre, por parte dela. Quanto a Faulkner, continuou a mandar-lhe livros, desenhos e bilhetes, e a visitá-la quando ela ia a Oxford. À medida que o casamento de Estelle falhava, criando um abismo entre ela e o marido, Faulkner afeiçoava-se a seus filhos, principalmente à pe-quena apelidada Cho-Cho (borboleta, em chinês), para a qual escreveu o conto infantil The wishing tree/A árvore dos desejos. Al-gum tempo após o divórcio de Estelle, casaram-se, apesar de Faulkner ainda não ter renda fixa.

Estelle, nascida Lida Estelle Oldham, dissera uma vez, à mulher que a penteava na porta de casa: “Está vendo aquele menino? Vou casar com ele quando crescer”. O menino era Bill. Lembranças de Estelle quando mocinha inspiraram Faulkner na criação da Caddy de O som e a fúria, e um pouco do amor que os uniu entrou também na receita apaixonada de The wild palms/As palmeiras selvagens. Apesar do bom relacionamento conjugal, o escritor não deixaria de ter outros casos e ligações, conforme foi revelado por Meta Carpenter (“esbelta, de olhos castanhos”, segundo Joseph Blotner), em seu livro A loving gentleman.

Faulkner conheceu-a em Hollywood, quando trabalha-va como roteirista, levado por seu amigo, o produtor Howard Hawks. Aquela loura de pernas longas e rosto de boneca, muito

Page 80: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

78 ◄◄

parecida com Jean Arthur, também tentava ser roteirista e ins-pirou-lhe atração repentina. O escritor lhe mandava livros e até mesmo folhas-de-rosto e provas tipográficas. Dedicava-lhe coisas: “A Meta, onde quer que esteja”. Encontrou-se com ela em Nova York. Enviou-lhe exemplares de The wild palms. A ligação, segundo ela, durou dezoito anos, e o Faulkner por ela descrito é tímido, arrebatado, efusivo — um colegial diante da primeira namorada.

Faulkner arrogante? Meta Carpenter desfaz o mito: “Nada mais falso. Faulkner era gentil, sensível, à antiga, respeitador das tradições; afogou no álcool a incapacidade de romper os laços patriarcais impostos por sua terra”. Aquele sulista reprimido, que evitava os bordéis de Memphis e, em sua ficção, concebia o sexo como uma fatalidade pecaminosa, entregou-se ao culto de uma diva de carne, então com 29 anos, a quem chamou deslam-bidamente de “meu coração, meu jardim perfumado, meu figo de abril e maio, minha branca, dourada manhã...”

O escritor moralista reponta nas recordações (até que ponto verdadeiras?) de Meta Carpenter. pergunto a James Webb se os personagens faulknerianos, em sua maioria anormais, o definem como escritor pessimista.

“Talvez os personagens maus e viciosos de Faulkner se-jam aos mais lembrados”, ele me responde. “Porque os descreve de forma efetiva e convincente. popeye, Jason Compson e os Snopes são, em verdade, personagens desprezíveis. Se o mundo os tivesse em maior número, então a vida seria inútil para os demais”.1

Hélio Pólvora é jornalista, crítico literário, ensaísta, cronista, tradutor e, principalmente, ficcionista, com dezenas de livros publicados, dentre os quais os romances Inúteis luas obscenas (2010) e Don Solidon (2011) e a coletânea Contos e novelas escolhidos (2013), em dois volumes. possui diversos prêmios nacionais, como o prêmio Nestlê de 1982 e de 1986. Foi crítico literário da revista Veja, e é cronista e articulista de A Tarde. Desde 1994 ocupa a Cadeira número 29 da ALB.

Page 81: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 79

YEATS: SUA VISÃO DE BIZÂNICO

WAldir FreitAs oliveirA

procurando em dicionários o significado da palavra bizanti-no, neles iremos encontrar, em primeiro lugar, num dos mais

conceituados, por todos conhecido como o Aurélio, ao lado da informação de ela designar algo referente a Bizâncio, cidade fun-dada pelos gregos, no século VII a.C., que se tornou, em 330, a ca-pital do Império Romano do oriente, foi depois chamada Cons-tantinopla, em homenagem ao imperador Constantino (306-337), que lhe deu essa condição, e acabou por tornar-se a atual Istam-bul, a de ser usada como significado de “pretensioso” ou “tolo”; enquanto bizantinismo, ainda que em sentido figurado, signi-ficando — “interesse por discussões frívolas ou insignificantes, sem resultado prático, como as questões tratadas pelos teólogos bizantinos”.1E em outro dicionário que com o Aurélio compete, com ele disputando a primazia, em verbete mais longo, referente a bizantino, a de que “os frades de Bizâncio discutiam acalora-damente questiúnculas de teologia”, do que resultara a expressão “discussões bizantinas” para designar “controvérsias fúteis”; e quanto a bizantinismo, a de significar — “Tendência à discussão sutil e fútil, à maneira dos bizantinos, que eram apaixonados por debates gramaticais e teológicos”; a que se seguem os signifi-cados de “frivolidade” e “sutileza estéril”.2 Tentaremos, então,

1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 2 KOOGAN//HOUAISS. Enciclopédia e Dicionário Ilustrado. Supervisão editorial: Antônio Houaiss. 4.ª edição. Rio de Janeiro: Seifer, 1999.

Page 82: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

80 ◄◄

inserir tais conceitos num âmbito mais amplo — o da História, a fim de justificar a sua inclusão, nesses termos, nos dois mais conhecidos e conceituados dicionários da língua portuguesa no Brasil em nossos dias. E registramos a notícia de no ano de 637 a.C., um viajante colonizador grego, chamado Bizas, agin-do, como tantos outros em sua época, partira em seu barco, de Megara, sua cidade natal, acompanhado de certa quantidade de pessoas, e seguira, através do mar Egeu, na direção nordeste, com o intuito de estabelecer, em terras próximas ao local onde existira a famosa cidade de Troia, uma nova colônia.

Fiel à tradição do seu povo, consultara o oráculo de Del-fos a respeito do local onde deveria ser ela fundada; e recebera como resposta, enigmática como sempre era a linguagem dos oráculos, que ele a deveria situar “frente à cidade dos cegos”.

Em sua viagem, atravessaram eles o Helesponto e o pro-pontis (o hoje chamado mar de Mármara), e chegaram em Cal-cedônia, cidade fundada em 675, dezoito anos antes, por outros colonizadores gregos, na margem asiática do estreito de Bósfo-ro, a porta de entrada para o mar Negro.

Frente a ela, na margem oposta, a cerca de um quilôme-tro de distância, uma ampla área se estendia, com a aparência de ser um local melhor que o escolhido pelos fundadores de Calcedônia, para o estabelecimento de uma colônia. E interpre-tando a seu modo, a mensagem recebida do oráculo, entendeu Bizas que ali ela estava — “frente à cidade dos cegos”, esses, os que haviam fundado Calcedônia, não a teriam visto e haviam, por isso, a desprezado. Então desembarcaram e denominaram a nova colônia, de Bizâncio, nome derivado de Bizas, o seu funda-dor. Começa, como estamos vendo, envolta em lendas, a história dessa cidade. Nunca se conseguiu saber, com certeza, se Bizas teria ou não existido. Bizâncio, contudo, ali começou a existir, com certeza, nesta época; havendo se tornado, rapidamente, um centro ativo de comércio. E assim continuaria a ser, por longos anos, até quando o imperador Constantino, em 330, decidiu para

Page 83: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 81

ali transferir a capital do Império Romano do oriente; e sobre o sítio da antiga Bizâncio, ergueu a majestosa cidade que tomou o seu nome — Constantinopla.

Situada no ponto em que as rotas terrestres que liga-vam a Ásia à Europa, às margens da mais estreita passagem marítima ligando o mar Mediterrâneo ao mar Negro, para ela afluíram e por ela passaram os mais diversos produtos que circulavam como mercadorias, entre os dois continentes; de modo especial, os mais exóticos, como o marfim e o âmbar, as porcelanas e as sedas, a canela e o açúcar, o almíscar e o gen-gibre, que provinham de lugares tão distantes como a Índia, o Ceilão e a China, de grande procura nas cidades da Europa desse tempo.

Constantino fez dela uma grandiosa cidade... Mostrou-se disposto a dela fazer uma “nova Roma”, mais suntuosa que a capital do Império Romano do ocidente. Embelezou-a tanto quanto pôde; e ali mandou construir uma majestosa igreja — a que foi por ele chamada de Hagia Sophia (a igreja da Santa Sa-bedoria), e que ira tornar-se a partir da conclusão das obras de sua construção, ao tempo de Justiniano (527-565), o seu maior monumento religioso, até hoje ali existindo, ainda que não mais sendo usado como igreja ou como mesquita, sendo agora, mu-seu, havendo sofrido o seu edifício original, amplas transforma-ções em seus aspectos, principalmente nos externos, no curso dos séculos, hoje se constituindo como um autêntico cartão postal de Istambul.

Não iremos, contudo, contar, nem mesmo em forma de resumo, a história de Bizâncio. O que pretendemos é tentar en-tender como e porque foi essa cidade idealizada de modos tão opostos pelas gerações que com ela conviveram durante mais de mil anos, bem como pelas que as seguiram

Bizâncio, em verdade, nunca deixou de ser Bizâncio. Em cada grupo de dez obras escritas a seu respeito, nove delas ao menos, mencionam seu nome de origem e falam da civilização

Page 84: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

82 ◄◄

que ali floresceu, como bizantina. Enquanto Constantinopla é nome que raramente aparece como título, em tais conjuntos; ainda que o volume da História Universal Asimov dedicado ao Império Romano do ocidente, traga como título —Constanti-nopla. Isto é, porém, exceção. Todavia, de modo significativo, todos os compêndios de História, assinalam a tomada da ci-dade pelos turcos otomanos, em 1453, como a da “queda de Constantinopla”. Temos, então, a impressão de pretender-se, agindo desse modo, registrar o fim de um império simbolizado pela cidade de onde foi ele governado, mas não o do de Bizân-cio, como expressão cultural. Constantinopla era a roupagem política de uma cultura que não desapareceu com a tomada da cidade por povos invasores. E constatada esta afirmativa, temos o dever de procurar entender a razão de haver Bizâncio sido, ao longo dos séculos, por tantos, execrada e por outros tantos, exaltada.

Lembramos haver ouvido, nos tempos da escola secun-dária, de todos os nossos professores de História, referências desairosas aos bizantinos. Um deles chegou a afirmar em clas-se, serem eles tão alheios à realidade, que e discutiam e consi-deravam ser razoável fazê-lo, a questão do “sexo dos anjos”; ou procuravam descobrir quantos anjos poderiam dançar, ao mesmo tempo, sobre a ponta afiada de uma agulha. E então perguntamos: — quem teria interesse em ridicularizar dessa forma, os bizantinos? E levantamos a hipótese de o empenho por essa desmoralização haver se iniciado durante as disputas pela primazia no seio da Cristandade, travadas entre as Igrejas de Roma e de Constantinopla; e, singularmente, haver a Igreja de Roma sido melhor aceita, nessa época, pela intelectualidade do chamado “Ocidente”, que a de Constantinopla; e verifi-camos, então, haver sido a presença, tanto espiritual como material, da Igreja de Roma, sobre as terras da Europa, bem mais forte e, consequentemente, mais efetiva que a da Igreja de Constantinopla.

Page 85: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 83

Tomemos, sem escolha deliberada, puramente casual, no caso, um exemplo demonstrativo das opiniões divergentes sobre os bizantinos, na Europa do século XIX — a de William Lecky e a de W.B. Yeats, ambos irlandeses, contemporâneos na Ingla-terra e na Irlanda desse tempo.

William Edward Hartpole Lecky (1838-1903), nascido num povoado situado nas proximidades de Dublin, em março de 1838, publicou, em 1869, aos 31 anos, já então consagrado como intelectual, um livro, em dois volumes, intitulado History of European Morals from Augustus to Charlemagne; e em seu segundo volume, dedicou sete páginas reunidas em secção sob o título “General moral condition of the Byzantine Empire”, a Bizâncio, no curso das quais afirmou, entre outras coisas, que

a opinião geral que a História possui do Império Bizan-tino é a de que ele representa, sem qualquer exceção, a forma cultural mais baixa e abjeta até hoje alcançada... nenhuma civilização permanente careceu tanto de algu-ma forma ou de algum elemento configurador de uma própria grandeza... A História desse Império é uma nar-ração monótona de intrigas de sacerdotes, eunucos e mu-lheres, de envenenamentos, conspirações, ingratidões e contínuos fratricídios.3

Quanto a William Butler Yeats (1865-1939), dedicou a Bi-zâncio, ao menos dois poemas, louvando a cidade que chegou a considerar, como “cidade sagrada” (holy city).4

Chegamos, então, à conclusão de haver existido na me-mória dos povos europeus, duas Bizâncios: — uma, que se apre-sentava aos olhos dos historiadores, como algo desprezível, não

3 LECKY, William Edward Haertpole. History of European Morals from Augustus to Charlemagne.Volume II.London: Nabu Press, 2010.4 “...the holy city of Byzantium” in “Sailing to Byzantium”. In YEATS, W.B.The Tower (1928).

Page 86: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

84 ◄◄

merecendo qualquer tipo de elogio, conservadora ao extremo, sem capacidade de renovar-se e crescer, e outra que foi encarada por alguns poetas e por místicos, como a cidade da salvação, a única esperança restante em um mundo desesperado; razão pela qual, desejou W.B. Yeats partir para lá, a fim de escapar das agru-ras da velhice e renascer, tornando-se eterno.

Em 2000 o jornal Folha de São Paulo promoveu uma pes-quisa entre críticos brasileiros, buscando identificar “os cem me-lhores poemas do século XX”. Ao final, “Sailing to Byzantium”, composto, provavelmente, em 1926, quando Yeats tinha 60 ou 61 anos, publicado em 1928, em seu livro The tower, no qual foi por ele colocado como o poema de abertura do seu livro, figu-rou em quarto lugar, na ordem então estabelecida pelos que par-ticiparam da pesquisa. Em verdade, poucos poemas, no mundo inteiro, mereceram como ele, tão grande atenção por parte dos estudiosos da literatura.

Yeats, contudo, não conheceu Istambul, nem o pouco que ali ainda resta da antiga Constantinopla, e criou, a seu modo, a sua Bizâncio. Mas quem ou o que o teria levado a criá-la como fez? Da sua civilização, além das gravuras que figuram, comu-mente, em livros de arte reproduzindo alguns dos seus mosai-cos, tanto quanto aspectos do conjunto arquitetônico e dos de-talhes da monumental igreja de Santa Sofia, que, ao seu tempo, fora transformada pelos muçulmanos, em mesquita, somente viu, com os próprios olhos, mosaicos bizantinos, quando das suas duas viagens à Itália — a primeira, efetuada em 1907, quando esteve em Ravena, sem dúvida, “a mais bizantina das cidades italianas”, e a segunda, em 1925, quando visitou Milão, Roma e Nápoles e as ilhas de Capri e da Sicília, tendo, nesta ilha, a oportunidade de deslumbrar-se frente aos magníficos mosaicos do século XIII, da Abadia (Abbazia) e Catedral de Monreale e aos da Capela palatina, em palermo, e em Cefalu, com os mo-saicos da sua Catedral, figurando entre eles, tanto em Monreale como em Cefalu, aqueles nos quais figura o Cristo Pantocrátor

Page 87: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 85

(o Criador de todas as coisas), expressões grandiosas da arte bizantina dos mosaicos.5

poderia Yeats, como supõe John Unterecker, haver tomado conhecimento da História de Bizâncio, através da leitura de His-tory of the Byzantine Empire, de George Finlay, obra e autor muito considerados, na época, na Inglaterra, que lhe teriam propiciado um conhecimento mais amplo da arte e civilização de Bizâncio.6 Não se podendo eliminar a possibilidade de ter também consul-tado a magistral obra de Edward Gibbon – The history of the decline and fall of of the Roman Empire, publicada em Londres, em sete volumes, entre os anos de 1776 e 1781, e ali reeditada em 1896, através da leitura, de modo especial, do seu volume VI, no qual foi tratada a História do Império Romano do oriente.

E em seu livro Linguaviagem, tentou Augusto de Campos aproximar esse seu poema, de outro escrito por John Keats (1795-1821) — “Ode sobre uma urna grega”, mesmo haven-do sido publicado cem anos antes de “Sailing to Byzantium”; e apresentou, após haver exposto os seus comentários a respeito, os textos das traduções que fez dos dois poemas, a fim de que pudessem ser eles comparados, embora advertindo parecer

5 HAUSSIG, H.W.”Theinternationalposition of Byzantine Civilization in the central Middle Ages” in A History of Byzantine Civilization. New York/Washington: praeger publishers, 1971, p.248 (“The mosaics in the churches of Cefalú and Palermo are among the finest creations of Byzantine art.”)6 UDERECKER, John. A Reader´s Guide to W.B. Yeats. Southampton: Thames and Hudson ,1977,p.173. Quanto ao livro por ele citado, tra-ta-se de History of the Byzantine Empire, de autoria do historiador inglês George Finlay (1790-1875), publicado em Londres, em 1853, em 2 volumes, pela Blackwood, com re-impressão pela Nabu Press, em dois volumes independentes, em 2010. // Sobre a visita de Yeatas à Sicília, a referência maior por nós encontrada, consta do texto da “Introdu-ção” escrita por Péricles Eugênio da Silva Ramos, para Poemas de W.B. Yeats, porf ele reunidos e traduzidos paera o português (Sãao Paulo: Art Editora, 1987, p.33).

Page 88: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

86 ◄◄

“ocioso pretender dizer qualquer coisa de novo sobre o assunto ou referir-se a essas obras sem repetir o que já foi dito”.7

Ei-los, então, aqui realçando a alta qualidade da tradução feita pelo poeta paulista, a quem tanto devemos — todos os que, em nosso país, tanto sentimos falta de bons tradutores:

ode sobre uma urna grega

John Keats

Inviolada noiva de quietude e paz,filha do tempo lento e da muda harmonia,silvestre historiadora que em silêncio dás uma lição floral mais doce que a poesia: que lenda flor-franjada envolve tua imagem de homens ou divindades, para sempre errantes.na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?que deuses ou mortais? que virgens vacilantes?

que louca fuga? que perseguição sem termo?

que flautas ou tambores? que êxtase selvagem?A música seduz. Mas ainda é mais carase não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara.o supremo saber da música sem som:jovem cantor, não há como parar a dança, a flor não murcha, a árvore não se desnuda;amante afoito, não sou eu quem te lamente: se não chegas ao fim, ela também não muda,é sempre jovem e a amarás eternamente.

7 CAMPOS, Augusto de. “Das Odes de Keats a Bizâncio de Yeats” in Linguaviagem.. São Paulo: Compánhia das Letras, 1987, p.133.

Page 89: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 87

Ah! folhagem feliz que nunca perde a cordas folhas e não teme a fuga da estação;Ah! feliz melodista, pródigo cantorcapaz de renovar para sempre a canção;Ah! amor feliz! mais que feliz! feliz amante!para sempre a querer fruir, em pleno hausto, para sempre a estuar de vida palpitante, acima da paixão humana e sua lidaque deixa o coração desconsolado e exausto, a fronte incendiada e língua ressequida.

Quem são esses chegando para o sacrifício?para que verde altar o sacerdote impelea rês a caminhar para o solene ofício,de grinalda vestida a cetinosa pele? que aldeia à beira-mar ou junto do nascenteou no alto da colina foi despovoarnesta manhã de sol a piedosa gente?Ah, pobre aldeia, só silêncio ainda existeem tuas ruas, e ninguém virá contar por que razão estás abandonada e triste.

Ática forma! altivo porte! em tua tramahomens de mármore e mulheres emoldurascomo galhos de floresta e palmilhada grama.Tu, forma silenciosa, a mente nos torturastal como a eternidade: fria pastoral!quando a idade apagar toda a atual grandeza, tu ficarás, em meio às dores dos demais, amiga, a redizer o dístico imortal“A beleza é a verdade, a verdade a beleza.”— É tudo o que há para saber, e nada mais.

Page 90: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

88 ◄◄

viajando para Bizâncio

William Butler Yeats.

Aquela não é terra para velhos. Gentejovem, de braços dados , pássaros nas ramas— gerações de mortais — cantando alegremente, salmão no alto, atum no mar, brilho de escamas,peixe, ave ou carne glorificam ao sol quentetudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.Ao som da música sensual, o mundo esquece as obras do intelecto que nunca envelhece.

Um homem velho é apenas uma ninharia, trapos numa bengala à espera do final,a menos que a alma aplauda, cante e ainda riasobre os farrapos do seu hábito mortal;nem há escola de canto ali, que não estudemonumentos de sua própria magnitude.por isso eu vim, vencendo as ondas e a distância, em busca da cidade santa de Bizâncio.

Ó sábios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,como se num mosaico de ouro a resplender,vinde do fogo santo, em giro espiralado,e vos tornai mestres-cantores do meu ser.Rompei meu coração, que a febre faz doentee, acorrentado a um mísero animal morrente,já não sabe o que é; arrancai-me da idadepara o lavor sem fim da longa eternidade.

Page 91: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 89

Livre da natureza não hei de assumirconformação de coisa alguma natural,mas a que o ourives grego soube urdirde ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,para acordar do ócio o sono imperial;ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas. pousado em ramo de ouro, com um passa-ro, o que passou e passará e sempre passa.8

Vemos, pois, que na imaginação do poeta, Bizâncio assumira forma e função de Paraíso, esperança de renovação de vida, isso ocorrendo mesmo antes da chegada da morte, tão envolto já se encontrava Yeats pela sua crença em reencarnações e vidas suces-sivas, como demonstrara em A vision, que publicou em 1925, so-mente desejando, portanto, naquele seu poema, sobreviver, numa Bi-zâncio que, contudo, somente existia em seu pensamento. Ainda que, para isso, tivesse de apagar o tempo como padrão de medida, e imaginá-lo, talvez influenciado pelo que dele dissera Santo Agosti-nho, como um continuum equivalente à própria eternidade, algo que seria, a um só tempo, em seu entender — “past, or passing, or to come” — reunindo num único fluxo, sem interrupções, suas tradicionais etapas — o passado (past), o presente (passing) e o futuro (to come).9

Sem devermos esquecer haver ele afirmado em A vision, já quase ao seu final, tão ligado se encontrava à sua Bizâncio, que

8 Idem. pp. 151/153; 159/1619 SANTO AGOSTINHO. Confissões in Confissões/ De Magistro. .Coleção “Os Pensadores ”.Vol. VI. São Paulo: Abril Cultural, 1073, p.244. (“Atrevo-me a declarar. sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente. // De que modo existem aqueles dois tempos — o passadio e o futuro— se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade”.)

Page 92: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

90 ◄◄

(...) se me fosse oferecido um mês de Antiguidade, com a oportunidade de passá-lo onde quisesse, escolheria fazê-lo em Bizâncio, um pouco antes de Justiniano inaugurar San-ta Sofia e fechar a Academia de Platão.

E acrescentou —

Acredito que ali eu poderia encontrar, em alguma peque-na taberna, um mosaista-filósofo capaz de responder a todas as perguntas que lhe fizesse, mais próximo achan-do-se ele, do sobrenatural, do que estivera Plotino, pois o orgulho que sentia pelo seu delicado ofício lhe daria a capacidade de ver o que era, para os príncipes e para os clérigos, um instrumento do poder, para a populaça, uma loucura assassina, ambos envoltos sob a aparência de uma presença cativante e flexível habitando um corpo humano perfeito.

E permitindo com isso, podermos, hoje, melhor avaliar o quanto ocupava Bizâncio, seu pensamento e havia se convertido, para ele, em meta ansiosamente buscada:

Creio que nos primeiros tempos de Bizâncio, como talvez nunca antes nem depois, foi registrado na História, reli-gião, estética e vida prática se fundiram numa coisa úni-ca, e arquitetos e artífices — talvez não os poetas, desde que a linguagem, como instrumento usado nas disputas e controvérsias, tornara-se abstrata — falavam do mes-mo modo, tanto à multidão como aos eleitos. O pintor, o mosaísta, o ourives, o desenhista das iluminuras dos livros sacros, seriam quase impessoais, tal vez desprovi-dos da consciência própria de sua concepção individual, absorvidos que estavam pelo tema e pela forma do que estavam a produzir e que se uniam e formavam, afinal, a maneira comum de ver, de todas as pessoas. Eles podiam ser tomados como cópias de figuras saídas dos antigos

Page 93: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 91

Evangelhos, tão sagradas como o seu texto, tudo isso a entremear-se, formando um amplo conjunto no qual a obra de muitos assumia características de obra de uma só pessoa, fazendo com que o edifício, a figura, o modelo, os ornatos de metal das balaustradas tanto quanto os can-delabros, assumissem a aparência de uma coisa única...10

Foi assim que Yeats concebeu Bizâncio, em seus últimos anos de vida; e indagamos, então, sobre o que o teria levado a vê-la desse jeito — e optamos por considerar haver sido a causa principal desse seu modo de ver, a leitura feita de outros poetas, entre os quais, conforme supôs Augusto de Campos, teria estado John Keats, e certamente estiveram Edmund Spenser, William Blake e Shelley; sem que devamos esquecer a influência que teria recebido do misticismo indiano, do qual muito se aproximou, realizando estudos sobre os textos sagrados do Hinduísmo e, ainda mais, havendo se dedicado em 1938, precisamente durante o ano anterior ao da sua morte, à tradução de longos trechos dos Upanishads; desse seu esforço tendo resultado a publicação, em coautoria com Shri purohit Swami, de The ten principal upanishads, obra repudiada pela quase totalidade dos estudiosos da sua obra e quase nunca incluída na relação dos seus trabalhos.

“Sailing to Byzantium” foi traduzido para o português por outros autores, além de por Augusto de Campos. Apareceu sob o título “Velejando para Bizâncio” no livro W.B.Yeats. Poemas, de Paulo Vizioli (São Paulo: Companhia das Letras, 1994); com o tí-tulo “Rumo a Bizâncio” em W.B. Yeats Uma antologia, com a tradu-ção dos poemas que a integram, feita pelo crítico português, José Agostinho Baptista (Lisboa: Assírio & Alvim, 1996), e mantendo o título “Velejando para Bizâncio”, por Péricles Eugênio da Silva

10 YEATS, W. B. A Vision.London: MacMillan & Co, Ltd., 1962. ( Cf. Uma Visão.Tradução de Ana Luísa Faria. Inclui os textos reunidos sob o título “Uma Encomenda para Ezra Pound”. Lisboa: Relógio d´Água Editores, 1994, p.254)

Page 94: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

92 ◄◄

Ramos, em Poemas de W.B.Yeats (São Paulo: Art Editora. 1987); este, talvez, tendo sido o primeiro, no Brasil, a traduzi-lo.

Distante dos grandes centros nacionais, houve, no entan-to, também na Bahia, quem houvesse se deslumbrado com esta Bizâncio, digamos encantada — um poeta que cedo nos deixou, colhido pela morte, Jair Gramacho (1930-2003), leitor assíduo dos clássicos gregos e dos poetas ingleses, provavelmente, tam-bém de W.B. Yeats, e autor de um único livro de poemas, sin-gularmente intitulado Sonetos de Édênia e de Bizâncio, (Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1959), no qual, contudo, somente aparece a palavra Bizâncio em seu título, nele estando, porém, a cidade sagrada presente, com seu significado poético, em quase todos os seus poemas; havendo ele, por uma única vez, a ela se referido, de modo claro, quando ao final do poema “Soneto re-frão para poesia maior”, após mencionar — “o infiel Mafoma”, que a tomara de assalto, relembrou “o fim da bizantina Roma”, forçando uma rima buscada.

Encontramos, pois, de novo, William Butler Yeats, pre-sente, entre nós, no Brasil; e não podemos ter dúvidas a esse respeito — a Irlanda, seu país natal, é uma terra mágica, que nos envolve sem que percebamos, através da sua história e pelo modo como no passado agiram e escreveram os que ali viveram.

Iremos, contudo, antes de concluir este nosso texto, nele colocar mais alguns comentários sobre W.B.Yeats; mais que tudo acerca da sua vida e das suas atribulações.

Valemo-nos, então, do que sobre ele escreveu o poeta e, por vezes surpreendentemente agressivo, crítico literário Luís Dolhni-koff, que, em artigo divulgado, via Internet, pelo “Portal Cronó-pio”, intitulado “Os vórtices e vértices de W.B. Yeats”11, informou haver constado da “Introdução” escrita por Péricles Eugênio da

11 DOLHNIKOFF, Luis. “Os vórtices e os vértices de W.B. Yeats”. Download disponível inwww.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2505..

Page 95: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 93

Silva Ramos, para o seu livro Poemas de W.B. Yeats, a afirmativa feita pelo crítico literário inglês Rice Henn12, de que “se Yeats houvesse parado de escrever aos 40 anos (...) é provável que ti-vesse ficado como um poeta menor”. E quanto a nós, afirmamos que depois de havê-lo lido atentamente, passamos a considerá-lo como um dos melhores textos escritos no Brasil sobre o poeta ir-landês, pela sua compreensão a respeito dos vários Yeats existentes no erroneamente por vezes considerado como um único Yeats; e principalmente, por haver se mostrado capaz de entender a razão das mudanças ocorridas em sua poesia, ao longo do seu tempo de vida, quando afirmou que “mutação significa experimentação no sentido lato”, e que Yeats, a seu ver, mostrou-se capaz de assumir tal processo ao entender haver alcançado um grau de maturidade que o tornara essencialmente diferente do jovem que fora; fazen-do notar que, paradoxalmente, isso o conduzira, dele ao tomar consciência, para um querer renascer, por haver descoberto tanta coisa mais sobre a vida e a morte, e por bem saber que iria faltar-lhe tempo suficiente para um recomeço.

Sem devermos esquecer a probabilidade de haver Yeats, lido, do mesmo modo que teria feito, quando moço, no Evan-gelho mesmo, aquela na qual se acha escrito — “Na verdade, na verdade, te digo. que aquele que não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus” (João. 3.3).

Nem a possibilidade de haver lido, quando dos seus estu-dos sobre o Induismo, a constante do Bhagavad Gita, na qual se afirma que

(...) assim como a alma, vestindo este corpo material, passa pelos estados de infância, mocidade, virilidade e velhice,

12 Thomas Rice Henn (1901-1974) foi um crítico literário inglês de grande conceito, autor de dois trabalhos sobre a poesia de W.B.Yeats – “The Lonley Tower: Studies in the Poetry of W.B. Yeats” e “W.B. Yeats and the Poetry of War” (1965) aos quais, infelizmente, não tive-mos acesso.

Page 96: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

94 ◄◄

assim no tempo devido ela passa a outro corpo, e, em ou-tras encanações, viverá outra vez. (Bhagavad Gita. “A verda-deira natureza do espírito”, 13)

E louvamos Luis Dolhnikoff, por haver sabido reconhe-cer na última mutação ocorrida na poesia de Yeats, a que o teria conduzido à aceitação de idéias, que, como crítico, ousou deno-minar — “idiossincrasias irracionais”, a influência de um mundo que também mudava, revelando com isso uma das grandes cri-ses da chamada “cultura ocidental”, não resolvida com a eclosão e com o final da Segunda Grande Guerra, e que se prolongou no após-guerra, estando a exigir ainda, soluções.

Afirmou, então, o crítico e poeta, a esse respeito:

De fato, Yeats não estava sozinho. Assim como iria acon-tecer nos anos 60, nos anos 10 e 20 uma das reações à crise foi uma espécie de contracultura, marcada pelo anticienti-ficismo, o antirracionalismo, o orientalismo e o esoterismo.

E acrescentou:

O antirracionalismo é mais do que evidente, por exemplo, no movimento dadá, contemporâneo de Yeats, assim como o seu “Spiritus mundi”, a “Alma do universo” (espécie de memória universal, recolha da memória e da experiência de todos os homens) é bastante próxima da concepção de outro irracionalista metódico da época, o “inconsciente coletivo” de Jung. Neste sentido, Yeats não prevê nada, assim como Kafka não estava prevendo a desumanização radical do estado totalitário em O Processo. Tanto Yeats quanto Kafka convertem a crise em arte (convertem não a “criticam”, como seria mais ou menos dominante em cer-tas correntes artísticas da segunda metade do século XX, com resultados muito mais pobres).

E mais, que

Page 97: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 95

(...) sendo a crise a própria síntese do estado da cultura, é, por fim, uma síntese da cultura de seu tempo que emerge em suas obras (que assim nada têm de contraculturais, pois não se põem fora da cultura ocidental, mas. ao contrário, nela mergulham; o que é igual a mergulhar em sua crise.13

E a fim de tentar diminuir o peso da carga colocada sobre os ombros de Bizâncio e dos bizantinos, por vários historiado-res, entre os quais esteve o próprio Arnold Toynbee, iremos va-ler-nos da avaliação correta em suas proporções e oportuna face às circunstâncias que os cercaram — tanto as da época real da sua existência como as existentes nos tempos que se seguiram à sua desaparição do cenário histórico —, feita a seu respeito, por Franz Georg Maier, que foi professor de História Antiga nas Universidades de Frankfurt, Zurich e Constanza, em seu li-vro Bizâncio, com primeira edição em alemão em 1973, e em espanhol, em 1974, constituindo-se numa das melhores sínteses já redigidas sobre a História do Império Bizantino, de modo especial, sobre o seu legado cultural para o ocidente europeu. 14

Nele, afirma terem se constituído como características fundamentais do Império Bizantino — “a confiança no trans-cendental, a religiosidade e a esperança pelo homem comum, da ajuda que lhe seria dada por forças sobrenaturais”; e mais, que em consequência da presença de tais elementos, “o homem bi-zantino era conservador, por inclinação ou apatia, mas, de modo essencial, por sua religiosidade”; revelando-se a sua atividade in-telectual como “uma re-compreensão e um re-conhecimento do antigo, de tudo que, em outros tempos, fora válido em seu viver cotidiano”; pelo que declara haver sido Bizâncio — “criadora e conservadora a um só tempo”; realçando o fato de ser “altamen-te significativa a intenção de interpretar os fatos através de um ponto de vista conservador, buscando-se, desse modo, legitimar

13 DoLHNIKoFF, Luis. Opus cit.14 MAIER, Franz George. Bizâncio. Madrid: Siglo XXI de España, 1974.

Page 98: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

96 ◄◄

a renovação, ao considerá-la um retorno à tradição primitiva.” E afirma, em conclusão, haver a sociedade bizantina conhecido mudanças em suas condições de vida, tanto quanto as adotado nas soluções encontradas para os seus problemas sociais e polí-ticos, não havendo sido, portanto, uma sociedade “petrificada”, como a viu Toynbee. E após afirmar haver sido o império bi-zantino — “um produto histórico com caráter próprio”, realça o fato de nele terem se fundido as inovações e os elementos tradicionais, de modo especial, em sua arte e cultura, dessa fusão havendo resultado algo novo.15

Não foi esta, porém, a Bizâncio que foi idealizada por Yeats. A Bizâncio que foi por ele imaginada, ele a concebeu envolto por um sentimento profundo de nostalgia, como sendo ela algo perdi-do que precisava ser recuperado; vendo-a, do mesmo modo como a viu Dante, na Divina comédia — como “a ave divina” pousada “naquele extremo da Europa, juntoaos montes troianos... sob a sombra de suas asas sendo o mundo governado.”16 E a partir do momento em que nela descobriu o seu passado glorioso que sese perdera, a seu ver, pela incúria dos homens do presente, reconhe-ceu ser aquele o lugar para onde deveria retornar, singularmente, para renascer. Sem devermos esquecer-nos que, somente após a queda de Constantinopla e a consequente desaparição do Império bizantino, conseguiu o ocidente descobrir o helenismo, sangue nas veias de Bizâncio e força geradora do Renascimento, pela he-rança que lhe foi transmitida pelos que ali viveram.

Recordamos, afinal, um outro poeta, por Bizâncio também seduzido, esquecido ou em vias de o ser — o gaúcho Felippe d´oliveira (1891-1933), autor de Vida extinta (1911) e Lanterna verde (1926), deste constando o poema “Ubi Troia fuit”, do qual selecionamos alguns versos que pela força do seu simbolismo,

15 Idem, pp. 31-37.16 DANTE. A divina comédia. Canto VI. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, pp. 246/247.

Page 99: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 97

se mostram capazes de conduzir-nos a um mundo semelhante ao sonhado por Yeats; sem que possamos afirmar ter Felippe D´oliveira conhecido os poemas de Yeats.

E ei-los, então, fazendo a sua leitura supor-nos, que, de algum modo, teria o poeta gaúcho tomado conhecimento dos poemas de Yeats, tal se apresentam suas maneiras de sentir:

Eu queria que a tua beleza morresse e que, como num mar de naufrágio,sobrevivesse o teu corpo deserto de tua graça sem vestígio........................................................................Eu, só eu, ficaria contigo, eu só, com a alegria de guardar intacta, a tua imagem.Tudo que para minha percepção nasceu de ti permaneceria integral e imutável. ..............................................................................Eu, só eu, ficaria contigoe seria o senhor fabuloso de um tesouro desaparecido, que a cobiça não percebe,e seria a voz secreta, a alma imperecível de uma cidade morta,e seria o testemunho revelador de uma legenda esquecidaEu, só eu, ficaria contigo.17

Continuamos, então, a perguntar — teria Felippe D´O-liveira, lido, alguma vez, Yeats? Acreditamos poder esclarecer,

17 D`oLIVEIRA, Felipe . “Ubi Troia fuit” in CoUTINHo, Frederico dos Reys. As mais belas poesias brasileiras de amor. Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1946, pp.216/217. // CoSTA, Lígia Militz da, et allia. Fellipe D´Oliveira — Obra Completa. porto Alegre: IEL. Instituto Estadual do Livro, 1990).

Page 100: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

98 ◄◄

algum dia, esse assunto; ainda que venha a tornar-se difícil res-pondê-la com acerto. propensos, no entanto, estamos a acreditar haver ele lido Keats, e como primeiro indício disso, apontamos o título do seu poema aqui referido, no qual figura o nome da lendária Troia, tantas e tantas vezes mencionada por Yeats em seus poemas e também em esquecer a existência de um deles ter tido por título, sugestivamente — No Second Troy.

Levando em conta, contudo, somente o que conseguimos apurar sobre a sua vida, desde o seu nascimento, a 23 de agosto de 1890, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e a sua morte, a 17 de fevereiro de 1933, em consequência de um desastre au-tomobilístico, nas proximidades de Paris, verificamos haver esta-do sua formação intelectual sempre ligada, de modo essencial, à França, desconhecendo-se o quanto teria ele se aproximado, ao seu tempo, de autores ingleses, o que teria lhe permitido escre-ver, ao menos dois dos seus poemas — “Ubi Troia fuit” e “Dis-tância”, com versões em francês, que foram incluídas em seu livro Alguns poemas”, publicado após a sua morte, em 1937, por iniciativa da Sociedade Literária Felippe D´oliveira.18

E acentuemos, afinal, o fato de haver figurado em Alguns poemas (1937), uma tradução para o português, de Invitation au voyage, de Baudelaire, com seu título conservado em francês, do modo como o encontraram em seu texto manuscrito, os que o editaram; e em Lanterna verde (1926), um poema intitulado Gulliver, mostrando que o célebre romance de Jonathan Swift não lhe fora estranho.

A questão não se situa, portanto, em saber se Felippe D´Oliveira leu ou não Yeats; mas a de avaliar até que ponto

18 A Sociedade Literária Felippe D´oliveira foi criada, no Rio de Janeiro, a 23 de agosto do ano da morte do poeta, por iniciativa de João Daudt de Oliveira, seu tio materno, com a finalidade de publicar as suas obras inéditas. Editou, em 1937, a segunda edição de Vida extinta, livro origi-nalmente publicado em 1911, e Alguns poemas; em 1938, Livro póstumo, no qual foram reunidos crônicas, discursos, entrevistas do autor.

Page 101: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 99

teriam se aproximado os seus pensamentos. E no prefácio que escreveu, em 1925, para o seu Livro póstumo, localizamos o texto que ora reproduzimos, que, a nosso ver, pelo seu conteúdo, bem poderia ter sido escrito pelo poeta irlandês:

Há tantas vidas num mesmo ser quantos são os instantes de êxtase e de criação. Cada pensamento é uma existência autônoma. A força de sobreviver para novas eclosões é ape-nas o elo permanente que prende dados díspares, fazendo sistema. Cada pensamento é um ato integral de paixão. Cada paixão conclui o ciclo de seu destino quando se destaca do ser e paira, definida, no absoluto, acima da vida. A imagem material elucidativa é a da bolha de sabão que se despren-de e oscila, ascensional, decompondo a luz no seu cristal furta-cor. Toda paixão é póstuma: a sua pletora é quando o corpo perde a consciência de si mesmo. Todo pensamento é póstumo. A criatura física é o elemento mecânico, o utensílio para a elaboração das comoções conversíveis em atitude de sensibilidade — ideia ou ação plástica. Cada forma, real ou abstrata só se liberta quebrando-se o molde. O molde parti-do se dilui, se funde, se refunde, se concretiza de novo com contornos novos para formas novas.19

E chegamos à conclusão de que, se Felippe D´Oliveira não chegou a conhecer a poesia de Yeats, tanto um como o outro devem ter bebido em fontes semelhantes, ainda que em momentos distintos, suas concepções sobre a vida e a sobrevida, para não falar em vida após a morte. E voltando a falar de Yeats, e a apoiar-nos nas considerações feitas por Felippe D´oliveira, referentes a “pensamentos” e “paixões” , realçaremos a proprie-dade apontada na personalidade de Yeats, por seu grande admi-rador T.S. Eliot, quando dele afirmou que “todo aquele que se mostra capaz de experiências, irá encontrar-se consigo mesmo,

19 CoSTA, Lígia Militz da, et allia. Fellipe D´Oliveira - Obra completa. porto Alegre: IEL. Instituto Estadual do Livro, 1990, p.178.

Page 102: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

100 ◄◄

em mundos diferentes, em cada década de sua vida; desde que vê sempre com olhos novos, o material de sua arte continua-mente renovado.”20

Demonstrou, então, o grande poeta, haver nele percebido a coexistência, atuando, de modo sucessivo, na sequência dos anos, por vezes, até mesmo, a um só tempo e em posições con-traditórias, de vários Yeats alojados no íntimo de um Yeats ima-ginado por tantos, de modo equivocado, como único. E ao con-cluir a palestra que fez a seu respeito, em 1940, no Teatro Abbey, em Dublin, a convite da sociedade “Friends of Irish Academy”, declarou dever ser ele considerado em razão dessa sua multipli-cidade, uma expressão legítima da sua época, ao afirmar:

Há alguns poetas cuja poesia deve ser colocada como algo isolado, destinado à leitura e ao deleite. Outros há, cuja po-esia, mesmo sendo também destinada à leitura e ao deleite, possui uma importância histórica considerável. Yeats par-ticipa desse último grupo. Ele é um dos poucos poetas cuja própria história é a história do seu tempo, um daqueles que se constituem como parte da consciência de uma época impossível de ser entendida sem a sua presença.

21

20 ELIOT, T.S. “Yeats”inSelected Prose of T.S. Eliot. Edited with an Introduction by Frank Kermode. New York: A Harvest Book / Harcourt, Inc., 1975. p. 252.

Waldir Freitas oliveira é historiador, ensaísta e conferencista, professor emérito da Universidade Federal da Bahia, com dezenas de livros publi-cados, entre eles A antiguidade tardia (1991), e Antônio de Lacerda (2002). Dirigiu diversas instituições, como o Conselho de Cultura do Estado da Bahia, do qual foi presidente, e o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA. É sócio remido do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Desde 1987 ocupa a Cadeira número 18 da ALB.

Page 103: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 101

HOMENAGEM A OLEGÁRIO MARIANO

Consuelo Pondé de senA

Como é agradável reter na memória momentos significativos, especialmente quando muitos dos que apreciaram o mesmo

acontecimento não estão mais vivos para contá-los, ou os esque-ceram. Ser testemunha presencial de uma cerimônia marcante é, para mim, um privilégio.

Compareci, há muitos anos a uma cerimônia noturna, mar-cada para as 20:30h, do dia 28 de agosto de 1950. Muitas pessoas se sentiram atraídas pelas notas publicadas na imprensa. por esse motivo muitos estiveram presentes à homenagem prestada ao mais popular poeta brasileiro daquele tempo. Presidia a Casa da Bahia o doutor Francisco Peixoto de Magalhães Neto e era secre-tário geral o professor Francisco da Conceição Menezes.

Na edição de A Tarde do dia 29 de agosto de 1950, no dia seguinte ao evento, no texto intitulado: “Encontro de poetas — uma festa intelectual em honra a Olegário Mariano” estão contidas as informações sobre o sarau e a composição da mesa presidida pelo presidente do IGHB, professor Francisco Peixoto de Magalhães Neto, o prefeito Wanderley Pinho e o presidente da ALB professor pinto de Carvalho.

Do livro de presenças do IGHB consta a relação de 189 pessoas que compareceram à sessão extraordinária do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia de Letras, e a re-ferência de que se tratava da recepção ao poeta Olegário Mariano, conforme enunciado na página 51 do livro. (ADM-11) do IGHB.

Page 104: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

102 ◄◄

Apesar da labuta intensa do dia a dia, meu pai, médico clínico nesta capital, convidou-nos a mim, Lúcia e pedro para comparecermos à Casa da Bahia, porquanto, naquela noite, ali se reuniriam vários poetas baianos para homenagearem o festejado poeta pernambucano.

Olegário era um dos dois filhos de José Mariano Carnei-ro da Cunha e de dona Olegária da Costa Gama. Portanto, um legítimo representante da aristocracia pernambucana, cujo pai, José Mariano, fora político, advogado, jornalista, combativo líder abolicionista e republicano. Como jornalista, atuou em vários órgãos da imprensa, tendo fundado o jornal A Província. Foi de-putado-geral no império (1881-85) e constituinte de 1891.

Nutria grande admiração pelos pais sobre os quais se es-tende no seu “Discurso de posse”, na Academia Brasileira de Letras. Ao referir-se a ambos, assim se expressa:

Contemporâneo do advento da Abolição, senti que me der-ramaram no sangue ânsias de independência e de humani-dade. Meu pai, figura bíblica no cenário político da época na minha terra, senão no Brasil imperial que agonizava, com a cartilha que me pôs diante dos olhos, ensibou-me a grande arte de seduzir pelo coração. Foi com ele, nas suas atitu-des de homem e de batalhador intimorato, nos seus ges-tos de supremo liberalismo em face do calvário malsinado da escravatura, que aprendi a lídima significação da poesia humana, porque, Srs Acadêmicos, foi meu pai o primei-ro poeta com que privei e que me sensibilizou, poeta da Abolição através do exaltado visionário, abrindo as portas de sua velha casa e o seu imenso coração ao infortúnio da raça proscrita sem olhar para trás como aquele Brissot da Revolução Francesa, para ver se o seguiam e o aplaudiam. Em volta dessa casa que era o baluarte inexpugnável dos homens de ação daquela hora histórica de que nos devemos sempre orgulhar, relampejava, à maneira da divina coluna que vanguardeou as gentes de Moisés, o espírito generoso das da liberdade dos homens esmagados pela mácula étnica.

Page 105: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 103

Autênticos torneios d ’Ágora acordavam em cada pelejador da boa peleja instintos de leões indomáveis que arremetiam, magníficos, contra interesses e preconceitos do capitalismo e da política mal orientada. A salvaguarda dos seus princí-pios que eram, no fim de contas, os direitos à vida daqueles mártires negros, determinava, como era de supor, episódios de raro denodo que ainda se hão de gravar na história da nossa grande Pátria. Aflorando dessa cheia revolucionária, era, pois, natural que houvesse em mim a galhardia heróica e o desempeno quase descomedido daqueles girondinos do norte, estrepitando no vozerio demagógico. Mas, assim não foi Uma índole diversa modelava-me o temperamento e tor-cia-me o rumo do destino. É que ao contato de homens que se batiam, de refrega em refrega, e pregavam as suas ideias em comícios na praça pública , eletrizando , alucinando e arrastando os auditórios, aparecia com o seu diadema de es-trelas à fronte, pura entre as puras, sorrindo um sorriso que era mais do céu que da terra, a imagem de minha mãe que Nabuco chamou na Minha Formação — “um puro Carlo Dolce”. A ela devo, mais talvez que a meu pai, o condão de ser poeta e de, muito cedo afeiçoar-me religiosamente a esse plectro que me impôs à vossa simpatia, plectro que quando firo, como que ouço a música inicial do seu beijo acordando aleluias na minha saudade. (MARIANo, [193?])

Cabe também aqui inserir, algumas palavras do “Discur-so de recepção ao acadêmico Olegário Mariano” proferido pelo acadêmico Barroso ([193?]).

Sois um poeta, Sr. Olegário Mariano, na mais alta acepção dessa palavra. Dissestes, e com muita razão, que — sem quaisquer preocupações das escolas literárias sob a contin-gência do motivo ou da forma, não pretendestes ser mais do que poeta, deixando a alma dizer o que lhe aprouvesse em instantes de alegria e de tristezas. Eis aí a causa prin-cipal de serdes entre os nossos poetas, um grande poeta, porque sois vós mesmo, sem artifícios, sem ouropéis, sem

Page 106: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

104 ◄◄

máscaras, vós, integralmente vós, com os vossos defeitos e as vossas qualidades. E, na singeleza sem par dessa natura-lidade, reside por certo a vossa maior gloria.

Com efeito, a poesia de olegário Mariano primava pela sim-plicidade das palavras, pela comunicabilidade, que o tornava tão palatável a todas as pessoas, pois se expressavam de maneira co-loquial. Seus temas também são simples, despidos de atavios e de preocupação com o erudito. Por isso, cantava o sentimento com tanta ternura e os seres da natureza com tanta delicadeza.

Na História concisa da Literatura Brasileira, Bosi (1975) es-creve: “Olegário Mariano (1889-1958), que, perpetuando o verso tradicional até à morte, deu exemplo de um lirismo aber-to e simples”.

Sobre olegário Mariano escreveu Lima ([193?]):“Embora o homem não parecesse ter motivos de grandes

queixumes, o poeta que nele existia era triste e pôs nos versos um travo de melancolia: ‘É meu fado andar por esta vida/sozinho e triste como um desterrado’”. Ainda sobre Mariano comenta: “Sem ser totalmente avesso à arte moderna — admirava Porti-nari, Di Cavalcanti e Ovale — afirmava não querer compreender a poesia moderna. Ao verso livre e de ritmo descabelado opôs o alexandrino e musical. Lírico incorrigível, é chamado o poeta das Cigarras, pela preferência que teve para com elas. Com seu falecimento, no Rio de Janeiro, passou às mãos de Guilherme de Almeida ‘o Principado da Poesia Brasileira’”.

No livro A literatura no Brasil sob a direção de Coutinho (1987), olegário Mariano está incluído no Neoparnasianismo, ao lado de Mário de Lima, Humberto de Campos, Agripino da Silva, Alberto Ramos e Martins Fontes e outros mais tarde Luiz Carlos, Adelmar Tavares, Moacir de Almeida, Aníbal Teó-filo, Aristeo Seixas, Basto Tigre, Bastos Tigre, Batista Cepelos, Belmiro Braga, Castro Menezes, Catulo Cearense, Farias Neves Sobrinho, Goulart de Andrade, José Oiticica, Leal de Sousa, Luís

Page 107: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 105

Edmundo, Múcio Leão, Nilo Bruzzi e outros. Acerca de Olegá-rio escreve: De Olegário Mariano, cuja reputação como lírico esteve sempre ligado à lembrança de seus versos às cigarras, é imperiosa a menção do livro O enamorado da vida (1937), publi-cado a uma altura em que a posição neoparnasiana frente ao problema poético podia ser, já, considerada inatural. No conjun-to da obra de olegário Mariano, entretanto, O enamorado da vida goza de singularidade. Voltando-se para a infância, para a terra natal, relembrando tipos e episódios de uma vida prenhe de li-rismo, logra o poeta emprestar a seu canto uma pureza inusitada e aos versos fluência e riqueza conceitual. “Evocação”, “O poço da panela”, “Tempo que se foi...” são peças que desde então se tornaram antológicas.

Num remanso bucólico e sombrio onde atenua a marcha o grande rio, À sombra de recurvas ingazeiras, Batem roupa, cantando as lavadeiras. Trago ainda nos olhos: é bem ela, A paisagem do poço da panela: A igreja, a casa grande, as gameleiras E ao fundo o pátio verde e as ribanceiras que afagam, num lúbrico arrepio, o corpo adolescente e alvo rio. Do outro lado da margem — capinzais Da olaria e do sítio de Morais. Morais pilôto — um português antigo, Compadre de meu pai, seu grande amigo, A quem seguia como um cão de fila Através da política intranquila. Homens, éramos dois. Completamente Diferentes em tudo. Eu, manso e doente, Meu irmão insubmisso e insuportável Como um potrinho de expressão saudável

Page 108: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

106 ◄◄

Cometendo distúrbios... Meu irmão Levava surras como um boi ladrão. Mas vingava-se em mim. O quanto eu tinha Era nas suas mãos como farinha. Animais de madeira, leões, camelos, Até a minha coleção de selos Ele queimou um dia por vingança. Aprendi a sofrer muito criança. Se alguém me dava cousas de presente, Dele era tudo, inevitavelmente. Se havia luta entre nós dois, a sorte Decidia por ele: era o mais forte. E eu, sem revolta e sem melancolia, Sendo filho de ricos, mal vivia. Uma vez, (como dói essa lembrança!) De um bando de guris da vizinhança, Meu irmão, num rincão da estrebaria, Organizou a sua “Companhia”, Fez um bumba-meu-boi surpreendente, distribuiu os papéis a toda gente: O “boi”, o “Seu Coitinho”, a “Ema”, a “Caipora”. Entraram todos... Eu fiquei de fora. Nessa noite, meu pai, vendo-me em pranto, pôs a troupe na rua por encanto E reduziu a múltiplas fogueiras, “Boi”,”cavalo marinho” e “cantadeiras”. De então recrudesceu a fúria. Não havia pedido nem lamúria De minha Mãe, que comovesse a fera. Era o diabo. Eu nem sei mesmo o que ele era. Certa noite pesada de tormenta, Minha Mãe, numa voz cansada e lenta, Lia-me a história do patinho torto. Eu, com meus dedos tremendo, ouvia absorto,

Page 109: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 107

Quando assomou à porta o turbulento. Entrou que parecia um pé-de-vento. parou. Sorria. Já conhecia a história, Disse (tenho bem claro na memória): Que ele era um cisne pra viver num horto E eu não passava de um patinho torto. Minha Mãe pôs em mim seus olhos mansos, Tranquilos como as águas dos remansos, E tantas vezes me beijou no rosto, Numa expressão tão triste e tão singela, Que desejei sofrer novo desgosto Só pra ter novas carícias dela. A despeito das rixas e perigos, Crescemos ambos como bons amigos, Vendo o tempo apagar, rude e apressado, Esse doce perfume do passado, Que nos infiltra uma saudade louca. E inda temos um beijo em nossa boca, Um beijo de respeito e de recato Para beijar chorando o seu retrato. Velhos, sem ter ninguém que nos iluda, pensamos nela e nos seus bons destinos. Se viva fosse, inda éramos meninos, Que para o olhar das mães que nunca muda, Os filhos continuam pequeninos...

Literatos, também, costumam estar ou não na moda, por-que os gostos e tendências se modificam com o decorrer dos tempos. Todavia, o que apresenta qualidade literária sempre há de ser admirado e aplaudido, independentemente, da corrente a que pertença. Lembro-me bem, que dentre os que pontuaram as letras brasileiras, há relativamente poucos anos, e caíram no es-quecimento estão: o poeta Olegário Mariano e prosador Hum-berto de Campos, ambos desconhecidos das atuais gerações.

Page 110: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

108 ◄◄

Olegário Mariano Carneiro da Cunha era uma bela figura humana. Elegante e bem vestido, foi pintado por Cândido porti-nari, ao menos, em três oportunidades. Cidadão de prestígio po-lítico e social, desde cedo, aos 29 anos, foi indicado representan-te do Brasil na Missão Melo Franco, na condição de secretário da Embaixada Brasileira na Bolívia. Parlamentar foi deputado à Assembleia Constituinte em 1934. ocupou pouco depois, em 1937, uma cadeira na Câmara dos Deputados, dissolvida pelo Estado Novo. Amigo de Getúlio Vargas exerceu o cargo de mi-nistro plenipotenciário nos Centenários de portugal, em 1940. Ainda em 1940, foi delegado da Academia Brasileira de Letras e, mais tarde embaixador do Brasil em portugal.

No ano de 1938, em concurso promovido pela Revista Fon Fon foi eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, em substituição a Alberto de oliveira, título primeiramente concedido a olavo Bilac. Durante algum tempo publicou nas revistas: Caretas e Para Todos, sob o pseudônimo de João da Avenida. Eleito para a Aca-demia Brasileira de Letras, em 1926, sucedeu a Mário de Alencar e foi substituído por Álvaro Moreira.

Ficou conhecido como: “Poeta das Cigarras” por ter esse mavioso inseto como um dos seus temas favoritos. Tendo vivi-do no período do Modernismo não aderiu ao movimento refor-mador das letras brasileiras, sendo considerado um passadista, porque cultivava os preceitos do incinerado parnasianismo.

por todos esses motivos, sua estada na Cidade do Sal-vador despertou grande interesse do mundo intelectual e o IGHB e a Academia promoveram a tertúlia a que tive a alegria de assistir.

Aberta a sessão, foram pronunciadas palavras de boas vin-das ao visitante e, sucessivamente, sendo convidados a decla-mar suas próprias produções poéticas: Arthur de Salles, Castro Rebello Junior, Francisco de Mattos (Chico de Mattos) e João Muniz. Se estavam presentes outros poetas, como pude verificar nas páginas da imprensa, minha memória não captou.

Page 111: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 109

Contudo, a edição do Estado da Bahia daquela segunda fei-ra, dia da festa literária, noticiou sobre a noite, no IGHB, infor-mando que se fariam ouvidos Magalhães Neto, Hélio Simões, Arthur de Salles e Afonso Castro Rebelo Junior. O jornal A Tarde também divulgou foto daquele belo varão. Para confir-mar a informação de que o vate pernambucano era aguarda-do, com interesse, na capital baiana, permitimo-nos transcrever parte da notícia divulgada no próprio dia 28 de agosto sobre a sua presença em Salvador. Este é o texto: “Qual não foi a nossa surpresa quando nos deparamos com uma figura de porte ainda varonil que uma basta cabeleira fios de prata torna mais impres-sionante. Requintado também no vestir–se, o ‘príncipe’ logo se pôs à disposição do repórter para uma conversa entre amigos, que ele mesmo inicia”. Conta ainda que do Recife foi direto para a cidade do Bonfim, antiga Vila Nova da Rainha, na Bahia, a fim de visitar sua prima Esther, esposa do senhor Raimundo Gonçalves. Naquele local recebeu significativa homenagem no salão da prefeitura uma “hora de arte”, durante a qual as crianças declamaram alguns dos seus poemas. De igual modo, o vesper-tino baiano anunciou a homenagem ao poeta, imortal da Aca-demia Brasileira de Letras, onde ocupou a Cadeira número 21, e da qual foi presidente, que lhe seria prestada pelo IGHB e pela ALB, na sede da Casa da Bahia, às 20:30h.

À noite, em companhia de meu pai e de meus irmãos Lú-cia e Pedro, compareci ao Instituto, tendo a ocasião de assistir a divulgada homenagem prestada pelos poetas baianos. Naquele momento singular, lembro-me ter escutado os poetas: João Mu-niz, Chico de Mattos, Afonso Castro Rebelo Junior e Arthur de Salles. Dentre todos os poetas destacou-se a figura exponencial do simbolista Arthur de Salles, com sua basta e alva cabeleira ondulada, realçada pelo tom canela da pele e a simplicidade com que se pronunciou, quase sussurrando. Convocado pela presidência, encaminhou-se timidamente para a tribuna, num passo lento de quem se subjugava ao peso dos anos, vestido

Page 112: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

110 ◄◄

modestamente, como se envolto num burel franciscano. Era a mais perfeita personificação da timidez e da humildade.

Recordo-me que em grande silêncio se manteve a assis-tência, quando Arthur de Salles recitou o soneto “Ocaso no mar.” Figura veneranda, nasceu de família modesta, no bairro do pilar, a 7 de março de 1879, tendo começado a escrever aos 13 anos. Faleceu, em Salvador, aos 73 anos, a 27 de junho de 1952. Sobre esse soneto, certa vez, escreveu o crítico Agripino Grieco: “se toda a poética nacional se perdesse num naufrágio, e só restasse ‘Ocaso no mar’, o crítico da história, lendo-o, exclamaria: ‘aqui viveu um grande povo’”. (Palestra proferida no IGHB).

No noticiário de sua morte consta a informação: “Ne-nhuma geração o combatia. Se entre os escritores e poetas aca-dêmicos contava com amigos e admiradores, menos querido e admirado não o era nas rodas dos literatos de convicções mo-dernistas”. A mesma nota acrescenta: “Não vivia enclausurado em torre de marfim, acompanhava e participava das vibrações cívicas da juventude, formava com os moços em movimentos renovadores, dominado por uma sinceridade que todos lhe reco-nheciam e admiravam” (A TARDE, 27 jun. 1952).

Quanto aos demais participantes da homenagem, confes-so, só retive na lembrança, aqueles que costumava encontrar na Rua Chile, nos pontos em que se reuniam os intelectuais da Boa Terra. Eram costumeiros frequentadores da esquina do Palácio Rio Branco, do Café de Bernadete ou do Café das Meninas.

Como essas lembranças me levam a recuar até o tempo da mocidade e recordar que, à semelhança das demais jovens da época, passeava, com minhas irmãs e amigas, pela inesquecível artéria principal desta cidade — hoje, escombro do passado.

Escutadas as vozes dos poetas reunidos no salão nobre do IGHB, lembro -me bem da voz abafada, quase rouca, de Ole-gário Mariano ao recitar evocativo poema “O poço da panela”, que o remetia ás recordações da velha propriedade rural paterna,

Page 113: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 111

as disputas com seu irmão José Mariano Junior e outras ternas lembranças do passado. Apesar de serem apenas dois irmãos não eram muito próximos.

José Mariano Filho era escritor, colecionador, e se dedica-va à história e a crítica de arte. É autor dos livros: Antônio Fran-cisco Lisboa, o Aleijadinho; Estudos de arte brasileira e Os três chafarizes do mestre Valentim. Chegou a ocupar a direção da antiga Escola Nacional de Belas Artes, do Rio de janeiro (1926-1927).

Todavia, a notícia do evento, publicada em A Tarde, no dia seguinte, veiculou: primeiramente, usou da palavra o professor Estácio de Lima que, em nome da ALB e do IGHB, saudou o homenageado. Seguiu-se-lhe o poeta Ivan Americano, que o fez em nome dos de Letras da Bahia, que não pertenciam às duas instituições culturais. Depois, voluntariamente, declamaram ver-sos de suas lavras os poetas: Arthur de Salles, Afonso Castro Rebelo Junior, João Muniz, João Ribeiro da Hora, Benjamim de Viveiros, Chico de Matos.

“Sob imensa expectativa, Olegário Mariano tem a palavra, só conseguindo usá-la depois de cinco minutos que a tanto de-moraram os aplausos vibrantes de toda a assistência. E porque afônico, ainda carpindo uma forte gripe pediu desculpas de ‘fa-lar pouco e muito próximo ao microfone’. Declamou “As duas sombras” e dois poemas inéditos, primorosos como os demais excertos do seu próximo volume Meu mundo fechado. Quando olegário terminou a última estrofe, a assistência o ovacionou, de pé, por muito tempo”. São desses pequenos e fugazes instantes que é feita a nossa vida. Não nos enganemos.

Volvidos tantos anos, aqui estou, saudosamente, a evocar momento significativo desta Casa da Bahia, do qual participei como ouvinte, orgulhosa por encontrar-me, com meu pai, Edis-tio Pondé que, na mocidade, ao lado de Adalício Nogueira, seu primo e amigo, também presente ao mesmo sarau, colaborara, nesta Casa da Bahia, com o professor de História Universal, Ber-nardino de Souza, Secretário Perpétuo do IGHB.

Page 114: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

112 ◄◄

Recordações são sempre agradáveis de reviver, porque nos conduzem ao passado, por vezes, esquecidas nos escaninhos da memória.

REFERÊNCIAS

Na Bahia o cantor D’ “As Cigarras”: fala o poeta, “são sempre às mes-mas morenas de olhos verdes”. A Tarde, Salvador, p. 2, 28 ago. 1950.Encontro de poetas: uma festa intelectual em honra a olegário Maria-no. A Tarde, Salvador, p. 2, 29 ago. 1950.Morreu Arthur de Sales: um concurso literário consagrara-o como ”príncipe dos poetas baianos. A Tarde, Salvador, p. 2, 27 jun. 1952.BARROSO, aGustavo. “Discurso de recepção ao acadêmico Olegário Mariano”. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8452&sid=228>. Acesso em: 14 jun. 2014.BoSSI, Alfredo. Historia concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix; 1987, 528p.CoUTINHo, Afrânio (org.). A Literatura no Brasil. 2. ed. Rio de Janei-ro: Sul Americana [19-?].GRIECO, Agripino. Escritos e artistas baianos. Rio de Janeiro: o Jornal, 1934.LIMA, Ébion. Curso de literatura brasileira. São Paulo: FTD, s/d.MARIANO, Olegário. “Discurso de posse”. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoi-d=8452&sid=228>. Acesso em: 14 jun. 2014.1

Consuelo pondé de Sena é historiadora e ensaísta, especialista em lín-gua tupi e etnologia geral e do Brasil e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. É presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sócia correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História. Desde 2002 ocupa a Cadeira número 28 da ALB.

Page 115: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 113

AS ARTES SE DISTRAÍRAM, E A EXPLOSÃO DADÁ

CAMINHA pARA oS 100 ANoS

FlorisvAldo mAttos

Dizem que se findou em 1921 ou 1922, mas faltam apenas meses para que transcorra o primeiro centenário da explo-

são de irreverência, rebeldia, negação, niilismo, absurdo e maca-quices, que um irrequieto grupo de jovens artistas, poetas, escri-tores, cantores e dançarinos perpetrava em Zurique, na noite de 5 de fevereiro de 1916, no Cabaret Voltaire, situado no nº 1 da Spiegelgasse (Travessa do Espelho), vista então como um reles beco. Ali, para muitos uma jaula de loucos, surgia o movimento Dadá, que vinha para atropelar abruptamente tudo que se tinha como pensamento e arte instituídos, mas também para mudar os rumos da cultura ocidental, sob o signo do ódio ao nacionalis-mo, ao progresso, à razão e à ordem, tidos como estimuladores da guerra que, então, ensanguentava e devastava a Europa.

Dadá desejava destruir os enganos lógicos do homem para recuperar uma ordem natural, irracional. Dadá que-ria substituir o absurdo lógico dos homens de hoje pelo irracional destituído de sentido. É por isso que tocamos com toda a força que pudemos o grande tambor de Dadá e trombeteamos o elogio do ilógico. (...) Filosofias valem menos, para Dadá, do que uma escova de dentes velha, jogada fora, e Dadá as deixa para os grandes líderes da humanidade. Dadá denunciou as artimanhas infernais do vocabulário oficial do saber. Dadá é para os sem-juízo, o

Page 116: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

114 ◄◄

que não é nada absurdo, Dadá é como a natureza, despro-vido de sentido. Dadá é pela natureza e contra a arte.(Ball, apud Ades, 1976, p.17-18)

Assim, numa apologia do irracional própria do movimen-to, escreveu o poeta Hugo Ball (1886-1927), membro do grupo e fundador do Cabaret Voltaire, uma espécie de boate artística e literária, onde ocorriam as reuniões, em noites de acaloradas dis-cussões, declamações e tresloucadas exibições, que os dadaístas, segundo um deles, o alemão Richard Huelsenbeck (1892-1974), desejavam tornar “um ponto focal da novíssima arte”.

Não obstante, apesar de se ter fixado em 1916 o marco inaugural do dadaísmo, de onde se lançaria como irresistível onda para todo o mundo ocidental, não se pode omitir um con-junto de ações proto-Dadá que ocorreram nos Estados Unidos, por efeito da associação que se estabeleceu entre Alfred Stieglitz (1864-1946), considerado um dos pioneiros da fotografia mo-derna, e o pintor Francis picabia (1879-1952), este descrito por Marcel Duchamp como um anarquista nato e um dadaísta avant la lettre, em Nova York, ao ponto de em 1915 ter sido ele o res-ponsável pela mudança do nome da revista Camera Work, que o fotógrafo e marchand editava como porta-voz vanguardista de sua pequena galeria de arte, desde 1905, para 291, doravante o seu veículo de propaganda artística revolucionária, cujo primeiro número trazia, além de desenhos originais de picabia, alusivos à sua série de máquinas imaginárias, ideogramas de Guillaume Apollinaire e poemas do próprio Stieglitz.

“Em 1913, Picabia foi para Nova York a fim de presenciar o grande impacto provocado pelo Armory Show sobre a arte americana. Continuou ali para injetar um espírito proto-Dadá na revista de Alfred Stieglitz, Camera Work, e mais tarde em 291, a publicação da galeria de Stiegliltz” (Chipp, 1996, 373), embora registre que Picabia só em 1916 aderiria decididamente ao grupo de Zurique, participando em 1917 das “primeiras manifestações Dadá em paris”.

Page 117: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 115

Tornava-se claro que, ante crescente rejeição que tais au-dácias artísticas espalhavam no ambiente cultural de Nova York, a revista 291 servia de instrumento a Stieglitz e aos que o apoia-vam, para promover abertura de espírito a cada exposição de arte contestadora que organizava em sua galeria. Não há dúvida de que, ali, a seiva de negação e rebeldia que irá alimentar a ex-plosão Dadá apresentava contornos de uma autêntica prévia do que ocorrerá no ano seguinte, em Zurique.

Como que a chancelar o proto-Dadá nova-iorquino, mais incisivo, e na perspectiva da atmosfera beligerante da época, o al-saciano Jean (Hans) Arp (1886-1966), também do grupo, assim justifica as atitudes dos futuros dadaístas:

Em Zurique, em 1915, quando perdemos o interesse pe-los matadouros da guerra mundial, nós nos voltamos para as belas-artes. Enquanto o trovão das baterias ressoava a distância, fazíamos colagens, recitávamos, versejávamos, cantávamos, pondo a alma inteira nisso. Buscávamos uma arte elementar que pudesse, pensávamos, salvar a huma-nidade da loucura furiosa daqueles tempos. Aspirávamos a uma nova ordem, que restaurasse o equilíbrio entre o Céu e o Inferno. Esta arte se tornou gradualmente obje-to de uma reprovação geral. Surpreende que os “bandi-dos” não pudessem entender-nos? Sua mania pueril de autoritarismo leva-os a esperar que a própria arte sirva de instrumento para estupidificar a humanidade. (Arp, apud Ades, 1976, p. 14)

Arte e guerra mantêm antigo nexopor sobre tempos e ter-ritórios de sangue e sofrimentos. Mente solta, imagine-se uma rebelião a eclodir em um país que optou confortavelmente pela neutralidade no meio de uma conflagração continental, em que várias nações ferozmente se digladiam e trucidam; pode até parecer cena de pesadelo, com desfecho previsível. Inebriados pelo triunfo e mergulhados na soberba, os vencedores põem-se

Page 118: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

116 ◄◄

a dividir gordo botim, enquanto os vencidos, se não sobrevém algum plano Marshall salvador, contam seus mortos e ruminam suas dores, lágrimas e perdas. Em outro registro, incauto leitor que buscasse em algum ilustre tratado os efeitos que fatalmente guerras despejam sobre o hoje e o amanhã de povos e nações certamente se resignaria a listar e aturar redundantes obviedades. Mas se, curioso, resolve inventariar efeitos de guerras sobre as artes e a cultura em geral, talvez a reação seja outra, de surpresa, senão de enganador fascínio.

Exemplos sempre houve e haverá, a se estenderem sobre calendários e alentados compêndios de história. Lembrada, ce-lebrada e perpetuada, a guerra de Troia serviu de tema a imor-redouras epopeias — a Ilíada e a Odisseia, de Homero, como a Eneida, de Virgílio, sempre evocadas; a carnificina travestida de místico heroísmo das Cruzadas contra o oriente muçulmano (que hoje parece dar o troco, dez séculos depois) abarrotou de inspirados versos as estrofes da Jerusalém libertada, de Torquato Tasso, enquanto os cascos ainda sangrentos de decadentes ca-valarias pelos áridos solos da Mancha permitiram que Miguel de Cervantes escrevesse a saga humanista do maior romance de to-dos os tempos, abrindo largas sendas narrativas que se enroscam com os estratagemas e ambições de poder da burguesia.

Ah, também ela, a nascente burguesia, que despertaria com os exércitos e as glórias de Napoleão seu célebre Code Civile (1802), ele, então, venerado Cônsul, depois imperador, a subme-ter impérios, povos e nações à força de espadas e canhonaço, conflitos que sobrevivem em páginas vibrantes com que Sten-dhal (O vermelho e o negro, A cartuxa de Parma), Tolstoi (Guerra e paz) e Giuseppe Tomasi de Lampedusa (O leopardo) iluminaram o caminho rumo à galáxia heroica do romance que tem a guerra como protagonista central, no século XIX — isso de barato, por só falar de literatura, abstraindo-se a música (Beethoven) e a pintura (Goya, Jacques-Louis David, Delacroix, Manet). Mas, nenhum período foi tão farto como o século XX em projetar

Page 119: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 117

influências, tão inovadoras quanto reiterativas, sobre gerações, produzindo ideias e movimentos políticos e artísticos, quanto as duas grandes guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com os seus fecundos intermédios, sem abstrair as que se seguiram, embora localizadas (Coreia, Vietnã, Golfo, Afeganistão e Ira-que), cujos reflexos prosseguem.

BOATE DA “ARTE NOVÍSSIMA”

É no justo contexto da matança da Primeira Grande Guerra Mundial, que se devem inserir a erupção, as ensande-cidas reuniões do Cabaret Voltaire e, por fim, a afirmação e irradiação internacional do movimento Dadá, que marcha para completar um século dentro de meses, praticamente em segui-da ao centenário do início da conflagração que lhe deu causa, mas que, ao passo de tantos anos, parece recusar-se a morrer de vez.

A tal distância, a impressão que se tem é que os dadaís-tas nunca existiram, entram na corrente de mitos criados, mas eles efetivamente se materializaram em pleno calor da guerra, dias depois de Hugo Ball e sua companheira Emmy Hennin-gs (1885-1948) inaugurarem o Cabaret Voltaire. Além deles, auferia o diáfano clima da neutralidade suíça, como refugiados, uma futuramente prodigiosa malta: os romenos Tristan Tzara (Samy Rosenstock, 1896-1963) e Marcel Janco (1895-1974), ou-tro alemão, Richard Hüelsenbeck (1892-1974) e o alsaciano Jean (Hans) Arp (1886-1966), aos quais adeririam outros alemães, os pintores Max Ernst (1891-1976) e Kurt Schwitters (1887-1948), Raoul Haussmann (1886-1971) e sua mulher Hannah Höch (1889-1978). Além de Emmy Hennings, entre os primeiros com-parsas do movimento, militava outra mulher, Sophie Taeuber, que participava das alucinadas noites do Cabaret Voltaire com o rosto encoberto por uma máscara, proibida de se apresentar em cena e ameaçada de demissão pela escola de Zurique, em que

Page 120: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

118 ◄◄

ensinava artes decorativas. Nenhum deles estava disposto a dar uma gota de sangue ou de suor por suas pátrias numa guerra que condenavam.

os dadaístas relacionam o seu movimento diretamente com o conflito. Num depoimento de 1920 (En avant Dada: histó-ria do dadaísmo), transcrito por H. B. Chipp, relata Hüelsenbeck:

Tínhamos deixado nossos países por causa da guer-ra. Ball e eu vínhamos da Alemanha, Tzara e Janco, da Romênia. Hans Arp, da França. Estávamos de acordo em que a guerra havia sido provocada pelos vários governos por razões autocráticas, sórdidas e materialistas. (Chipp, 1996, p. 381).

Como rubrica trágica e justificação, o movimento eclode precisamente dezesseis dias antes de começar o mais longo e sangrento combate da Primeira Grande Guerra, a célebre bata-lha de Verdun, com a participação de dois milhões de soldados franceses e alemães, dos quais metade morreu, sessenta mil de-les num só dia. Enquanto a Europa mergulhava em desespero, com nações engalfinhando-se sobre sangue e lama, para acerto de longínquas desavenças, num teatro de morte e tragédia, um grupo de jovens artistas quase apátridas levantava sua voz, alto e bom som, para afirmação de seu pendor niilista e iconoclas-ta, descerrando imensa cortina para lendas e reações iradas, em face das experiências amargas e das profundas transformações sociais e políticas, que se irão projetar por duas décadas (de 1920 a 1940) que prenunciam outro conflito mundial, a refletir-se tan-to no plano histórico e social, quanto no cultural e artístico. (E uma coincidência de calendário: Zurique, 1916, a mesma cidade e ano em que James Joyce está escrevendo o seu romance Ulisses, marco da ficção moderna, que sairia em 1922).

Neste cenário de incertezas e aflições, afloravam aspi-rações por formas de arte e de poesia que apontasse para no-vos horizontes, preocupações que muito bem se denunciam

Page 121: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 119

na memória um dos dadaístas de primeira hora, Marcel Janco: “Tínhamos perdido a esperança de uma condição de vida mais justa para a arte em nossa sociedade. Aqueles dentre nós que tinham consciência do problema sentiam o peso de uma enor-me responsabilidade. Estávamos indignados com os sofrimen-tos e o aviltamento do homem” (Janco, apud Tolentino).

Passados decênios da eclosão do movimento, falando a uma rádio francesa em 1950 sobre as razões que deram origem ao Dadá, Tristan Tzara parecia simplesmente didático:

para compreender como Dadá surgiu é necessário imagi-nar-se, de um lado, o estado de ânimo de um grupo de jo-vens na prisão em que, à época da Primeira Guerra Mun-dial, se resumia a Suíça e, de outro, o nível intelectual da arte a da literatura em tal momento. Era certo que a guer-ra deveria ter fim e que depois nós não teríamos de ver outra. Tudo isso caiu no que comumente o hábito chama de história. Mas, por volta de 1916-1917, a guerra pare-cia que não iria findar-se. No mais, seja para mim como para meus amigos, ela tomava proporções de estender-se por uma perspectiva bastante longa. Disto sobrevinham o desgosto e a revolta. Nós éramos resolutamente contra a guerra, sem por isso cair-se na fácil pieguice do pacifis-mo utópico. Nós sabíamos que era possível esquecer a guerra senão arrancando-lhe as entranhas. A impaciência de viver era enorme, o desgosto se aplicava a toda forma de civilização considerada moderna, à sua própria base, à lógica, à linguagem, e a revolta impunha-se de tal modo que o grotesco e o absurdo ultrapassavam com grande alarde os valores estéticos. Não há como esquecer que na literatura um ostensivo sentimentalismo mascarava o hu-mano e que um perverso gosto com pretensões de altura se instalava em todos os campos da arte, caracterizando a força da burguesia em tudo que ela possuía de mais odioso (Tzara, apud Almeida, 2012)

Page 122: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

120 ◄◄

Há fundamento histórico nessa referência, a merecer li-geira recensão. A volúpia beligerante da burguesia, em luta para impor seu domínio sobre a aristocracia e, assim, perpetuar-se no poder, já com as guerras napoleônicas como seu instrumento, acabaria por receber uma transfusão reanimadora e solidária de sangue azul, cujo efeito tonificante vai atingir o cerne nevrálgico do desenvolvimento artístico europeu no século XIX — a paris da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), desencadeada por Otto von Bismarck, sob a égide expansionista do Império Alemão de Guilherme I (1797-1888), cujo trauma, após a ocupação e conse-quente derrota francesa, culmina com a anexação da Alsácia e da Lorena, gerando na Alemanha, com a quase concomitante derrota da Dinamarca e da Áustria, um tal sentimento de júbilo e ufanis-mo, que enojou Nietzsche. É este o momento mesmo da onda de revolta e populismo que irrompe, à época, dando origem à célebre, embora efêmera, Comuna de paris (1871).

Lógico que não se pode traçar uma linha direta entre os fatos da guerra e o que se projeta e desenvolve na cultura, mas é muito coincidente o estado de desconforto desse pós-guerra e anteriores posturas culturais indicando novos rumos à literatura e às artes e nomes, que aqui podem ser evocados — Zola, Rim-baud, Verlaine, Alfred Jarry, Huysmans, na literatura; Gauguin, Seurat, Signac e Cézanne, na pintura – e não se venha dizer que o pós-impressionismo se deveu apenas ao sucesso de pesquisas sobre as leis ópticas da visão, ao uso dos contrastes simultâne-os ou das cores complementares, numa dívida apenas contraída com o concreto e o material da arte. Muito ao contrário, situa-se aí um momento dinâmico de gestação que vai desembocar no modernismo — como observa Jacques Barzun: “um período preparatório, mais ou menos de 1870 a 1885, durante o qual an-tigos modos são questionados ou timidamente desrespeitados”.

Qual a razão disto, de as conflagrações bélicas projetarem efeitos sobre a criatividade nas artes? Entre vários, a meu ver, dois fatores sobressaem.

Page 123: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 121

1) No plano moral e histórico, para vencedores e venci-dos, a infinidade de consequências, de incômodos, que as guer-ras provocam – miséria, sofrimentos, inquietações, revolta, pro-testos, rebeliões, anseios por mudança, contestação de valores, súbita sensação de esgotamento das bases sociais, cerceamento de rumos, destruição pela necessidade de livrar-se do que se tor-nou culturalmente estorvo, do começo ao fim, mesmo que tudo se reduza a nonsense, piada. Era o que acontecia na Europa em 1915/1916, em plena Primeira Grande Guerra Mundial

Esses fatos fizeram os talentos mais jovens sentir-se co-lhidos nas garras da história; eles devem ser originais, mas sua herança estorva-lhes o caminho e os meios para a rea-lização de um novo começo eram-lhes negados pelo corte na cultura. Estavam num novo ponto de partida, sem o benefício de um terreno escoimado, de uma tábua rasa” (Barzun, 2002, p.772)

2) Os resultados do imenso esforço técnico-científico dos países em conflito, em matéria de investimentos, pesquisas e ex-perimentos, desenvolvimento industrial, em princípio para fins bélicos, que, findas as hostilidades, se revertem para o uso geral da sociedade, nos campos da ciência, educação, saúde, seguran-ça, energia, transportes, meio-ambiente, administração, cultura, comunicações, de que as artes, de frente para o futuro, são lar-gamente beneficiárias.

UM NOME PARA DADÁ

Apesar de Hans Richter (pintor, artista gráfico, cineas-ta alemão, 1888-1976) afirmar ser “impossível constatar quem achou ou inventou a palavra Dadá, ou o que ela significa”, o certo é que o movimento precisava de um nome e, como apre-sentava contornos de estripulia, aventura e brincadeira, muitas histórias se contam e tantas são as versões desta descoberta,

Page 124: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

122 ◄◄

quanto foram as polêmicas que surgiram em torno da autoria da marca que iria fazer história no curso do século XX. Tristan Tza-ra, já visto como, senão líder, seu maior propagandista divulgou a sua versão. Ao enfiar uma espátula aleatoriamente num dicio-nário alemão-francês, encimava a página que se abrira a palavra DADA, significando apropriadamente um brinquedo — cavali-nho de pau, mas um significante sob medida e, por certo, fácil de gravar e difundir.

Por seu lado, Hüelsenbeck relata que a descoberta aciden-tal se deu quando ele e Hugo Ball buscavam no dicionário o nome para uma cantora que se apresentava no Cabaret Voltaire. “Ball e eu descobrimos a palavra Dadá, por acaso, num dicio-nário francês-alemão, quando procurávamos um nome artístico para madame LeRoy, a cantora do nosso Cabaré. Dadá é uma palavra francesa, que significa cavalo de pau”, esclarece.

Não é o mesmo que afirma o fecundo Jean Arp, em 1921, na revista do movimento:

Declaro que Tristan Tzara encontrou a palavra Dadá em 08 de fevereiro de 1916, às seis da tarde. Eu estava pre-sente com os meus doze filhos, quando Tzara pronunciou pela primeira vez essa palavra que despertou em todos nós legítimo entusiasmo. (...) Estou convencido de que esta pa-lavra não tem nenhuma importância e que apenas os im-becis e os professores espanhóis podem interessar-se pelos dados. Aquilo que nos interessa é o espírito dadaísta e nós éramos todos dadaístas antes da existência de Dadá. (Arp, apud Tolentino)

Depois, viu-se — e foi dito em manifesto — que a palavra significava muitas outras coisas, e é o próprio Ball quem escla-rece: “Dadá em romeno, significa Sim, Sim; em francês, cavalo de pau. Para os alemães, a palavra é um sinal de ingenuidade tola e disparatada, e de simpatia, cheia de alegria procriadora, pelo carro de criança” (Ball, apud Toletino)

Page 125: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 123

Disputas à parte quanto à autoria, desde que nunca fora objeto de arguição quanto à origem enquanto o grupo se reunia em Zurique, a palavra ganhou dimensão internacional com a propagação do movimento dadaísta, depois que apareceu pela primeira vez impressa no Cabaret Voltaire, no dia 15 de junho de 1916. Doravante, mais que um símbolo, uma palavra, Dadá se transforma em arma ideal para traduzir ideias e atitudes, tais como as de asco, negação, revolta, descrença, invenção e até ane-dota, como também de realidades (destruição e morte), mos-trando que, se o vazio podia muito bem erigir-se como arte de viver, o cosmopolitismo, com a adesão crescente de nomes de várias origens, fazia com que, pela primeira vez, um movimento artístico surgisse ultrapassando fronteiras. para culminar, a pala-vra daria o nome da revista, de ousada formatação gráfica, que os dadaístas fizeram circular a partir de 1917.

O dadaísmo não formulou de início uma estética própria; o fazer da arte de cada um de seus participantes é que foi modu-lando um universo de princípios criativos baseado em sua linha geral na negação e na provocação. Na pintura, com Jean Arp e outros, desenvolveu as técnicas de montagem e colagem, que vinham do cubismo. Na esfera literária, a partir de paris, abriu espaços para a poesia surrealista de escrita automática, incons-ciente, e a aplicação da palavra numa dimensão visual, a partir de Guillaume Apollinaire. Na dramaturgia, descortinou sendas para o teatro do absurdo, com Antonin Artaud. Mas, na arte, em si mesma, o que ficou como forma arquetípica da expressão da-daísta foram o poema aleatório, que muitos tachariam de forma sem-pé-nem-cabeça, e o ready-made criado por Marcel Duchamp (1887-1968), que alcançaria foro mundial como um emblema.

São muitas as anedotas inspiradas no dadaísmo, sendo que uma delas ganhou na época cútis de pilhéria. Conta-se que, durante o féretro de um de seus inspiradores e precursores, o poeta Guillaume Apollinaire, em 13 de novembro de 1918 (dia do Armistício), no cemitério père-Lachaise, em paris, levado por

Page 126: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

124 ◄◄

admiradores e prosélitos tristonhos em cortejo, de repente uma turba avança pelas ruas, gritando: “A mort Guillaume!” (“Morreu Guilherme!”). Houve um estremecimento geral de apreensão e espanto, cerrando os semblantes, mas logo os dadaístas se acal-maram, ao perceber que o alarido sombrio se referia ao Kaiser Guilherme II (1859-1941), que no momento deixava o trono da Alemanha, derrotado e acusado de ter provocado a bárbara guerra, não ao venerado patrono das vanguardas.

A SOBREVIVÊNCIA DE DADÁ

Além do surrealismo, que lhe arrebatou o primado, deu-lhe doutrina, organização e liderança, pela mão de André Breton (1896-1966), são herdeiros do dadaísmo os principais movimen-tos que dominaram o século XX, e ainda dão as cartas, tais como o expressionismo abstrato, pop-art, arte conceitual, arte informal, arte pobre, arte concreta, Cobra (nome formado com as iniciais de Copenhagen, Bruxelas e Amsterdã), Fluxus, transvanguarda e muito do pitoresco que se projeta sob o rótulo difuso e fashion de arte pós-moderna. “Diferentemente de outras correntes, que, seja como for, nascem de uma vontade de conhecer, interpretar a realidade e dela participar, o movimento Dadá é uma contes-tação absoluta de todos os valores, a começar pela arte”. Assim, peremptório e arguto, o crítico de arte Giulio Carlo Argan situa o dadaísmo no quadro da crise em que a conflagração da Pri-meira Grande Guerra Mundial engolfou a cultura internacional. Instaurara-se o caos, posto que em crise, além dos demais valores, entrou a própria arte, que, diz o crítico italiano, “deixa de ser um modo de produzir valor, repudia qualquer lógica, é nonsense, faz-se (se e quando se faz) segundo as leis do acaso”. O terreno torna-se propício à aventura, à rebeldia e à provocação.

Em outro ponto, o dadaísmo dá também exemplo de diver-sidade. Trata-se de um movimento que, como força onipresente e compulsiva, acontece em dois continentes: na Europa, a partir

Page 127: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 125

de Zurique, na Suíça, espraiando-se logo por Paris e Berlim, e nos Estados Unidos da América, como sequência à arte de vanguar-da aberta pela exposição Armory Show, em 1913, ante o papel ali representado e continuado pelo francês Marcel Duchamp e pelo espano-cubano Francis Picabia (1879-1953), que mais tarde publicará em Barcelona a sua revista itinerante intitulada 391, aos quais se associou o fotógrafo e artista plástico Man Ray (1890-1977). parafraseando um poema de Rafael Alberti (El toro de la muerte, 1934), o dadaísmo semelha, então, um possante touro de testa duplamente armada, jamais “saudoso de feridas”, escavan-do inquieto o chão árido de duas arenas, com as agudas pontas perfurando a atmosfera de dois continentes, enérgico e disposto a enfrentar o contendor, que o aguarda, e a sua tragédia. Talvez resida aí, neste supremo vigor inicial, contrariando diagnósticos dos que o veem morto apenas alguns anos depois, uma vez que continuado e suplantado pelo surrealismo, o filho que lhe nasce das entranhas tumultuadas, o segredo de sua persistente revives-cência ao longo de todo o século passado, permeando ou enci-mando movimentos que surjam no campo da arte, devendo-se muito desse reaparecimento, mais precisamente a partir de 1945 — por sinal num segundo pós-guerra, de acordo com a crítica, à influência exercida por Marcel Duchamp, tanto nos Estados Uni-dos, como na Europa.

Desde que as estéticas e movimentos de vanguarda se puse-ram em campo, tem prevalecido — e, por vezes, se imposto, nos grupos que se empenham em negar ou contestar valores artísticos vigentes, um rol de comportamentos francamente provocativos e rebeldes, visando a dominar o cenário por meio de voz, gestos, impulsos, ações e criações contra o statu quo vigente.

DADA E o MoDERNISMo BRASILEIRo (1922)

Que foram, afinal, na poesia e na arte do modernismo brasileiro (1922), senão práticas dadaístas, o verso-piada, as

Page 128: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

126 ◄◄

obras e atitudes desafiadoras, no curso de espetaculosas expo-sições de arte, e os manifestos de teor propagandístico e nega-ção do gosto artístico dominante nos anos 1920? De início, em certos casos, a psicologia explica, mas, em geral, a evidência de um modo infantil de se comportar ruidosamente, de flagrante exibicionismo na pregação de ideias e projetos faz parte do car-dápio de uma espécie de loucura santa que permeia movimentos surgidos no curso do século passado, a partir do surrealismo, único filho legítimo de Dadá. Na sua marca de vontade demoli-dora, o dadaísmo permanece, posto que não são de outro, senão dele, os traços de obstinação e tumulto presentes em militâncias culturais, que buscam pelas trilhas da rebeldia afirmação em arte e literatura, com suas palavras de ordem e exposição pública, ocorram elas na Bahia, no Brasil e no mundo. Foi assim com a geração da Poesia Mimeógrafo, no Rio de Janeiro dos anos 1970; com a teatralidade militante dos poetas da praça, na Bahia dos 1980; e assim com a frequente pichação de muros nas grandes cidades brasileiras — isto para citar apenas umas poucas iniciati-vas de tempos recentes.

Tais ações, no entanto, muito se diferenciam da gratui-dade de antigas outras práticas, como o exercício do epigrama destinado a acossar celebridades, culturais ou não, forma típica de incômodo poético rimado, adotada na Bahia por aguerridos e prestigiosos versejadores (Pinheiro Viegas, Sílvio Valente, La-faiete Spínola, Wilson Lins; até há pouco, Ildásio Tavares, com ressonâncias hoje em Antônio Lins, Bernardo Linhares, Gui-lherme Simões, entre outros), inquietações provocativas que deram fama a outras expressões poéticas de outros tempos e lugares, como Emílio de Menezes, no Rio da belle-époque. ob-serve-se que aí não havia o espírito do novo querendo se impor tenazmente, vencer resistências culturais vigentes, mas apenas manifestações de idiossincrasia e antipatia pessoais, no conví-vio provinciano. No fundo, nada se contestava, apenas se repe-tiam práticas de uma tradição satírica clássica, que começa com

Page 129: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 127

o barroco Gregório de Mattos, no século XXVII. Tanto assim que muitos desses satíricos se opuseram às primeiras exposições de arte moderna na Bahia, nos anos 1940, posto que no fundo eram todos conservadores, espíritos apenas empenhados em de-molir reputações.1

RESSONÂNCIAS DADÁ

Dadaísmo puro, isto em nada diferia de práticas simultane-ístas de decênios antes, em que se erguiam tributos ao barulho, à negação, ao absurdo, à ironia e ao desaforo. O ensaísta Juan-E-duardo Cirlot reproduz o relato de um típico espetáculo dada-ísta apresentado no Cabaret Voltaire, logo após o poeta anar-quista alemão Hugo Ball e sua companheira Emmy Hennings tê-lo inaugurado, em 5 de fevereiro de 1916. Em cena, caixas de madeira eram por eles golpeadas no intento de produzir sons

1 Quando poetas-da-praça se reuniam no Jardim da piedade, lá pelos anos 1980, para divulgar seus versos e produções, declamando aos gritos, criando tumulto, incomodando, proferindo até obscenidades, que punham eventuais assistentes, circunstantes ou meros transeun-tes estupefatos, se se abstraem aspectos provenientes da desigualdade social, estava ali, a meu ver, guardadas as proporções de tempo e geo-grafia, um grupo de jovens irrequietos a repetir práticas que poderiam ser vistas como heranças das patrocinadas pelos dadaístas na Europa e nos EUA, muitas décadas antes, fazendo da praça da piedade um Cabaret Voltaire, em escala tupiniquim, em que alcançaram ocasional destaque nomes como Geraldo Maia, Douglas Almeida, os saudosos Antônio Short e Zeca Magalhães, entre outros. O mesmo acontecia quando, em eventos culturais de universidade ou instituições cultu-rais outras, por vezes, de súbito, membros dessa grei irrompiam nos salões, a declamar poemas eivados de palavrões e insultos, fazendo corar circunspectas senhoras em mesas de expositores e estudantes ali presentes ansiosos por mais conhecer e atualizar-se em conteúdos de arte ou literatura.

Page 130: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

128 ◄◄

até que, irritado, o público protestasse. Ao invés de recitar, um poeta depositava flores aos pés de um manequim de costureira. Saindo de debaixo de um imenso chapéu cônico, sorrateiramen-te uma voz declamava poemas de Jean Arp. Com voz cada vez mais estridente, Huelsenbeck uivava, sugerindo que declamava poemas de sua autoria, enquanto Tristan Tzara, o líder do mo-vimento, lhe dava suporte, acompanhando-o, no mesmo ritmo dos uivos, com crescentes golpes num tambor. E as pessoas ti-nham sido ao local atraídas para assistir a um espetáculo de po-esia e música. Os dadaístas davam a esta forma de apresentação o nome de arte simultaneísta.

Nesse contexto de ressonâncias, muitos movimentos cujas ações e formas artísticas remetem ao dadaísmo, sempre julgado morto e sepultado, mas o que se tem definido como arte contemporânea, dos anos 1970 em diante, ostenta aparências que denunciam seus rastros. É o que transparece em obras de ar-tistas de vários rótulos e nacionalidades, tais como Joseph Beuys (1921-1986), Sigmar polke (1941-2010), Keith Haring (1958-1990), Jean-Michel Bastiat (1960-1986), Georg Baselitz, A. R. penck e Julian Schnabel, mas, em todo esse elenco de criadores, cabe menção a duas formas de expressão artística que ganharam significação nesta caudal recente: a intervenção e a instalação. A primeira está representada nos diversos meios de ocupação de espaços exteriores, através de interferências na paisagem urbana ou natural, em dimensão de arte pública, para que sejam vistas por um grande número de pessoas simultaneamente, experiên-cias artísticas que se multiplicam mundialmente, em lugares e dimensões nunca concebidos, tornando-se cada vez mais fre-quentes a partir dos anos 1960, sendo entre elas o grafite, na forma de desenho ou frase, de conotação jocosa ou obscena, a expressão que alcançou maior frequência e popularidade.

No entanto, apesar do destaque obtido por artistas como Bastiat e Haring, por denotarem suas obras claros vínculos com o grafite, o reconhecimento maior tem se voltado para as

Page 131: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 129

intervenções artísticas do escultor búlgaro naturalizado ame-ricano Christo Javacheff, conhecido como criador do que se passou a chamar de “arte da embalagem” (art d´empaquetage), que consiste em embrulhar objetos com tecidos, no sentido de elevá-los à categoria de obras de arte. Começou por embru-lhar objetos de pequeno porte, até que num crescendo optou por soluções de efeito majestoso, passando a amarrar grandes superfícies com tecido grosso e cordas. Há muitos exemplos dessa sua tendência para o monumental, sendo um de seus destaques mais saudados o empacotamento que fez da Pont Neuf, em 1985, no intuito de realçar as formas esculturais da famosa construção, um dos marcos da paisagem de Paris. Neste procedimento tachado de Novo Realismo pela crítica, ganhara repercussão obra anterior de Christo (seu nome-de-guerra), quando em 1976 cobriu com pano branco 40 Km de colinas na Califórnia (Estados Unidos), a que deu o título de Running Fence (Cerca Corrediça).

Na atualidade, persistem outros artistas também empe-nhados nessa forma de hiper-realismo rotulado de pop-art, num cenário em que se destaca o escultor e artista gráfico sueco na-turalizado norte-americano Claes oldemburg, com sua arte ins-pirada na vida das ruas, que lhe permitiu criar esculturas gigan-tescas de gêneros alimentícios (Duplo Hambúrger, 1962), como também executar projetos que resultam em monumentos colos-sais, como Batons em Piccadilly Circus, Londres, 1966. Em 2014, em exposições no Rio de Janeiro e em São Paulo, o australiano Ron Mueck arrastava multidões às suas esculturas cuja dimensão artística pretendia captar íntimas expressões do rosto humano, apenas usando como materiais de composição resina, fibras de vidro, silicone e acrílico.

A segunda forma, a instalação, tem seu fundamento no próprio dadaísmo, uma vez que fruto da criatividade do mul-tiartista alemão Kurt Schwitters (1887-1948), quando em 1926 lançou a sua Merz Boo (Casa Merz), que se resumia na ousada

Page 132: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

130 ◄◄

atitude de transformar em obra de arte todo o apartamento em que residia em Hannover (Alemanha), tornando assim um ambiente interno, com atrativos diversos, numa sucessão de estímulos dirigidos não somente à visão, mas aos outros senti-dos (olfato, paladar, tato e audição), de maneira que o público interagisse com as formas e objetos ali dispostos. Com a novi-dade, Schwitters simplesmente antecipava a pop-art. o termo instalação seria incorporado ao vocabulário das artes visuais durante a década de 1960, com o surgimento e proliferação da assemblage, termo criado por Jean Dubuffet (1901-1985) para designar obras de arte elaboradas, sob o signo da espontanei-dade, a partir fragmentos de materiais naturais ou fabricados, passando a ter desde os anos 1970 forte presença em expo-sições de museus e galerias, ainda que permaneça até hoje a dificuldade de defini-la como arte.

A instalação ganhou expressão internacional ao ser aco-lhida e consagrada pela Documenta Kassel, megaexposição inicia-da em 1955, cujas edições ocorrem a cada cinco anos na cidade alemã que lhe dá o nome, fundada no conceito de que a arte é basicamente uma manifestação da cultura, entrelaçada com outros tipos de expressão no campo do pensamento, com o que concorda a conferencista Suely Rolnik, que participou do evento realizado em 1997, como especialista na obra da brasi-leira Lygia Clark.

A subjetividade do artista — dizia ela, então — capta as forças de seu tempo tal como estas afetam seu corpo e é pressionado pela necessidade de trazer à existência uma composição singular destas forças que ele cria. Neste sen-tido a obra de arte ésempre a concretização na existência de algo que já se produziu na vida sensível de um coletivo, mas que não tinha ganhado visibilidade até então; sua apa-rição problematiza o modo de existência vigente e indica novos caminhos. (Mattos, 1997, p. 184)

Page 133: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 131

O dadaísmo era mesmo a negação de tudo, mas não mor-reu em 1921 ou 1922, como se proclamou e ainda há quem assim pense e sustente; mas, pelo visto, apenas dormita, aguardando quem o acorde, ao som de clamorosos tambores acionados por mentes incompreendidas de braços com a rebeldia. para tanto, ainda nos dias de hoje, há como justificar tais estados de ânimo, recorrendo ao que escreveu sobre Dadá um de seus criadores, Jean (Hans) Arp, que o alça à condição de bandeira contra a acomodação:

os burgueses consideram o dadaísta um monstro dis-soluto, um canalha revolucionário, um bárbaro asiático, conspirando contra suas campainhas, suas contas ban-cárias, seu código de honra. o dadaísta engendrou ar-madilhas para tirar o sono dos burgueses... o dadaísta transmitiu ao burguês sentimentos de confusão e de um estrondo formidável, se bem que distante, que fez as campainhas dele zumbirem, seus cofres franzirem a testa e seu código de honra se reduzir a pontinhos. (Arp, apud Ades, 1976, p. 3)

Enfim, a plateia gritou, berrou, aplaudiu, vaiou, xingou, engalfinhou-se, cansou, mas não sumiu. Aceso atleta que, en-tre claridades e sombras, não abandona o disputado campeona-to das artes, como espelho da sucessão no tempo das coisas e dos atos humanos, Dadá caminha, às vezes com disfarces, para completar cem anos, na forma de mito, talvez mística. o tempo e suas distrações colaboraram para que as essências do dada-ísmo – a rebeldia e a negação – permanecessem; uma espécie de aventura humana que não se finda, talvez porque continue a ser, como certa feita disse metaforicamente Tzara (Conferência sobre Dadá, 1924), “um micróbio virgem que penetra com a in-sistência do ar em todos os espaços que a razão não foi capaz de encher com palavras ou convenções”, ou por ter sido sempre, na definição de Duchamp (1946), “muito útil como purgante”.

Page 134: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

132 ◄◄

DADÁ DOS MANIFESTOS

André Gide dizia sobre o dadaísmo: “Dadá é o dilúvio, após o que tudo recomeça”. Para a sociedade e a cultura, tem mais a ver com um terremoto, tantos foram os abalos que produziu, atingindo valores, símbolos e costumes em vários campos da experiência humana. No plano multifacetado da cultura, foi o movimento mais radical que se conhece, superan-do todos os outros que o antecederam − o alemão Sturm und Drung, o francês mal du siècle, o decadentismo do final do século XIX e a febre futurista de Filippo Tommaso Marinetti (1909). Embora se dissesse essencialmente contra o racionalismo bur-guês, sob o primado da negação e da iconoclastia, Dadá não se interessou em criar uma estética própria. Surgia no instante mesmo em que se inaugurava a era dos manifestos, como um meio de expressão coletiva de ideias e atitudes, no propósito de renovação da arte e da literatura, prática que merecerá de Jorge Luis Borges a rubrica ácida de “papéis charlatães”. “Se eram obra de literatos, lhes comprazia caluniar a rima e justificar a metáfora; se de pintores, recuperar (ou injuriar) as cores puras; se de músicos, lisonjear a cacofonia; se de arquitetos, preferir um sóbrio gasômetro aos excessos da catedral de Milão” – as-severa o argentino, ao comentar manifesto lançado por André Breton e Diego Rivera, em 1937, em defesa da liberdade na arte, ante as cadeias que lhe impunha o stalinismo, na então União Soviética. Dadá preferiu os manifestos, lançando sete ao todo, entre 1916 e 1920, a que se seguiria o do surrealismo, lançado em 1924. A título de ilustração, segue adiante tradução do primeiro deles, lançado por Tristan Tzara em 14 de julho de 1916, em Zurique, Suíça, sob o título de “Manifesto do Senhor Antipirina”, segundo as más-línguas, lido para uma plateia de cinco pessoas, uma delas jornalista.

Page 135: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 133

MANIFESTO DO SENHOR ANTIPIRINA

DADÁ é a nossa intensidade: quem levanta as baionetas sem con-sequência a cabeça sumatral do bebê alemão; DADÁ é a vida sem pantufas nem paralelos; quem é contra e pela unidade e decididamente contra o futuro; nós sabemos ajuizadamente que os nossos cérebros se tornarão macias almofadas, que nosso antidogmatismo é tão ex-clusivista como o funcionário e que não somos livres e gritamos liber-dade; necessidade severa sem disciplina nem moral e escarramos na humanidade.

DADÁ permanece no quadro europeu das fraquezas, no fundo é tudo merda, mas nós queremos doravante cagar em cores diferentes para ornar o jardim zoológico da arte de todas as bandeiras dos consulados.

Somos diretores de circo e assobiamos nos ventos das feiras, nos con-ventos, prostituições, teatros, realidades, sentimentos, restaurantes, ohi, hoho, bang, bang. Nós declaramos que o automóvel é um sen-timento que nos acariciou bastante nas lentidões de suas abstrações como os transatlânticos, os ruídos e as idéias. Entretanto, nós ex-teriorizamos a facilidade, procuramos a essência central e ficamos contentes quando a podemos esconder; não queremos contar as janelas da elite maravilhosa, porque DADÁ não existe para ninguém e nós queremos que todo mundo compreenda isso. Lá está o balcão de DADÁ, eu lhes asseguro. De lá se pode ouvir as marchas militares e descer cortando o ar como um serafim num banho popular para mijar e compreender a parábola.

DADÁ não é loucura, nem sabedoria, nem ironia, entenda-me, gen-til burguês.

A arte era um jogo de avelã, os meninos juntavam as palavras que têm um toque de sino no fim, depois choravam e gritavam a estrofe, e lhe metiam as botinas das bonecas e a estrofe se tornou rainha para morrer um pouco e a rainha se tornou baleia, as crianças corriam até perder o fôlego.

Page 136: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

134 ◄◄

Depois vieram os grandes embaixadores do sentimento que gritaram historicamente em coro:

Psicologia Psicologia hihi

Ciência Ciência Ciência

Viva a França

Nós não somos ingênuos

Nós somos sucessivos

Nós somos exclusivos

Nós não somos simples

e nós sabemos bem discutir a inteligência.

Mas nós, DADÁ, nós não somos da opinião de vocês, porque a arte não é séria, eu lhes asseguro, e se manifestamos o crime para dizer doutamente ventilador, é para lhes ser agradável, bons auditores, eu os amo tanto, eu lhes asseguro e os adoro. (Tzara, apud Mendonça Teles, 1983, p. 135)

DADÁ NA POESIA

Se na arte o ânimo e o espírito dos dadaístas se volta-vam “para o absurdo, o primitivo e o elementar” (Ades, 1975, p. 12), num autêntico impulso regenerativo, definidos por marcos como os ready-mades, de Marcel Dupont, as formas concretas e abstratas de Jean Arp ou as colagens que Man Ray nomeava de Revolvingdoors, a que se acrescentavam fotografias do mundo real, as rayographies, que mais se assemelhavam com radiografias, uma vez que os artistas não se sentiam “inclinados a alimentar a arte eternamente com naturezas-mortas, paisagens e nus” (Arp, apud

Page 137: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 135

Chipp, 1996, p. 394), como era da experiência do passado, na poesia elegia-se o automatismo no processo de criação, que se transformava em ação, em gestos, como que vinda das entranhas do poeta e expressando a própria vida.

A poesia era mais que palavras, rebentando com o eixo de denotações e conotações, em que se contorciam os seus signi-ficados, e assim se coadunava com o caldeirão em que ferviam as noites Dadá no Cabaret Voltaire. Dessa identidade, dá mostra Hans Richter (1888-1986), pintor vanguardista e artista gráfico alemão, escrevendo sobre a primeira dessas agitadas noites ocor-rida em 14 de julho de 1916.

Campainhas, tambores, chocalhos, batidas na mesa ou em caixas vazias animavam as exigências selvagens da nova lin-guagem, na nova forma, e excitavam, a partir do físico, um público que inicialmente quedava atordoado atrás dos seus copos de cerveja. Pouco a pouco eram sacudidos e desperta-dos de seu estado de letargia a tal ponto que irrompiam num verdadeiro frenesi de participação. Isto era arte, isto era vida, e era isto o que se queria. (Richter, apud Tolentino)

No momento mesmo em que o irlandês W. B. Yeats (1865-1939), por influência de Ezra Pound (1885-1972), então optando por um novo estilo de poesia, segundo paulo Vizioli, “fundamentado no ritmo significativo, nas imagens vividas e no vocabulário simples e direto”, e por certo tempo seu secretário, entre 1914 e 1916, dava em sua fase madura uma guinada na po-esia, encaixando-se nas linhas mestras do modernismo, porém sem maiores ousadias formais, só conceituais (Pound “ajuda-me a voltar para o definido e o concreto, desviando-me das abs-trações modernas. Discutir um poema com ele é como colocar uma frase em linguagem corrente. Tudo se torna claro e natu-ral”, confessaria ele em uma carta), e quando o simbolista fran-cês Paul Valéry dava os retoques finais em poemas paradigmáti-cos, que sairiam em Charmes (1917), sua principal obra poética,

Page 138: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

136 ◄◄

entre os quais seu famoso “O cemitério marinho” (Le cemetière marin), de manifesta opção por um timbre clássico, os poetas de Dadá seguiam direção totalmente oposta, mais próxima de Apollinaire, em poemas que marcaram seus livros Alcools (1913) e Caligrammes (1918).

Como privilegiavam barulho e simultaneidade, incidiam na construção de poemas que se destacavam pela sonoridade, centrados em formas abstrato-fonéticas, como os de Hugo Ball, ou por uma disposição visual, em desenho, caligrafia ou soluções outras de linguagem, de maneira que se ajustassem a exibições performáticas. Há dois exemplos singulares disso. Em seu Diá-rio Dadá, Tristan Tzara relata instantes da primeira noite Dadá: “Diante de uma compacta multidão, Tzara demonstra, nós pedi-mos, nós pedimos o direito de mijar em cores diferentes”. Logo descreve um ambiente de berros e engalfinhamentos. ”Luta de boxe reassumida: dança cubista, figurinos de Janco, cada homem com seu tambor na cabeça, barulho música negra/tabajá bonú ú úúúú/5 experimentos literários: Tzara de fraque, em pé, na fren-te da cortina... explica a nova estética; poema ginástico, concerto de vogais, poema de ruídos, poema estático, arranjo químico de ideia, Biribum, biribum... poema vogal a a o, i e o, a i i.” (Tzara, apud Ades, 1976, p.14-15).

Em outra noite igual, Hugo Ball declamou um de seus poemas basicamente abstrato-sonoros, intitulado O Gadji Beri Bimba (leia-se adiante). Foi alçado ao palco metido em um cilin-dro de papelão azul brilhante, com um comprido chapéu dito de “doutor-feiticeiro” listado de azul e branco, performance assim descrita por Dawn Ades:

Quando começou a declamar as sonoridades, a audiência explodiu em risos, palmas e miados. Ball aguentou firme e, levantando a voz acima da barulheira, começou a entoar, adotando a milenar cadência da lamentação sacerdotal: zin-zim uralala zinzim uralala zinzim zanzibar zinzala zam. (Ades, 1976, p. 15)

Page 139: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 137

POÉTICA DE PROVOCAÇÃO

Abaixo exemplos dessa poética de provocação e zoada, especialidades de Dadá, no tempo em que, segundo Arp, se pro-curava “restaurar o equilíbrio entre o Céu e o Inferno”.

Para fazer um poema dadaísta (Receita de Tristan Tzara)Pegue um jornal.Pegue a tesoura.Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.Recorte o artigo.Recorte em seguida com atençãoalgumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco.Agite suavemente.Tire em seguida cada pedaço um após o outrona ordem em que elas são tiradas do saco.Copie conscienciosamente O poema se parecerá com você.E ei-lo “um escritor infinitamenteoriginal e de uma sensibilidade charmosa, ainda incompreendido pelo vulgo”.

(Trad. Gilberto Mendonça Teles)

Page 140: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

138 ◄◄

Canto-poema (ou oração fantástica)

Richard Huelsenbeck

Sokobauno sokobauno sokobauno Schikaneder Schikaneder Schikaneder As lixeiras estão engordando sokobauno sokobauno Os mortos saem pelas coroas de tochas ao redor da cabeça (...) Vejam a osteomalacia sokobauno sokobauno Vejam a placenta gritando nas redes de borboletas dos colegiais Sokobauno sokobauno O padre fecha a bra-aguilha rataplan rataplan a Bra-aguilha e os pêlos lhe saem pe-pelas orelhas Do céu ca-ai a catapulta a catapulta e A avó levanta o seio Sopramos a farinha da língua e gritamos e sai caminhando Uma cabeça na cumeeira Dratcabeçagamemorto ibn ben zakalupp wauwoi zakalupp Cóccix estalinhos (...) Cerveja bar obibor Baumabor botschon ortischell seviglia o ca sa ca sa ca Ca sa ca ca sa ca ca sa ca ca Cicuta em pele purpurina intumesce em minhoquinhas e o macaco (...) Mpala tano mpala tano mpala tano mpala tano ojoho Mpala tano mpala tano ja tano ja tano ja tano o a bra-aguilha Mpala zufanga mfischa daboscha karamba juboscha daba eloe.

Fonte: TEATRo SEM CoRTINAS.

Page 141: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 139

FAMOSO POEMA DADAÍSTA DO ALEMÃO HUGO BALL

Fonte: SWISS INSTITUTE CONTEMPORARY ART, NY

Page 142: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

140 ◄◄

gadji beri bimbaHugo Ball.

Gadji beri bimba glandridi laula lonni dacori Gadjama gramma berida bimbala glandri galassassa laulitalomini Gadji beri bin blassa glassala laula lonni cadorsu sassala bim gadjama tuffm i zimzalla binban gkigia wowolimai bin beri ban o katalominal rhinozerossola hosamen laulitalomini hoooo gadjama rhinozerossola hopsamen bluku terullala blaulala looooo..

Fonte: Tolentino

REFERÊNCIAS

ACKRoYD, peter. Ezra Pound. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1991.ADES, Dawn. O DADÁ e o surrealismo. Trad. Lélia Coelho Frota. Bar-celona: Editorial Labor, 1976.ALMEIDA, Raphael Gomes de. A arte ataca a arte: O niilismo dada-ísta do pós-guerra. Revista Flamboyant Literária. Disponível em: <http://revistaflamboyantliteraria.wordpress.com> Acesso em: 12 out.2012. BILLY, André. Guillaume Apollinaire. paris: pierre Seghers. Editeur, 1956.ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. Trad. Denise Bottmann e Fede-rico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.BARZUN, Jacques. Da alvorada à decadência. A história da cultura ocidental de 1500 aos nossos dias. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2002.

Page 143: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 141

BORGES, Jorge Luis. Un caudaloso manifiesto de Breton, Textos cau-tivos, 4ª ed., Madri, Alianza Editorial, 2008.CHIPP, Herschel B. (com a colaboração de Peter Selz e Joshua C. Taylor). Teorias da Arte Moderna. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1996.CIRLoT, Jean-Eduardo. Introducción al surrealismo. Madrid: Revista de occidente, 1953.FERRIER, Jean-Louis. L´aventure de l´art au XXème siècle. Peinture, Sculp-ture, Architecture. paris: Chêne/Hachette, 1988.MATToS, Florisvaldo. Estação de prosa & diversos. Salvador: Memorial das Letras, 1997.— “Dadaísmo, 90 — Terremoto na Arte” (ensaio). A Tarde Cultural. A Tarde, Salvador, 18 fev. 2006.MENDONÇA TELES Gilberto. Vanguarda européia e Modernismo brasi-leiro. petrópolis: Vozes, 8ª ed., 1983.RISpAIL, Jean-Luc. Les surréalistes. Une génération entre le rêve e l´action. Paris: Gallimard, 1991.SWISS INSTITUTE CONTEMPORARY ART, NY. Disponível em:<http://swissinstitute.tumblr.com/ >Acesso: 03 dez. 2014.TEATRo SEM CoRTINAS. Apontamentos sobre o Dadaísmo. Disponível em: <http://www.teatrosemcortinas.ia.unesp.br/Home/HistoriadoTeatroMundial33/apontamentos-sobre-dadaismo.pdf > Acesso em: 03 dez. 2014.ToLENTINo, Cristina. Dada em Zurique. Disponível em: <http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artes-plasticas/vanguardas-artisti-cas/dadaismo-zurique.html > Acesso em: 10 nov. 2014.2

Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. presidiu a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Foi editor do suplemento A Tarde Cultural e redator-chefe de A Tarde. publicou diversos livros, en-tre eles Estação da prosa & diversos e Poesia reunida e inéditos. Desde 1995 ocupa a Cadeira número 31 da ALB.

Page 144: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 145: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 143

O FUNDADOR ARLINDO FRAGOSO E SEUS 150 ANoS

edivAldo m. boAventurA

Ao recordar os 150 anos de Arlindo Fragoso, vivenciemos a criação da Academia de Letras da Bahia, em 7 de março de 1917, aproximando-nos do seu centenário em 2017.

A pergunta de partida é como compreender Arlindo Fra-goso criador da Academia de Letras da Bahia e da Escola poli-técnica da Universidade Federal da Bahia?

A vida intelectual baiana de 1900-1930

Ao estudar a vida intelectual baiana, de 1900 a 1930, An-tônio Luiz Machado Neto (1972) situa Arlindo Fragoso, na geração dos nascidos, entre 1863 a 1877. É um trabalho empí-rico de sociologia do conhecimento muito ao gosto do nosso brilhante confrade.

São dessa geração: Virgílio de Lemos, Sílvio Boccanera Júnior, Sílvio Deolindo Fróes, Campos França, oseas dos San-tos, Cardoso de oliveira, pinheiro Viegas, Lulu parola, José Petitinga, Gonçalo Moniz, Henrique Câncio, Juliano Moreira, Pirajá da Silva, Eduardo Spínola, Garcez Fróes, Antônio Moniz, Roberto Correia, Afrânio peixoto, pinto de Carvalho, Aurelino Leal, Carlos Ribeiro, alguns foram fundadores ou pertenceram ao sodalício.

Entre monógrafos e polígrafos, predominaram os po-lígrafos, como Almachio Diniz, Afrânio peixoto e Arlindo

Page 146: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

144 ◄◄

Fragoso. Monógrafos eram geralmente os médicos, a exemplo de Alfredo Brito e Oscar Freire, hoje, muito lembrando por nomear uma movimentada artéria paulistana. Nos anos dez, a influência maior era da Faculdade de Medicina da Bahia que atraía nordestinos e também paulistas que passavam a viver por algum tempo em Salvador.

Arlindo Fragoso, para Machado Neto (1972, p.267), foi, igualmente, um mecenas intelectual, isto é, “era antes um ani-mador de vocações e aglutinador de talentos, do que, propria-mente, um mecenas no sentido clássico do termo”. Caso típico dessa categoria foram: Carlos Chiacchio, que reuniu em torno de si jovens talentosos; Pinto de Aguiar, que contribuiu bastante para o financiamento da revista Arco e Flexa; e Arlindo Fragoso, intelectual e homem de poder, contribuiu enormemente para a fundação da Academia de Letras. Para homenageá-lo, por haver esquecido o seu nome, criou-se a quadragésima primeira cadeira provisória. Do ponto de vista da comunicação e do público, os entrevistados enfatizaram a importância das conferências, dos discursos e dos recitais.

A nossa cultura daquela época era predominantemen-te oral, oratória e teatral, como Rui Barbosa, símbolo e padrão, Arlindo Fragoso, Seabra, pinto de Carvalho, Virgílio de Lemos, prado Valadares, otávio Mangabeira. Finalmente a Academia de Letras ao lado do Instituto Geográfico e Histórico, é uma institui-ção da república das letras do período estudado que logrou chegar aos nossos dias como autêntica expressão da inteligência baiana.

Na Bahia da Belle Époque, fica patente a oratória até nas aulas como certo maneirismo peculiar da época. Estrutura social da República das Letras (Sociologia da vida intelectual brasileira — 1870-1930), de Machado Neto (1972) contribuiu efetivamente para o conhecimento das lideranças e dos atores que compuseram a nossa Companhia.

Na trajetória de Arlindo Fragoso, em Salvador e no Rio de Janeiro, com muitos e diversificados desempenhos, distinguem-se

Page 147: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 145

três realizações em plena vigência: o Instituto e a Escola politécni-ca da Universidade Federal da Bahia e a Academia de Letras.

nascimento e formação do fundador

Arlindo Fragoso nasceu em 30 de outubro de 1863, em Santo Amaro, filho do português Antônio Coelho Fragoso e Bernadina de Sena e Silva. Fez o curso primário em Lisboa e no Porto. Retornando a Salvador, cursou o Colégio Alemão e o Colégio Sete de Setembro, do professor França. Era formado em engenharia, com experiência efetiva da imprensa, do ensino e da política quando criou a Academia de Letras, em 1917, com 54 anos, homem maduro e testado nos embates da política.

Desejando estudar engenharia, transferiu-se para o Rio de Janeiro a fim de cursar de 1881 a 1886 a Escola Politécnica, onde foi aluno de André Rebouças. Como jornalista, escreveu para a Gazeta do Povo, do líder abolicionista José do patrocínio. É provável que tenha participado do movimento abolicionista. Frequentou os meios teatrais, artísticos quando conheceu José Veríssimo, olavo Bilac. Jovem e rico deveria ter se distraído bas-tante na Corte.

Uma vez diplomado em engenharia, retornou á sua cida-de natal, Santo Amaro. Fez concurso para o Imperial Instituto Baiano de Agricultura, a Escola Agrícola, vinculado à lavoura da cana-de-açúcar, na época, funcionava em São Bento das Lages, em São Francisco do Conde. Apresentou-se para o concurso da disciplina Mecânica e Construções com a tese: Estudos sobre análise cinemática (1987), isto é, “parte da Mecânica que estuda os movimentos sem se referir às forças que os produzem ou às massas dos corpos em movimento”. É uma das suas primeiras publicações, segundo a relação anexa ao livro O espírito... dos ou-tros (1917), publicado no mesmo ano em que criou a Academia.

Como professor, residiu em Santo Amaro e envolveu-se com a política. Elegeu-se vereador e depois foi indicado prefeito

Page 148: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

146 ◄◄

(1889-1891) por Manuel Vitorino. ocupou-se da reforma da Es-cola Agrícola, publicou trabalhos sobre o ensino agrícola, instru-ção popular e administração municipal.

Veio, então, para a capital baiana e iniciou a sua carreira po-lítica. Serviu como secretário a vários governos estaduais. Com o governador Rodrigues Lima, ocupou a Secretário da Viação. Em continuação, serviu a Luiz Viana como secretário particular e em outros cargos. Foi neste governo que criou uma das mais importantes instituições para o desenvolvimento tecnológico da Bahia: o Instituto e a Escola Politécnica da Bahia. Na ascensão de Severino Vieira ao governo, o seu nome foi rejeitado para de-putado federal e demitido das funções estaduais. Voltaria depois como secretário geral do governo, no primeiro governo de J.J. Seabra (1912-1916).

A criação do instituto e da escola Politécnica

Como homem voltado para a educação, aproveitou as aberturas da reforma positivista de Benjamin Constant Bote-lho de Magalhães. Com os colegas Alexandre Bittencourt Maia, Dionísio Martins e outros, em 1896, resolveram criar o Instituto Politécnico e em seguida a Escola Politécnica. Os motivos que o conduziram a fundar o Instituto não são muitos claros. Sabe-se, todavia, que o processo foi bastante rápido, contando com o apoio efetivo do governador Luiz Viana, conforme João Au-gusto Lima Rocha (apud BoAVENTURA, 2009, p.115). Arlindo Fragoso soube articular bem a sua ideia, observa Arquimedes Guimarães (1972, p.7), combinando a ação de interessados e o governo estadual com o propósito de criar, primeiramente, o Instituto politécnico e depois a Escola.

No bem lançado estudo sobre Arlindo Fragoso e a fun-dação do Instituto e da Escola Politécnica da Bahia, o professor e engenheiro Sérgio Fraga Santos Faria (2004, 37-44) mostra como ele não somente os criou com um grupo de engenheiros

Page 149: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 147

como também lutou pela sua manutenção. A ação teve início no gabinete de Arlindo Fragoso, então diretor da Secretaria de Agricultura da Bahia que por sua iniciativa reuniu um expressivo número de engenheiros, em 12 de julho de 1896. No ano seguin-te , em 14 de março de 1897, instalou-se a Escola politécnica inclusive com a presença do seu professor Antônio Carneiro da Cunha, representando a politécnica do Rio de Janeiro, modelo de inspiração por Arlindo Fragoso idealizado. Na instalação da Escola, pronunciou uma veemente oração, intitulada Pela Ciência, pela Arte, pela Pátria.

A Escola Politécnica da Bahia foi a quinta a ser criada no país, complementa Sérgio Faria. Em uma crise financeira muito séria, Arlindo Fragoso, para salvar a escola, chegou a ministrar várias disciplinas dando aulas durante todos os dias até o regresso dos professores, fato ocorrido em 1900. pou-cos anos depois, em 1904, lutou tenazmente pela manutenção incondicional da escola. Por aquela época, como bom orador falou na despedida da esquadra chilena que visitou a Bahia e no enterro de Manuel Vitorino.

As obras da ação do secretário geral do governo

Alternando ensino com trabalho técnico, foi fiscal munici-pal junto à Companhia d`Éclairage, que é a origem do seu livro Minhas opiniões sobre a Éclairage (1906). É desse ano o opúsculo Água e esgotos da Bahia.

Com José Marcelino no governo, Seabra retornou à Câ-mara Federal e Arlindo Fragoso foi nomeado para o Conselho Superior de Ensino da Bahia. Em seguida, foi designado para representar a Bahia na Exposição Nacional de 1908, comemo-rativa da abertura dos portos, no Rio de Janeiro, onde passou de novo a morar.

E, como acrescenta Cláudio Veiga (1997), com as fun-ções administrativas no Rio, retomou o relacionamento com

Page 150: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

148 ◄◄

os amigos intelectuais, a exemplo do crítico José Veríssimo e do poeta olavo Bilac. Como engenheiro, foi designado consul-tor das Estradas de Ferro Nordeste do Brasil, Vitória, Diaman-tina e Goiás. Entretanto, a primeira eleição de J.J. Seabra para o governo da Bahia (1912-1916) o fez retornar a Salvador.

Até então o governo funcionava com quatro secretarias. No primeiro governo de J.J. Seabra, essas secretarias foram reunidas em um só organismo. Seabra ficou com o comando político e entregou ao seu amigo Arlindo Fragoso a parte ad-ministrativa, além da redação das mensagens encaminhadas ao Legislativo.

Dentre muitas obras, Arlindo Fragoso ocupou-se da aber-tura das duas grandes avenidas: a Sete de Setembro, do Farol à praça Castro Alves, e a Avenida oceânica até o Rio Vermelho. Inúmeras construções, como a Biblioteca pública e o Diário Oficial, na capital e nos municípios, tudo por ele administrado. Os artigos de natureza financeira publicados foram enfeixados em Notas econômicas e financeiras (1916). É tido como o introdutor do asfalto, na Bahia, assevera Cid Teixeira.

Capacidade fecunda de organizar e de trabalhar deu a vi-tória a Seabra, que elegeu o seu sucessor Antônio Moniz, su-mamente importante para o projeto de criação da Academia. Todavia, foi polêmica a sua administração, em Salvador, pelas inúmeras demolições como das igrejas de São Pedro e do Rosá-rio com ameaça ao Mosteiro de São Bento para ser transforma-do em palácio do governo.

A criação da Academia de Letras da Bahia

Arlindo Fragoso passou apenas os dois primeiros anos do governo de Antônio Moniz (1917 e 1920), em Salvador. Foi o momento em que decidiu fundar a Academia de Letras com o expressivo apoio deste governador. Tomou a data simbólica de 7 de março, recordando a primeira Academia de Letras fundada

Page 151: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 149

no Brasil, a Academia Brasílica dos Esquecidos, que surgiu pre-cisamente em 7 de março de 1724, na Bahia.

Além do governador Antônio Moniz, outros intelectuais de sua geração assinalados por Machade Neto vão lhe auxiliar na iniciativa. Dentre todos, destaca-se Xavier Marques, naquele momento, a mais alta expressão de escritor, membro da Aca-demia Brasileira de Letras. Ernesto Carneiro Ribeiro, filólogo festejado, foi indicado pelo governador para presidente. Além da oração do fundador, também falaram Xavier Marques, Carneiro Ribeiro, Afonso de Castro Rebelo e oliveira Campos.

No discurso oficial, Arlindo Fragoso considerou que não devia esperar por mais tempo a ausência do sodalício: “Não fora justo prolongar por mais tempo a falta, entre nós, de tão útil instituição” (FRAGOSO, 1917, p.64). Relacionou o surgi-mento das mais famosas academias no mundo. Pondera que estava criando a Academia de Letras na Bahia vinte anos de-pois da Academia Brasileira (1897). No final de sua eloquente oração justificou o lema por ele prescrito: “Servir a pátria hon-rando as letras”.

Por sua vez, Xavier Marques, no seu pronunciamento, ressaltou a conservação da língua que recebemos como preciosa dádiva. A Academia, evitando o espírito de casta “alargou os seus desígnios até compreender as letras nas suas relações com a ciência e as artes”. o presidente Ernesto Carneiro Ribeiro re-ferenciou o vocábulo grego Academia, as academias existentes como a dos Generosos, dos Singulares e a Real Academia de Ciências de Lisboa e outras.

A instalação solene pelo governador Antônio Moniz, em 10 de abril de 1917, aconteceu na Câmara dos Deputados, na Ladeira da praça, onde funcionou no inicio, passando depois para o prédio da Biblioteca pública. Abrigou-se no edifício do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, donde passou para um pequeno sobrado entre o Palácio da Aclamação e o viaduto, esguio prédio que ainda existe. Até que o interventor federal

Page 152: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

150 ◄◄

Landulfo Alves doou à Academia um prédio no Terreiro de Je-sus, em 1941, na presidência do jurista Carlos Ribeiro, como bem informa Jorge Calmon (1997).

Louva-se a isenção política, religiosa e filosófica de Arlin-do Fragoso. Escolheu adversários políticos ferrenhos: Severino Vieira versus J.J. Seabra. Recorde-se que quando governador Se-verino rejeitou a indicação de Arlindo para deputado federal e tirou-lhe todas as posições políticas. A atitude favorável de colo-car Ernesto Simões Filho, na Academia, foi outra demonstração de isenção. Nos primeiros números, o jornal A Tarde criticou o seu modo boêmio de proceder nas noites alegres.

Seguindo a diretriz da Academia Francesa, praticada pela Academia Brasileira, a Academia não tem especialidades, além dos literatos recepcionou personalidades líderes e expoentes. Generais, cardeais e duques têm assento na Academia France-sa. o ingresso dos romancistas foi muito tardio só começou pela metade do século XIX. Sempre predominaram os poetas, pensadores, historiadores, oradores sacros e civis, cultores de línguas clássicas.

Um terceiro direcionamento que vale ser ressaltado é atenção aos talentos jovens. Arlindo Fragoso consagrou os grandes nomes da cultura de sua geração, conforme demons-tra Machado Neto, mas abriu o sodalício aos jovens promis-sores, algumas constatações: otávio Mangabeira e Simões Fi-lho tinham 31 anos; Carlos Chiacchio, 33; Moniz Sodré, 36; Bernardino de Souza, 33; prado Valadares e oscar Freire, 35; Clementino Fraga, 37.

Instalada a Academia, o fundador assumiu a Cadeira pro-visória de número 41. Com o desaparecimento de Severino Viei-ra, titular da Cadeira 19, patrono o Barão de Cotegipe, Arlindo Fragoso o sucedeu em 27 de setembro de 1917. No ano seguin-te, como primeiro secretário, presidiu a sessão e comunicou a sua ida para o Rio, pois foi eleito deputado federal para a 10ª le-gislatura, de 1918 a 1920, e para a 11ª de 1921 a 1923 (CASTRo,

Page 153: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 151

1998, p.97). Dessa maneira, Xavier Marques ascendeu à primeira secretaria. Voltou, assim, a morar na antiga capital de República, onde faleceu em 5 de janeiro de 1926. Pelo visto, a organização e instalação da Academia foram a sua última realização. Frequen-tou-a por um ano, apenas.

Sucederam-lhe na Cadeira de número 19, Deraldo Dias de Moraes, Guilherme Andrade, Godofredo Rebelo de Figuei-redo Filho e Cid Teixeira. Assim que Cid foi escolhido doou à Academia o busto de Arlindo Fragoso, cópia autêntica do original que se encontra na Escola Politécnica. A cadeira que pertenceu a Arlindo Fragoso tem muito pouca de sua vida e obra. Compensa a contribuição do que consta da revista e as falas de Jorge Calmon e Cláudio Veiga (1997) quando dos 80 anos do sodalício.

O busto foi posto no jardim das esculturas personaliza-das, em 7 de março de 1997, nas comemorações dos 80 anos do Sodalício (CALMON e VEIGA, 1997). Lastimamos o desapare-cimento deste bronze juntamente com o de Pedro Calmon, mas haveremos de recuperá-los.

As obras da ação e as obras da palavra

o professor, o engenheiro e o administrator se comple-tam com o jornalista. Durante a sua trajetória, Arlindo Frago-so escreveu em vários jornais, tanto no Rio, em Santo Amaro como em Salvador. Ressalto os artigos publicados no Jornal de Notícias, periódico dirigido por Lulu Parola, que reunidos for-maram o seu livro mais conhecido O espírito... dos outros: crôni-cas modernas (História, Arte e Crítica), que veio á estampa em 1917, pela Imprensa Oficial da Bahia. Editou-o no mesmo ano em que fundou a Companhia e o ofereceu a Lulu Parola. Com prefácio de Xavier Marques, não será somente “uma coleção curiosa de anedotas históricas, repentes célebres e bons ditos, [...] o livro será tudo isso, com escolha, com rigorosa escolha,

Page 154: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

152 ◄◄

feita por um paladar fino, habituado às delicadezas do sal ático” (MARQUES, 1917, p.10). o prefácio deveria ter sido do crítico José Veríssimo, todavia extraviou-se na papelada da Secretaria Geral do Estado da Bahia.

Relatamos as obras da ação, vejamos as obras da palavra. Além do valor intrínseco como literatura humorística, O espírito... traz uma informação preciosa sobre a sua produção intelectual. Não somente relaciona as obras publicadas como também aque-las previstas a sair e em preparação. Pela subjetividade da infor-mação, presumo que só poderia ter sido prestadas pelo próprio autor (FRAGOSO, 1917).

Enumeram-se as obras publicadas com as respectivas datas: Estudos sobre a análise cinemática (1881), tese de concurso para a Escola Agrícola; Instrução popular — O Instituto Municipal (1881); Administração municipal de Santo Amaro (1893), recorde-se que Fragoso foi vereador e prefeito de sua terra natal; Ensino agrícola – Escola Agrícola da Bahia (1893), ensinou e participou da reforma do ensino agrícola; Programa dos cursos da Escola Agríco-la (1893); O Município de Santo Amaro (1896); Seguro sobre a vida (1900); Bahia Cabrália (prefácio à obra do Major Salvador Pires) (1900); Portugal (prefácio a uma apologia do Dr. José Augusto de Magalhães) (1904); Minhas opiniões sobre a Éclairage (1906); Água e esgotos da Bahia (1906); Mobílias escolares (parecer aprovado pelo Conselho Superior do Ensino da Bahia) (1907); Guerra do Para-guai (prefácio à obra de Lemos Brito) (1907); Boletim do Ministério da Viação (1909); O Museu-Escola, memória apresentada ao 3º Con-gresso de Instrução reunido na Bahia, e aprovada com louvor (1913); Os empréstimos do Estado da Bahia (1915); Notas econômicas e financeiras (1916); Instituto Politécnico (1917).

Contam-se como obras a serem publicadas: Município da Capital — situação de suas finanças; e Discurso de abertura no Congresso de Instrução de 1913, na Bahia. Um terceiro e último bloco cons-tituem as obras em preparação de livros contendo publicações feitas: Discursos na maçonaria (Bahia, Rio e São Paulo); Discursos

Page 155: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 153

políticos e acadêmicos; Conferências e estudos; Polêmicas e crônicas; e Cole-tâneas dos trabalhos de imprensa.

Conjecturo que os períodos morados no Rio de Janeiro, a convivência com intelectuais e acadêmicos, José Veríssimo e olavo Bilac, e com José do patrocínio, tenham talvez despertado para a necessidade de criar a Academia de Letras, na Bahia. E mais, como homem de imprensa, expressou muito do seu hu-mor no jornal. É possível que todas essas atividades tenham in-fluenciado no desejo de dotar a Bahia de uma academia.

o legado de Arlindo Fragoso

Tanto a Escola politécnica da Universidade Federal da Bahia, juntamente com o Instituto Politécnico, como a Aca-demia de Letras da Bahia são instituições vigentes, funcionam, prestam serviços à comunidade e homenageiam o seu criador.

Na Escola politécnica da UFBA, o seu busto imponente, do pedestal preside a entrada do auditório. o seu retrato, tela do conhecido pintor Vieira de Campos, deixa ver os seus traços fisionômicos: nariz afilado, olhos verdes amendoados, bigode cheio como se usava, avançadas entradas. percebe-se ter sido um homem robusto. A Escola possui galeria de retratos a óleo dos seus dirigentes.

O professor Arquimedes Guimarães começa a sua história da Escola Politécnica da Bahia (1972), em 1896: “A 5 de julho, a convite do engenheiro Arlindo Fragoso, reuniram-se os enge-nheiros Afonso Glicério da Cunha Maciel et al [...]A Arlindo caberia traçar o programa do Instituto e o plano de organização da Escola.” Do mesmo modo, o jovem professor e vocacionado escritor Sérgio Fraga Santos Faria (2004) procura tratar Arlindo Fragoso nos principais papeis exercidos: “Arlindo Fragoso foi sempre um inovador, dotado de grande capacidade empreen-dedora e de inteligência invulgar”. Sérgio mostrou que Arlindo Fragoso foi não somente o fundador como também um lutador

Page 156: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

154 ◄◄

pela manutenção da Escola, estando à sua frente durante anos. Diferentemente do Arlindo Fragoso organizador e fundador da Academia, a sua derradeira obra. Caiuby Alves da Costa (2005), professor e ex-diretor da Escola, relaciona Arlindo Fragoso na instalação da Escola Politécnica.

Arlindo Fragoso na memória acadêmica

O presidente Aramis Ribeiro Costa, sempre atento à vida do nosso sodalício, programou os 150 anos do fundador Arlin-do Coelho Fragoso. A missão coube ao talento do nosso con-frade Joaci Goes. Força maior chamou-o à Brasília. Atento ao compromisso solicitou-me substituí-lo. Procurei atendê-lo e à Academia, como sempre procuro fazer como acadêmico benfei-tor. Tenho interesse especial no momento epifânico da criação do nosso grêmio.

Quanto mais conheço ideograficamente os confrades, o conjunto das suas obras, a capacidade convivial das suas perso-nalidades e a riqueza diversificada dos seus currículos, mais me aprofundo na intimidade organizacional da trajetória nomotéti-ca desta Companhia (BoAVENTURA, 2012).

Tudo que diga respeito aos primeiros tempos da Acade-mia o número inicial do seu periódico é uma fonte preciosa. A fundação, a memória histórica de Braz do Amaral, que foi presidente por 16 anos, o perfil de Arlindo Fragoso por Carlos Chiacchio, as falas de Carneiro Ribeiro, Xavier Marques e a do fundador levam-nos ao clima entusiástico e solar de sua criação em 1917 (ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, 1930).

Um momento importante que reviveu Arlindo Fragoso foi quando o confrade Cid Teixeira trouxe o busto para a Acade-mia. A imagem do fundador ficou mais próxima. Bem haja meu caro confrade Cid Teixeira

Reorganizando o espaço da Casa Góes Calmon, em busca de sua musealização, postei o retrato de Arlindo Fragoso,

Page 157: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 155

desenhado por Otávio Torres, na posição central do Salão Dou-rado. Eis o melhor local para a esfinge do fundador.

Com a instituição da Medalha Arlindo Fragoso Fundador da Academia de Letras da Bahia (Resolução Nº 1/2009), todos nós, ao recebê-la, sentimos com emoção, na esfinge do fundador, a Academia bem mais próxima a nós.1

Edivaldo M. Boaventura é ensaísta, pesquisador, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros de ensaios, participa de inúmeras ins-tituições culturais no Brasil e no exterior. Foi secretário de Educação do Estado da Bahia em dois governos, diretor-geral do jornal A Tarde e presidente da Academia de Letras da Bahia, da qual é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a Cadeira número 39 da ALB.

Texto lido no dia 21 de novembro de 2013, em sessão especial da Academia de Letras da Bahia em homenagem ao sesquicentenário de nascimento do fundador Arlindo Coelho Fragoso.

Page 158: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 159: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 157

O JOGO FANTÁSTICO DE JÚLIO CORTÁZAR

CYro de mAttos

Julio Cortázar é o escritor mais importante da literatura his-pano-americana, o de maior projeção internacional, ao lado

de Jorge Luís Borges. Dono de um texto instigante, que exige um leitor íntimo das questões estéticas ligadas à vanguarda, oferece em seus livros de contos e romances múltiplas possi-bilidades de leitura.

Em O Jogo da amarelinha, livro de ficção que representa para a literatura hispano-americana o que Ulisses, de Joyce, signi-fica para a britânica e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, para a brasileira, Julio Cortázar inova na técnica de construção do romance. Com Morelli, personagem desse romance impos-sível, articulado com várias linguagens, deduzimos uma teoria romanesca do romance moderno, na qual o escritor argentino não está interessado na narrativa que vai colocando os persona-gens na situação, mas na que propõe o inverso e instala a situação nos personagens. Com o que estes deixam de serem personagens para se tornarem pessoas. (p. 438)

Com influências de Joyce e Jorge Luís Borges, mas con-servando a força do ficcionista de pulso, de imaginação pródi-ga, Julio Cortázar desarticula a estrutura da narrativa tradicio-nal, estabelecida nos padrões da gramática normativa com uma pontuação lógica. Usa o monólogo interior, faz a demolição do tempo-espaço. O tempo agora não tem cronologia sequenciada, o espaço dispensa o cenário idealizado para corresponder ao real exterior por onde personagens planos desfilam com traços

Page 160: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

158 ◄◄

típicos, atos previsíveis e psicologismo conhecido. Contra uma ordem fechada, procura a abertura, corta pela raiz toda qualquer construção sistemática de caracteres e situações. O método em-pregado com o manejo de ousadias formais é a ironia, a autocrí-tica, a incongruência, a imaginação a serviço das conjecturas em sua obsessão para decifrar o absoluto tecido da existência nos fios sem fim da linguagem.

o livro O jogo da amarelinha apresenta-se com uma divisão tripartida. Na primeira parte vemos o argentino oliveira em pa-ris, à procura de Maga, a mulher amada e desaparecida; na se-gunda temos Buenos Aires e o reencontro com Talita. A terceira parte é formada por capítulos sobressalentes, citações e recortes. A leitura pode ser feita sem essas citações, segundo o autor.

No tabuleiro de direção para a leitura, Cortázar observa que o primeiro livro deixa-se ler na forma coerente e termina no capítulo 56. O leitor pode prescindir do que virá depois. O segundo livro deixa-se ler começando pelo capítulo 71, e con-tinua nos seguintes, depois de acordo a ordem indicada no final de cada um deles. É oferecida uma lista em caso de con-fusão ou esquecimento. Para a identificação de cada capítulo, a numeração é repetida no alto das páginas, correspondentes a cada um deles.

O caráter autobiográfico do livro é identificável com o personagem Oliveira, que é um escritor argentino, Através dele o autor empreende a sua peregrinação interior, na obsessão de perseguir e questionar a vida como uma substituição constante de comportamentos. Existe nisso a confluência de momentos idênticos, que do homo sapiens ao homem evoluído com base na técnica podem ser associados. A obsessão também consiste em elevar-se ao plano do absoluto, sem recorrer às categorias tranquilas, que procedem de sistemas elaborados pelos seres humanos apoiados nas tessituras lógicas ou da fé, nos quais são fincados suportes que permitem transmitir a noção de um éden imaginado, através de ideias, sentimentos e intuições. Em

Page 161: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 159

sua visão do mundo e da vida, o livro admite que consiste tudo em um recomeço no tempo, sem a interferência desse absoluto. o tempo é um criador de ilusões, entre olhar e ver, conhecer e entender. O tempo faz com que as ilusões funcio-nem como armadilhas.

observemos o esclarecimento neste sentido:

Todavia aquilo tudo, o canto de Bessie, o arrulho de Cole-man Hawkins, não seria tudo mera ilusão, ou talvez ainda pior, a ilusão de outras ilusões, uma corrente vertiginosa para trás, para um macacão olhando-se na água no primei-ro dia do mundo? (p. 45)

Percebemos que o plano desse romance plural decorre de razões fundamentais, capitais, filosóficas, as quais induzi-ram o autor a edificá-lo sobre a base das partes soltas, tratan-do o homem como uma fusão de corpo e partes da alma. E, por conseguinte, dando-se o enfoque da humanidade inteira como uma mistura de partes. Nessa armação do jogo, as ca-sas justapostas e simultâneas, que não seguem uma ordem se-quencial coerente, do inferno ao céu, Cortázar sempre procura enganar o ondular das vagas que procedem de rios metafísicos. O enunciado que empreende com admirável habilidade não se submete às rígidas regras da Arte. A enunciação em várias passagens da obra mostra a busca para enganar esses rios por meio do humor, troça e gracejo. Esse recurso transparece na direção da linguagem quando o narrador usa o h no início de vocábulos. Com reiteração, faz surtir o efeito desejável por quem não aceita as concepções dos sistemas prazerosos sobre o céu, a paz e a harmonia.

Ele também nos diz:

Os rios metafísicos passam por qualquer lugar, não é pre-ciso ir muito longe. (p. 81)

Page 162: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

160 ◄◄

Referências que podem ser associadas a esses versos de T. S. Eliot: O rio flui dentro de mim/ o mar nos cerca por todos os lados (Quatro quartetos, p. 42). Esses rios forçam as constantes conjec-turas do argentino oliveira diante da vida e também por Morelli, outro personagem convincente do romancista argentino. Como Cortázar, Oliveira e Morelli são personagens cultos, argumen-tam com eficiência, conhecem a literatura, a filosofia e outras linguagens. Dialogam com esses rios, que correm suas águas pe-las vagas do desejo, amor, absurdo, insegurança, vida, solidão, sonho, abismo, leitor, arte, romance, medo, alma, tempo, carên-cia, ação, recordação, realidade, silêncio.

os labirintos por onde esses rios aprofundam-se emanam de visões características do autor, vazadas de saber, magia e sím-bolos, tendendo para a proeminência da presença do humano com sua problemática dentro e fora da ordem, a qual advém dos seres e coisas no mundo. Constatamos no romance que o mundo está cheio de vozes silenciosas e gritantes, podendo ser entrevistas nas coisas inanimadas triviais. Dentro da linha do fantástico, a condição humana será precisamente a eterna busca, e a vida, esse absurdo que precisa ser elucidado. Desse binômio, que o autor busca desvendar, notamos que as fórmulas prag-máticas, apoiadas no padrão e no tipo do romance antigo, não poderiam servir para que uma inteligência criativa e transgres-sora tão poderosa como a de Cortázar formasse a estrutura do romance. Não esgotariam todas as concepções possíveis de uma obra aberta, com inúmeras entradas, sem que nenhuma delas seja a principal.

o texto de O Jogo da amarelinha é absolutamente plural, um conjunto enorme de significantes. Seu número não é jamais fechado, tem por medida a eternidade da linguagem, a perma-nente problemática interior e exterior do indivíduo na ordem do mundo. Na sua complexa e rica visão do mundo e da vida, o argentino Cortázar coloca o leitor como um cúmplice da obra, participando da narrativa complexa que emerge da escrita inco-

Page 163: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 161

erente e ligada ao jogo infantil onde às casas do tabuleiro são abismos, caminhos miseráveis sem saída. o autor de Histórias de Cronópiose de Famas arma seu jogo intenso de imagens neste ro-mance transgressor para que o leitor reflita a fantasia dos lances e improvisações, seja protagonista do vaivém ficcional carrega-do de fissuras existenciais, achados verbais e psicológicos. Dessa maneira, armado com uma fantástica e curiosa poesia, feita de ideias, pensamentos, colagens dialéticas, importa a Cortázar tor-nar o leitor, no jogo da amarelinha transposto para o discurso literário, um elemento dinâmico e criativo.

Cortázar não é apenas um romancista ensaísta, alimentado por ideias, concepções filosóficas e literárias, em sua visão fan-tástica da existência, na qual pulsa a contemplação do homem diante do real cotidiano. Não é só o escritor ambíguo que cons-tante recorre ao informe, à desordem, ao acaso para extrapolar conteúdos dialéticos, recortes do homem indefinido ante o ab-soluto. É também um narrador que comove quando toca nas emoções do amor e deixa escapar sentimentos que são de todos nós ante situações adversas, feitas dor e lágrima.

Leia trechos de uma carta ao filho:

Bebé Rocamadour, bebê, bebê. Rocamadour:Rocamadour, já sei que és como um espelho. Estás dor-mindo ou olhando os pés. Eu aqui seguro um espelho e creio que és tu. Mas não acredito nisso, escrevo-te por-que não sabes ler. Se soubesses, não te escreveria coisas importantes. O dia chegará em que terei de escrever para recomendar que tu te comportes ou que te agasalhes. Pare-ce incrível que alguma vez, Rocamadour. Agora, somente te escrevo no espelho, de vez em quando tenho de secar o dedo, porque se molha com as lágrimas. Por que, Roca-madour? Não estou triste, tua mamãe é uma tola, queimei o borsch que tinha feito para Horácio; sabes muito bem quem é Horácio, é aquele senhor que, no domingo, levou-te um coelhinho de feltro e que se aborrecia muito por

Page 164: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

162 ◄◄

tu e eu estávamos falando tanto e ele queria voltar para Paris; foi então que começaste a chorar e ele te mostrou como o coelhinho mexia a orelhas; nesse momento, ele ficou muito bonito, estou falando de Horácio, algum dia compreenderás, Rocamadour...

***

É assim, Rocamadour: Em paris somos como cogume-los, crescemos nos corrimões das escadas, em quartos escuros onde cheira a gordura, onde a gente faz amor o tempo todo e, depois, frita ovos e põe discos de Vival-di, acende cigarros e fala como Horácio e Gregorovius e Wong e eu, Rocamadour, e como perico, e Ronald e Babs, todos nós fazemos o amor e fritamos ovos e fumamos, ah!, nem podes imaginar tudo o que fumamos, o tanto que fazemos o amor, parados, deitados, de joelhos, com as mãos, com as bocas, chorando ou cantando, e lá fora existe de tudo, as janelas dão para o ar e isso começa com um pardal ou uma goteira, aqui chove muitíssimo, Rocamadour, muito mais do que no campo, e as coisas enferrujam, os canos, as patas do pombo, os arames com que Horácio fabrica esculturas...

***

Horácio tem razão, por vezes não me preocupo contigo e acho que um dia me agradecerás por isso, quando compre-enderes, quando vires que valia a pena que fosse como sou. Mas choro da mesma forma, Rocamadour, e te escrevo esta carta porque não sei, porque talvez me engano, porque talvez seja ruim ou esteja doente ou um pouco idiota, não muito, um pouco, só a idéia me dá cólicas, tenho os dedos metidos completamente para dentro, vou estourar os sapa-tos se não os descalçar já, e eu te amo tanto, Rocamadour, bebê Rocamadour, dentinho de alho, eu te amo tanto, nariz de açúcar. Arvorezinha, cavalinho de brinquedo...

Page 165: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 163

Com justeza na opinião, Bela Josef ressalta que, desde a primeira obra de Cortázar, sentimo-nos diante de um realismo que des-conhece a realidade, pois está embebido numa atmosfera alucinante, cheia de magia, que se move em vários planos — consciente, poético, fantástico, inconsciente, humorístico. (História da Literatura Hispano-Americana, p. 280). E o que acontece é que seu discurso permanece com ele-mentos que convivem com o homem, na realidade cotidiana, na eterna contradição entre a razão e a crise, a lógica e o absurdo, o real e o imaginário. A prosa fica impregnada de jogos dialéticos do cotidiano que cada um pode conjeturar e contemplar. A re-ação dos personagens ante os fatos formam os jogos dialéticos do cotidiano, resultando do que há de recorrente na problemáti-ca do homem e sua circunstância.

Diferente do que ocorreu com o romance regionalista lati-no-americano, no qual se objetiva com veemência a humanização de grandes presenças telúricas, a selva, o lhano, a zona andina e, no Brasil, as terras nordestinas da cana do açúcar, das secas no agres-te, da civilização do cacau no sul da Bahia, o romance contem-porâneo tenta suplantar a visão esquemática do naturalismo, da narrativa linear que relata o drama no plano exterior das relações e situações episódicas. Como em Joyce, Faulkner e Saramago, Cor-tázar procura mergulhar-nos no mundo em processo e, por meio de um pensamento fantástico, prefere que a imagem do homem, decorrente de escavações metafísicas, substitua a geografia, o pro-testo e a denúncia. Dialogue com o mundo com desconcertante riqueza criativa, espantosa poesia e humor raro da vida cotidiana.

REFERÊNCIAS

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha, Editora Civilização bra-sileira, Rio de Janeiro, 1982.JoSEF, Bela. História da literatura hispano-americana, Editora Vo-zes, petrópolis, RJ, 1971.

Page 166: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

164 ◄◄

Eliot. T.S. Quatro quartetos, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janei-ro, 1967.1

Cyro de Mattos é contista, novelista, romancista, cronista, poeta e au-tor de livros para crianças e jovens. Autor de 50 livros. Tem livros pessoais publicados em portugal, Itália, França e Alemanha. prêmios importantes, como o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras e o Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gêno-va, Itália, segundo lugar, duas vezes. É membro efetivo do pen Clube do Brasil. Pertence ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e é membro correspondente da ALB.

Page 167: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 165

BREVE REFLEXÃO SOBRE A IRONIA TRÁGICA EM UM DRAMA

SHAKESpEAREANo

ordeP serrA

Grandes dramas são marcados pelo tema da inspiração pro-fética. Neles, porém, o inspirado nem sempre sabe que

está profetizando, ou entende o que profetiza. Muitas vezes só descobre a posteriori o sentido de seu prenúncio. Pode dar-se que nunca o perceba, nunca o compreenda. Esta vem a ser uma das formas mais sutis e atordoantes da ironia trágica.

É certo que a ironia trágica tampouco poupa os iluminados. Não raro, ela afeta de modo doloroso os vates lúcidos. A visão aguda do profeta com muita frequência se tinge de assombro. A tragédia indica: a rigor, o clarividente sofre de lucidez. Exemplo máximo é Cassandra. Em toda a história do teatro, poucos lan-ces dramáticos alcançaram a pungência da cena em que Ésquilo, no Agamênon, representou sua última previsão. O relato da pro-fetiza a caminho do sacrifício torna evidente que a ironia fatal a acompanhou por toda a vida, fazendo-a sempre verídica e sempre desacreditada. A única exceção, segundo Ésquilo, teve lugar justa-mente na hora em que ela anunciou sua própria morte.

outro grande momento trágico da dramaturgia antiga re-vela, a um tempo, o engano e a desilusão de um vidente: Sófo-cles, no Rei Édipo, faz Tirésias lamentar-se do desconcerto com que o aflige sua ciência.

Mas deixo para outro momento os profetas lúcidos. Vou abordar neste artigo a profecia “turva” que marca um grande drama shakespeareano.

Page 168: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

166 ◄◄

Assim como deus, Shakespeare profetiza através de bêba-dos e loucos, ou atéde homens adormecidos. Éo que acontece, por exemplo, no Segundo Ato do Macbeth, no terrível momen-to em que um pagem da vítima régia — prestes, também, a ser assassinado — clama em sonhos “Murder!” Com esse grito e com a risada simultânea do companheiro que dorme no mesmo aposento, ambos despertam. Em seguida eles rezam, encomen-dando-se a Deus. Mas feito isso voltam ao sono que vai deixá-los inermes, incapazes de impedir o crime.

O público não vê esta cena. Toma ciência da previsão in-consciente através do relato que o herói criminoso faz a sua mu-lher. Ao ouvir a entrecortada narrativa do marido, ela também produz um agouro: sem que o advirta, Lady Macbeth antevê seu próprio destino, prediz a loucura que a tomará. É quando o côn-juge manifesta seu assombro com o próprio crime e se mostra perplexo com a inibição que lhe tolheu uma palavra decisiva. Ela então o aconselha:

These deeds must not be thought After these ways; so, it will make us mad.

O espectador não deixará de notar que no desenvolvi-mento do drama o desvario do casal se verifica, tal como ela predissera. Mais ainda: o pensamento que a terrível dama então aconselha o marido a evitar há de tornar-se sua obsessão. Dá-se mesmo uma espécie de espelhamento. Vejamos:

No início da mesma cena (a segunda do Segundo Ato) Macbeth olha para suas mãos ensanguentadas e comenta que éum triste espetáculo. A esposa logo lhe retruca que esse dito reflete um pensar insensato. Sua fala tem um sibilo sinistro:

A foolish thought to say a sorry sight.

Page 169: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 167

pouco adiante, o assassino se pergunta se o oceano pode-ria limpar-lhe as mãos e duvida, alucinado. Fantasia o contrário: imagina que o mar ficaria sujo, mudando a cor de suas águas de verde para vermelho. Isso ele diz justamente quando a esposa cúmplice volve da cena do crime, com as mãos sujas do mes-mo sangue, tendo com ele tingido as faces dos lacaios, a fim de atribuir-lhes a culpa do regicídio. Lady Macbeth reage, então, à mórbida fantasia do marido dizendo que um pouco d’água os lavará dessa ação. O espectador há de lembrar-se desta cena quando a vir delirando, no Quinto Ato, a dizer que nem todos os perfumes da Arábia purificariam sua mão pequenina.

Mas voltemos ao Segundo Ato e sua Cena II. o relato que Macbeth então faz a sua esposa merece exame. Ele fala dos embriagados pagens de Duncan; reporta a súbita perturbação do sono de uma pobre dupla no momento em que ele se aproxi-mava para consumar o crime:

There is one that did laugh in dream and one cried ‘Murder!’That they did wake each other: I stood and heard them:But they did say their prayers, and addressed Again to sleep.

A palavra agourenta, a sugerir antevisão do perigo mortal, é antecedida por uma risada. A disparidade dessa inconscien-te troca comunicativa tem caráter ominoso. Na circunstância, o riso ressoa de modo loucamente irônico para quem evoca a cena e conhece seu desenlace. Conota ilusão. Contrasta com o enunciado profético que se segue. A sequência díspar nos choca: assim o sonho engana e adverte, ao mesmo tempo. A involuntá-ria comunicação que desperta os dois pajens é desconforme. Re-presenta, por assim dizer, uma caricatura de diálogo, uma falsa interlocução marcada por desencontro, por um contraste brutal que lhe incorpora o nonsense.

Page 170: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

168 ◄◄

Vejamos: houve e não houve comunicação. Diretamen-te, sonhos não são compartilhados por ninguém. Um sonho só pode ser comunicado a outra pessoa quando o sonhador desper-ta e se dispõe a relatá-lo. Na cena em foco, dois homens ador-mecidos acordam um ao outro com sons nascidos, simultanea-mente, de seus respectivos sonhos. o efeito dessa coincidência pudera ser oportuno e afortunado para eles, pois suas vozes os alertam, mas esse “alarme” acaba frustrado, já que ambos tor-nam a dormir. No momento do sobressalto, sua “comunicação” tem a marca do inaudito: é certo que eles se ouvem, porém não entendem o que ouviram; não referem o motivo da brusca re-ação, não relatam os sonhos que os levaram a manifestar-se de forma inconsciente. Estes possíveis relatos, quiçá reveladores, permanecem inauditos. Resulta ineficaz o pressentimento que seus enredos teriam embutido, levando-os ao sobressalto recí-proco. A ocorrência não impede o regicídio, nem evita a morte que o assassino lhes dará, depois de imputar-lhes a culpa do crime hediondo.

Por outro lado, o poeta sugere que os pobres lacaios sal-varam suas almas: logo depois de se despertarem um ao outro de forma involuntária, ambos se uniram na oração. No primeiro momento, seu mútuo alarme nada teve de interlocução; em se-guida, porém, houve colóquio: a fórmula da prece envolvia um diálogo de verdade. Um disse a jaculatória (“God bless us!”) e o outro respondeu da forma adequada (“Amen!”).

Uma testemunha inadvertida os ouviu, mas não comun-gou de sua reza: Macbeth conta que não conseguiu dizer “Amen!” quando escutou a súplica devota. Foi incapaz de pronunciar essa palavra (ou seja, de juntar-se à prece), embora muito necessitasse de socorro divino, segundo ele mesmo declara:

I had most need of blessing, and ‘Amen’stuck in my throat.

Page 171: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 169

Ao narrá-lo, o desgraçado leu no silêncio dos próprios lá-bios sua condenação. Pouco depois, ele escutou de não sabe que voz a denúncia do seu crime em linguagem de castigo:

Methought I heard a voice cry ‘Sleep no more! Macbeth doesmurder sleep!’

Mais adiante ele repete essa acusação da estranha voz, que então o designa por seus nobres títulos (Glamis, Cawdor), sem-pre a dizer que ele destruiu o próprio sossego, matou o sono. Nessa altura, Macbeth comporta-se como um ator que perdeu uma “deixa” decisiva e em lugar da frase silenciada ouviu uma sentença inapelável. A resposta inibida lhe permitiria escapar; sua falta o prende ao enredo funesto. A voz travada na garganta ele reconhece como sua e percebe que inexistiu, embora o sur-preenda não a ter pronunciado, não a ter ouvido de sua própria boca. Já a voz inesperada, que ignora donde vem, ele escuta niti-damente, com igual surpresa:

Methought I heard…

Ou seja, ele pensa que ouve. Ilusão? O certo é que em seu pensamento Macbeth efetivamente escuta o amargo clamor. pois escutar é ser tocado na atenção por um som significativo, real ou imaginário. Assim o compositor escuta a música que ainda não escreveu e o poeta escuta o verso que ainda não disse, nem se acha escrito; ausculta sua possibilidade e ipso facto a realiza. Quem assim imagina que ouve exercita um modo decisivo de ouvir. por certo, ao imaginá-lo pode-se estar delirando. Mas o delírio nem sempre é inócuo. As fantasias de Macbeth têm uma terrível realidade.

A cena evocada transcorre entre a noite e o dia, depois de consumado o assassinato do rei. Nela dramatiza-se uma situação onírica vivida por Macbeth em tenso estado de vigília. É comum

Page 172: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

170 ◄◄

em pesadelos que o adormecido queira falar, ou mover-se, mas não o consiga; por outro lado, nos sonhos o sujeito “não sabe de onde vêm” frases e atos que lhe ocorrem no íntimo, quando ele está fechado à interação com os semelhantes. Assim é que em sua intimidade coisas lhe sucedem e ditos lhe soam como se viessem de fora, de outras pessoas. Tanto é que o surpreendem.

Usando esses critérios, temos de concluir que a cena vivi-da por Macbeth tem forma de sonho. Mas ele sabe muito bem que não está sonhando. Em sua mente unem-se de modo enig-mático signos opostos: de um lado, o responso tácito — que ele de si mesmo esperou, mas em vão — e de outro a sentença inesperada, fruto de uma voz de ninguém, que todavia ele ouviu. Estes quasi-enunciados liminais se combinam, “se respondem” de modo tal que a fala de Macbeth inconscientemente os asso-cia: ao evocá-los em sequência, ele mostra a obscura percepção de que os dois se interligam e o envolvem de um modo enigmá-tico na sua cadeia, invertendo a bênção em maldição.

o clamor de incerta origem ecoa o silêncio da fala sufo-cada: contradiz o inaudito, e assim dá lugar ao interdito (Sleep no more!). Cabe falar aqui de signos liminais, pois eles só ganham exis-tência concreta no momento de sua evocação, ou seja, justamente quando se constatam as ausências que os configuram. No primei-ro caso, isto é, no que toca ao primeiro dos dois sinais fantásticos assim evocados, trata-se, a rigor, de um não enunciado, isto é, de um enunciado que não chega a existir enquanto tal: o voto tácito do Amen. Identifica-se a sua fonte apenas possível, reconhece-se a voz que o poderia formular, mas ela de fato não o emite, não o formula. No segundo momento, o sujeito “ouve” (escuta e enten-de) uma “voz” cuja fonte não é capaz de identificar nem propria-mente localiza, pois ela ressoa por todo o entorno, sem que soe para os demais: parece irromper de forma ubíqua, difundir-se no mudo castelo. É, pois, uma voz percebida como alheia, estranha, mas de fato inaudível para os outros, manifesta apenas para o in-divíduo a quem ela se dirige: tem feição onírica.

Page 173: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 171

Em ambas as falas “virtuais”, a rigor inauditas (a que Ma-cbeth não pronuncia e a de um outro sem presença, que só ele escuta e presume), o significado se impõe, mas o significante se es-quiva. Esses indícios só ganham existência concreta — só se cons-tituem efetivamente em signos — no momento da evocação, ou seja, no relato de Macbeth, que constata os vazios simétricos da fala inarticulada e da voz incorpórea: em tom de confissão, o dis-curso angustiado verifica-lhes a eficácia significativa e assim lhes dá forma a posteriori. A ligação que reúne as duas “inexpressões” (os dois fantasmas verbais) permanece oculta, mas ainda assim é cogente: marca uma sutil gradação no plano do significado, pois os signos associados de forma velada conotam, respectivamente, uma contraditória rejeição — a um tempo deliberada e involuntá-ria — do apelo salvador (ou seja, do Amen impronunciado) e uma inapelável condenação (pela voz de fonte incerta, mas ubíqua).

O oculto sintagma que liga esses semas vazios configura um campo enigmático. Subjaz à simetria do seu confronto díspar outra correspondência, por sinal um paralelo que também se des-fecha numa inversão: as vítimas adormecidas de Macbeth nunca mais poderão despertar; o criminoso não poderá nunca mais dor-mir. É o tempo marcado pela alternância de sono e vigília que se desarticula. Macbeth se percebe, então, esmagado pela eternidade.

Recorde-se: a voz “estranha” ecoa por toda a casa. Ouvi-do apenas por Macbeth, seu clamor difuso proíbe-lhe o sono. Mas que significa essa proibição? Podemos imaginar o crimino-so impedido de dormir pelo resto da vida, porém a verdade é que uma coisa ainda mais grave lhe foi anunciada: ao ouvir a tre-menda voz, a um tempo clamorosa e silente, Macbeth se torna prisioneiro de um pesadelo do qual nunca poderá acordar, pois o vive desperto. A apreensão há de preencher todos os seus dias até levá-lo, através de novos enganos, ao desengano final.

Concluindo, passo agora a outro lance da mesma peça trá-gica. Ela me sugere um paralelo. Cá está: embora menos clara-mente que no Hamlet, também no drama de Macbeth há teatro

Page 174: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

172 ◄◄

no teatro. Não ocorre a montagem de uma peça no transcurso da intriga, mas efetua-se uma cogente representação: elabora-se um jogo dramático em que, sem qualquer mudança física, o cenário se altera, se duplica. Recorde-se a Cena III do Segundo Ato dessa tragédia, quando o porteiro finge que é porteiro…do inferno. Ele está bêbado e age como um clown, mas sua encena-ção se revela terrivelmente profética: enlaça passado e futuro no seio do sinistro castelo, em cuja imagem cenográfica o especta-dor é levado a ver, no mesmo relance, a figura sombria da forta-leza de Dunsinane e a imagem tremenda do inferno. o porteiro fatídico éum personagem que seu discurso transforma em ator, assim como o discurso do ator que o encarna o transforma em personagem. Nessa representação ele profetiza sem saber.1

Ordep Serra é antropólogo, pesquisador, professor, escritor e tradutor, graduado em letras e mestre em antropologia social pela Universidade de Brasília, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo. Estuda teoria antropológica, etnobotânica, antropologia da religião e antropologia das sociedades clássicas. Publica obras de ficção, pelo que tem obtido premiações nacionais. Desde 2014 ocupa a Cadeira número 27 da ALB.

Page 175: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 173

SoBRE UM AMoR DE FLoR BELA

mAnuel de CArvAlHo CAbrAl

1. proêmio

pedem-me para dar corpo a uma história da qual conheço apenas umas pontas soltas. História de ouvir dizer. ouvida

de boca em boca, mas, também, lida em muitos sítios. Cheia de mistérios e de algumas falsidades. Contada a partir de fatos reais, mas composta de alfinetadas por parte de quem não co-nheceu os protagonistas e se permitiu acrescentar um ponto. À luz da sua imaginação sombria. As dezenas de notas biográficas de Florbela Espanca que tive oportunidade de ler, muitas alcan-doradas a teses acadêmicas para obtenção de grau, limitam-se a copiar. E “opiniões” copiadas não se convertem em verdades. Mas chega a parecer.

Pedem-me para dar corpo à história de um encontro entre dois corpos, entre duas almas, entre dois artistas que tiveram uma aproximação fugaz e fulgurante, e que certamente viveram uma intensa história de amor, mas tão escondida que dela não há registo autêntico conhecido.

Pedem-me para dar corpo a uma história cujo fim pode-ria ter sido trágico — ingrediente que, associado ao amor e ao mistério, lhe confere uma redobrada e um pouco mórbida dose de curiosidade. Não tendo tido o fim que poderia ter tido, signi-ficou apenas o prenúncio da tragédia que ocorreu cerca de dois anos depois.

Pedem-me para dar corpo a uma história privada que mereceu vasta publicidade, por ter tido como personagem

Page 176: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

174 ◄◄

(principal?) uma das mais notáveis poetisas/poetas da língua portuguesa do século XX.

pedem-me e eu faço. pelo menos desta vez. Conto esta his-tória com os dados que tenho e como a vejo, depois de muito ler e de muito ouvir sobre os seus dois protagonistas improváveis.

O propósito deste texto não é biográfico. Apesar de partir de dados biográficos e de alguma análise crítica da obra poética e epistolográfica de Florbela Espanca, o texto não tem a preo-cupação do rigor factual. Parto de dados que constam de textos biográficos sobre Florbela e Luiz Maria Cabral e de entrevistas que ainda pude fazer a pessoas que conheceram este último. A inexistência de outros dados impede maior desenvolvimento. Porventura existirão por aí algumas cartas de Florbela (sim, ela que tantas cartas escreveu, apaixonadas umas, de carácter auto-biográfico outras, da parte de quem tinha a certeza de que ficaria para a história e queria deixar devidamente registada a sua curta passagem por este mundo) que algum dia possam trazer alguma luz a este sombreado?

2. Flor Bela.

Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa, não longe do Paço Ducal que a Corte frequentava. Seu pai, João Maria Espan-ca, nascido em 1866 em Estremoz, começou por ser sapateiro, profissão que herdou do pai dele, mas cedo demonstrou outras capacidadese interesses artísticos, comerciais e boémios. pintava e desenhava, comerciou antigualhas, foi fotógrafo e bem cedo se interessou pela novidade que o animatógrafo representava, ten-do sido um dos introdutores do vitascópio de Edison em portugal, fazendo muitas tournées para rentabilizar o seu investimento. Foi um homem aventureiro, com todos os ingredientes para fazer grande sucesso junto do gênero feminino.

João Maria Espanca casou a 31 de março de 1887 na Igre-ja de S. Bartolomeu, em Vila Viçosa, com Mariana do Carmo

Page 177: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 175

Toscano, conhecida como a inglesa, que veio a saber que era es-téril. Convence-a de que deveriam ter filhos dele com outra mu-lher, pelo que da sua relação com Antônia da Conceição Lobo, que veio a viver na mesma casa, viria a nascer Florbela (Flor Bela d’Alma da Conceição Espanca) a 8 de dezembro de 1894 e, de-pois, Apeles Demóstenes a 10 de Março de 1897. Florbela nasce em casa do pai mas é registada como filha de pai incógnito, ten-do como madrinha a mulher de seu pai, a Inglesa, que cria os dois irmãos como se filhos seus fossem. A mãe biológica de Florbela morre em 1908, com apenas 29 anos, de neurose.

Em 1911, com 16 anos, Florbela conhece a relação que o pai tem com uma empregada da casa, Henriqueta das Dores Al-meida, com a qual viria a casar em 4 de julho de 1922, depois de se divorciar de Mariana Toscano, em 9 de novembro do ano anterior.

Florbela e seu irmão Apeles tiveram uma boa educação. O pai não poupava nos livros e nas aulas de pintura, de bordado e de canto. «Tive os melhores professores de tudo na capital do Alentejo (que se são os melhores não são bons), de bordados, de pintura, de canto, e afinal sou uma eterna curiosa de livros e alfarrábios e mais nada»1. Foi aluna do liceu André de Gouveia e sabe-se que era frequentadora da Biblioteca Pública de Évora. Mais tarde chega a frequentar o terceiro ano da Faculdade de Direito de Lisboa.

Em 1912 fica noiva de Alberto de Jesus da Silva Mouti-nho, que conhecia pelo menos desde a escola primária, onde tinham sido colegas. Contudo, no verão de 1912 vai para a praia da Figueira da Foz, para casa de seu padrinho Daniel da Sil-va Barroso, iniciando uma forte relação sentimental com um tal “José” (certamente João Martins da Silva Marques), que alguns au-tores apontam como tendo sido o grande amor da sua juventude,

1 Todas as citações de textos de Florbela vão em itálico e são retirados das obras de Rui Guedes, «Acerca de Florbela», Ed. D. Quixote, Lis-boa 1986 e de José Carlos Fernández, «Florbela Espanca — a vida e a alma de uma poetisa», Ed. Nova Acrópole, 2012.

Page 178: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

176 ◄◄

de cuja relação há alguma troca de correspondência. Mais tarde, ao referir-se a esta situação, disse: «fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões (…)». Termina esta relação por pressão da família dele e re-ata o noivado com Alberto Moutinho, com quem casa civilmente em 8 de dezembro de 1913, depois de ter sido emancipada dias antes, em 28 de novembro.

Seria este seu primeiro marido um homem mais apaixo-nado ou mais passivo? Quais seriam os seus verdadeiros moti-vos? Se deles tivéssemos uma ideia, poderíamos imaginar o que terá sido este primeiro casamento de Florbela — que foi breve e ficou envolto numa aura de mistério, tal como os seus outros dois casamentos.

Desde os 8 anos que Florbela escreve versos. Em janeiro de 1916 começa a publicar poemas na revista Modas e Bordados, da qual era diretora Júlia Alves, com quem inicia entretanto uma troca intensa de cartas, que demonstram que vieram a tornar-se amigas com um elevadíssimo grau de intimidade, apesar de nunca se terem encontrado. Talvez o fato de não se conhecerem pes-soalmente ajudasse a uma maior abertura sobre os sentimentos e os anseios mais profundos de Florbela. É com Júlia Alves que abre a sua alma. Fala-lhe sobre o seu caráter: «sou triste, imensamen-te triste, duma tristeza amarga e doentia que a mim própria me faz rir às vezes»; «poderei ser tudo, mas tola, parece-me que não…» diz, depois de ter citado Goethe: «só os tolos são modestos». Fala-lhe sobre as suas características físicas e psicológicas: «digo-lhe já como são os meus cabelos e os meus olhos: os cabelos são negros, mas ainda assim nem tanto como a minha alma, pelo menos com o vestido que traz hoje; e os olhos são pardos, sombrios, profundos e maus. Sou pálida, alta e delgada». Fala-lhe sobre a sua relação com os outros: «Tenho dias em que todas as pessoas me dão a impressão de pequeninas figuras de papel sem expressão, sem vida».

publica o seu primeiro livro, o Livro de máguas, em 1919. Confia na excelência da sua poesia: «(…) há de tudo isso nos meus livros (…) Música e canto, bordados e rendas… Que delícia e finura em certos versos… que encanto e que magia em certas frases!...», não obstante

Page 179: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 177

a sua permanente atitude dicotômica: «São lá versos aquilo que nós escrevemos?».

A relação de Florbela com Alberto Moutinho depressa se degrada. Depois de um aborto involuntário em março de 1918, separa-se dele, sendo o divórcio decretado em 30 de abril de 1921, depois de um processo que é da iniciativa de Florbela. Poderá ter tido, entretanto, uma relação com Antônio d’Esaguy2. Em 29 de junho do mesmo ano casa na 2ª Conservatória do Registo Civil do Porto com Antônio José Marques Guimarães, alferes de infantaria da Guarda Republicana, então com 26 anos, que conhecera em janeiro de 1920 no casamento de um familiar.

O que teria sido a vida de Florbela nestes «loucos anos 20» (Natália Correia) sem a lei do divórcio que foi aprovada menos de um mês depois de implantada a primeira República em portugal3? Tanto Florbela como o seu pai, não obstante demonstrarem ter pouco apego às convenções sociais da épo-ca, foram claros beneficiários desta lei para tentarem dar um pouco mais de estabilidade às suas vidas. Sobretudo Florbela, por ser mulher, mostrou sempre uma enorme coragem e um sentido de liberdade e de desapego perante todo o tipo de con-venções. Desapego e até confronto. Estaria ela convencida que essa sua forma de estar conferiria um reconhecimento acresci-do à sua obra, senão em vida, depois da sua morte? Não seria isso mesmo que Florbela procurava ao registar tantos detalhes em muitas das suas cartas que apresentam um evidente caráter biográfico (já em 1916 pede a Júlia Alves: «Vou terminá-la (a carta) pedindo-te que a guardes, como a todas as minhas cartas, para serem publicadas depois da minha morte como produções ilustres do maior talento dos tempos modernos»)?

2 Ver nota (28).3 o divórcio foi legalizado através do decreto de 3 de Novembro de 1910. A Concordata celebrada entre portugal e a Santa Sé em 1940 retira o direito ao divórcio aos casados pela Igreja.

Page 180: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

178 ◄◄

Mesmo assim, tem consciência da sua situação, pelo que sente necessidade de dizer ao seu futuro marido, Antônio Gui-marães, logo em março de 1920 «Não me perdoam a superioridade do meu carácter e da minh’alma; não me perdoam o ter-te prendido, a ti que nenhuma tinha prendido ainda», acrescentando: «Sou digna de ti, sou digna do teu amor, sou digna como nenhuma de ser companheira fiel e dedicada até à morte (…). Quero, até ao fim, ser para ti a pequenina fonte límpida onde te podes debruçar sem medo».

Por esta altura, podemos aperceber-nos que Florbela está, de fato, apaixonada pelo seu futuro marido. No entanto, nas confissões e desabafos que lhe faz, mesmo naqueles em que lhe demonstra o seu amor, Florbela mostra bem como é volúvel o seu caráter: «É espantoso como eu me prendi assim a ti, eu que imaginava ter morrido, incapaz de sentir por alguém o mais pequenino interesse bem vindo do coração. Tenho em toda a minha vida sido galanteada por muita gente, muitos homens me têm feito a corte e tenho tido um convívio enorme com rapazes; tenho conhecido homens inteligentíssimos, meus amigos sin-ceramente, homens de valor, homens de talento, homens duma lealdade a toda a prova, e nunca senti ao pé de nenhum a impressão de segurança, de bem estar que sinto ao pé de ti». Ou quando diz: «Tu és simplesmente, lealmente um homem, e, eu… eu sou uma mulher, e uma criança, e uma artista que se julga alguém. Vê, meu amor, que complicação! No entanto, ama-se quem se ama e não quem se quer amar». ou ainda: «Julguei gostar dum homem em toda a minha vida e afinal nem desse gostei porque o esqueci em menos tempo do que uma criança leva a esquecer uma boneca partida. De ti gosto muito e porque vejo em ti aquilo que nunca encontrei: a máxima lealdade com a máxima ternura, feita de verdadeiro interesse pela minha felicidade, tanto como pela tua. Impossível pedir mais a um homem que é o animal mais egoísta que pisa a terra!»

Ainda antes do casamento, Florbela e Antônio vivem apaixonados, entre Sintra e Lisboa, nos intervalos das muitas e, por vezes, inesperadas obrigações oficiais de Antônio, no decur-so desses atribulados tempos da primeira República. Já por essa altura Florbela tem perfeita consciência da sua Inconstância (que

Page 181: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 179

é exatamente o título definitivo deste soneto que inicialmente se intitulou“Vida”):

Procurei o amor que me mentiu.Pedi à Vida mais do que ela dava. Eterna sonhadora edificavaMeu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,E tanto beijo a boca me queimava! E era o sol que os longes deslumbravaIgual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer…Um sol a apagar-se e outro a acenderNas brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindoÉ igual a outro amor que vai surgindo,Que há-de partir também… nem eu sei quando…

Antônio Guimarães é colocado no Castelo da Foz do Douro, no porto, onde poderia instalar-se com sua família. Con-tudo, o fato de ainda não serem casados, obriga-os a encontrar uma outra casa. Só depois do casamento vão viver para o Caste-lo da Foz, onde Florbela terá tido algum tempo (pouco, sempre pouco, muito pouco tempo) de vida sossegada, num registo bur-guês. Nesse período, desenrola-se um episódio que interessa so-bremaneira a estas nossas resumidíssimas notas biográficas: em fevereiro de 1921 dá-se um desaguisado ente Antônio Guima-rães e o seu companheiro de promoção, o então tenente médico Mário Lage, ao qual Florbela não terá ficado indiferente. Falta saber se a razão desse desaguisado não terá sido a própria Flor-bela. Na sequência deste episódio, Mário Lage pede dispensa da

Page 182: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

180 ◄◄

GNR e Antônio Guimarães pede transferência para Lisboa, o que leva a nova deslocação do casal.

Vale a pena ler os dois últimos tercetos do soneto “A vida”, questionando-nos se estas palavras não teriam sido já um sinal muito claro do fim do casamento de Florbela com Antônio Guimarães e o início da sua relação com Mário Lage:

A mais nobre ilusão morre… desfaz-se…Uma saudade morta em nós renasceQue no mesmo momento é já perdida…

Amar-te a vida inteira eu não podia…A gente esquece sempre o bem dum dia.Que queres, ó meu Amor, se é isto a Vida!...

A situação do casal degrada-se depressa, sobretudo depois de novo aborto nos primeiros dias de outubro de 19234. Em janeiro de 1924, Florbela vai viver com Mário Lage, em Ovar. Em abril desse ano Antônio Guimarães dá inicio ao processo de divórcio, invocando abandono do lar por parte da mulher. Florbela, em carta a seu irmão Apeles, refere-se aos dois últimos anos de vida com Guimarães desta forma: «a minha vida há dois anos foi um calvário que me dá direito a ter razão e a não me envergonhar de mim. (…) eu estava a transformar-me na mais vulgar das mulheres, e por orgulho, e mais ainda por dignidade, olhei de frente, sem covardias nem fraquezas, o que aquele homem estava a fazer da minha vida, e resolvi liquidar tudo simplesmente, sem um remorso, sem a mais pequena mágua. Estou a divorciar-me e para me casar novamente, se a lei mo permitir, ou para viver assim, se a moralidade do Código exigir».

A ação de divórcio intentada por Antônio Guimarães em 4 de abril de 1924 na 6ª Vara Civil de Lisboa veio a ser decretado

4 Parece que os dois abortos que Florbela teve prenunciaram o fim dos seus dois primeiros casamentos…

Page 183: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 181

em 23 de junho de 1925, o que permite a Florbela casar-se pela terceira vez,o que acontece em 15 de outubro desse ano na Re-partição do Registo Civil de Matosinhos com o médico Mário Pereira Lage, de 32 anos. É interessante saber que, dias depois, em 29 de outubro, Florbela e Mário Lage celebram matrimônio religioso na Igreja do Bom Jesus de Matosinhos — os dois pri-meiros casamentos de Florbela tinham sido realizados apenas civilmente, o que lhe permite agora casar pela Igreja,

Este casamento de Florbela com Mário Lage, ao que pa-rece muito desejado por Florbela, é também bastante tempestu-oso. Nada de novo. Agustina diz que o casamento com Mário Lage vive do desprendimento conjugal: «Ela sai a qualquer hora da noite. Mário Lage apenas a adverte: “não devias vir tão tar-de… Um dia terei de ir buscar-te ao banco do hospital…” Ela desafia a tragédia, tem acessos de cólera e de exibição (…) Bela é indesejável. Um turbilhão de fantasia, de gênio, e de malícia. provavelmente, o marido ama-a muito. A sua condescendência é quase escandalosa. Na reunião do Hotel do Porto, ele sai para comprar cigarros, mas, na realidade, afasta-se para deixar a sós a mulher com o seu novo amigo»5.

Curiosamente, sendo este, talvez, o casamento socialmen-te mais conseguido de Florbela («(…) o meu homem tem uma posição elevada em Matosinhos e aqui, onde é médico, sub-delegado de saúde, secre-tário de turismo e mil trapalhadas, e como o pai faz parte da Câmara, é muito considerado em Matosinhos, e a mim tratam-me como a uma princesa (…)»), é aquele que é mais contestado pela família. Florbela de-mora a reatar as relações com seu pai e com seu irmão.

A vida de Florbela decorre entre uma contínua busca da es-tabilidade e, quando parece encontrá-la, imediatamente é tentada por nova aventura. o seu último casamento talvez tenha sido o tempo em que essa inconstância se tornou mais evidente.

5 In Agustina Bessa-Luís, “Florbela Espanca”, Guimarães Editores, 1976.

Page 184: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

182 ◄◄

A dificuldade que teve em convencer o pai da bondade das suas intenções é disso exemplo. O pai, João Maria Espanca foi sempre uma referência na vida de Florbela, pelo que lhe doía o facto de ele não aceitar esta sua nova relação. E cada relação representava para Florbela uma nova vida, uma espécie de renovação total, razão pela qual sempre se considerou cas-ta6. Agustina diz que Florbela, na tradição celta, considerava-se sempre pura: «a virgindade não é física, mas moral»7. o pai, por seu lado, adorava esta filha que representava uma espécie de extensão da sua personalidade. Talvez por isso, sou tentado a achar que João Espanca quis sempre manter algum ascenden-te sobre Florbela. Se assim não fosse, qual a misteriosa razão pela qual nunca a perfilhou, apesar de toda a proximidade que tiveram (apenas o fez em 13 de junho de 1949, cinco dias antes da homenagem e inauguração do busto de Florbela em Évora, da autoria de Diogo de Macedo8 — ou seja, 18 anos depois da sua morte)?

6 Natália Correia, no segundo programa sobre Florbela, Mátria (Ver nota (21)), diz: «os textos revelam uma Florbela casta, bem diferente daquela que se mostra por vezes nos seus versos, uma pantera de sen-sualidade».7 In Agustina Bessa-Luís, ob. cit.8 Em 1994, por ocasião do 100º aniversário do nascimento de Florbela, o escultor João Cutileiro realizou um «múltiplo segundo um medalhão em bronze executado pelo artista para comemorar o 100º aniversário do nascimento em Vila Viçosa da poetisa Florbela Espanca (1894-1930). Esta obra foi adquirida directamente ao artista no seu atlier em Vila Viçosa. Proveniência: Manuel Gomes da Costa. Descrição: João Cutileiro; Florbela Espanca; Múltiplo em várias pedras; Assinado com monograma, numerado; MLXXXII, ed. Nº 15/25; Diâmetro: 30 cm». In Catálogo do Leilão nº 181 do Palácio do Correio Velho, Lisboa. Eu comprei ao escultor, no seu inspirador atlier em Évora (e não em Vila Viçosa, como erradamente é dito no catálogo do pCV), o exemplar nº 10/25 desta obra.

Page 185: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 183

Por outro lado, é necessário ter em conta a relação íntima, para alguns até incestuosa, que Florbela manteve com o irmão Apeles, o seu “Peles”. As cartas entre os dois (sobretudo de Flor-bela, pois Apeles não era muito prolixo na escrita) mostram que existia uma enorme cumplicidade entre os dois. por isso Florbe-la ficou arrasada quando Apeles morreu, em 6 de junho de 1927, quando o hidroavião que pilotava, um Harriot 33, se precipita nas águas do rio Tejo9. o seu corpo nunca apareceu. É a morte de Apeles que agrava a doença neurótico-depressiva de Florbela, que já tinha sido fatal para a sua mãe biológica.

Florbela nunca recuperou. Não conseguia dormir sem fortes doses de um barbitúrico muito em uso na época chamado Veronal, que passou a acompanhá-la permanentemente. Foi com Veronal que tentou suicidar-se duas vezes, a primeira depois de romper com Luiz Maria Cabral, em agosto de 1928, e a segunda talvez depois de romper com Ângelo César, em novembro de 1930. Foi com Veronal que se suicidou em 8 de dezembro de 193010. Não

9 Apeles Demóstenes da Rocha Espanca (1897-1927) era também um artista: desenhava e pintava com mérito, ao jeito modernista. Foi ofi-cial da marinha, tendo decidido fazer o curso de piloto-aviador em Abril de 1927. Ao saber disso, Florbela como que antecipa a tragédia que iria ocorrer pouco depois, em carta dirigida ao irmão em 25 de abril desse ano. Apeles Espanca acompanhou a primeira travessia aé-rea do Atlântico-sul realizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, entre março e abril de 1922, quando prestava serviço no Cruzador Carvalho Araújo. Como curiosidade, refira-se que o Padre Luiz Gon-zaga Cabral (Ver nota 20), tio de Luiz Maria Cabral, foi o autor da “mensagem da Colônia Portuguesa da Baía. Lida por seu autor em a noite de 9 de junho de 1922. Na Sessão Solene do Gabinete Português de Leitura em homenagem aos gloriosos Aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral”, in “Inéditos e Dispersos, IV, Discursos Acadêmicos (2º)”, de P. Luis Gonzaga Cabral, S.J., Ed. Livraria Cruz, Braga, 1930.10 Não obstante a certidão de óbito referir as 22 horas do dia anterior como a hora da morte, “de edema pulmonar”. Apesar de Florbela viver em casa de um médico, a certidão é assinada por um carpinteiro,

Page 186: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

184 ◄◄

deixa de ser estranho que um médico, Mário Lage, permitisse que a sua mulher tivesse sempre este forte barbitúrico na sua mesa-de-cabeceira, pelos vistos em quantidades que poderiam ser letais.

Sabemos que Florbela viveu de forma emotiva, tempestu-osa, acidentada. As suas relações foram sempre rápidas e inten-sas. De caráter caprichoso, provoca os seus sucessivos maridos, com as suas vontades, com as suas atitudes, com o seu mimo. Morreu cedo, como acontece aos predestinados.

Aos poetas, aos artistas, tal como às crianças, temos tendên-cia a tudo perdoar. O gênio dos artistas, quando se revela, supera os gestos mundanos, de tal modo estes são inerentes à criatividade.

Em boa verdade, os três maridos de Florbela permitiram-lhe dar asas ao seu gênio. A poetisa terá casado com eles, com cada um deles, por ter percebido que eles lhe iriam dar essa li-berdade de que ela tanto precisava. E eles, cada um deles ao seu jeito, terão casado com ela pela sua forma de estar e estariam dispostos a pagar o preço.

3. Luiz Maria Cabral

Não existe muita informação sobre a passagem de Luiz Maria de Figueiredo Cabral por este mundo.

Nasceu em 5 de maio de 1888, sendo o sétimo filho de Francisco do Valle Coelho pereira Cabral11 e de sua mulher Elisa

Manuel Alves de Sousa, que não se sabe sequer se estava presente! Talvez isso tivesse acontecido por nenhum médico querer responsabi-lizar-se por uma declaração que sabia não ser verdadeira e permitir que Florbela fosse enterrada segundo os ritos da Igreja Católica. Não o foi.11 Francisco do Valle Coelho pereira Cabral era Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, Bacharel formado pelas faculdades de Filosofia e de Mate-mática da Universidade de Coimbra e Engenheiro Civil formado pela Escola do Exército de Lisboa, foi Director da Companhia Nacional de Estamparia e de Tinturaria e da Real Companhia Vinícola do Norte de portugal, e senhor da Casa dos Constantinos, na Rua das Flores e

Page 187: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 185

de Figueiredo Dias Guimarães, herdeira da casa de seu tio, o Visconde de Figueiredo12, na rua de Cedofeita, no porto. For-mou-se em medicina e cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade do porto13 e “foi notável pianista e organista, com-positor e crítico musical”14.

da Casa de Sandim, em Roriz, Santo Tirso. In «Vales pereiras Cabrais, da Casa da Rua das Flores – resenha genealógica e biográfica duma fa-mília portuense», por A. C. de Sequeira Cabral, Imprensa Portuguesa, porto, 1981. Era um bom aguarelista e desenhador.12 Foi primeiro e único Visconde de Figueiredo Joaquim José de Fi-gueiredo, que nasceu no Porto em 2 de outubro de 1807 onde morreu solteiro e sem geração em 22 de janeiro de 1876. «Foi grande nego-ciante e proprietário no Porto, a cuja vereação pertenceu, e comenda-dor da Ordem de Cristo. Presidiu durante muitos anos à direcção do Banco Comercial do porto. o título foi-lhe concedido por Decreto de 15 e Carta de 22-XII.1862 (D. Luís)», in«Nobreza de portugal», vol. II, Ed. Enciclopédia, Lisboa, 1960. Ver também «Resenha das Famílias Titulares e Grandes de Portugal», por Albano da Silveira Pin-to, Lisboa, 1877. Gaspar Martins Pereira e Maria Luísa Nicolau de Almeida de olazabal, no seu livro «Dona Antônia» (Ed. ASA, 1996), a pág. 27, apresentam um quadro dos “maiores exportadores de vinhos do Porto para Inglaterra em 1811”, aparecendo Joaquim José de Fi-gueiredo em quinto lugar (segundo em nome individual), com 988,5 pipas, depois da Companhia Geral da Vinhas do Alto Douro (7438), de Bernardo de Clamouse Browne & Companhia (1238), de Antônio Joaquim de Carvalho (1054,5) e de Vanzellers & Companhia (1053). José Bernardo Ferreira, biografado naquela obra, exportou nesse ano 101 pipas. Tendo em conta a data desta tabela, tratava-se seguramente do pai do Visconde de Figueiredo, homónimo.13 Nunca exerceu medicina nem qualquer outra profissão. Viveu sem-pre dos rendimentos de que beneficiou por herança de seus pais. Meu pai, seu sobrinho, diz que minha avó, cunhada de Luiz Maria Cabral, sempre disse que a única coisa próxima da medicina que fez em toda a sua vida foi vacinar alguns sobrinhos…14 Cfr. A.C. da Sequeira Cabral, ob. cit. e Damião Vellozo Ferreira e Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, «Os Fundadores do Club Portuense

Page 188: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

186 ◄◄

No âmbito musical, o seu nome ficou particularmente li-gado à Sociedade de Concertos de Música de Câmara. Tenho um exemplar de um postal que publicitava esta “sociedade”. Ao centro podemos ver o “Dr. Luiz Cabral” (assim mesmo, sendo o único que aparece com o título académico em evidência), in-dicando que o seu instrumento é o piano; à sua direita, Carlos Dubbini (1º violino) e Afonso Valentim (viola); à sua esquerda, José Gouveia (violoncelo) e Alberto Cerqueira (2º violino)15.

A música foi o seu mundo. Teve seguramente sólida for-mação musical. Frequentava os meios musicais portuenses que eram de grande qualidade. Por relatos familiares, sei que viajou bastante pela Europa e que tocou com nomes importantes da música. Quando Pablo Casals sabia que coincidiam numa cida-de, queria tocar com ele.

Viveu sempre com seus pais e, depois, com suas irmãs solteiras na Casa da Rua de Cedofeita, no número 239. A casa do lado, onde viveu seu tio-avô, o Visconde de Figueiredo, era sua propriedade.

para saber um pouco mais sobre este meu tio-avô, entre-vistei dois dos seus sobrinhos: meu pai, Manuel16, que tinha 9 anos quando ele morreu, pois nasceu em agosto de 1930, e mi-nha tia Madalena17, que nasceu em novembro de 1922. Ambos coincidem num ponto: “nós tínhamos uma verdadeira venera-ção pelo tio Luiz”. Continua meu pai: “lembro-me dele sempre muito arranjado, de chapéu de palha e sapatos tipo italiano, junto à porta de ferro de Sandim, que dá para a meia-lua18, sempre com

e a sua descendência», porto 199715 Este postal está reproduzido em Damião Vellozo Ferreira e Gonça-lo de Vasconcelos e Sousa, ob. cit.16 Entrevista realizada em 12 de janeiro de 2014.17 Entrevista realizada em 20 de janeiro de 2014.18 A “meia-lua” é um tanque com a forma que o nome indica, coberto com uma ramada, que existe na Casa de Sandim, já referida, junto ao qual era e ainda é costume passar muitas horas nos verões, benefician-

Page 189: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 187

imensa paciência para os sobrinhos. Uma figuraça, de bigode pequenino. Um dia veio ao Porto um pianista famoso(não me lembro quem) e, repentinamente, adoeceu; pediram ao tio Luiz para o substituir, o que aconteceu com aplauso geral. Como é que 74 anos depois de ter morrido ainda temos esta memória tão viva e tão simpática dele? Ele cativava-nos…”

Quem melhor se lembra de Luiz Maria Cabral é Madalena Cabral, pois era afilhada de uma irmã dele, Madalena também, a qualveio a ser dona de Sandim entre a morte da mãe, em 1934 e a sua morte, em 194919. por isso, ia muitas vezes para Sandim mal o tempo começava a amaciar, por maio, na companhia da avó, Elisa, das tias Madalena e Júlia, juntando-se a eles com fre-quência o tio Luiz. A este gaba a inteligência, a cultura e a argú-cia: “o tio Luiz era bom fosse em que área fosse a que se dedicas-se. Era fino. Dava nas vistas, sendo discretíssimo. Uma presença simpática. Era um grande parceiro com os miúdos, dava-nos importância, tinha imensa paciência, ensinava-nos muitas coisas. Aprendi imenso com ele. Ao mesmo tempo era exigente con-nosco: fazia-nos perguntas e, se não sabíamos ou se nos enga-návamos, ralhava-nos imenso. Eu gozei imenso a sua sabedoria activa”. E acrescenta: “o tio Luiz não era nada vaidoso, mas sa-bia muito bem o que valia, que era bom. Sem dúvida nenhuma!”

do já não do Tio Luiz a tocar piano no seu quarto, mas da sombra refrescante das videiras e do som contínuo e reconfortante da água das duas bicas a cair no tanque19 Na família, nessa geração, a Casa-solar de Sandim, ficou para a filha mais velha solteira, Madalena. Quando esta morreu, deixou-a a sua irmã Júlia, também solteira, que morreu em 1961. Esta (não se sabe se por alguma indicação familiar anterior) deixou-a (tal como todo o resto da sua herança) “aos irmãos que lhe sobrevivessem” que, na época, era apenas Francisco. Este entendeu dever ficar com a Casa familiar, mas fez lotes equitativos com o resto da herança, permitindo aos seus sobrinhos, filhos de seus irmãos Maria Isabel e Constantino, escolherem.

Page 190: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

188 ◄◄

É interessante a comparação que Madalena faz de Luiz Maria Cabral com um seu tio-avô, o Padre Luiz Gonzaga Ca-bral20, o qual era Provincial dos Jesuítas em 1910, grande orador sagrado e que deixou vasta obra publicada: “eu também vene-rava o tio Luiz Padre, que era o charme em pessoa. Já o tio Luiz era charme só para quem queria… Em termos de atitude perante a vida, divergiam completamente (os homônimos padre Luiz Gonzaga Cabral e Luiz Maria Cabral, tio e sobrinho). Em termos de argúcia, de finura de observação, de atenção à vida, encontravam-se completamente”.

Madalena Cabral é a única pessoa que conheço que se lembra de ouvir Luiz Maria Cabral tocar piano: “em Sandim, ia para o quarto, fechava a porta, abria a janela (que dava para a meia-lua), e ouvíamos o tio Luiz tocar piano. para mim, o piano do tio Luiz faz parte da vida da meia-lua! Eu andava por ali a brincar (a tia Lena levava-me pelo cachaço para Sandim) e ouvia. ouvia o tio Luiz tocar piano imenso tempo. Só tocava nestas circunstâncias; nunca tocava quando tínhamos visitas, com a casa cheia”.

Como disse, há poucas referências físicas de Luiz Maria Cabral. Morreu em circunstâncias menos claras em 1 de dezem-bro de 1939, com apenas 51 anos. Quando morreu soube-se que tinha duas filhas, fruto de ume relação com uma mulher que vivia no Largo do Carregal, ali bem próximo da casa da Rua

20 Luiz Gonzaga do Valle Coelho Pereira Cabral, S.J. (1866-1939) era padre Jesuíta, licenciado em Teologia (França) e doutorado em Filo-sofia (Espanha), foi Provincial da Companhia de Jesus entre 1908 e 1912, tendo-se exilado para o estrangeiro logo após a implantação da República, em 5 de outubro de 1910. Foi para Salvador da Bahia em 1916 onde morreu em 1939, como director do prestigiado Colégio António Vieira (Ver, por todos, o meu trabalho “Dos estreitos limites do internato fui salvo pelo mar — o Padre Luiz Gonzaga Cabral e Jor-ge Amado”, in Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 50, setembro de 2011, pp. 141 a 156).

Page 191: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 189

de Cedofeita, onde sempre viveu. Não investiguei sobre estas suas filhas, quando nasceram e em que circunstâncias. Mas a sua existência e a forma como apareceram depois da morte do pai sugere que Luiz Maria terá tido sempre uma vida dupla: a social, à qual parecia adaptado no seu dia a dia e a outra, um pouco subterrânea, com uma família instalada e, eventualmente, com outras aventuras esporádicas, muito ao gosto da época. Com Florbela, terá sido seduzido pela artista, pela poetisa, que com-plementava a sua alma de artista. Um diálogo intenso e amoroso inter-pares.

A inexistência de mais documentação sobre Luiz Maria Cabral faz-nos questionar sobre o que poderá ter acontecido depois da sua morte. As suas filhas foram suas universais her-deiras21. Será que as suas coisas pessoais, os seus papéis, as suas cartas lhes terão sido entregues? Conhecendo bem a família, inclino-me para pensar que, pelo menos os seus papéis pesso-ais terão sido destruídos após a sua morte, sobretudo tendo em conta a confusão que terão causado todas as revelações sobre a sua vida que lhe sobreviveram. De todo o modo, também não acredito que houvesse documentação sobre a sua relação com Florbela. Poderia haver, isso sim, documentos que mostrassem um pouco da sua maneira de ser e a sua forma de viver e de se relacionar com os outros. E já não seria pouca coisa.

21 A Casa dos Constantinos, na Rua das Flores, já referida e que faz parte da classificação do Centro Histórico do Porto como Património da Humanidade pela UNESCO, ficou em partilhas para os irmãos Luiz Maria e Francisco, tendo este uma parte menor do que aquele. Terá ficado combinado que a Casa ficaria registada no nome de Luiz Maria que, não tendo filhos, a deixaria a seu irmão Francisco ou aos seus herdeiros. Á sua morte, tendo duas filhas, foram estas as suas her-deiras universais, incluindo obviamente a Casa dos Constantinos, que venderam a estranhos à família pouco depois – informação colhida junto de outro sobrinho, Antônio Carlos.

Page 192: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

190 ◄◄

4. Encontros e desencontros; a música e a poesia

Depois do seu terceiro casamento com Mário Lage, Flor-bela chega mais uma vez a um Porto pequeno, fechado e bur-guês, carregada da sua própria história. ouçamos Agustina, sem-pre no seu romance de carácter biográfico “Florbela Espanca”: «quando ela se instalou no arraial moral do Porto levava consigo uma história mais assustadora: dois divórcios, três maridos, dois livros de sonetos e um sem número de peripécias galantes e de amantes indigitados. Era demais para o Porto (…) para quem uma mulher bem penteada era símbolo de pecado”.

Quando penso no tio Luiz e em Florbela é inevitável pen-sar também em Natália Correia. Lembro-me de, há muitos anos, ver um programa da sua autoria em que, ao percorrer a biografia de Florbela, conta o que se terá passado entre os dois. Mantive sempre uma memória muito presente desse programa, intitulado Mátria22. Não me lembro se terá sido nessa ocasião que tomei conhecimento deste episódio que, sendo conhecido, não era fa-lado na família. Depois da emissão dos programas, lembro-me bem de ouvir a minha tia mais velha, Leonor, comentar (talvez fruto de alguma pequena provocação…) a cena em que o reali-zador representa uma tarde passada na casa de Luiz Maria, com este a tocar piano enquanto Florbela, recostada numa chaise-lon-gue, recitava poemas que ele inspirou ou que lhe dedicou. Sarcas-ticamente, rematava minha tia: «Como se ela algum dia pudesse ter entrado em nossa casa!”

22 A série de programas intitulada Mátria, da autoria de Natália Correia, foi produzida e realizada por Dórdio Guimarães em 1986. Quando estava a preparar este trabalho, tive oportunidade de consultar os três programas dedicados à vida e à obra de Florbela Espanca no Serviço de Arquivo da RTP-Porto, agradecendo desta forma a disponibilidade e a simpatia das funcionárias que me receberam e ajudaram, por inter-cessão amiga da Paula Moura Pinheiro. Os programas foram emitidos em 6, 20 e 27 de junho de 1988.

Page 193: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 191

Como em muitas biografias de Florbela que consultei23, Natália Correia também conta a sua história. Não resisto a trans-crever o belíssimo e tão ilustrativo texto dito por Natália Correia no terceiro programa sobre Florbela, a acompanhar as imagens que teatralizam essa suposta tarde de idílio24.

Entre julho e agosto de 1928, Bela procura sair da lassidão dolorosa em que mergulhou, forjando uma nova ilusão. Desta vez, o comparsa que ela escolhe para contra-cenar com ela no drama que se segue é um artista. Chama-se Luiz Maria Cabral, pertence à aristocracia25 portuense e, como o marido da poetisa, é formado em medicina, o que permite presumir, mas não garantir que se conheciam. Mas Luiz Maria Cabral é sobretudo pianista, orga-nista, crítico musical e compositor. E é seduzida por estes dotes artísticos que Florbela constrói o sonho de se deixar arrebatar por eles, na intimidade de uma tarde de música em que o pianista, tocando para ela, a envolve na magia de Chopin, Lizt, Schumann.

Não se acende hoje a luz…todo o luarFique lá fora. Bem aparecidasAs estrelas miudinhas, dando no arAs voltas dum cordão de margaridas!

23 Rui Guedes é o grande estudioso e biógrafo de Florbela. Depois, te-mos o livro já referido de José Carlos Fernández e estudos, por exemplo, de Maria Lúcia dal Farra e de Jorge de Sena. Já o livro de Agustina Bessa-Luís é uma biografia romanceada. Tive também a oportunidade de en-contrar numerosas teses publicadas em universidades portuguesas, espa-nholas e, sobretudo, brasileiras — onde Florbela é muitíssimo estudada,24 programa referido na nota (22), a partir do minuto 00:23:19:00.25 Florbela sempre se sentiu atraída pela realeza e pela aristocracia. Numa carta a seu irmão Apeles, diz-lhe: «Eu estou morta porque te cases e gostava que fosse na aristocracia, por ser a gente mais simpática que conheço».

Page 194: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

192 ◄◄

Entram falenas meio entontecidas…Lusco-fusco… um morcego a palpitarPassa… Torna a passar… Torna a passar…As coisas têm o ar de adormecidas…

Mansinho… Roça os dedos plo teclado,No vago arfar que tudo alteia e doira,Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!

E, enquanto o piano a doce queixa exala,Divina e triste, a grande sombra loiraVem para mim da escuridão da sala…26

Mas, na própria máscara do amor que o destino afi-velou para novamente a iludir, ela vê estampadas as feições da morte que voluptuosamente a atrai.

Morte, minha Senhora Dona Morte,Tão bom que deve ser o teu abraço!Lânguido e doce como um doce laçoE, como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforteTua mão que nos guia passo a passo, Em ti, dentro de ti, no teu regaço,Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,Fecha-me os olhos que já viram tudo!Prende-me às asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei, Má fada me encantou e aqui fiqueiÀ tua espera… quebra-me o encanto!27

26 Soneto Chopin.27 Soneto “À Morte”.

Page 195: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 193

A poetisa trazia a ideia do suicídio entranhada nos pen-samentos. E só procurava um pretexto. E o fim breve e desastrado dessa breve miragem amorosa parece ter sido a causa de uma tentativa de suicídio que lhe destrambelhou ainda mais os nervos. Florbela sabia que corre vertigino-samente para o seu fim e a fonte de criação poética volta a jorrar com todo o ímpeto.

Dificilmente algum dia saberemos quando e em que se circunstâncias Florbela e Luiz Maria Cabral se encontraram e se apaixonaram. Por tudo o que li e ouvi sobre Florbela, atrevo-me a dizer que o entusiamo de Florbela por Luiz Maria se deve prin-cipalmente a dois fatores (para além, é claro, do ímpeto emo-cional e irracional que sempre envolveu as paixões da poetisa): primeiro, a posição social de Luiz Maria; segundo, a alma-gêmea de artista que nele encontrou.

Platão dizia que a música é a essência da ordem. Das artes, a música em particular obriga a ritmo, a métrica, a compasso e provoca fortes emoções. Como a poesia28.

Para além de “Chopin” (acima), Luiz Maria inspirou tam-bém o soneto “Tarde de música”:

Só Schumann, meu amor! Serenidade…Não assustes os sonhos… Ah!, não varrasAs quimeras… Amor, senão esbarrasNa minha vaga imaterialidade…

28 Tive uma professora no antigo curso geral do liceu que dizia que Fernando Pessoa – o qual disse um dia que Florbela era a sua «alma-gémea» - na sua infância, passava horas e horas nas escadas de um teatro perto de casa, em Lisboa, antes e depois da sua estadia em Dur-ban, a ouvir os ensaios musicais. Defendia entusiasticamente que essa aprendizagem musical terá sido determinante para a excelência da sua composição poética, exactamente pelos aspectos referidos no texto que aproximam a música da poesia.

Page 196: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

194 ◄◄

Lizst, agora, o brilhante; o piano arde…Beijos alados… ecos de fanfarras…pétalas dos teus dedos feitos garras…Como cai em pó de oiro o ar da tarde!

Eu olhava para ti… “É lindo! Ideal!”Gemeram nossas vozes confundidas.— Havia rosas cor-de-rosa aos molhos —

Falavas de Lizst e eu… da músicalHarmonia das pálpebras descidas, Do ritmo dos teus cílios sobre os olhos…

As biografias de Florbela coincidem no fato de a poetisa ter escrito os sonetos “Chopin” e “Tarde de música” inspirada em Luiz Maria e na sua música. Há quem aflore a hipótese de o soneto “Toledo” ter sido escrito com o mesmo enquadramento, numa deslocação que os dois terão feito a essa surpreenden-te cidade espanhola que o Tejo abraça, na única incursão que Florbela terá feito fora do território português29. De fato, o tom deste soneto é presente, vivo, palpável, amoroso e terno:

Diluído numa taça de oiro a arderToledo é um rubi. E hoje é nosso!O sol a rir… Vivalma… Não esboçoUm gesto que me não sinta esvaecer…

As tuas mãos tacteiam-me a tremer…Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,

29 Agustina Bessa-Luís, no seu romance biográfico sobre Florbela, diz que este soneto “Toledo” poderia ter a ver com o seu amigo Augusto Toledano d’Esaguy, baseada no nome do meio. Atrevo-me a discordar, considerando que este soneto tem um teor muito mais vivencial do que inspiracional…

Page 197: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 195

É como um jasmineiro em alvoroçoÉbrio de sol, de aroma, de prazer!

Cerro um pouco o olhar, onde subsisteUm romântico apelo vago e mudo— Um grande amor é sempre grave e triste.

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo…Uma torre ergue ao céu um grito agudo…Tua boca desfolha-me um beijo…

Tal como não conhecemos as circunstâncias do encontro entre Florbela e Luiz Maria, ignoramos o que terá provocado a ruptura. Da história fica o mito. O mito do mito. O que fizeram, onde se encontraram, como se amaram, que brigas tiveram. Que ela o amou perdidamente, parecem não restar dúvidas. Os sonetos que Florbela compôs por ele e para ele comprovam-no. Como o comprova a violência da ruptura, com a sua primeira tentativa de suicídio. Se Florbela, esta «trágica infanta da poesia portuguesa (…), sabe que corre vertiginosamente para o seu fim» (Natália Correia), o fato de tentar o suicídio exactamente no momento em que rompe com Luiz Maria prova como o rompimento des-sa relação a afectou. E só pode afetar dessa forma tão violenta o que tem raízes profundas.

É possível que Florbela e Luiz Maria tenham voltado a en-contrar-se. Florbela começa a escrever um Diário no dia 11 de janeiro de 1930. No dia 13 de março faz uma anotação em que refere um “Luiz” o que, pelo teor do texto e pelas relações que teve com Luiz Maria Cabral nos permite assim pensar: «que pobres os que para não sofrer, não amam, que pobreza a de quem nunca dá!». o seu biógrafo José Carlos Fernández conclui: «Pelo que Florbela diz chegamos à conclusão que a relação entre ambos falhou porque Florbela, amando-o, dava-lhe o que era, íntima e enlouquecida-mente, enquanto ele, no seu orgulho, não era capaz de tanto:

Page 198: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

196 ◄◄

O Luís tem no seu íntimo, embora não o confesse, um gran-de orgulho por não ser capaz de amar doidamente uma mu-lher. Como é que, sendo ele tão inteligente, não compreende esta verdade tão simples: que aquele que não tem nada para dar é que é pobre? Assim, nas suas aventuras sentimentais, dá, em troca de pedras preciosas, dinheiro falso e… como cada um dá o que tem, elas dão sempre pedras preciosas e ele continua a dar dinheiro falso. E, quando chegar a morte, terá ignorado dois dos maiores prazeres da vida: o prazer de possuir pedras preciosas e o prazer de as dar.

5. Epílogo

Tal como as majestades que admirava na ducal Vila Viçosa na sua infância e juventude, Florbela fica para a história apenas com o seu nome de batismo, dispensando o apelido. Florbela, apenas, é suficiente para a identificar. Como ela talvez só Sophia, na poesia ou Camilo e Agustina, na literatura. ou Amadeo, na pintura. Flor Bela Alma.

Florbela foge cedo do seu Alentejo natal, e cedo mostra que tem pressa de viver. Vive depressa e intensamente. Verti-ginosamente, com a coragem de viver a sua vida respondendo apenas à sua vontade e aos seus instintos. Cada passo que dá no que ela pensa ser o caminho da estabilidade ou da felicidade (os seus casamentos, as suas casas, os seus trabalhos), rapidamente é seguido por outro passo no caminho do abismo (as suas aventu-ras amorosas, os seus divórcios, as suas neuroses).

Eu quero amar, amar perdidamente!Amar só por amar: Aqui… Além…Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…Amar! Amar! E não amar ninguém!

Se Florbela — a «poetisa-musa», como lhe chamou Vi-torino Nemésio — tinha alguma certeza na vida, era apenas relativamente ao valor universal da sua poesia e à persistência

Page 199: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 197

do seu nome na cultura. Sem nunca ter transposto as frontei-ras de portugal (excepto, talvez, a breve viagem a Toledo com Luiz Maria Cabral), fez-se cidadã de um mundo sem fronteiras. Avessa a escolas, apesar de ter frequentado brevemente alguns grupos de debates ideológicos e culturais, confiava apenas na sua inspiração, na sua personalidade, na sua arte. Ignorada pelos modernistas da moda que a achavam provinciana30, afirmou-se pelo seu «génio telúrico» (Natália Correia). Não precisou das te-orias das letras ou das modas literárias para se impor. Florbela transformou-se num mito.

Luiz Maria Cabral foi um episódio breve na vida breve de Florbela. Mas um episódio que teve a importância de ser inspi-rador e transformador. E um episódio na vida de um mito não é coisa pequena!31

30 Florbela teria consciência disso mesmo. Em carta dirigida a Júlia Alves em 20 de dezembro de 1916 chama a si própria e à destinatária «provincianazinhas burguesas».

Manuel de Novaes Cabral é jurista de formação e desenvolveu diver-sas atividades ao longo da sua vida, sobretudo ligadas ao serviço públi-co. É presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e do porto desde 2011. Foi docente universitário e escreve alguma prosa e poesia, tendo publicado vários livros e centenas de artigos em revistas portuguesas e internacionais.

Page 200: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 201: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 199

BICENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE UM SÁBIO BAIANO E BRASILEIRO

João euriCo mAttA

Nasceu Antônio Ferrão Moniz de Aragão em 28 de dezem-bro de 1813, em Salvador (e não no Engenho Guaíba,

no Recôncavo baiano, o “engenho paterno” a que se referiu pedro Calmon, em sua História da Literatura Baiana, 1949) — como o próprio Ferrão Moniz registrou, numa das incontáveis páginas de seus numerosos Diários, cadernos de manuscritos inéditos, que se encontram na biblioteca-arquivo da Academia de Letras da Bahia — e faleceu aos 74 anos, no dia 30 de julho de 1887, “na biblioteca de sua residência (Salvador)...: deitado em uma rede, tinha um livro aberto que lhe pousava sobre o coração”, uma das mãos caídas para um lado e um charuto no chão, como está registrado na pág. 271 do livro História das ideias filosóficas na Bahia (Séculos XVI a XIX), 2006, de autoria dos professores de filosofia Francisco Pinheiro Lima Júnior e Dinorah d’Araújo Berbert de Castro que, aliás, dedicam 44 das 776 páginas desse volume ao estudo da vida e espantosa produção intelectual de Antônio Ferrão Moniz de Aragão, um dos 51 “professores de filosofia” pesquisados, ressaltando, na página 310, Ferrão Moniz como “o nosso maior pensador”. Exatamente aquele Ferrão Moniz que, por seu prodigioso es-tudo Classificação metódica e enciclopédica dos conhecimentos humanos, foi considerado “velho sábio baiano” pelo alagoano Virgílio de Lemos, graduado e professor de Direito na Bahia, em seu livro Curso de filosofia do direito, 1916.

Page 202: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

200 ◄◄

Como este é um texto de espaço limitado, creio que devo homenagear os autores de artigos sobre Ferrão Moniz para a im-prensa em quatro momentos dos anos 1940, 1950, 1980 e 2000. Primeiro, o texto escrito por um enteado de seu neto, Dr. Gon-çalo Moniz Sodré de Aragão, o médico Otávio Torres, intitulado “Antônio Ferrão Moniz de Aragão, o filósofo” e publicado no Jor-nal do Comércio, em 21 de dezembro de 1944. Dr. Gonçalo Moniz guardou por muitos anos os livros, os cadernos de manuscritos e as publicações de Ferrão Moniz e, com autorização de sua irmã D. Laurinda, confiou esses documentos a Otávio Torres para que fossem doados ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e à Academia de Letras da Bahia, de cujo quadro o “velho sábio” é patrono da Cadeira número 17, que tem como fundador exata-mente seu neto, o citado professor de medicina Gonçalo Moniz, sucedido pelos acadêmicos poetas Leopoldo Braga, Carlos Edu-ardo da Rocha e Ruy Alberto d’Assis Espinheira Filho.

Segundo momento, na coluna semanal do Diário da Bahia intitulada “Letras Baianas”, nos meses de setembro e outubro de 1952, o então jornalista e poeta Moniz Bandeira, nos seus 16 anos, publicou artigos sobre autores baianos entre eles Antônio Ferrão Moniz de Aragão, Castro Alves e Pedro Kilkerri, todos os textos ilustrados por admiráveis bicos-de-pena-e-nankin da lavra de seu irmão artista, aos 13 anos, Carlos Augusto Bandeira, de saudosa memória. Como somos amigos de infância, desde os nossos cinco anos, posso testemunhar que Luiz Alberto Mo-niz Bandeira venerava seu avoengo, trisavô, Ferrão Moniz como paradigma de intelectual e homem de bem, carinhosamente cha-mado pela família de “Senhor”, mas não por ter sido senhor de engenho, um dos herdeiros do Barão de Itapororoca, porquanto alforriou os escravos e empobreceu, vendendo as propriedades rurais e estabelecendo-se em Salvador, para exercer o magistério e ocupar os cargos de diretor da Instrução Pública e bibliotecá-rio diretor da Biblioteca pública da província. Nesses sessenta anos Luiz Alberto Moniz Bandeira, em extraordinária carreira,

Page 203: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 201

de magistério e pesquisa historiográfica e de ciência política, no Sul do Brasil, em Brasília e no Exterior (está radicado na Alema-nha, com a família, Margot e o filho Egas, aos 28 anos, um scholar notável), e publicou cerca de trinta livros, alguns traduzidos em várias línguas europeias, recentemente em mandarim, o último dos quais, A Segunda Guerra Fria. Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio, 2013, é dedicado “In Memoriam meu antepassado, o filósofo Antônio Ferrão Moniz de Aragão (1813 – 1887), no ano do seu bicentenário de nascimento”.

Terceiro momento, a publicação em A Tarde, de 30 de julho de 1887, em página inteira do Caderno 2, do artigo do professor universitário Francisco Pinheiro Lima Jr., “Ferrão Moniz, um amigo da sabedoria”( comemoração pelo centená-rio de sua morte).

Quarto momento, a publicação, na coluna Gente e Memória de caderno especial de A Tarde, de 28 de dezembro de 2006, do artigo do professor universitário, pós-graduado no assunto, Marcelo Duarte Dantas de Ávila, “Antônio Ferrão Moniz de Aragão, uma vida dedicada aos estudos.”

Em maio do ano 2006 dediquei algumas semanas a com-pulsar, folhear e fazer uma leitura dinâmica, além das obras pu-blicadas — Elementos de matemáticas, 1858; Catálogo geral das obras de ciências e literatura que contém a Biblioteca Pública da Província da Bahia, vol. 1, 1878; vol. 2, 1880; vol. 3, 1883, — os documentos, cadernos e manuscritos dos Diários e Jornal contidos em doze pacotes (sacos de papel grosso, marron) e três documentos do acervo do Instituto Geográfico e Histórico que seriam enviados ao Arquivo Nacional, do Ministério da Justiça, para restauração, a saber os Tomos I e II do Elementos de retórica, 1855, e o volume Lógica, 1873-1886. Mas prefiro recorrer aos textos de Francisco pinheiro Lima Jr. e Dinorah Berbert de Castro, de otávio Tor-res, Moniz Bandeira e Marcelo de Ávila, para concluir este artigo com o seguinte sumário, em dois parágrafos finais.

Page 204: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

202 ◄◄

É empolgante a leitura dos textos daquele garoto de 12 anos que o pai manda estudar, por alguns anos em dois perío-dos, na Europa, primeiramente humanidades na França, paris, e, entre 1832 e 1834, ciências naturais (“Natural philosophy”) e mate-mática na Inglaterra, Universidade de Londres, Antônio aos 19 anos, acompanhado do irmão Egas, quando, em três anos, via-jaram por vários países europeus. O curso de “Natural philoso-phy” foi concluído em 1834, e em dezembro desse mesmo ano faleceu o patriarca, José Joaquim Moniz Barreto de Aragão, o Barão de Itapororoca, que, entre o 7 de setembro de 1822 e o 2 de julho de 1823, desempenhara um papel político significati-vo na campanha militar pela consolidação da independência do Brasil. Introduzo aqui a menção alegre das várias namoradas europeias do jovem estudante Ferrão Moniz, a última das quais, Manoela Carassa, em Roma, engravidou, tendo abortado o feto, em 1835, quando os dois rapazes já estavam de retorno à pátria imperial. Conclui-se o inventário, Antônio Ferrão Moniz assu-me a propriedade do Engenho Santo Estêvão e se casa com a bela, dizia-se, viúva do médico e político José Lino Coutinho, D. Maria Adelaide Sodré Pereira, de cujo matrimônio nasceram os nove filhos do casal, entre eles o vice-almirante Francisco Ferrão Moniz de Aragão, pai do governador da Bahia de 1916 a 1920, que tinha o mesmo nome do avô, Antônio Ferrão Moniz de Aragão, que propiciou o decisivo apoio institucional à fundação, em 1917, pelo engenheiro e professor Arlindo Fragoso, da Aca-demia de Letras da Bahia. A mudança física do Recôncavo para a Cidade do Salvador se deu no final da década dos 1840, quando começaram suas atividades de magistério, inclusive a compra e direção do Colégio 2 de Julho, o exercício de cargos públicos na gestão da educação (depois de diretor, foi vice-diretor de Instru-ção Pública de janeiro de 1882 a outubro de 1885) e na direção da “Livraria” ou Biblioteca Pública da Província, que exerceu até outubro de 1886, quando requereu sua aposentadoria, oito meses antes do seu falecimento, em julho de 1887.

Page 205: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 203

Nos seus 19 anos, Ferrão Moniz atravessou uma crise reli-giosa, que ele retrata, em linguagem estranhamente criptografada, no “Diário” escrito em Paris, 15 de julho de 1832, após confessar que “muitas vezes não tenho ido à missa aos domingos”. Três anos mais tarde, nos seus 22 anos, de volta ao Recôncavo baiano e no Natal de 1835, escreve em seu “Diário”, como sempre se dirigindo, num modo inglês de linguagem figurada, a um interlocutor fictício chamado “meu caro B”: “Hoje, meu caro B, é o dia em que nasceu o nosso grande Cristo, que estabeleceu a Religião Cristã...” O jovem pensador se iniciaria maçon, e portanto crente no Supremo Arqui-teto do Universo, e amadureceria escrevendo admiráveis textos so-bre “Filosofia da religião”( 199 fls. manuscritas ) e sobre o que cha-mou de “Teologia transcendental”, “Teologia natural” e “Teologia moral”, nos quais especula sobre a “Natureza de Deus” e a “San-tíssima Trindade” — a Potência, a Inteligência e o Amor em si, que “subsistem em uma unidade radical, absoluta, Deus, (que) é pois essencialmente um — unus — pela substância e trino — trinus — pelas propriedades” (fl. 188 do manuscrito). Introdutor e divulga-dor, no Brasil, da filosofia positivista de Auguste Comte, sem aceitar a “Religião da Humanidade” deste, — conforme demonstrou, em carta, seu neto, o professor Gonçalo Moniz, — Ferrão Moniz, que defendeu brilhantemente o feminismo e o regime de governo repu-blicano, mostra-se, na maturidade de seus escritos, não mais o “céti-co” ou o “materialista” dos “Diários” da juventude, mas um deista, no dizer dos professores Francisco pinheiro Lima Júnior e Dinorah Berbert de Castro, “adepto de uma religião naturalista, admirador do cristianismo, julgado mui benfazejo à humanidade.”1

João Eurico Matta é bacharel em direito, administrador, professor emérito da Universidade Federal da Bahia, crítico e ensaísta. Foi di-retor da Escola de Administração da UFBA, secretário de estado e membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Dirigiu várias instituições públicas e privadas, como o Conselho Regional de Admi-nistração da Bahia. É membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Desde 1989 ocupa a Cadeira número 16 da ALB.

Page 206: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 207: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

poESIA

Page 208: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 209: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 207

poEMAS

FernAndo dA roCHA Peres

CArtÕes PostADos

Letra de fado

É um prêmio de verãovoltar a Lisboa sempre,pois o Tejo prende a luzquando giza o pôr do sol,que incendeia a sua foze os cabelos de Urania.

Nos mirantes da cidadecom seus distantes ruídosos poetas espreitam a noitede guitarras e cantorias,que acalantam os telhados (bis)e os sorrisos de Urania.

É uma festa de aleluiaestar em Lisboa assim,com os mirantes e o Tejono acalanto dos telhados (bis)no incêndio da sua foz. outubro 2014

Page 210: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

208 ◄◄

Balada ao Pascoaes

Na sinuosa e estreita rotaum esgalhar verde das vinhas,pinta o espaço na paisagem.Assim chego em Amarantecom seu silencio empedrado, e um denso fluir da vidaque escorre no rio Tâmega, por baixo da ponte romana.Há um poeta da cidade,Senhor Teixeira de pascoaescom versos inquietantessobre a carreira do tempo,em poema que rememoro:“Que misterioso recorte,esse da nossa figura,na alegria ou na amargura,mas sobretudo na morte.”No viço de toda genteesse é o dia sem data,imprevisto, indesejado,de uma visita intruseiracom seu mantel de linhãotintado de roxo e negro,e um requiem desafinado.E adormeço em Amarantena festa do corpo de Cristo,com aflições e os cantochõesnos labirintos de um sonho.

outubro 2014

Page 211: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 209

Cliques

1

Os registros redefinemum passado não perdidode fenícios e romanos,em Cetóbriga antiquíssimabanhada de mar e rioe subvertida em areial.

2

E neste encontro das águasna península desenhadavê-se a Troia lusitana,na praia de sal atlântico e correntes doces do Sadocom ruínas milenares.

3

Tem-se a visão do estuáriocom o verdume dos arrozáise o lento vôo das cegonhas,e aviações de pernaltasque passam sobre Comportavestida de branco e azul.

outubro 2014

Page 212: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

210 ◄◄

ondeação

Nas falésias de Ericeiraas gaivotas riscam as rotase conduzem as altas ondas,que hão de vir enfunadaspara a dança dos surfistas,com suas sereias atlânticasde seios ensolarados.Aí! que o azul ericeiradofaz a roupagem dos dias,neste verão formidável!

outubro 20141

Fernando da Rocha peres é poeta, historiador e professor emérito da Universidade Federal da Bahia. Foi diretor do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IpHAN), para a Bahia e Sergipe, diretor-presiden-te da Fundação Cultural do Estado da Bahia, e membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. É autor de vários livros, entre eles Me-mória da Sé e Horta de poesia (poemas portugueses). Desde 1988 ocupa a Cadeira número 25 da ALB.

Estes poemas fazem parte de um livro inédito intitulado Cartões postados.

Page 213: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 211

poEMAS E SoNEToS

GláuCiA lemos

Poema da hora esquiva

Quando a noite desata a solidão das esferastodo desejo antigo faz-se inútil.Toda a amargura que jaz sobre a terraevola como o fumo dos incensosenvenenando o ermo.Parece que de tudo cresce o cheirodo sono dos pagãos.os cantos das sereias silenciamo cio dos gatos assombra o escuroo som de tudo é como o som do medo.Dormem velas de barcos nos seus mastros.Já não há poesia nas vigíliasa noite arde sobre os cristais das ondas.Há uma estranha dor nas águas-vivasgemendo por seus mortos em extrema solidão.A morte paira como o escuro eternode todos os princípios.Só tu ainda velarás na insôniatuas infinitas perdas.

Page 214: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

212 ◄◄

Pequena canção de mulher

Eu tinha uma coisa para te dizermas a noite passou.Não sei se ainda sei o que dizerdepois que passaste com a noitee me deixaste só.Quando a noite voltarse tu vieres,terei uma coisa para te dizer.O que fazer...se eu sou como quase todas as mulheres...

neoclássico

Um fauno com o seu chapéu de floresnas mãos sua rede de caçar borboletas.Isso me lembra um quadro neoclássicoe me faz pensar.Graças a Deus não ter nascido lagartanunca ter rastejando em avesso de folhasnunca ter virado borboleta.Borboletas são tantas!Infestam os campos.Em Órion há também muitas estrelasmas estrelas não voam.Os faunos não vem cá.Só os anjos!

Page 215: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 213

soneto do silêncio

Foste o último a sair. pronto apagastea derradeira luz que estava acesa.Deixaste uma penumbra nesta mesa,pela janela, escuro o panorama.

Ao turvo deste espaço, invade a ramade fina e frágil flor de uma esperança.À aragem ela estremece e se embalança,tentando ainda dar vida à escuridão.

Triste a mudez é fiel à solidão.Lá fora nenhum som anima o espaço.Só aqui dentro ainda estás. Ainda ficaste nas sombras do teu vulto a cada passo,no eco de tua voz que ao vento passa,nas luzes que acendeste e que apagaste.

Page 216: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

214 ◄◄

soneto do porta-retrato

Cansei de procurar no vão do porta-retrato, no vazio, um rosto amado.Cansei de ter invernos semi-mortaem fronha lisa e nos lençóis dobrados.

Cansei de procurar ao lado esquerdodo peito, onde se guardam as ternuras, um rosto a respirar onde me quedo,a ser exato ao largo da moldura.

Não há rostos no espaço onde eu esvoaço.Os anjos sujam-se a adejar rasteirosno lodo, a que se esquivam meus delírios.

Não há mais vinho bom, serve-se o mosto...Meu lado esquerdo ri ao vácuo vidrodo meu porta-retrato sem um rosto.

Page 217: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 215

soneto das perdas As palavras que eu ontem não te disseas certezas que tu ontem não de deste.Perdões que não pediste, por tolice,talvez por timidez de que eu não desse,

fossem pedaços teus que me entregasses,palavras que esperava que dissesses.Não viste o meu rubor nas minhas facese eu me perdi na voz das minhas preces.

As certezas perderam-se nos ventos,pela vacilação de alguns momentosde te abrires num teu gesto de paz.

Palavras que calaste... Se as dissesses,fosse, decerto o que eu ouvir quisesse.Mas nos perdemos para nunca mais.1

Gláucia Lemos é bacharel em direito, crítica de arte, poeta, contista e ro-mancista. É autora de mais de trinta livros de literatura adulta e infanto-juvenil. Entre seus livros de literatura adulta, encontram-se os romances Um elfo em minha mão (romance), O riso da raposa (romance), e Trilha de au-sências (poesia). Recebeu diversos prêmios nacionais. É sócia do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da União Brasileira de Escritores de São Paulo. Desde 2010 ocupa a Cadeira número 14 da ALB.

Page 218: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 219: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 217

DoIS poEMAS

ruY esPinHeirA FilHo

Canção do seu olhar

Logo vi que o seu olharsó vinha a mim de além-mar.

Às vezes me percebia,ela, e até mesmo sorria,mas já no próximo instanteera uma nuvem distante...por muitas vezes, sonhei-aprincesa, fada, sereia(por muitas noites e diasde esplendor e agonia).

Mas era assim: seu olharsó vinha a mim de além-mar.

Depois, de além mais além,até já não ver ninguém.Nem o que de mim talveztivesse visto uma vez:

uma sombra esmaecidado outro lado da vida.

Page 220: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

218 ◄◄

onde morava um anjo

Acordo muito cedo sentindo-mecomo quando caminhava por uma rua onde moravaum anjo.

A chuva batia forte no teto de telha-vãmas o que me acordoufoi o sentimento de estar caminhando por uma rua onde moravaum anjo.

Sentimento que na verdade me acordoupara si mesmopois ainda agora depois de lavar o rosto e me vestir e descer a escadae sentar-me a esta escrivaninha de granito azul(encomendada pelo gosto elegantede meu paique nela trabalhou por muitos anos)ainda sou eleesse sentimentode quando caminhava por uma rua onde moravaum anjo.

Page 221: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 219

Acreditei poder ter evitado caminhar por uma rua habitada por existência demasiado forteterrívelcom poder de aniquilaçãocomo numa elegia de Rilke(que antes de ler já estava em mimdesde que pela primeira vez me surpreendi numa rua em que morava um anjo)mas na verdade não poderia evitar caminhar por uma rua depois de descobrir que ali moravaum anjoporque então já era tarde demais.

Sempre é tarde demais para tomaroutro caminho desde que descobrimos essa rua onde morava um anjopela qual caminhávamose continuaremos a caminharporque nela morava um anjo.

Page 222: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

220 ◄◄

Que ali ainda morae morará semprecomo por ela caminharásemprepara sempreaquele que uma vez caminhou por uma rua onde morava um anjo.1

Ruy Espinheira Filho é escritor, jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia, graduado em jornalismo, mestre em ciências sociais e doutor em letras pela UFBA, autor de dezenas de livros de poesia, ficção e ensaios, com diversos prêmios nacionais. É articulista quinzenal de A Tarde. A sua poesia reunida encontra-se no volume Estação infinita e outras estações (2012). Desde 2000 ocupa a Cadeira número 17 da ALB.

Page 223: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 221

CINCo poEMAS

FlorisvAldo mAttos

Ao rapaz que se parecia com Deus

Homo sum: nihilhumani a me alienum puto* Terêncio

Nas vastas pradarias em que me converti nativo,Em que, livre, desarmei cercas e ergui um povoado,Juntei nuvens, pássaros e animais de cargaE deles tirei um para percorrer o que era só campoE mata fora. Mirei o horizonte com desconfortoSensível. Pelas tardes juntei mais nuvens e mais pássaros E, com eles, formei o meu rebanho; me recompus.por detrás do céu percebi luz de treva enamorada E me contentei em saber e sentir que não estava só.Dali parti para o nada com as cores de meu sonho,Me adivinhei descoberto, porém jamais perdido. Logo,Sigo os passos da luz, sem inimigos conhecer,Porque todos me veem como um deus entre malvas,Tiriricas, sensitivas, cansanção e moitas de espinho,Cerne de dor que torna a vida um jogo entre paixões,E o corpo, um advento que ao destino nos transporta.Não sei o que a água oculta; se ninfas, se anjos rebelados;Me percebo, me educo com respirações de olvidosE não me revolto por ser súdito no reino do silêncio.Não me atrevo a sorrir, mas a chorar me recuso.Homem sendo e ouvindo dia e noite antiga voz,

Page 224: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

222 ◄◄

No íntimo, guardo: nada que é humano me é indiferente.

*Sou homem: nada do que é humano considero alheio a mim.(Terêncio, O punidor de si mesmo, comédia)

Instância de flor e vaso

(D´après Ortega y Gasset sobre a pintura)

Afortunadamente, a rosa ignoraA ciência botânica, tanto quantoEu, ainda jovem, saindo porta afora,Não saiba aonde me leva meu espanto.Pego um objeto; por exemplo, um vaso.Olho-o ali; miro-o e sei que me está perto.Se distante, o não sei capaz acasoDe me manter o mudo olhar desperto.Tenho-os como uma só coisa, igualmente:Se longe, vejo bem mais o fundo oco,Que foge sem que paire em minha menteO olhar que me estremece, quando toco.olhando, atento, vou seguindo a luz,Que deste ponto é a flor que me seduz.

(SSA-BA, 19/02/2014)

Page 225: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 223

Catorze janelas abertas

A natureza aponta-me o caminho.Ei-lo. Sereno e sem fadiga, sigo-o.As águas vêm e voltam. Quando o solResseca sapucaias ainda vivas, Poeira recobre dias que já somem,Vozes estendem búzios pela tarde,o vento ruge, o frio me estrangula.É noite. Contemplo o horizonte vasto:Vésper ateia a lenha dos sentidos.Perguntam-me se a luz ajuda. O fogo Logo se ergue (as achas já estão crestando).Daqui a pouco, haverá estrelas no céu,A paisagem descansa inteira. Então, Dormirei sossegado com os meus ontens.

(SSA/BA, 08/09/12)

Page 226: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

224 ◄◄

sim, estar é ser

Qual pessoa de tantos heterônimos, sofro, pelos desvãos da vida do euprofundo, a perda da feliz infância, a irremediável morte de meus anjos.pouco apressado, por iluminadastabernas e sombrios corredores,segui e ainda os persigo com o meu fardo.Incapaz de ser muitos, fui nenhum;apenas um único que recorda, pastoreando horas, infindáveis dias.Sou e não sou — de hoje, quase ninguém;de ontem, muitos. Dialogo com os meus prantos.Mas, se das nuvens um sorriso pende,Pela porta entram retornados anjos.

SSA, manhã de sexta-feira, 14/06/2013.

Page 227: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 225

Requiescat in lucem

O poema nunca diz o que devia.Sugere apenas, tanto quanto alude.Homem cansado, quando morto o dia,sacia a sede à beira de um açude.

Escrevi um poema e quanto mais o lia,mais nele vibrava um acento rude;bem mais fadado a palco de arrelia,que em mim persiste a rogar que o mude.

Lugar de se pensar no que dizer,o poema aguarda; pérola na concha,tudo nele pertence a quem vai ler.

Se retorna lanhado da porfia,logo implora que se lhe tire a roncha.poema tem a ver com a luz do dia.

SSA, 21, jul., 20141

Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. Foi professor no curso de jornalismo da UFBA. Participa de antologias de poesia nacionais e estrangeiras, em portugal, Espanha, França e Alemanha. publicou diversos livros, entre eles Fábula civil (1975), A caligrafia do soluço & poesia anterior (1996) e Poesia reunida e inéditos (2011). Desde 1995 ocupa a Cadeira número 31 da ALB.

Page 228: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 229: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 227

CINCo SoNEToS Do RIo

CYro de mAttos

Da nascente infância

I

Da nascente infância cachos de uva Deslizavam nas vagas. o perfume Nos remansos dizia do costume De o sol aquecer meu corpo. Entregava

Assim seus frutos dourados à vidaPrazerosa, de fluxos colorida. Era o que importava: o vivo sabor De folhas úmidas, o puro ardor

Do salto nas águas. Este fervor Que me impelia para desfrutaro mel descendo dos ramos da chuva.

De doçura lambuzado nadavaE nadava sem querer descansar. Do céu nas águas, ó rio do amor.

Page 230: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

228 ◄◄

II

Descubro pepitas nas goiabeirasCarregadas de goiabas maduras.Na ilha, no meio do rio, provoca A cena meus olhos. E minha boca

Molha com o que dia e noite sonhei. Nada melhor pra dizer dessa vez Da inocência do que a descoberta Que ressoa dentro o mel da colheita.

No aprendiz reverbera a linguagem Formada por pássaros, peixes, floresDas margens e das vagas. Blindagem

Do tempo que nesse sol venturoso Brilha, respira sem o perigoso Gesto do viver, que há de vir com dores.

Page 231: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 229

III

Conchas e estrelas formam meu tesouro No areal deixado depois da enchente. Há nele fios de ouro dentro da água, Prata que uma lua inchada derrama

Sob o segredo de nuvens e escamas.Tenho visões e sonhos e surpresasDesse tesouro, festivas lembranças, E invenções de vagas que me embalam

E me concebem fazendo da vidaExpressão da liberdade, do verdeA emoção que o verão chega a sorrir.

Esse tesouro ergue-se de miragens, De proezas do vento que no rio Nasce, jorra e de graça o mundo abraça.

Page 232: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

230 ◄◄

Do esgoto a céu aberto

Ficou claro que as lavadeiras, quandoBotavam as roupas para secar, Coloriam as inúmeras pedras Pretas, levando emoção a quem visse.

A cidade sabia que a argamassa Das casas era feita duma fibraEspecial: calo, suor e areia. O peixe fabricava o pão da vida.

o aguadeiro anunciava a água fresca Com uma voz cristalina. o visualDe tão lindo parecia sem fim.

Ficou claro que de tanto no ventreVirar lodo o espetáculo envergonha. Eis que escorre no esgoto a céu aberto.

Page 233: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 231

Do julgado do rio

Venho sendo omisso pra refazerVirginais caminhos de água, dizendoMelhor, matei o que era para ser Vivo no seu amanhecer líquido.

Eu me acuso por ser indiferente Ao benefício, sempre abundante,De água pura que jorrava na fonte.peixe e rede no orvalho competente.

E como réu confesso que merecePor tão grave ilícito ser punido,Chegando do que lhe foi natural,

Em noite morta, que nunca apetece, Lavro minha sentença, condenado A ver as mãos usadas para o mal.1

Cyro de Mattos é autor de 50 livros, entre volumes de contos, nove-las, romance, crônicas, poemas e infanto-juvenis. Tem livro de poesia publicado em portugal, Itália, França e Alemanha. Como poeta foi agraciado com o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes, Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, segundo lugar, duas vezes, e Prêmio Nacional Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio). É membro correspondente da ALB.

Page 234: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 235: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 233

TUDE CELESTINoPOETA DE IPITANGA, DO AMOR

E DA BoEMIA

tinA tude

Nascido na região de Campo Formoso, em 25 de junho de 1921, o poeta Tude Celestino de Souza foi criado em

Ilhéus, o que lhe conferiu grande parte da inspiração para a fase inicial de sua obra literária, permeada de referências ru-rais, influências do cordel, repente e cantadores do interior da Bahia. Poeta de formação autodidata, tendo cumprido os es-tudos formais apenas até o 4° ano primário, é autor da trilogia O ás de ouro, o poema mais emblemático de sua obra, uma saga fictícia em três fases, com linguagem matuta, tipicamente ser-taneja e eivada de traços trágicos, que narra a trajetória de um sujeito acometido pelo sentimento de vingança e que também dá nome a seu único livro.

Tude Celestino marcou sua poesia com temáticas relativas à boemia, ao amor e, sobretudo, à referência nordestina, pelo que é mais lembrado; sua obra, no entanto, contempla ainda um traço marcante de versatilidade, incluindo os, ainda inéditos, poemas fesceninos. Apesar da influência primeira, pautada na temática nordestina, a cegueira, que o acometera por influência do diabetes, constituiu uma relevante influência para o caráter que seus versos assumiram posteriormente, conferindo-lhe de-terminada pujança e capacidade de abstração e contemplação não visual da relação tempo-espaço. Foi, contudo, durante os anos de 1940, na então Santo Amaro do Ipitanga, onde se teria

Page 236: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

234 ◄◄

estabelecido por ocasião da implantação da Base Aérea do Sal-vador e do Aeroporto Internacional Dois de Julho, vindo atuar como agente aeroportuário, que assumiu plenamente sua irre-futável vocação de poeta, firmando-se como referência cultural do município que o acolheu como ilustre cidadão.

Declarado pelo poeta e jornalista Jehová de Carvalho como um “ente sagrado de impossível repetição”, dada a ex-uberância, inestimável valor literário e elaboração de sua obra, Tude se manteve sempre em evidência na região, tendo seu nome vinculado a grande parte da agitação cultural e social vi-gente até o final dos anos 80, quando, por complicações do di-abetes, interrompeu sua produção literária — mas não sua re-speitabilidade junto ao povo desse lugar, sobretudo, por conta dos memoráveis saraus que abrigou no espaço cultural Ás de Ouro, referência da boemia local àquela época, quando, através d’A Noite Poeta — evento oficial promovido com incentivo e participação da prefeitura municipal, contando sempre com presenças de nomes importantes das letras na Bahia —, o po-eta gozou do prestígio de nomear o prêmio Tude Celestino de Souza de Poesia, que, em edições anuais, destacou e incentivou a produção literária local, conferindo visibilidade ao município como referência cultural no estado.

Recentemente, em iniciativa conjunta de diversos segmen-tos da comunidade de Lauro de Freitas, a partir da sugestão do historiador Gildásio Freitas em tributo aos 20 anos de morte do poeta, propõe-se a atribuição de seu nome ao Centro de Cultura local, antiga sede dos festivais em sua homenagem, tornando-o Centro de Cultura Tude Celestino — CCTC.

Tude Celestino, entre outras peculiaridades, marcou em sua obra uma veemente ação pela preservação do nome e memória de Ipitanga (que remete à origem indígena e sig-nifica água vermelha) — denominação original da localidade hoje conhecida pelo nome de Lauro de Freitas, que lhe foi atribuído por ocasião da emancipação política ocorrida em

Page 237: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 235

1962. Manifestando sua ressalva pela atribuição de tal nome ao município, o poeta alegava antever nisso um processo sutil de alienação da memória local. Para ele, a emancipação políti-ca, um processo legítimo e natural na trajetória de evolução de uma localidade, não pressupunha necessariamente o desmere-cimento da memória e das referências locais referendadas no nome de Santo Amaro de Ipitanga (denominação jesuíta esta-belecida com a fundação da freguesia em 1608). A despeito da cegueira, tal sensibilidade e percepção apurada do mundo e da sociedade, nem sempre expressas em seus versos, marcaram seu pensamento em sua comunidade e em seu tempo, confer-indo-lhe a notoriedade e o respeito de que goza ainda hoje.

Tude Celestino, o poeta de Ipitanga, faleceu em 21 de ju-lho de 1989, deixando viúva e quatro filhos, e está sepultado no cemitério da igreja da matriz.1

Tina Tude (Justina Souza) é atriz graduada em artes cênicas pela Uni-versidade Federal da Bahia, pós graduanda em educação ambiental pelo Instituto Prominas — MG, membro da ALALF (Academia de Letras e Artes de Lauro de Freitas), ativista cultural e idealizadora do movimento ATiTude CelesTina, militante da reflexão de ancestralida-de, memória ipitanguense e consolidação de identidade no território do município de Lauro de Freitas — Bahia, Brasil.

Page 238: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

236 ◄◄

poEMAS DE TUDE CELESTINo

Boêmio Boêmio, eu sei, teu mal não tem remédio,Teu riso louco, tua louca alegria,São guizos que prendeste com ironiaNo nebuloso manto do teu tédio.

No peito magro que já foi tão nédioCravaste o punhal da hipocondriaE para disfarçar tua agoniaManténs o bar num incessante assédio.

E assim, ébrio, disperso, desregrado,No riso a esconder pesar profundo,Destróis em ti o que há de mais sagrado.

Tuas ânsias de revolta mal contendo,Vês entre as taças de licor imundoTeus sonhos todos, um por um, morrendo.

Page 239: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 237

Boêmio ii

Boêmio, eu não sei porque tão desregradoTrocas assim teu lar pelo antro da tabernaE a saúde destróis e tua alma tão ternaArrastas pela rua como um desvairado.

Num poema genial, no bar improvisado,Retratas no asfalto o homem da caverna,E os copos se sucedem e lá por fora inverna,E num verso profano o vinho é sublimado

E a noite avança, e enquanto o lar te espera em calma,Na madrugada fria, com a mente em brasa,Desvendas insensato os teus segredos d’alma E já manhã agora, a dúvida o situa,Entre o dever imperioso de ir pra casaE uma vontade louca de ficar na rua.

Page 240: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

238 ◄◄

Dentro da noite

Varando a noite eu vi pelos cassinosA esbórnia destruindo patrimôniosVi anjos transformando-se em demôniosE mestres cometendo desatinos.

Vi nas vielas torcerem destinos,Vi virgens que pediram a Santo AntônioUm lar e o sacrossanto matrimônioSerem pastos de vis e libertinos.

Vi a inocência ao léu sob as marquisesMorrendo ante um escol inconsequenteE a pureza do olhar das meretrizes.

Vi ante mil estrelas assombradasBoêmios sob um céu indiferente,Sereno estuprando as madrugadas.

Page 241: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 239

Lago de narciso(A Clóvis Moraes — Barra Grande)

Não basta ser feliz, ainda preciso,Além dessa ventura, ter camisa;E que não haja amor, marco ou divisaA cercear meu lago de narciso.

Que sensualmente fêmea e sem juízo,Leve-me pouco a pouco, hábil, precisaAo teu inferno e depois, com a brisa,Transfere-me ao céu com teu sorriso.

Que tuas mãos me façam mil caríciasE ofuscado ante teus contornosEu goze desse amor todas delícias.

E farto enfim, mas face a um novo ardorQue tu ainda com teus beijos mornos,

Leve-me, louco, a morrer de amor.

Page 242: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

240 ◄◄

eu, palhaço

Com o coração dopado, eis-me aqui em cenaNo palco da ilusão pintado de alvaiade;Trazendo uma esperança unida a uma saudade,Enfrento a plebe-rude, essa feroz hiena.

Nas contrações da face escondendo a vil gangrenaDo meu terrível tédio e, em mágica habilidade,Promovo galhofeiro e levo a chã vaidadeÀ infrene turbamulta que ruge na arena.

E em meio a essa gente e luzes divinais,Escamoteio a dor de minhas emoçõesQuando o aplauso ou a vaia estruge nas gerais.

Burlesco alvo à mercê desses contrastes todos,Eu choro temeroso em meio às ovaçõesE rio como forte, enfrentando os apodos.

Page 243: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 241

otimismo ii Senhor, foge-me a luz, estou cegando,Não olho mais as flores do caminho,Mas esqueci se encontrei espinhos,Pelas estradas que trilhei cantando.

Não sei quando há luar, nem mesmo quandoEstão no céu em festa os passarinhos,Não sei quando há no azul flocos de arminhos,Mas ouço os coqueiros farfalhando.

Não mais do lusco-fusco as nuanças,Nem d’alva o rosicler, já não esperopara encetar a esmo minhas andanças.

De peregrino sem farnel, desnudoMas não me queixo...oh! Pois quando queroFecho os olhos e revejo tudo!

Page 244: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

242 ◄◄

imponderável Começou! Não, nem sei se começou.Foi um vislumbre, apenas um olhar,Um prenúncio de sol, tênue luar,Uma pluma que a brisa esvoaçou.

Um sonho belo que não se sonhouUm lírio inexistente num altarUma canção que não se ouviu cantar,Um instante sublime que passou.

Foi música que ouvi quase em surdinaMiragem? Sim! Mas guardo na retinaComo um esbater de asas de cetim.

Volátil aroma de etérea florFoi amor... mas que estranho amor,“Sem nunca ter princípio, teve fim”.

Page 245: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 243

galope vagabundo

“Visto meu casaco azul de malhaE saio de cavalo de pó e nuvemPelo espaçoÀ procura da face erranteDe Deus.”(Adelmo oliveira)

Sonhos de nauta afogando,Ele trocou caravelasNíveas naus de pândegas velaspor cavalos e, sonhando,Varou mundos cavalgandoViu de Roma os coliseusVarreu mares com os hebreusE assim, por pagos errantes,Vagou ávido e inconstanteQual vagabundo de Deus.1

As referências bio-bibliográficas sobre o poeta Tude Celestino já se en-contram no texto assinado por Tina Tude, que antecede estes poemas.

Page 246: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 247: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

FiCÇÃo

Page 248: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 249: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 247

A ÚLTIMA PORTA

Hélio PólvorA

Até aquele instante ele não sabia o que era perder-se, mes-mo contra a vontade. Saberia depois, transcorridos anos de

sua vida madura. De modo que, desatento aos sinais exteriores de sua desorientação, deixou de preparar-se, ou melhor, de sen-tir mudanças, a princípio quase imperceptíveis, no lugar a que chegara por engano — um trecho da plantação sombreado por árvores copadas que formavam teto.

No momento exato de perceber mudanças no cenário, quando elas se enfiam pelos olhos e avivam o entendimento, ele sentiu o choque: um fluxo de sangue que subia às têmporas, a fraqueza nas pernas e no ventre, um peso zumbidor nos ouvi-dos. Foi então que perguntou: ”Onde estou?” E a seguir, em voz assustada de menino trêmulo: “Qual o caminho certo?”

Várias vezes, no curso da vida, faria esta indagação, que sempre quedava sem resposta. Aprendeu com os dias e os anos que a resposta teria mesmo de demorar, e talvez sequer existisse. Aprendeu a não dar importância maior a determinadas inquiri-ções que antes lhe pareciam fundamentais, àquele silêncio pres-sago que prolonga o eco das interrogações eo estupor. Fazia um gesto de desdém, embora ciente de que punha em jogo o seu destino, e se deixava simplesmente e apenasmente viver.

Mas nada supera a inesperada, a dolorosa certeza de que se está perdido, como se desembarcado em terra estrangeira, na aridez de uma praia pedregosa. O menino, porque então não passava de menino de uns sete, oito anos, que se aventurara so-zinho fora de casa, longe de casa, varreu com o antebraço nu o

Page 250: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

248 ◄◄

suor da testa, um suor grosso, enriquecido pela agonia, e procu-rou clarear os olhos. Decerto tinha olhos agudos, o olhar da in-fância que se descobre no mundo e logo explora, curiosa e com temor, os arredores, o que significam os gestos, movimentos e palavras — ou rugidos e silêncios alheios.

Seus olhos correm agora de uma árvore para outra, con-tornam moitas, rastejam e se elevam, das raízes às copas, se ar-rastam pelo chão acamado de folhas ora úmidas, ora secas. Tudo quieto, tudo parado ou em suspensão, começo e fim de mundo, a encobrir enganos. Sabia que aquela interrupção, salvo o vento brando e o frouxo farfalhar de folhas tende a desabar — e é en-tão que acontece. O quê, exatamente?

Tinha medo. Até as águas, em fontes e poças temporárias, pareciam sólidas em seus embaçados espelhos manchados aqui e ali por insetos mortos. Caso se aproximasse e dobrasse o corpo, haveria de ver, nas espelhantes superfícies, o vulto de um meni-no atarantado. Mas não quis olhar-se, não quis se ver para não engrossaro desespero.

A pulsação no peito era forte, ressoava a modo de tambor, e se ele assim se visse, de fora de si mesmo, perdido e desampa-rado nos bosques, seria aquele João largado pelo pai no recesso da mata, sem esperanças de retorno.

Naquele instante aprendeu, sem saber ao certo para quê, a necessidade urgente de afastar ramos como quem repuxa re-posteiros, e passar, depois de dobrá-los para que servissem de pistas; rasgar troncos com a ponta do canivete, deslocar pedras, espetar paus à guisa de marcos. Porque queria voltar. Ali, sozi-nho no ermo, estava exposto, enquanto a casa, com todos e com tudo o que nela havia, carícias e crueldades, sumida estava.

Mais adiante, no percurso breve de sua vida, teria dúvidas quanto a isso: voltar. Desde cedo se habituara a andar só, sem o amparo de mãos anônimas, e sabia que, uma vez de pé,viria o impulso de dar um passo à frente, ainda que trôpego — e avan-çar. A vida se desdobrava em caminhos, ardilosa e interrogativa.

Page 251: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 249

Uns se fecham assim que percorridos, outros se abrem logo, no afã de iludir, e raras vezes premiar. E aquele menino, sem que os pais percebessem, se afastara de casa, dos arredores da casa, para logo antecipar o medo do desconhecido e, quem sabe, livrar-se do medo ou nele se enredar.

Um pensamento repentino soprou-lhe a reprimenda: não convém avançar além do limite do braço estendido.

Entendia agora a finalidade das histórias de terror que lhe contavam, a pretexto de fazê-lo dormir cedo — mas, em ver-dade prolongando a lucidez com o acúmulo de receios e inda-gações. Os entes encantados dos bosques, campos e matas. Os monstros, as bruxas. Os seres perversos que desgarram meni-nos travessos, no intuito de devorá-los. os matagais ocultavam duendes. O que fazer, como agir se, de súbito, num repente, agora mesmo, nesse exato instante, ele ali, perdido no ermo, um deles o atalhasse, maligno ou apenas zombeteiro?

Apalpou a roupa, embora na prévia certeza de não ter na-cos de fumo de rolo com que acalmar, por exemplo, a caapora — aquele trêfego demônio das solidões empenhado em deso-rientar pessoas e, à falta da prenda do fumo, deixá-las para todo o sempre perdidas, errantes pelo resto da vida.

Olhou ao redor, rodou sobre si mesmo, como à procu-ra do eixo. O bosque mantinha sua pesada capa de silêncio, de cumplicidade oficial semelhante à do carrasco. Árvores se su-cediam, aparentemente iguais e com os mesmos frutos, como que dispostas em fileiras disciplinadas — um exército verde, de muitos galhos e ramagens que às vezes se entrelaçavam, em cima filtravam raios de sol, transformando-os em réstias douradas de poeira reunida. De vez em quando as árvores estremeciam, se uma lufada de vento brando soprava por entre troncos — e em vez de estender-lhe ramos, quais braços dispostos a tirá-lo do abismo, retrocediam, alheias, indiferentes.

“Onde estou?”, ele se indagava. “Como e por que cheguei aqui? O que quero?” Nunca estivera ali, naquele lugar em que

Page 252: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

250 ◄◄

nenhum toco crestado, nenhuma jaqueira ou laranjeira com o chão em volta coalhado de frutos podres, que atraíam enxames de insetos, nenhuma trilha, por mais débil, se anunciava. o pior de tudo era não ter certezas. Como se ele não se tivesse movido com seus próprios pés; como se algo, um encantamento, um bruxedo o tivesse arrastado e desarvorado.

Os caminhos lhe pareciam até então convidativos. Enga-no, engodo. Convinha-lhe doravante não se deixar enganar. An-dar, sim, e para a frente, mas de olhos no chão, nos lados, sem esquecer a retaguarda. Mas toda essa precaução não lhe tiraria a espontaneidade, porventura o susto, o sabor doce ou ácido das descobertas? Estar sempre de prontidão, de armas engatilhadas, decerto seria um desconforto a mais ao ingressar na vida adulta.

A pulsação aumentava, o sangue ora lhe tingia a face ora refluía, deixando-a vazia, exangue. Um bolo subiu à garganta, à boca, em forma de soluço. As pernas vergaram, ele mais que tombou ao sentar-se numa pedra hostil, com arestas. Veio então a dor da carne agredida — a prolongada dor dos martírios físi-cos, das torturas. Ergueu-se e arriscou uns passos, já não perce-bia direito em que direção. Mais tarde, muitos anos depois, talvez decabelo encanecido, ele pensasse: “Que importam os rumos?”

Perdido. Só então entendeu que aquela história de meni-nos proscritos na mata e nos becos infectos das grandes cida-des forçava a reclusão na cama, pedia a chegada veloz do sono, como anteparo, e durante o dia mantinha os peraltas à vista da casa. Confiados nela, no freio do medo, as pessoas mais velhas se entregavam às suas tarefas habituais, certas de que os meninos pisariam sempre dentro do circulo familiar.

Mais à dianteira de sua vida, na fase em que começava a se sentir maduro e tinha o secreto temor de apodrecer antes de ser colhido, ele haveria de pensar: “O que de fato é ce-gueira?” E, depois de curta reflexão, nova pergunta: “Quem é mais cego? A velha Joana que andava quilômetros no meio dos bosques, em busca de esmolas de alimentos — feijão, arroz,

Page 253: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 251

carnes, farináceos, ovos frescos de galinha— ou eu, menino que fui e de apurada visão?”

Tinha dúvidas, sempre as dúvidas próprias de quem apren-dera e se habituara a pensar. E, por isso, quisera descobrir: cor-rer cortinas, abrir janelas, devassar reposteiros, projetar imagens claras em tela escura, empurrar portas e sacudir aldravas. Dúvi-das se acumulavam, eram prenúncios certos de falências que não conseguia evitar. Algumas vezes, poucas, de inesperadas alegrias.

Tropeçou, porque tinha a vista borrada e, ademais, avan-çava com o ímpeto do desespero. perdido, completamente per-dido, sem cão-guia e com apenas um canivete fraco — e, pior de tudo, criança, a criança que então era. Lembrou-se com uma nitidez de relâmpago (os anos avançavam, ferozes, e a imagem se iluminava mais) de haver caído e rolado e ralado a pele. Estava numa ladeira íngreme a que chamavam tombador. Um tomba-dor no exato coração do ermo, expectativa de tombos e ossos fraturados, mas, por enquanto, nenhuma penitência, salvo a soli-dão. A solidão das solidões, aquela que mais grita e que mais dói.

Ao se recobrar, depois de alongar as pernas e apalpar-se aos poucos, como quem quer adquirir confiança no resgate, ele sentiu que baixava a calma, a bonança, a sensação de alívio após a tempestade, qualquer tempestade, atmosférica ou cerebral. Que mais desejaria de melhor? Estava inteiro, continuava vivo. Uma lassidão o percorria, o peito arfava como os peixes tirados da água ou o papo de camaleões expectantes. Agarrou-se a uma árvore, e, dessa vez, o vento agitou as árvores; uma destas, do-brada, abraçou-o pelos ombros, aspergiu um perfume ora doce ora ácido.

Enlaçados estiveram algum tempo, enquanto durou o ven-to. Envergonhado, porque sentia que havia crescido, pelo menos de entendimento, ele soltou-se da árvore, devagar. Livre, outra vez só, e mais seguro, olhou o bosque.

o suor borrava os olhos. Limpou-os com as costas das mãos. E a partir de então, por indícios que se juntavam e se

Page 254: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

252 ◄◄

completavam, como num jogo de armar, iniciou-se o processo inexplicável, quase milagroso do reconhecimento, da identifi-cação. Uma voz disse-lhe, do fundo das entranhas, que ele já estivera ali, com o pai, um dia, algum dia.

E é então que ele sai da sombra para a luz, do ermo para o sítio povoado. Já não estava sozinho, à mercê de animais de presa e de duendes. Emergiu de um recanto da paisagem sempre igual e monótona na sua aparente diversidade — e tudo se fez bom e aconchegante. Era como se houvesse escapado pela boca desarrolhada de uma garrafa. Era a muda imagem estarrecida no celuloide que, de súbito, se movimenta na tela. Algo o fizera germinar ou reverdecer. Do brutal medo primitivo ele passara ao medo normal do mundo compartilhado.

Firmou os olhos. Firmou os pés, pisou enfim no caminho já trilhado, já conhecido, e este levava à sua casa, às brasas no fogão de lenha. Era o filho pródigo de si mesmo.

Foi a mãe que primeiro o viu parar, indeciso, constrangi-do, à porta. Escurecia, a tarde penumbrosa recortava o menino, como se esboçado em traços toscos numa cartolina encardida. A mãe correu para ele, com uma exclamação surda em que invo-cava um santo de sua devoção.

“Onde estava?”“Não sei direito”, ele disse.“Seu pai já deu três batidas circulares. Não ouviu os ber-

ros? Estava surdo? Pois eu ouvi daqui!”“Mãe...”“O que foi? Cobra? Marimbondo? Está ferido?”“Eu me perdi.”“Correu e se ralou todo, não foi?”O pai entrou pelos fundos. Ao vê-lo, troca a preocupação

pela ira.“Ah, o moleque voltou! Quem trouxe?”“Ninguém. Veio sozinho.”“E por onde andava?”

Page 255: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 253

“Nos matos. Perdido.”O pai avança. Segura-o pela gola, com a mão esquerda

levanta-o. A outra mão sobe espalmada, para tapas na cara.A mãe intromete o corpo entre ambos.“Não”.“Arreda! O moleque fez estripulia, precisa de exemplo”.“Ele já foi punido. Veja a lama, os lanhos. Está mais pálido

que defunto.”O pai baixa a mão, larga-o com um safanão que o derruba.“Filho mimado, arrependimento dobrado”.A mãe leva-o para o banho de bica, nos fundos. Pendura

a toalha, dá-lhe o sabão. Mas ele, mudo, de olhos baixos, não faz gesto de quem vai se desnudar.

“Antes tomava banho comigo”, ela diz. “Eu o esfregava.”Ele não responde.“Agora adquiriu pudores. Quem ensinou a ter vergonha?

A caapora?”, pergunta com um sorriso de mofa. “Ou teria sido a cunhã — a iara dos regatos?”

Ele continua mudo e parado.“Então, tome banho direito. Vou fazer a janta. Como quer

o seu ovo? Frito?”“Aberto n´água.”“Está certo. Aproveito o caldo temperado, faço pirão.”O menino lava os vergões. Livres da sujeira, eles se desta-

cam na pele clara, vermelhos, iguais a riscos de arame, a cortes superficiais de lâmina cega. “Não vou gemer”, promete. “Não vou querer bálsamo.” Ossos doem nas articulações, pernas pare-cem perras, costelas asfixiam. “Não vou gritar”, prometeu antes dos furos de agulha da água fria.

Sufocou gritos quando a mãe, depois da janta, fez curati-vos com uma pasta que ardia. Tremeu, no entanto, e chegou a retrair o corpo. “Dói?”, perguntou a mãe. “Não.” “Tem certe-za? Comigo, para que fingir?” “Tenho.” “Está bem”, ela con-clui com um suspiro. O bálsamo — porque era ele mesmo, o

Page 256: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

254 ◄◄

remédio leniente, que logo trocava a ardência por um refrigério de hortelã. Já então o sono insistia em se fechar sobre as pálpe-bras, do mesmo modo que a noite se fechara sobre casas, sobre árvores, bichos, campinas e charcos do vasto mundo. passam pelo corredor escuro para o quarto em que ela o deixa.

o menino dormia só.A vida, ele pensaria mais tarde, e mais de uma vez, se as-

semelha a um corredor, claro ou escuro, acolhedor ou refratário, que temos de percorrer. Dele saem portas, umas se abrem a um simples roçar de dedos, outras resistem a ombros e pontapés. Às vezes, se abertas revelam o nada — alçapões sem fundo e tre-vas. A David Balfour, personagem de uma história com quem se identificava, a porta logo mostrou uma escada que o tio avarento e usurpador mandou-o subir em noite de trovoada e relâmpago. Faltavam degraus, a noite era positivamente de breu quebrado ocasionalmente pelo clarão do raio.

De chambre — uma camisola de algodão que lhe chega à metade das coxas — o menino volta, agora sozinho, ao cor-redor. É arrastado pela ânsia de saber, da mesma forma que, na tarde daquele mesmo dia, se havia perdido nos bosques dos arredores. Leva um toco de vela acesa grudado pelo próprio es-permacete no centro de um pires desbeiçado. A chama vacila, inclina-se, ameaça extinguir-se, deixando atrás de sua efêmera efetividade um rastro de cera derretida.

o menino está deitado, o menino dorme, e, no entanto, entra no corredor que costuma atravessar correndo à noite. É sonâmbulo? Acaso sonha? A luz da vela projeta sua imagem trê-mula nas paredes, no chão – imagem alongada, de adulto, agora ele está de barba cerrada. Cresceu de repente, e isso o assusta, porque talvez não desejasse crescer. O corredor tem portas fe-chadas. Força a primeira. A chama da vela é açoitada para mais adiante, até à borda do poço, pela escuridão. Empurra a segunda porta — e encontra o vazio. A terceira mostra degraus que des-cem talvez a um porão.

Page 257: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 255

Resta uma.A casa está silenciosa. Apenas a pêndula bate, no salão,

a seca pancada da guilhotina no cepo. Do pai e da mãe sequer ouve o ressonar. Um desses quartos é o deles. Seria então aquele — o da última porta, que se abre aos poucos, sem ranger. Um sopro de vento entra por uma frincha na parede e apaga a vela.

Salvador, 12 de maio de 20131

Hélio pólvora, nascido em Itabuna, Bahia, é um dos principais contis-tas da literatura brasileira. Várias vezes premiado nesse gênero, duas vezes pelo prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, em 1982, com O grito da perdiz,, e em 1986, com Mar de Azov, a ponto de ser im-pedido de concorrer uma terceira vez, pode ser visto, por suas técnicas narrativas e recursos de linguagem, como um dos inovadores do gê-nero, no Brasil. O conto aqui publicado é inédito. Ver artigo “O Con-to de Hélio Pólvora — Uma visão de conjunto a partir do primeiro livro”, nesta revista. Desde 1994 ocupa a Cadeira número 29 de ALB.

Page 258: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 259: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 257

ALÔ, SOLIDÃO!

GláuCiA lemos

No edifício em frente havia um senhor que cuidava dos passarinhos. Suponho que era aposentado. Tinha cabelos

brancos e compleição franzina. Caminhava devagar, mas seus gestos eram precisos e cuidadosos. A julgar pelo que eu obser-vava, ele criava os passarinhos.

Todas as manhãs, enquanto eu estava regando a jardineira da minha varanda, via-o no seu quinto andar, à altura do meu, alimentando-os. Observei que os passarinhos viviam soltos, não havia gaiolas nem telas limitando a liberdade dos bichinhos. o homem espalhava a ração sobre o parapeito da varanda, e uma infinidade de aves pequeninas vinha não sei de onde e pousava diante dele, inquietamente bicando os grãos de alpiste. Eram ro-linhas e outras de tão pequeninas quanto elas. Todas as manhãs.

Havia alguma coisa poética naquela cena, que se completa-va com a presença de piotas pendentes do teto, em volta das quais, agitando vertiginosamente as asas, esvoaçavam beija-flores.

Nunca vi outras pessoas habitando aquele apartamento. Sequer transitando pela varanda. Ele movimentava-se rodeado de pássaros, enquanto eu regava minhas plantas no meu espaço.

Contemplava-o por longos minutos, gozando o direito da invasão sem culpa, e me recolhia a meus afazeres que eram mui-tos, na minha responsabilidade de mãe de três filhos em idade escolar, dona de casa sem empregada, mulher casada com piloto em intermináveis vôos pelos céus do mundo, e tão poucas vezes voando em direção a casa. Aquele velhinho, ao longe, começou a fazer parte da minha vida. Poderia ser meu pai. Se um dia não o

Page 260: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

258 ◄◄

encontrava alimentando os pássaros, ficava preocupada. Estaria doente? Teria mudado de endereço? Quem alimentaria os pas-sarinhos na sua ausência? Naqueles dias, a cada intervalo entre o tempero do arroz e o alarme do forno, corria à varanda a ver se estaria de volta. Até que, mais tarde, ou no dia seguinte, ele lá aparecesse, para minha tranquilidade.

Nisso passaram-se meses sem conta, talvez um ano ou mais não posso precisar, vivendo a mesma rotina.

Uma tarde, concluída a jornada diária, enquanto descan-sava a esperar a hora para apanhar as crianças no judô, eu co-chilava em cima das páginas de Hemingway, que estava sendo a minha companhia do momento, na absoluta falta de alguém com quem conversar. Com Hemingway eu andava frequentan-do, bares e estações ferroviárias e praças de touros, sem o me-nor preconceito, entre bêbedos, marinheiros e prostitutas, de Madri a paris em noites e mais noites inteiramente etílicas. E considerando muitas vezes, como seria que Hemingway conse-guia compor todas aquelas histórias de pé, com a máquina em cima de um armário...

Então soou a campainha da porta. Que visita estaria che-gando sem prévio aviso... Seria o zelador para medir o gás.

Com má vontade espiei pelo olho mágico da porta de ser-viço. Não era o zelador, nem reconheci a pessoa. O hall não estava bastante iluminado. Deixei a área de serviço, encaminhan-do-me à porta da sala, censurando, em silêncio a portaria, por não ter avisado sobre a chegada de alguém.

Torci o trinco. Um senhor de cabelos inteiramente bran-cos, brancos como talco, estava de pé, olhando para o meu rosto, com olhos miúdos e brilhantes, olhos de uma cor quase doura-da, e um sorriso que não se completava. Desenhava-se quase im-perceptível na boca pequenina. Seu sorriso quase pedia licença para sorrir.

— Boa tarde — cumprimentei, e sorri também.Tenho medo de desconhecidos, mas vendo-o tão frágil,

Page 261: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 259

pequeno, parecendo indefeso, não senti receio, o sentimento era de quase proteção.

— Quem o senhor procura?Ele desvelou o sorriso retido, com dentes pequenos e

brancos, dentes infantis.— A senhora mesma. Sou seu vizinho, do edifício em

frente.Então o reconheci. Meu Deus, é o velhinho dos pássaros.— Pois não? Sei. Pode entrar, faça favor.Ele entrou, seus passos eram suaves. Sentou-se no sofá

em frente a mim, discreto, parecendo tímido.— Esteja à vontade — animei-o.Então começou:— É porquê... Vejo sempre a senhora regando as plantas

pela manhã. Fico observando o empenho com que cuida delas. São tão bonitas. Fiquei curioso.

— É verdade. Eu gosto de plantas, cultivo flores.— Eu também gosto. Mas não tenho jardineira. Cultivaria

crisântemos. Se pudesse.— Pode vir vê-las. É só um canteiro. Gostaria de ter maior

espaço.Levei-o até a varanda.— Aqui são begônias. Begônias vermelhas. Quando

abrem as corolas demoram muito para secar, às vezes aturam abertas até dois meses, a depender do cuidado.

— Demoram tanto assim? Por isso que estão sempre flo-ridas. Parecem rosas, lá da minha varanda pensei que eram rosas.

— É verdade. Parecem um buquê de rosas pequenas. Mas para mantê-las assim é preciso cuidado, nunca molhar os caules. São frágeis. Já os hibiscos só duram vinte e quatro horas. Mur-cham em um dia. Não me animo a cultivá-los.

— As plantas são como as pessoas, cada uma com seus caprichos.

— ou seus problemas — completei.

Page 262: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

260 ◄◄

Ele concordou confirmando com a cabeça.Voltamos para a sala, ele se sentou no mesmo lugar. Nun-

ca notara que ele me observava, era eu quem o contemplava com seus passarinhos. procurei ser gentil.

— posso servir um café, aceita?— Aceito. Mas não quero incomodar, é só uma visita.— A visita me alegra. É uma novidade para mim.Fui para a cozinha. Rapidamente retornei com a xícara

fumegando café solúvel. Ele tomou lentamente enquanto falava. A voz era mansa como um chuvisco.

— A senhora gosta de passarinhos?— Muito. Sempre fico olhando o senhor cuidando dos

seus. São muitos, não é?— Muitos. Mas não são meus. Sou o copeiro deles — ele

riu divertido — não sei de onde vêm. Espalho alpiste e eles apa-recem.

— E os beija-flores?— Os beija-flores são uma estratégia. Ponho mel na água

dos caqueiros e eles vem beber. Não sei como é que ao longe pressentem a presença do mel.

— Mel?— Sim, mel de abelhas. Compro especialmente para eles.

Eu não como mel, é açúcar, mas eles não têm restrições, acho que é porque ainda não têm a minha idade...

Ria enquanto falava. Rimos juntos.Então levantou-se e me entregou a xícara com um resto

de café.— Obrigado. Vou embora. Venha lá em casa amanhã para

ver os passarinhos se alimentando.— Está bem. obrigada pela visita. Vou ver os passarinhos

amanhã quando deixar as crianças na escola.Abri a porta, ele saiu como chegara, suavemente. Voltei

para dentro com um resto de sorriso. Eu iria ver os passarinhos, iria sim.

Page 263: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 261

Fui.Entrei para uma sala quase vazia de móveis. Uma arca co-

lonial junto à parede. Acima, em contraste, imensa tela bastante colorida com pintura de motivo abstrato. Havia uma cadeira de balanço austríaca, ao lado de um revisteiro abarrotado, em fren-te à TV de 33 polegadas. Persianas na porta larga envidraçada deixavam penetrar uma claridade frouxa, que não chegava a se espalhar pelo espaço da sala.

O velhinho sorriu ao me ver, e me conduziu à varanda. Rolinhas e outras aves miúdas bicavam o farto alpiste espalha-do no mármore do peitoril, indiferentes à minha presença e ao ininterrupto rumor dos carros que transitavam lá embaixo. Permanecemos ali, em silêncio, para não afugentá-las. Ele ti-nha um olhar carinhoso para as aves, quase paternal. Alguns minutos e voltamos à sala onde tratei de me despedir, sem que ele concordasse.

— Não se apresse. Tenho que lhe servir alguma coisa. A senhora toma chá?

— Não se preocupe, eu tenho que ir.Ele, porém, já se dirigia à cozinha falando enquanto ca-

minhava.— Nunca recebo visitas, por isso não preciso de cadei-

ras. Só utilizo o sofá. A faxineira quando vem também não precisa de cadeiras. Sente-se aqui mesmo na cozinha. Moro sozinho, sabe? Minha mulher morreu há muitos anos, meu fi-lho pouco me visita, não tem tempo, o trabalho, a família. Só me telefona. Isso quando sobra tempo. – Fez um sorrisinho condescendente.

Havia uma bancada de cozinha americana. Sentei-me em um banco alto, enquanto ele preparava um chá que tinha o chei-ro bom de canela, e serviu duas xícaras de friso doirado. Uma colocou em minha frente e começou a tomar da outra. Em si-lêncio, os dois. Eu não sabia o que falar. No ar pairava uma cumplicidade. Ele sempre sorria, um sorriso brando, parecendo

Page 264: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

262 ◄◄

contente, os olhinhos de ouro brilhando entre as pálpebras ru-gosas. Quando terminei descansei a xícara em cima da bancada e me levantei.

— Agora preciso ir. o chá está muito gostoso, o senhor sabe preparar um ótimo chá. obrigada por me convidar. Quan-do quiser, pode ir ver minhas begônias. Agora, porque o senhor me falou deles, estou pensando em plantar também crisântemos, o senhor gostará de vê-los. Pode ir ver quando quiser, é só avisar. Faça um sinal da varanda.

Fui saindo. Ele me acompanhou até a porta e recomen-dou:

— Cuidado com a porta do elevador que às vezes fica travada. O perigo do poço!!! Esta semana eu escapei por pouco, quase caí. Volte outro dia, não precisa avisar não, eu só saio para caminhar muito cedo. O resto do dia fico em casa. Vou esperar a senhora.

Acenei e entrei na cabine, para o que tive de desemperrar a porta que não fechava.

— Por que não consertam esta porta? — pensei. Alguém ainda pode cair.

Fiquei com o velhinho na cabeça. Amanhã na varanda vou acenar para ele. Enfim muda alguma coisa, tenho um ami-go para me sorrir e apreciar minhas flores. Que velhinho mais simpático!

Dia seguinte fui cumprir minha rotina. Regador na mão rumei para a jardineira. Ele ainda não estava na varanda. De-morei mais tempo cuidando do canteiro, arrumando um espaço para as mudas de crisântemos — que iria buscar naquele fim de semana — enquanto esperava para vê-lo chegar a alimentar os pássaros. Ele não veio. Passei a manhã inquieta, espionando a pequenos intervalos. Não apareceu naquele dia. Nem no outro, nem no outro.

Nunca mais o vi. Todos os dias eu olhava o apartamento vazio onde ninguém transitava. Comecei a ler o segundo volume

Page 265: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 263

dos contos de Hemingway ao lado da jardineira, para melhor observar a chegada do amigo, que nunca mais retornou.

pouco a pouco os pássaros abandonaram a varanda.Eu desisti de cultivar crisântemos.1

Gláucia Lemos é graduada em direito e pós-graduada em crítica de arte. Trabalhou em jornalismo escrevendo críticas de arte e resenhas literárias em jornais de Salvador, Maceió, São Paulo e Aracaju. Tem publicados mais de trinta títulos em literatura adulta e infanto-juvenil. Entre suas obras, encontram-se os romances premiados O riso da rapo-sa (1995), A metade da maçã (1988), As chamas da memória (1990), e Bichos de conchas (2007). No conto, publicou, entre outros, Procissão e outros contos (1996). Entre seus vários sucessos na literatura infanto-juvenil, destaca-se o livro As aventuras do marujo verde, já na vigésima sexta edi-ção. Desde 2010 ocupa a Cadeira número 14 da ALB.

Page 266: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 267: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 265

SISINA

CArlos ribeiro

Estou em pé, de frente para o sol que cai pouco a pouco por detrás dos morros a oeste. Esta paisagem lembra-me gra-

vuras da enciclopédia Larousse du XIXe siècle, do meu pai, que me fascinava muito, quando eu, ainda criança, enchia os olhos com as montanhas, com as montanhas que jamais tornei a ver nova-mente, mas que as vejo agora refletidas nessas nuvens. Eram de-senhos sobre os continentes, lembro-me bem: a África com seus leopardos e crocodilos que me olhavam e me desafiavam do fun-do sombrio e negro; a América e seus índios e suas florestas e suas geladas paisagens da Patagônia e aquele mar diante do qual tudo terminava para dar lugar ao desconhecido gelo do Sul; a Europa e suas cortesãs e seus exércitos e sua história que se impôs sobre o mundo e que trago aqui comigo; a Ásia e seus tigres e dragões e suas misteriosas serpentes e odaliscas e suas danças-do-ventre e seus pecados e suas tribos de beduínos e seus camelos e desertos e oásis; a oceania com seus pigmeus e cangurus, com seus arrecifes e guerras desconhecidas. Tudo isto está aqui, diante de um velho para o qual custa erguer os olhos cansados, da mesma forma que estavam para o menino que, no apartamento ilimitado de um so-nho atravessava o corredor perseguido pelos watusis e cherokees e do alto do guarda-roupa lançava suas flechas envenenadas.

Veja, meu amor, a claridade doce e luminosa desta tarde. Ela também está no final desta história, ou, melhor dizendo, no final deste capítulo. Dê-me sua mão... venha... devagar. O futuro também é nosso...

— Mas o que digo agora, eu, parado no fundo do quarto, próximo ao guarda-roupa negro e sombrio que parece guardar

Page 268: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

266 ◄◄

ainda aquelas minhas roupas da infância, aquele pijama com bo-linhas azuis, lembra? A minha infância tem dessas coisas assim delicadas, pijamas e lagartas de fogo e lagartixas e fogueiras que acendia como acendiam também os patagões para se manterem aquecidos nas longas noites de inverno, ou nos longos dias de in-verno, como se pudesse manter mesmo acesas eternamente aque-las fogueiras, aquelas fogueiras, meu amor, que são como esses seus olhos que mantém acesa essa ternura, agora partida, moída, rompida, completamente destruída mas ainda assim viva, como se dependesse de ti esse poeta francês que só consegue murmurar este teu nome: Sisina. Veja, pois tal é a Sisina, amiga noturna que encontro sob as folhagens, Sisina, guerreira destemida que em sua couraça ousa desafiar a verdade. Vem, amor, que de mim despenca ao abismo a doce voragem de saber que não serás minha, enquan-to sobre ti exercer este jugo; vem... Mas, tal como o poeta maldito, também sei ultrapassar os umbrais, e diante do corvo enrijecido, na floresta petrificada, diante do castelo sombrio e triste, te evoco como a uma pomba que voa sobre os telhados enegrecidos da fu-ligem das fábricas de Yorkshire. Vem, Sisina, que meu amor é como o mar largo, como mar que transporta heróis e monstros e mitos; e, como o cavaleiro negro do conto de Kleist, também cruzarei os ares no meu alazão, mergulhado em pensamentos tristes, em pensamentos de distâncias. Sisina, Sisina, que posso pensar que nem mais existes, porque o mundo lhe diz não quando fecha suas portas ao passado, àquele passado que me visitava no antigamente que hoje se reduz a um improvável sonho. Sisina, doce combaten-te, de alma feroz e indulgente, que se mostra e chora ante quem o merece, amor, por que jamais te vejo sem que em mim alguma coisa se cale? Diante de ti, sou um menino, apenas, que como o poeta, lhe tece loas – doce leoa, guardiã do futuro que jamais acontecerá, diva, amiga, irmã, algoz, desembainhe sua espada e corte esta dor que me corta e me fere sem que eu mesmo saiba por que, oh maga jubilosa, rainha dos temporais, lance-me, lace-me, mate-me, que sem ti essa vida é uma ausência, capitã das naus

Page 269: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 267

destemidas, linda dama das cortes do meu coração, Sisina, Sisina, e eu nem sabia que sequer existias, e para que me foste revelada se já nem posso mais viver sem ti? Heroica senhora da França, de uma França que só existe em mim, de uma França que lança raízes nesta tristeza, duelos e rimas e homens gentis, és a Senhora da minha Civilização que agora decai e tomba como um gigante que atravessa as eras para cair aos teus pés, Sisina, Sisina, sei que nem posso mais cantar-te, porque me falta essa doce flauta que é apanágio de todos os poetas que como eu se calam pela simples impossibilidade de dizer.

— O que fazes aí neste canto, menino?A mulher aparece na porta do quarto. Ela tem uma voz

enérgica e posso jurar mesmo que se trata de alguém que me ama, e que por isso mesmo faz essa pergunta com palavras que cortam o ar fino da tarde, dessa tarde remota, dessa tarde lon-gínqua na qual me estiro no chão para ler aquela história do cão invisível, do menino invisível, e que por ser invisível me parecia tão triste, oh meu Deus, que poderei dizer àquela mulher sem fazê-la ver que não existo? Mas ela também parece ser um fan-tasma que me olha com irônica compreensão e que parece achar mesmo que não vale a pena penetrar nessa fantasia, nesta fanta-sia desse sonho que, entretanto, me parece tão real!

— Mãe? — consigo dizer finalmente, mas ela já não me ouve, deu meia volta e saiu do quarto, do quarto mês do ano de 1962, quando o Brasil ainda tinha aquele ar de coisa antiga, um país em preto-e-branco de homens vestidos com camisas e calças claras que pegam o bonde e vão pelas ruas, pelas calçadas, ou-vindo notícias e jogos de futebol nos seus radiozinhos de pilha, e posso ver o meu pai assim caminhando pelas ruas com sua camisa meio pra dentro e meio pra fora da calça e seus cabelos desarru-mados pelo vento que sopra naquela tarde em que os coqueiros se agitam na orla marítima onde uma antiga casa na forma de um barco tem um ar cansado, um ar de encalhe, e a cidade de Salva-dor tem ainda aquele ar de mistério que caía bem, muito bem, nas

Page 270: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

268 ◄◄

histórias de Vasconcelos Maia, escritor de grande valor e relativa glória, e seus livros estão sendo esquecidos hoje em dia pelas gera-ções mais novas, e andar pela avenida sinuosa à beira mar é como uma espécie de evocação, estás ouvindo? Evocação de remotas marés cambiantes: e aqui ainda não sopra aquele vento do norte que virá trazendo homens e mulheres maltrapilhos com seus vio-lões amando amando nas praias, sobre as dunas, e aqui me divido entre esses dois tempos, meu Deus como sou ao mesmo tempo conservador e libertário, eu sou aquele que viaja sobre as colinas diante do sol que se põe, e que enquanto volta todas as noites para o seu lar, onde o espera uma mulher e uma filha pequena, tão querida e amada, e que tem os cabelos curtos e um ar cansado de quem trabalha um pouco demais, também se lança com suas barbas e cabelos longos On the road pelos caminhos do interior do país e quem sabe também lá, naquela casinha do campo se verá novamente diante de um filho e de uma mulher, uma garota tímida, que entretanto não quis casar contigo, meu amigo, forçan-do-te a abandoná-la, logo tu que tanto a amava. Aquela casinha da música do Taiguara e aquele portão de madeira da capa do disco de Taiguara parecem-me agora tão distantes, embora possa ain-da degustar um pouco daquele sonho, enquanto sinto a força do Tempo e todos aqueles sonhos que tive e tenho de um mundo de Paz. Veja, lá estou eu consertando as portas do templo do Sereni-ta, enquanto construo a fogueira que me parece verdadeiramente uma obra de arte na sua rústica simetria. 1

Carlos Ribeiro é jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e profes-sor do curso de jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Tem diversos artigos, ensaios, reportagens, e treze livros publicados, dentre os quais o romance Lunaris (2007), Contos de sexta-feira (2012) e o ensaio Rubem Braga: um escritor combativo — a outra face do cronista lírico (2013). Desde 2007 ocupa a Cadeira número 5 da ALB.

O texto aqui publicado integra o romance Noites desertas, ainda inédito.

Page 271: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 269

OS PASSARINHOS SÃO OS MESMOS

mAYrAnt GAllo

o ônibus parou na rodovia, e um rapaz desceu, uma pesada mochila nas costas. Pequeno no acostamento, olhou para

um lado e outro, enquanto o veículo se afastava e por fim sumia, dois olhinhos vermelhos somente, na escuridão. Do outro lado, a distender-se no vale, silenciosa, a cidade era uma massa de luz tênue e amarela. O rapaz atravessou a pista e desceu em direção às primeiras casas. Para além da cidade, mais luzes tremulavam sobre o mar.

Era tarde, e ele não encontrou ninguém. Nem um bêbado. Muitas casas já estavam às escuras, e as ruas desertas pareciam sonhar, alheias a qualquer movimentação. Edu caminhava inde-ciso, mas, mesmo assim, muito menos hesitante do que imagi-nara. Oito anos longe não são oito dias. Estava agora com vinte e sete anos e não possuía mais a vitalidade de antes, quando partira. O entusiasmo então, quase que o perdera por completo. Sobretudo depois que soube da morte do pai...

— Morreu? Morreu como? – perguntou à mãe.— Há duas semanas...— E a senhora nem me ligou...?Dias mais tarde ele decidiu que voltaria. Que iria ver a

mãe, sozinha agora, na grande casa no fim da rua. Durante a viagem, pensou na Rural, o velho carro do pai. Ele nunca mais o mencionara. Será que ainda existia? Era bem provável que não. ou se transformara em ferro-velho ou estava na garagem de algum rico colecionador, imóvel.

— Como o pai morreu? — perguntou, pelo telefone, da estrada.

Page 272: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

270 ◄◄

— Dormindo. Gemeu, pensei que estava sonhando, mas, de manhã, quando o toquei, estava frio como uma porta de geladeira...

Ele ficou sem saber o que dizer. Morrer dormindo. Transporte de um estado sereno a outro, mais profundo. Tal-vez esta fosse a melhor das mortes. Completamente indolor. No ônibus, enquanto a paisagem fugia, lembrou-se de sua in-fância, de seu pai, de sua habilidade com as mãos, o gosto de consertar qualquer coisa e também de montar brinquedos, que chegavam pelo correio em grandes caixas: o Titanic, o Concor-de, outros. Por que partira, oito anos antes, se tinha tudo, um lar, o amor dos pais, a atenção necessária pela qual reclamam os jovens rebeldes? Simplesmente porque é preciso devorar horizontes, chegar a algum lugar, estar consigo mesmo, sob seu próprio teto e controle.

Antes de alcançar a casa, ele avistou a luz da varanda, e a mãe, de pé, à sua espera. Emagrecera tanto, que, mesmo de longe, era possível sentir a fragilidade de seu corpo. Quando ele a abraçou, sentiu-lhe tão exíguas as carnes, de uma matéria tão frágil e débil, que foi como se a colhesse em seu peito para sempre, fundindo-a aos seus músculos, soldando-a aos seus ossos.

O dia o surpreendeu em seu antigo dormitório. A mãe já se levantara e mexia e remexia na cozinha. No ar, o cheiro bom de café. Foi isso, aliás, que o despertou, não os ruídos de pratos e talheres e panelas, que a mãe, meio surda, sacolejava na manhã. Edu passou do quarto direto para o quintal, nos fundos, ignorando o resto da casa. Procurava o carro, a Rural, sobre cujo destino, na noite anterior, esquecera-se de perguntar à mãe. Ain-da existiria? A mãe o viu passar pela lateral da casa em direção à garagem. Sabia o que ele buscava e apenas sorriu, enquanto despejava o café na garrafa térmica.

A garagem estava trancada, sinal de que a Rural se encon-trava ali, intacta. Satisfeito, Edu sorriu e, ao se virar, avistou um

Page 273: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 271

rosto, que o fitava por sobre o muro. Léo. Seu amigo de infância. Desde que o pai de Edu morrera, que Léo vinha todas as ma-nhãs e ficava ali, parado, atrás do muro. A mãe de Edu, quando o via, apenas balançava a cabeça. Mas Léo sabia que o amigo voltaria, mais cedo ou mais tarde, ainda que fosse só por alguns dias, para revirar as coisas do pai... Aquele carro, por exemplo. Uma raridade na região e talvez em todo o estado.

os dois se abraçaram, forte e demoradamente. Depois, sentaram-se nos degraus da varanda e ficaram conversando. Uma pequena revoada de passarinhos invadiu o quintal, trinan-do. Faziam ti-ti-ti, num alvoroço ensurdecedor. Catavam qual-quer coisa pelo quintal, os farelos de pão que a mãe de Edu jogara logo cedo, ao começar a batucada na cozinha.

— Os passarinhos são os mesmos – Edu comentou.— São sim — Léo assentiu.Havia entre eles uma barreira de oito anos e algumas mu-

danças. O fim do gosto pelos quadrinhos. O fim do prazer de ouvir rock. O fim da insegurança diante das mulheres, substituí-da por uma petulância carnal. E isso era mais do que suficiente para silenciá-los. Súbito, ocorreu a Edu perguntar pela família do amigo, em especial por sua irmã...

— Como você, Diana foi embora. Deu um basta a essa cidade estúpida.

Da porta da cozinha, a mãe de Edu os chamou para to-mar café. Na mesa, o assunto do carro veio à tona, e a mulher garantiu que a Rural estava sim lá dentro, na garagem, embora não soubesse, não mesmo, por onde andava a chave do enorme cadeado.

— Nem provavelmente da ignição... – Edu frisou, rindo. A mesma força rebelde que o impulsionara para longe o trou-xera de volta.

Por algum tempo o café prosseguiu em silêncio. Até que a velha disse:

— Foi por isso que você voltou? Pelo carro?

Page 274: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

272 ◄◄

Léo tentou interceder, conciliador, antes que a batalha en-tre mãe e filho, constante no passado, se reinstalasse. Edu igno-rou a interferência do amigo e falou, sem convicção, mas em tom de desafio:

— Acho que sim. Foi. Foi pelo carro.Não era o que a viúva pretendia ouvir, e por isso ela se

levantou e começou a desfazer a mesa. O pão, destroçado, fi-cou sozinho entre os farelos. No ar, o odor de café era só uma lembrança, uma nódoa. Ela ainda não começara a lavar os pra-tos, quando os primeiros golpes de machado fizeram-se ouvir na porta da garagem. Lamentou-se então por não ter feito o serviço completo e enterrado também o carro.1

Mayrant Gallo é escritor e professor, mestre em teoria da literatura. Foi colaborador do Correio da Bahia, publicando crônicas, contos e ensaios. Em 2009 ganhou o prêmio Literatura para Todos, do MEC, com a novela Moinhos, e em 2010 o edital de criação literária do MinC e da Petrobras para elaboração de um romance. É autor, entre outros, dos livros O inédito de Kafka (2003) e Os encantos do sol (2013).

Page 275: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

DISCURSoS

Page 276: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 277: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 275

À MEMÓRIA DA ACADÊMICACoNSUELo NoVAIS SAMpAIo

Sessão de saudade

João euriCo mAttA

Em 26 de novembro de 1992, faz 21 anos, em sua admirá-vel e poética saudação à nova acadêmica, “a quinta mulher

que aqui chega”, seu confrade, antigo professor, mas também seu colega do departamento universitário de História na UFBA, Waldir Freiras oliveira, leu magistralmente o seguinte:

permita-me, professora Consuelo Novais Sampaio, um breve devaneio..., para dizer-lhe que, não sei por que razão, sempre a idealizei como alguém da Grécia antiga. Talvez como uma das suas deusas, ou uma sacerdotisa. ...Centenas de pessoas que iam e vinham, em Atenas, ...a Acrópole..., eu a vi ali, em meio àquela gente. Passou por mim, esguia e altiva, envolta em túnica branca... Ouvi, então, alguém me dizer que a mulher que passava era uma sacerdotisa do cul-to de Eleusis (... ... ...), dedicado pelos gregos a Demeter, deusa dos cereais, e à sua filha Perséfone (... ...).Eram duas as dádivas, segundo a tradição, que Demeter concedia aos participantes do culto — o cereal, base de uma vida civilizada, e os mistérios, através dos quais lhes era dada a promessa de melhores esperanças... pedindo a per-missão dos meus confrades, desejo comparar a festa de ingresso nesta Casa, da professora Consuelo Novais Sam-paio, à da iniciação, no templo de Eleusis, dos seguidores desse culto de mistério.

Page 278: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

276 ◄◄

por certo — senhores acadêmicos e acadêmicas e estima-dos filhos, familiares e amigos de Consuelo Novais Sampaio — foi a lembrança, hoje nossa com enorme saudade, da presença viva marcante, assertiva, daquela mulher jequieense adulta, alta, bonita, de porte sempre elegante e bem vestida e de falar ex-pressivo, que suscitou ao acadêmico historiador Waldir Freitas Oliveira essa “idealização” tão forte que preferi transcrevê-la quase na íntegra porque inspirou a este acadêmico pesquisador do comportamento humano, que vos fala, uma outra idealiza-ção-visualização, saltando dos tempos gregos para os tempos italianos do século XVI, os da culta e artística Florença, onde o pintor Brozzano concebeu, num famoso retrato em tela a óleo, as cores e o olhar ad infinitum da nobre, elegantíssima em porte, traje e joias, florentina “Duquesa Eleonora e seu filho” (o garoto parece paulo Roberto em menino, estando ausente, no retrato, a filha Andrea, esses dois que Consuelo chamava de “meus poemas”! )

Essas lembranças-idealizações e reflexões vêm com o propósito de ressaltar o grande ser humano, que foi, e continua sendo em nossa memória viva, Consuelo Novais Sampaio, com seu espírito gregário e convivial, com sua profunda inteligência da vida social, sua sensibilidade para as artes (as pictóricas, mas especialmente as musicais), sua generosidade e sua lisura com-portamental, sua luminosa carreira de professora universitária, dotada de refinado aperfeiçoamento doutoral e pós-doutoral, resultante em primorosa competência profissional e copiosa produção de pesquisadora de história. Convido a ilustre au-diência a reler as onze iluminadas páginas autobiográficas que compõem as 32 páginas da edição opuscular de seu discurso de assunção da Cadeira número 40 desta companhia, a cujos pa-trono, fundador e sucessor, que a precedeu, Consuelo dedicou, ao longo de sua vida de escritora, cuidadosos estudo, pesquisa e publicações. Naquelas páginas é encantadora arevelação do espírito gregário e convivial, de grande sensibilidade geográfica

Page 279: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 277

e historiográfica, bem como o admirável caráter de reconheci-mento e gratidão. Permitam-me ler, neste ensejo, alguns excer-tos dessa sua escrita-e-fala original, quando ela comenta sobre si mesma e sua gente querida, família e professores na Bahia, no Rio e no exterior, no cativante discurso de posse, dito na noite de 26 de novembro de 1992:

Na base da minha árvore genealógica está a bravura, a re-sistência nas lutas e o amor à liberdade de uma bela índia Cariri, cabelos e olhos negros, pegada a laço de corda por rico fazendeiro português, cabelos louros e olhos azuis, que dela se enamorou e com ela se casou. São os bisavós da minha mãe, Dulce Novais. O meu pai, Alarico Sampaio de Sousa, fazendeiro e comerciante, faleceu quando eu ti-nha três anos, deixando uma jovem viúva de apenas deze-nove anos de idade. A ela devo hoje referir-me, por duas razões. primeiro, por haver, com a maior competência, de-sempenhado o papel de mãe e de pai. A ela devemos — eu e minhas três irmãs, Ainda, Niva e Ieda — o que somos. Ensinou-nos a enfrentar e a vencer a luta da vida... Viveu para as quatro filhas. Referindo-me a Dulce Novais, presto homenagem à mulher baiana, àquelas que, recusando-se à acomodação imposta pelo arraigado conservadorismo da nossa sociedade, lutam com dignidade, firmeza e inabalá-vel crença na vida, por um mundo socialmente mais justo. São verdadeiros instrumentos de progresso social. ...

E porque recusou-se à acomodação, tivemos, minhas ir-mãs e eu, infância e adolescência um tanto itinerantes... Entre essas duas primeiras capitais do país, Salvador e Rio de Janeiro, crescemos e nos educamos, ... enfrentando si-tuações por vezes muito duras, às quais minha mãe fazia-nos compreender, explicando: ‘Crio vocês para o mundo, não para mim!’ E assim foi: sua cosmovisão abrangente levou-nos a romper as barreiras da província e a conhe-cer os quatro continentes... Frequentamos, minhas irmãs e eu, os melhores colégios do Rio de Janeiro e da Bahia...

Page 280: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

278 ◄◄

... Em Salvador, estudamos no Colégio Dois de Julho, sob a direção de dois renomados educadores, Mr. Peter Baker e D. Irene Baker...

Também estudamos no Severino Vieira e, em seguida, no Central. No primeiro, sob as mãos cuidadosas e firmes de Armando Costa, um dos grandes educadores baianos. Num dia de festas, escolheu-me para saudar o prof. Con-ceição Menezes que nos visitava. Com a voz embargada, pronunciei o meu primeiro discurso. — Treinava-me para o dia de hoje? Possivelmente...

...Na minha caminhada, tive o estímulo constante dos meus filhos, Andréa e Paulo Roberto, e das minhas queridas ir-mãs, Ainda Gabrielli, Niva Asoplund e Ieda Balcázar; das minhas tias Rosália Lomanto e Nina Sérgio. Não poderia haver chegado até aqui, se não tivesse tido o firme apoio do meu marido Kirby Davidson...

Seguem, no discurso de Consuelo, páginas com registros comoventes de seu reconhecimento e gratidão a “grandes mestres” do Colégio Central com os quais “tive ahonra de estudar, como” Raul da Costa e Sá (“fez-me respeitar a língua portuguesa”); Ramakrish-na Bagavan dos Santos e Marta de Souza Dantas (“mostraram-me que a matemática pode ser fascinante”); Inocêncio peltier de Queiroz (“introduziu-me nos mistérios da química”); Luis Monteiro da Costa (“conduziu-me, pela primeira vez, ao pequeno museu do Instituto Geográ-fico e Histórico da Bahia...”; e “a minha grande dívida é para com o mestre Luis Henrique Dias Tavares. Ninguém exerceu influência maior e mais duradoura sobre meu destino profissional que ele... Voltei a encontrá-lo vin-te anos depois, (na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFBA), como orientador da minha dissertação de mestrado, os partidos políti-cos da Bahia na primeira República: uma política de acomoda-ção...” E seus parágrafos de louvores a outros “grandes professores” de sua graduação em História, “na velha Faculdade de Filosofia da UFBA, em Nazaré”, como Antonino Dias e Thales de Azevedo,

Page 281: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 279

e nos três anos durante os quais estudou no Rio de Janeiro, “na Faculdade de Filosofia da antiga Universidade do Brasil... no reitorado do notável historiador Pedro Calmon”, como o “ querido professor Darci Ribeiro (curso de Antropologia)” e os “grandes professores” Maria Ieda Leite Linhares, Francisco Falcón, Hélio Viana e “o grande Anísio Teixeira, a cujas aulas eu assistia quase em estado de oração”. Em segui-da, os veementes louvores aos docentes do “mestrado em Ciências Sociais da UFBA”, como os “muito saudosos Antonio Luis e Zahidê Machado Neto”, os professores Carlos Costa e Johannes Augel, “o mestre José Calasans Brandão da Silva...”, e “devo ainda salientar os nomes de dois queridos amigos: Jorge Calmon e Waldir Freitas Oliveira”, sobre os quais Consuelo tece especiais elogios, ao primeiro como “incentivador maior das letras em nossa terra” e ao segundo: “Waldir é, sem dúvida, um dos maiores professores que a Bahia já teve...” Nossa confreira (que não gostava desta palavra cunhada pelo nosso mestre acadêmico pedro Calmon) Consuelo Novais Sampaio conclui seu elegante rosário de gratidões fazendo o panegírico, também, de dois professores-orientadores do seu doutoramen-to na The Johns Hopkins University, nos Estados Unidos: doutores John Russell-Wood e Franklin Knight, os quais a acadêmica de letras Consuelo Novais Sampaio proporia, nos seguintes anos 1990, com aprovação unânime dos acadêmicos, como membros correspondentes desta Companhia; e

rendendo homenagem a três amigos: Bradford Burns, Sen-gen Zhang e Anne Bodeheimer. O primeiro americano, o segundo chinês, a última alemã. A eles, fiquei devendo, no programa de pós-doutorado realizado na UCLA, University of California — Los Angeles, Estados Unidos, não só o aprofundamento do meu conhecimento histórico, mas a certeza de que a vida é luta a ser enfrentada, nunca lamen-tada. Ali, reafirmei a crença de que cabe a cada um de nós fazer com que os momentos de alegria superem os de tris-teza; com que o riso se sobreponha à lágrima...

Page 282: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

280 ◄◄

Releiamos, por fim, a partir da pág. 13 até a pág. 32, o ma-gistral registro histórico — para cumprir a praxe-tradição das fa-las de posse em cadeira acadêmica de número — que Consuelo costura sobre o patrono da de número 40, da Academia de Letras da Bahia fundada em 1917: o poeta Francisco Cavalcanti Manga-beira; sobre o irmão deste e fundador da Cadeira, o então enge-nheiro civil, professor universitário da Escola politécnica e polí-tico vereador octavio Cavalcanti Mangabeira; e sobre o sucessor deste naquela cadeira acadêmica, o bacharel em direito, escritor, empresário-administrador, professor universitário de economia e livreiro-editor Manoel pinto de Aguiar, predecessor, portanto, da nova acadêmica. Esta perora sua elegante peça, na noite daquele 26 de novembro de 1992, dizendo, em tom convivial:

...Convido os amigos que hoje me honram com suas pre-senças a partilhar comigo a enorme responsabilidade que pesa sobre os meus ombros, ao ter tido eu a audácia de concordar em suceder, na Cadeira de nº 40 desta egrégia Academia de Letras da Bahia, a dois homens que viveram suas vidas na luta pela democracia e pela construção de um Brasil socialmente mais justo, e cujo patrono, Fran-cisco Cavalcanti Mangabeira, referindo-se aos embates da vida, assim cantou:

Fui ferido três vezes, no entanto,Apesar disso – combati cem vezes.

Muito obrigada a todos.

E para nós, à guisa de conclusão desta fala de saudade, permitam-me alguns parágrafos sobre meus encontros e conví-vios com a nossa homenageada.

O primeiro foi aquele de 1949, no então Ginásio Severino Vieira, ambos adolescentes, “teen-agers”, eu no auditório, ela, aos 13 anos, saudando o professor Francisco da Conceição Menezes,

Page 283: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 281

diretor do Colégio Central. Meu exame de admissão ao ginásio ocorrera em 1947, no Colégio Estadual da Bahia, na Avenida Joana Angélica, onde cursei o primeiro ano ginasial, mas, com a criação institucional dos ginásios de bairro (Nazaré, Brotas, Liberdade e Itapagipe) pelo então secretário de estado da Edu-cação e Saúde, o grande educador Anísio Teixeira, fui transferi-do em 1948 para o turno matutino, de clientela mista, do ginásio do Jardim de Nazaré, dito Severino Vieira, porque sediado no antigo sobrado-casarão residencial do antigo governador (e pro-fessor) Severino Vieira, prédio adquirido pelo governo Octavio Mangabeira ao Clube Carnavalesco Inocentes em progresso. No turno vespertino, exclusivo para clientela feminina, estudavam as moças, entre elas a garota Consuelo.

O segundo encontro, em janeiro de 1966, no salão do plenário da Assembleia Legislativa do Estado, eu, aos 30 anos, professor da Escola de Administração da UFBA, mas como se-cretário de estado para a Reforma Administrativa, coordenador geral desse programa, acompanhando uma equipe de consultores técnicos do Instituto de Serviço público, da EADm./UFBA, para um debate com os deputados sobre o projeto de legislação da Reforma Administrativa encaminhado pelo governador Loman-to Júnior, e Consuelo Novais Sampaio, aos 30, como taquígrafa concursada, sentada em mesa própria, no auditório: ela também era professora do ensino médio do estado, concursada em 1962.

Seis anos mais tarde, 1972, Consuelo ingressaria no ma-gistério da UFBA, no Departamento de História e Ciências So-ciais, na Faculdade de Filosofia; em janeiro de 1972 eu tinha sido empossado diretor da Escola de Administração da UFBA e membro do Conselho Universitário, e havia disciplinas do ba-charelado em Administração que eram ministradas pelo depar-tamento a que ela pertencia.

De 1980 a 1984, Consuelo seria coordenadora do Cur-so de Pós-graduação em Ciências Sociais e criaria o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) e o Núcleo

Page 284: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

282 ◄◄

de História Oral e Documentação Oral (NHODOC), que reali-zaria alguns seminários sobre História oral, coordenados pelos professores Ubiratan Castro, Tânia penido e Consuelo Novais Sampaio, dos quais fui convidado a participar.

Em 1990, eu era diretor do ISp-Centro de Estudos In-terdisciplinares para o Setor Público, e presidi uma Comissão Julgadora da UFBA que conferiu a Consuelo Novais Sampaio o título de Pesquisadora do Ano.

Em 1992 fui um dos acadêmicos que votaram, à unani-midade, em Consuelo para ocupar a Cadeira número 40 deste sodalício. Nesse mesmo ano, 1992, ambos nos aposentamos da UFBA. Nos anos seguintes seríamos confrades desta Academia, e então o encontro e o convívio seria constante, nas sessões e em conferências e artigos publicados em todos os números bianuais da Revista da Academia de Letras da Bahia, nas décadas de 1990 e dos anos 2000. Em 2002, houve um convívio muito especial, nas sessões, nesta Academia de Letras e nos seminários do Cen-tro de Memória da Bahia, da Fundação Pedro Calmon, quando Consuelo teatralizou sua apresentação do seu texto “Vargas, o amante”, sendo ela narradora, e me pediu que eu fizesse a voz do presidente Vargas lendo algumas de suas cartas de amor a Aimée de Heeren.

Por fim, um encontro continuado da professora douto-ra Consuelo Novais Sampaio com meu filho o professor mes-trando em história, Alfredo Eurico Matta, ela como orientadora da dissertação dele sobre A Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim e como presidente da banca examinadora. Há também o fato, honroso para mim, de que Consuelo me pediu que fizesse o prefácio de seu livro Pinto de Aguiar: audacioso inovador, que tem apresentação do nosso confrade Luis Henrique Dias Tavares. Afora isso, registre-se meu encontro e de minha mulher Geí-sa, sua amiga de longa data, com a autora ou organizadora de textos Consuelo Novais Sampaio, nos lançamentos de todos os seus livros (donde seu afetuoso autógrafo-dedicatória, a nós, em

Page 285: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 283

todas essas publicações), a saber: Os partidos políticos da Bahia na Primeira República, Uma política de acomodação, 1978, 2ª edição em 1998; Legislativo da Bahia na Primeira República, 1985 (dedicado “ao reencontro dos meus ‘poemas’ Andrea e Paulo Roberto”); Poder e representação: o Legislativo da Bahia na Segunda República, 1991; Ca-nudos: cartas para um barão, 1909; o monumental volume, prêmio Clarival prado Valadares da oDEBRECHT, intitulado 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX, 2005; Memória da fazenda na Bahia, 1895-2005, 2005; 70 anos de lutas e conquistas: Liga Bahiana contra o Câncer, 2006; Pinto de Aguiar: audacioso inovador, 2010; e Otávio Mangabeira: cartas do 1º exílio, 2010, volume I. Sig-nificativo é o aprendizado nosso, meu e de Geísa, mediante a lei-tura ou manuseio desses volumes ou opúsculos, como Formação do regionalismo no Brasil, 1977, e O poder legislativo no Brasil, confe-rências de Josaphat Marinho e Consuelo Novais Sampaio, 1998.1

João Eurico Matta é bacharel em direito, administrador, professor emérito da Universidade Federal da Bahia, crítico e ensaísta. Foi mem-bro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Dirigiu várias insti-tuições públicas e privadas, como o Conselho Regional de Adminis-tração da Bahia. É sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Desde 1989 ocupa a Cadeira número 16 da ALB.

Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, como orador de sessão especial em homenagem póstuma à acadêmica Consuelo Novais Sampaio, no dia 12 de dezembro de 2013.

Page 286: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 287: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 285

JAMES AMADoSessão de saudade

mYriAm FrAGA

Eleito no dia 30 de agosto de 1989, James Amado tomou posse nesta Academia no dia 26 de abril de 1990, passando

a ocupar a Cadeira de nº 27, que pertencera anteriormente a Antônio Loureiro de Souza.

Para recebê-lo fora escolhido o confrade Luís Henrique Dias Tavares, seu amigo de longas datas, que na ocasião, por estar em Londres, a realizar estudos e pesquisas, incumbira o confrade Waldir Freitas de oliveira, de fazer a leitura do discurso de saudação ao novo imortal.

Noite de muita alegria, de aclamação e regozijo. O recém-chegado, além de muito estimado pelos acadêmicos, era reco-nhecidamente um nome especial que iria honrar e engrandecer a nossa confraria.

Naquele momento tão importante, eu também deveria es-tar ali, junto aos amigos e confrades que desejavam abraçá-lo e à sua amada Luiza, sorridente em sua discreta e delicada presença, a filha Fernanda, o genro e os netos.

Em minha imaginação eu tentava recompor a cena; teria o novo imortal liberado a emoção ou, simplesmente, tentara do-minar o sentimento, como fazia sempre?

E o confrade Luís Henrique, com seu belo discurso, traçando fielmente o percurso do homenageado, assinalando as datas principais de sua biografia, louvando- lhe os méritos de grande intelectual que não se apequenara diante da podero-sa sombra do irmão mais velho, que ele tanto admirava sem,

Page 288: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

286 ◄◄

contudo, abdicar de seu brilho próprio, de sua singular e per-sonalíssima biografia?

Mas alguma coisa sempre me escapava. Não conseguia lembrar certos detalhes, a figura dos oradores, os aplausos, os silêncios...

E de repente me dei conta: eu não estava presente naquela noite de alegria!

Eu não participara da cerimônia dessa noite porque na-quela ocasião, atravessava um dos mais terríveis momentos de minha vida: num hospital, entre a vida e a morte, Carlos, meu marido, tentava recupera-se de uma cirurgia no coração e eu penava pelos corredores esperando ouvir uma palavra que me fizesse ter alguma esperança. Só uma situação como essa me im-pediria de estar aqui, nesta mesma sala, naquela noite de glória, a aplaudi-lo em momento de tanta importância.

Agora, ao cumprir o ritual nesta cerimônia de saudade, sinto como se, voltando no tempo, pudesse recuperar um ins-tante que ficara perdido, ao prestar-lhe, mais uma vez, o tributo de minha admiração.

Em seu discurso de posse, James Amado afirma que a fraternidade entre profissionais era o eixo básico das Academias de Letras pelo reconhecimento que fazem do escritor como um verdadeiro profissional, merecedor do respeito que se costuma prestar aos membros de todas as demais categorias.

Lembrou, com reverência, a divida que temos, nós escri-tores, com o grande Machado de Assis que, ao criar a Acade-mia Brasileira de Letras,“institucionalizou a condição do escri-tor colocando-a entre as categorias merecedoras de respeito e acatamento”.

Assim, nesse mesmo discurso, ao tempo em que, em con-sonância com as regras acadêmicas, praticava o elogio dos an-tecessores, reafirmava sua condição de dedicado cultor da lite-ratura, sua própria biografia, suas condições a respeito do fazer literário e suas sóbrias considerações sobre a cultura do nosso

Page 289: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 287

povo, seguindo-lhes as pegadas desde os primórdios: suas ori-gens ibéricas, a rica tradição da cultura europeia, e o legado que nos trouxeram a bordo das caravelas e que erigiram em monu-mento da nascente civilização baiana, corporificada em Antônio Vieira e Gregório de Mattos, esteios da cultura que então se for-java enfrentando diversos percalços.

Falou também sobre o encontro com uma nova e fecun-dante realidade que foi a extraordinária contribuição dos povos africanos que, aqui aportando na mais miserável das condições, deram à terra que os acolhia, uma generosa participação no uni-verso de crenças e condutas que viriam a enriquecer, ainda mais, nosso patrimônio cultural, já anteriormente temperado pela contribuição indígena que não cabe menosprezar.

o discurso de posse de James Amado, conciso e precio-so, pelas concepções sobre nosso processo civilizatório e pe-las sabias informações sobre o desenvolver de nossa historia, pelas convicções humanistas, que o fizeram desenvolver um processo todo seu de abordar questões tão essenciais, com a leveza e a ironia, que eram marcas registradas de sua forma de tentar esconder uma profunda consciência histórica e cultural, é uma peça que merece ser lida e consultada e que ficará, sem dúvida, como um dos mais importantes e justos discursos des-ta Academia.

Para completar o brilho daquela noite, ouviu-se a seguir o discurso de nosso mestre Luís Henrique Dias Tavares, re-nomado historiador e cronista que, por sua vez, faz o elogio e traça a biografia do novo confrade, seus méritos e sua obra literária.

Fala detidamente de seu primoroso romance, O chamado do mar, de 1949, que, segundo seu juízo, “marcaria em instante alto e novo na literatura brasileira”, merecedor de sucessivas edições, no Brasil e em Portugal e que, entre outras críticas, receberia do grande otto Maria Carpeaux as seguintes palavras consagrado-ras: “O romance é uma tentativa de renovação completa de um

Page 290: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

288 ◄◄

gênero que já parecia esgotado: o romance de ambiente nordes-tino e tendência social”.

Não desejo estender-me sobre a biografia e as obras de nosso saudoso homenageado. Disso se encarregou magnifica-mente nosso historiador Luís Henrique em seu discurso que re-úne, não só uma extensa cronologia da produção do escritor, jornalista e tradutor James Amado e de sua participação na vida cultural brasileira, em tempos de dificuldades e de afirmações que por vezes se tornariam temerários, mas, igualmente, embora respeitando os limites da discrição imposta pelo retratado, con-seguindo traçar um perfil do homem James Amado, que ali nos aparece numa verdadeira e viva reprodução que só os que o co-nheceram tão intimamente poderiam traduzir.

Cumpre assinalar que a participação de James Amado na vida literária e cultural brasileira começara muito cedo. Desde a juventude, nos seus dezoito, dezenove anos, já colaborava em jornais do Rio e de São Paulo, com artigos sobre literatura e artes plásticas, que foi sempre uma de suas paixões, circulando nos meios literários, cultivando conhecimentos e amizades im-portantes no campo das Letras, como os romancistas Dyonélio Machado, Moreira Campos, Vasconcelos Maia, osman Lins e muitos outros.

Nessa época também iniciou sua carreira como tradutor, trabalhando para várias editoras do sul do país, que reconheciam seu talento e responsabilidade como escritor, além de seu domí-nio das línguas francesa, inglesa e espanhola.

Através de suas traduções ficaram conhecidos no país im-portantes escritores norte-americanos modernos como: William Saroyan, Erskine Caldwell, com o famoso Estrada do tabaco, e outros igualmente famosos, além de ter sido o responsável pela introdução, no Brasil, do teatro de Eugène O’Neill.

Devemos assinalar também que James teve importante atuação em diversas atividades ligadas à Literatura, participan-do de iniciativas que alcançaram intensa repercussão nos meios

Page 291: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 289

políticos e culturais, como a organização do famoso Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, em 1945, durante os anos difíceis do Estado Novo, pela libertação de prestes e reconhecimento da liberdade partidária. Foi durante este Congresso que Jorge Amado, até então em exílio na Bahia, compareceu chefiando a delegação baiana, e conheceu Zélia Gattai iniciando uma relação para toda a vida.

James Amado participou, igualmente, da organização e re-alização do segundo, terceiro e quarto Congressos de Escritores, realizados em Belo Horizonte, Salvador e porto Alegre, além de muitas outras iniciativas que contaram com sua dedicação e eficiência, como a colaboração na última fase do Paratodos, fa-mosa revista do poeta Álvaro Moreyra, então dirigida por Jorge Amado e oscar Niemeyer.

Igualmente assinalável foi sua participação em vários su-plementos literários como o Suplemento do Livro, do Jornal do Bra-sil, que foi responsável pela renovação do estilo dos suplementos literários dos grandes jornais do Rio e de São Paulo.

porém uma das mais importantes contribuições de James para a cultura brasileira foi sem dúvida a publicação da obra po-ética de Gregório de Mattos, em sete volumes, trabalho iniciado em 1967, a partir dos 17 códices atribuídos ao poeta, existentes na Biblioteca Nacional, em 25 volumes manuscritos, trabalho que realizou sem qualquer auxilio ou ajuda financeira, contando apenas com os conselhos e indicações de velhos amigos e, na fase final, com a colaboração da professora e poeta Maria da Conceição Paranhos. A este conjunto deu o título geral de Crôni-ca do viver baiano seiscentista.

Terminado o trabalho inicial, concluídos estudos, pes-quisa e planejamento, o projeto de edição da obra foi apresen-tado ao então secretário de Educação e Cultura do Governo Luís Vianna Filho, nosso confrade Luís Navarro de Brito que, imediatamente, compreendendo o alcance cultural da iniciati-va, consultou o governador que autorizou a compra de uma

Page 292: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

290 ◄◄

parte da edição pela Secretaria, o que garantiria parte dos cus-tos orçados pela gráfica.

para editar os sete volumes das Obras completas de Gregório de Matos, James Amado criou a editora Janaina Ltda., responsá-vel também pela edição da Obra poética de Junqueira Freire, outro poeta considerado maldito da literatura brasileira, resgatando-lhe os poemas inéditos.

Mas o Brasil vivia tempos difíceis com a ditadura militar e as liberdades cerceadas, com a implantação do AI-5. A obra do poeta Gregório de Mattos foi considerada um perigo para as instituições e a edição foi recolhida das livrarias, sob a acusa-ção de licenciosa e pornográfica. Após essas duas importantes contribuições à poesia baiana a editora Janaina, premida pelas dificuldades financeiras, fechou as portas.

Não me lembro do dia exato em que conheci James Amado. Desde o final dos anos 60, quando passou a morar na Bahia, era natural que nos encontrássemos, em casa de ami-gos, em eventos e reuniões, mas sei que foi ai pelos anos 80, quando eu então trabalhava na Fundação Cultural do Estado da Bahia, sob a direção de nosso confrade Geraldo Machado, que, durante a celebração dos setenta anos de Jorge Amado, nos aproximamos realmente.

Um dos eventos mais importantes no elenco de comemo-rações desta data foi uma grande exposição que reunia a repro-dução fotográfica das capas de seus livros, já traduzidos em vá-rias línguas, fotos, ilustrações e outros itens, que testemunhavam o alcance internacional do homenageado,

James acompanhou de perto todo o percurso de desco-bertas para o êxito desta exposição que, realizada por Jacyra Oswald, sob a coordenação de Zilah Azevedo, sob os auspícios da Fundação Cultural do Estado, após sua inauguração no foyer do Teatro Castro Alves, em Salvador, percorreu varias capitais, inclusive Brasília, encerrando-se na Bienal do Livro de São Pau-lo, onde ocupou lugar de destaque.

Page 293: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 291

Para acompanhar esta exposição, confeccionou-se um catálogo que contou com a dedicada e segura orientação de James Amado. Desde então passei a admirá-lo: sua competên-cia, sua segurança, sua criatividade, a maneira sutil com que tentava mascarar com um modo, às vezes brusco e impaciente, o grande potencial de ternura e sensibilidade que o tornavam inigualável.

Sua personalidade não permitia excessos, duplicidades, he-sitações. Tinha suas certezas, referências e limites de quem conhe-cia de perto as várias formas de realizar-se numa vida plenamente exercida em harmonia com as próprias ideias e convicções.

Um elogio de James Amado, não era apenas uma afetu-osa aprovação, era o resultado de uma reflexão que nos fazia acreditar na importância de nosso trabalho. A segurança de que ele estava ali, sempre presente, no incentivo, na afirmação, na solidariedade. Sem derramamentos, sem floreios, sem desdobra-mentos desnecessários.

A Fundação Casa de Jorge Amado, que ele tanto ajudou, não só durante sua criação, mas na destacada participação em seu Conselho Curador, com sua presença amiga, com seus en-sinamentos, com sua força, deve-lhe duas dádivas importantes: a estátua do Exu, de autoria de Tati Moreno, que na entrada da Casa defende seus caminhos, e o baianíssimo lema que a distin-gue “se for de paz, pode entrar”.

Aqui, nesta Academia, sua presença constante, — confra-de, companheiro, amigo —, alegrava nossas sessões, enriquecia nossas discussões, transformava as tardes de encontro em moti-vo de confraternização e de aprendizagem.

para situar James Amado, de uma forma mais afetiva, nesta hora de tanta saudade e emoção, socorro-me de um texto magnífico escrito por ele quando das comemorações pelos 70 anos do romance Jubiabá, num seminário realizado aqui mes-mo, nesta Academia, numa parceria com a Fundação Casa de Jorge Amado.

Page 294: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

292 ◄◄

Aliás, a respeito deste episódio, recordo que, ao convidá-lo para abrir o seminário com que marcaríamos a passagem de tão importante data, ele a principio modestamente esquivou-se, mas vendo meu desapontamento diante da recusa voltou atrás e com-prometeu-se a atender a meu pedido.

Este texto, ao tempo que tece comentários e referên-cias a esse romance, tão significativo na obra de Jorge Amado, proporcionou-lhe a oportunidade de, fazendo um retorno no tempo, recuperar momentos perdidos de sua infância que o situam aos sete anos, servindo de moleque de recados para Edison Carneiro, que ele chamava de Mestre Antigo, amigo inseparável de seu irmão mais velho, na casa de seu pai, João Amado de Farias, em Ilhéus.

Através desse mesmo texto ficamos sabendo que em 1935, aos seus 12 anos, já deixara o internato da Cruz do Pascoal e es-tava morando com os pais na Gamboa, em Salvador, onde fora recebido, com muita alegria, recém-chegado do Rio de Janeiro, seu irmão mais velho, Jorge, que ali viera para apresentar-lhes a netinha Lila, recém- nascida, de seu casamento com Matilde Garcia Rosa, que o acompanhava, e para lhes ofertar um exem-plar de seu novo romance, Jubiabá, quarto na sequência, então publicado pela prestigiosa editora José olímpio, com capa de Santa Rosa, acompanhado de 37 textos de criticas onde os méri-tos do autor eram fartamente evidenciados.

o terceiro presente, segundo ele o mais esperado, era o retrato do filho mais velho no quadro de formatura da turma de bacharéis na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, então Capital Federal.

A descrição da cena do pai emocionado e as recordações daquele momento fazem com que esta passagem se projete como um testemunho raro em que a literatura corporifica um momento especial da vida, transformando a memória de um instante vivido em quadro de primeira grandeza no painel dos acontecimentos de uma existência.

Page 295: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 293

o relato desse fato e as emoções ali retratadas: o dialogo, quase uma confissão, do velho João Amado diante da prova, tão esperada, do êxito do filho mais velho, misturado às lem-branças de sua própria vida, quando aos 10 anos de idade co-meçara a labutar pelo sustento e onde, segundo suas palavras, “comeu da banda podre”, até tornar-se um homem de verdade, um verdadeiro “coronel” do cacau, na florescente civilização grapiuna.

A confissão de que os anos passados na espera que o fi-lho mais velho cumprisse a palavra, trazendo para casa o tão ambicionado diploma, o fizeram chorar várias vezes, escondido na rede da fazenda, com medo de que as tentações da cidade grande o fizessem desviar-se da rota pretendida, compõe uma das cenas mais tocantes de nossa literatura.

O velho pai emocionado a relatar ao filho mais jovem, qua-se uma criança, todos os sonhos, todas as angústias de um senti-mento de ver cumprido pelo primogênito o ambicionado troféu, o sonho de uma vida que ele próprio nunca conseguiria realizar: o ambicionado título de doutor, que iria justificá-lo de todos os sacrifícios que fizera para que isso um dia acontecesse.

Nesse texto, que consideramos exemplar, James Amado, demonstra toda sua sensibilidade, todo seu carinho pela família: pelos pais, pelos irmãos, pelos netos e sobrinhos a quem sua presença nunca ficou distante.

Assim nos recordamos de James Amado e assim retoma-mos o fio desta história singular. Daquela noite que não vivemos realmente, mas que, pela imaginação, conseguimos reencontrar com todo o carinho, toda a admiração que teríamos testemu-nhado e, em nossa saudade, abraçamos mais uma vez o amigo, o confrade, o conselheiro, o que sempre esteve presente, o que soube cultivar afetos e afinidades.

Cioso do seu compromisso, acompanhando o calendário das reuniões e efemérides da nossa Academia, com a mesma assiduidade e o mesmo interesse que sempre demonstrara pelas

Page 296: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

294 ◄◄

atividades às quais se dedicara, em sua longa e proveitosa exis-tência, James Amado cumpriu fielmente o espírito desta Casa, que é o da convivência e da fraternidade, sob a égide das Letras. Por isso e por muito mais, será aqui sempre lembrado como convém a um verdadeiro imortal.1

Myriam Fraga é poeta, diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, conferencista no Brasil e no exterior. publicou, dentre outros, Sesmaria (prêmio Arthur de Sales), Femina e Poesia reunida, o ensaio Le-onídia: a musa infeliz do poeta Castro Alves, e obras infanto-juvenis sobre vultos como Castro Alves, Carybé e Jorge Amado. Desde 1985 ocupa a Cadeira número 13 da ALB.

Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, como oradora de sessão especial em homenagem póstuma ao acadê-mico James Amado, no dia 3 de abril de 2014.

Page 297: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 295

A REVIVESCÊNCIA DE ANNA AMÉLIA VIEIRA NASCIMENTo

Sessão de saudade

edivAldo m. boAventurA

Escolhemos Anna Amélia Vieira Nascimento para suceder a Eloywaldo Chagas de oliveira, na Cadeira de número 3, pa-

trocinada por Manuel Botelho de oliveira e ilustrada por Arthur de Salles. Não havendo especialidade na Academia, a historiado-ra colheu a sucessão do matemático.

Em Anna Amélia refletiam-se duas tradições familiares da maior significação social, política e intelectual da Bahia: o São Francisco e o Recôncavo. pelo lado materno, provinha dos Ma-riani do São Francisco. Descendente, portanto, daquele lendário italiano de Ajaccio, na Córcega, Antônio Mariani, que, no século XVIII, emigrara para a Villa da Barra do Rio Grande, às mar-gens do Velho Chico. Deixou descendência e não mais retornou ao seu país (NASCIMENTo, 2008, p.12).

A outra herança é encrustada no Recôncavo. Anna Amé-lia descende de pedro Ribeiro, herói das guerras de indepen-dência. O major Pedro Ribeiro, valente e incansável lutador da causa da independência, foi retratado pela sua neta, a ro-mancista Anna Ribeiro de Góes Bittencourt, nas magníficas memórias, Longos serões do campo. o livro demonstra a relevân-cia da família, o privado, sobrepondo-se ao público e revela os contrastes das condições físicas, econômicas e morais que separaram o Recôncavo do Sertão há quase dois séculos. Ana-lisa o período pós-independência, a ambiência do Recôncavo,

Page 298: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

296 ◄◄

sobretudo da região do Rio Pojuca, seus meios de transporte, locomoções e modo de vida familiar.

Anna Amélia “generosamente partilhou seu legado de anotações sobre D. Ana, até por ceder os manuscritos que ser-viram de base para essa edição”, informa Maria Clara Mariani, organizadora da obra. (BITTENCoURT, 1992, v.1, p.8). Era Anna Amélia filha de Anna (Anita) Mariani Bittencourt Cabral e do engenheiro José Manso Cabral, de procedência mineira. Nas-ceu em Salvador a 4 de maio de 1930 e partiu para bíblica região do silêncio, em 22 de janeiro de 2014. Casou-se com José Viei-ra Nascimento e foi mãe de cinco filhos: José Henrique, Anna Guiomar, Lourdes Maria, Paulo José e Antônio José. Vejamos, primeiramente, a sua formação em história e em seguida a sua obra escrita e administrativa.

A formação em história

Anna Amélia cresceu nesse ambiente tradicional das grandes famílias com influência na vida política da Bahia. Na sua formação historiográfica, destaca-se o contributo de Wan-derlei Pinho. É bem de se notar que tanto Luís Henrique Dias Tavares, que foi aluno de Wanderlei Pinho e sucessor na Cadei-ra de número um, como Consuelo pondé de Sena, sua aluna, ambos o enaltecem como marcante conhecedor da História do Brasil. Pelo visto, a nossa agremiação forma redes eletrônicas de conhecimento, aprendizagem, relacionamento, homenagem e de saudades.

Anna Amélia licenciou-se em História e Geografia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, a nossa Ufba, em 1953. Com Wanderlei pi-nho, aprendeu o caminho dos arquivos, na expressão afortu-nada do nosso José Calasans. Ensinou também História do Brasil, na faculdade que a formou, de 1955-1958, logo depois de diplomada.

Page 299: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 297

E como aprendeu o caminho dos arquivos! Mas indaguemos: por que escolheu a História? Na entrada para essa Companhia, confessou: “Foi, sem

dúvida, o amor a essa cidade e às suas raízes que me levou ao estudo da História, e é, assim, que ingressei nesta academia tri-lhando os caminhos da História, que é uma ciência social, mas também uma criação elaborada de pesquisa metodológica [...]” (NASCIMENTo, 1994, p.371).

optou pela história social, preservando como campo empírico de suas investigações científicas o Convento do Des-terro. Buscou também as fontes primárias no arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia (NASCIMENTo, 1992, 2002).

Da aprendizagem com os franceses, passou a trabalhar com história social a partir de 1975. Complementa Norma de Góes Monteiro: “As fontes históricas e a metodologia utilizada por Anna Amélia refletem o espírito da moderna escola fran-cesa, fundamentada numa larga base demográfica e econômi-ca” (NASCIMENTO, 1986, Prefácio, p.18). Coube à professora Adeline Daumard, da École Pratique des Hautes Études da então Universidade de paris e da Universidade da Picardie, em Amiens, orientá-la na sua dissertação de mestrado. Na edição francesa, agradeceu a Kátia Queiróz Mattoso e a Jacqueline Mauro-Drey-fus o apoio para apresentar a dissertação de mestrado. Agrade-ceu também a Consuelo Pondé de Sena, pela abertura de arqui-vos necessários.

Na progressão de sua formação, realizou os estudos pós-graduados na França, onde obteve o mestrado na Universidade da Picardie (Université Jules Vernes) em Amiens, com a dissertação: Le Couvent de Sainte Claire au Desert de la Baie de Tous les Saints. His-toire d`une fondation religiuese au XVII ème siècle (NASCIMENTo, 1976). Trata-se de um trabalho sobre a vida de uma comunidade religiosa, durante o período colonial, não somente da origem e fundação como também dos aspectos profanos, sumamente importantes para o conhecimento da sociedade colonial.

Page 300: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

298 ◄◄

prosseguiu na rota do doutorado de terceiro ciclo na École Pratique des Hautes Études, seção de Ciências Sociais, em paris, com registro da tese, na Universidade paris X, em Nan-terre. Estudou com os professores franceses: Frédéric Mauro, doutor Honoris Causa pela Ufba, Adeline Daumard, na Uni-versidade da Picardie, Bergueron e com Bartolomé Benasser cursou História das Mentalidades (ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA,1994, 2014, Cadeira 3).

As pesquisas incrementaram a produção acadêmica. É a vertente da obra escrita. Entrementes, em 1979, Anna Amélia iniciou a gestão do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). É a sua obra administrativa. Vejamos, portanto, esses dois seg-mentos produtivos, a obra escrita e a obra administrativa, como manda a santa e boa razão.

A história social no período colonial No que tange à obra O Convento do Desterro da Bahia (NAS-

CIMENTO, 1973), José Calasans destacou no prefácio “de um lado, a segurança com que vossos estudos fixaram a vida de uma instituição religiosa intimamente ligada à família patriarcal bra-sileira e, do outro lado, declara que a investigação histórica ma-nifesta uma forma de vossa realização pessoal” (apud VEIGA, 1994, p.383).

À pequena edição da Gráfica Indústria e Comunicação de O convento do Desterro da Bahia (NASCIMENTo, 1973), segue-se o alentado tomo Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia 1677-1890, edição do Conselho Estadual de Cultura de 1994 (NASCIMENTo, 1994). obra es-sencial para o conhecimento do relacionamento religioso com a sociedade, a economia e política colonial.

No auge, o Convento do Desterro abrigou 500 mulhe-res, compondo-se de religiosas professas, noviças, mulheres (retiradas) confinadas no Convento, jovens levadas para serem

Page 301: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 299

educadas, domésticas e escravas. o mundanismo imperava. Atenção para esta síntese sobre Patriarcado e religião: “são for-mas de dominação das mulheres em geral e de freiras em par-ticular. A história da primeira casa monacal feminina da Bahia é descrita com abordagem religiosa, social e econômica de 1677 a 1890. Os reflexos da história da cidade do Salvador e da Bahia que atingiram o mosteiro são analisados e interpretados” (NASCIMENTO, 1994, quarta capa).

Acompanham essa edição os anexos com as fontes pri-márias, nomes e informações dos pais das religiosas, nomes das freiras professas, resumo do livro de entrada. Vale ressaltar que os trabalhos de Anna Amélia são fartamente referenciados com notas, constando tanto as fontes primárias como as secundárias, atestando a acuidade da notória pesquisadora.

Em 1990, o Centro de Estudos Baianos, então, dirigido pelo nosso confrade Fernando da Rocha peres, publicou A postura escravocrata no convento de religiosas (NASCIMENTo, 1990, nº 142). É uma contribuição ao debate do tema igreja e escravidão. Este estudo foi apoiado pelo CNPq e integra um outro maior: Projeto de História Social da Mulher na Bahia, focalizando as religiosas enclausuradas. Na mesma coleção do Centro de Estudos Baianos, Anna Amélia deu à estampa Letras de risco e Carregações no comércio colonial da Bahia 1660-1730 (NASCIMENTo, 1977, nº 78).

Na bibliografia de Anna Amélia (1986), destaca-se: Dez freguesias da Cidade do Salvador: aspectos sociais urbanos do século XIX. Lembro-me muito bem que, tomando conhecimento desse trabalho, despachando comigo na Secretaria, insisti para que o publicasse. É um estudo da vida social e urbana da Bahia pro-vincial, tendo por base fontes do Arquivo Público. Para Mircea Buescou, que o prefaciou (NASCIMENTO, 1986, prefácio), o livro, que trata da história econômica, ressalta a importância des-se estudo para a história regional. A proliferação desse tipo de trabalho regional possibilitará a integração futura numa grande história do Brasil.

Page 302: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

300 ◄◄

Em conformidade com a opção da história social no período colonial, há os trabalhos sobre a Santa Casa de Miseri-córdia: libelos de divórcio e nulidades, formação de famílias de baixa renda, estrutura cristã do matrimônio. Contribuiu para a temática baiana da Casa da Torre, governo Seabra, sociedades comanditárias, narrativas de tradições familiares.

Em 1997, organizou o arquivo da Federação das Indús-trias do Estado da Bahia (FIEB) e em seguida publicou a Me-mória dessa corporação. (NASCIMENTO, 1997). Esse órgão de classe empresarial estava completando o cinquentenário (NASCIMENTo, 1996). Do mesmo modo, orientou a classi-ficação do Arquivo Otávio Mangabeira, no Tribunal de Justiça da Bahia, em 1990.

Anna Amélia iniciou a monografia A Quinta do Tanque: um monumento a serviço da cultura da Bahia (NASCIMENTo, 1980; NASCIMENTO, 1998), mencionando a doação do terreno pelo governador Tomé de Souza aos jesuítas que aí construíram uma casa de repouso distante do centro da cidade. Essa morada alber-gou o padre Antônio Vieira quando regressou definitivamente à Bahia, onde revisou os seus sermões, todavia a deixou nos anos finais: “Adeus Tanque, não vou buscar saúde, nem vida, senão um gênero de morte mais sossegado e quieto” (apud NASCI-MENTO, 1980, p.12-13), indo para o Colégio Geral de Salvador. Existe um pedestal com esse trecho completo na Quinta. pois bem, com a expulsão dos padres da Companhia de Jesus do reino de Portugal, a Quinta foi levada a leilão e lá se instalou o Hospital São Cristóvão para os lázaros. Passou à gestão da Santa Casa de Misericórdia e, foi doada ao Estado. Quando os doen-tes foram deslocados para Águas Claras, o monumento caiu no abandono total.

Passemos à sua obra administrativa, seguindo o caminho dos arquivos até alcançar os municípios.

Page 303: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 301

o caminho dos arquivos

Em pleno ciclo produtivo, Anna Amélia, conhecedora dos arquivos, foi nomeada para dirigir o Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Foi a nona diretora da instituição e a primeira mulher a ocupar a direção. Exerceu o cargo em dois períodos: de 1979 a 1987 e de 1991 a 2002, durante quase vinte anos.

Por necessidade de maior espaço, mudou o Arquivo do prédio da Rua Carlos Gomes para a Quinta do Tanque, que tinha sido restaurada pela Secretaria de Indústria, Comércio e Turismo para a Bahiatursa, no governo Roberto Santos, confor-me projeto de Paulo Ormindo de Azevedo, nosso confrade. As novas instalações foram adaptadas com Laboratório de Restau-ração de Documentos, desumidificadores, outros equipamentos e construção de anexo.

Tive a satisfação de trabalhar com Anna Amélia no perío-do de 1983 a 1987. No início da minha segunda gestão à frente na Secretaria de Educação e Cultura, preparava as leis que cria-ram a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), o Instituto Aní-sio Teixeira (IAT) e estruturaram os organismos da Secretaria e inclui a lei de proteção aos arquivos públicos e privados, que criou o sistema estadual de arquivos (Lei Delegada nº 52, de 31 de maio de1985, D.O. de 01 jun.1983). Deu-me uma satisfação muito grande a oportunidade de poder contribuir para a organi-zação e o sistema dos arquivos baianos.

À época, Anna Amélia trouxe três competentes especia-listas do Arquivo Nacional, Helena Machado, Norma de Góes Monteiro e Célia Camargo, que me assessoraram na redação desse definidor diploma legal. Realmente, tínhamos consegui-do um avanço. Anos depois Anna Amélia confirmou: “O Ar-quivo do Estado da Bahia foi dos primeiros, senão o primeiro a se articular em um Sistema, integrando à rede de arquivos cor-rentes, intermediários e permanentes da Bahia ao sistema maior que é o Sistema Nacional de Arquivos” (NASCIMENTO, 2994,

Page 304: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

302 ◄◄

p.885-887). possibilidades foram abertas para se por em ordem o recolhimento de papéis históricos e a criação de Arquivos municipais (NASCIMENTo, 2004, 887, e NASCIMENTo, ofício de 14 mar.1984).

Acompanhei o edificante trabalho de Anna Amélia de estímulo e criação dos arquivos municipais. O arquiteto Dival-do Alcântara (2014), companheiro de trabalho na Secretaria de Educação e Cultura, coordenou o Projeto dos Arquivos Muni-cipais e informa:

Objetivando minimizar as deficiências existentes no trata-mento dado pelas Prefeituras Municipais, o Arquivo Pú-blico do Estado da Bahia (ApEB), na época dirigido pela acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento, executou um projeto que objetivou orientar e apoiar os gestores muni-cipais para que a produção da documentação observasse as normas técnicas que norteiam as práticas arquivistas, contribuindo para a guarda e preservação da memória do-cumental das comunidades beneficiadas.

Para concluir, uma menção à entrada nesta Companhia.

o ingresso na Academia

Em suma, tanto a sua obra de história social, que enfocou a sociedade colonial, como a maior visibilidade à frente do Ar-quivo Público vão contribuir para projetar a historiadora Anna Amélia Vieira Nascimento na comunidade acadêmica.

Personalidade comunicativa, currículo enriquecido de cursos e cargos, e obra publicada, habilitaram o seu ingresso neste Sodalício.

A candidatura de Anna Amélia nasceu em uma clara ma-nhã de domingo. Em casa de Carlos Eduardo da Rocha, reu-niam-se os acadêmicos Luiz Viana Filho, Wilson Lins, Cláudio Veiga, Renato Berbert de Castro e nós. por vezes, comparecia

Page 305: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 303

também o casal Anna Amélia e José Vieira Nascimento. Em um desses aprazíveis encontros dominicais, acordamos na candi-datura de Anna Amélia para suceder ao professor Eloywaldo Chagas de Oliveira. Tínhamos a participação do presidente e anuência do confrade Jorge Calmon.

Contribuiu para aproximá-la mais ainda da Academia o convite do presidente Cláudio Veiga para falar no centenário do acadêmico e diretor do Arquivo Público Alfredo Pimentel. Anna Amélia o considerava “O guardião do patrimônio documental baiano”. Ele foi titular da Cadeira de número 30, patrocinada pelo notável botânico Joaquim Monteiro Caminhoá, e organi-zador do número 10 do periódico dedicado ao centenário de Castro Alves.

As démarches do nosso complicado processo eleitoral conduziram Anna Amélia à Agremiação. Na sessão de 22 de junho de 1991, para a constituição da lista dos candidatos à vaga, obteve 22 indicações. Em 21 de agosto seguinte, elegeu-se com 23 votos. Em 26 de março de 1992, deu-se a sua insepcio com a saudação cadenciada e erudita do presidente Cláudio Veiga (ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, 1994, p.34-35, 242-245).

A tomada de posse foi bem o momento de pontuar a for-mação, a obra aportada e o cargo ocupado, com previsões alvis-sareiras da boa convivência. Mas o sempre lembrado presidente foi ainda mais enfático recepcionando Anna Amélia: “ela (a elei-ção) é acima de tudo a convocação de alguém que, por seu valor, engrandeça a instituição e, por sua dedicação, traga um apoio á sua operosa existência” (VEIGA, 1994, p. 381).

A entrada de Anna Amélia nessa agremiação formou um triângulo: Faculdade de Filosofia, Convento do Desterro e Aca-demia de Letras. Explico. Diplomou-se, pela Faculdade de Fi-losofia e Ciências Humanas da Ufba, então, instalada na antiga Escola Normal, em frente a esta Academia, hoje é um próprio do Ministério Público Estadual. Enclausurou-se nas pesquisas

Page 306: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

304 ◄◄

no Convento do Desterro, que se situa na ponta extrema do Solar Góes Calmon.

A eleição acadêmica consagrou o esforço de pesquisa-dora, escritora e promotora da cultura. o seu discurso de toma-da de posse foi linearmente canônico. Fez o cotejo poético entre Botelho de oliveira e Arthur de Sales e o elogio do inteligente professor Eloywaldo.

Meu caro presidente Aramis Ribeiro Costa, caros con-frades, confreiras, prezado José Vieira Nascimento, filhas e fi-lhos e familiares de Anna Amélia!

Esta é uma tarde evocativa de revivescência da nossa muito querida Anna Amélia Vieira Nascimento, que continua presente no nosso afeto.

Pesquisadora pertinaz devotou-se ao fazer histórico. Re-conheçamos, no embalo da nossa recordação, que Anna Amélia nos legou uma obra. obra escrita e obra administrativa.

É o espírito construtor da pesquisadora que procuramos evocar com o nosso reconhecimento e com a homenagem da nossa saudade.

Grato a todos pela presença e mais ainda pela atenção.

Page 307: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 305

BIBLIOGRAFIA DE ANNA AMÉLIA VIEIRA NASCIMENTo

LIVRoS

NASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. O convento do Desterro da Bahia. Salvador: Ed. Gráfica Indústria e Comunicações Ltda, s/d [1973?] 128 p.NASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. Le Couvent de Sainte Claire au Desert de la Baie de Tous les Saints: histoire d` une fondation réligieuse au XVIIè. Siècle. Salvador, 1976 (mimeo).NASCIMENTo, Anna Amélia Vieira.“Letras de risco” e “Carrega-ções” no comércio colonial da Bahia. 1660-1730. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA. nº 78, 1977.43 pNASCIMENTo, Anna Amélia Vieira A Quinta do Tanque: um monumento a serviço da cultura da Bahia. Bahia: Governo do Estado, Secretaria de Educação e Cultura/ Arquivo do Estado da Bahia, 1980. 56 p. NASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da Cidade do Salvador. Aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador: Funda-ção Cultural do Estado da Bahia, 1986. 204 pNASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. A postura escravocrata no convento de religiosas. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA, nº 172, 1990. 449.NASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: as en-clausuradas clarissas do convento do Desterro da Bahia 1677-1890. Sal-vador: Conselho Estadual de Cultura, 1994. 492 pNASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. Memória da Federação das Indústrias do Estado da Bahia. Salvador: FIEB, 1997. 269p.

Page 308: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

306 ◄◄

ARTIGOS E PERIÓDICOS

NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Alfredo Pimentel: o guardião do patrimônio documental baiano”. Rev. ALB, Salva-dor, v. 32, p.123-133, 1985.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “As memórias de D. Anna Ribeiro de Góes Bittencourt”. Rev. ALB, Salvador, v.37, p.181-188, 1991.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “A pobreza e a honra recolhidas e dotadas na Santa Casa de Misericórdia da Bahia”. 1700-1867. Rev. ALB, Salvador, v. 38, p.123-134, 1992.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Libelos de divórcio e nulidades de matrimônio: a desorganização da família no século XIX”. Rev. ALB, Salvador, v. 39, p.59-73, 1993.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Pedro Calmon e a his-tória da Casa da Torre”. Rev. ALB, Salvador, v. 40, p.87-99, 1994.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Discurso de Posse” Rev. ALB, Salvador, v. 40, p.371-388, 1994.NASCIMENTo, Anna Vieira. Nascimento. Anna Amélia Viei-ra. Rev. ALB, Salvador, v. 41, p.124, 1995. Índice até o 40º da Rev. ALB.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Alguns aspetos do pri-meiro governo de Seabra (1912-1916)”. Rev. ALB, Salvador, v. 42, p.173-187, 1996.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Breviário da Quinta do Tanque”. Rev. ALB, Salvador, v. 43, p.83-198, 1998.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Notícias da Conspira-ção dos Alfaiates”. Rev. ALB, Salvador, v. 44, p.93-102, 2000.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “À sombra da caridade: formação de famílias de médios extratos sociais pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia”. Rev. ALB, Salvador, v. 45, p.37-50, 2002.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Sociedades comanditá-rias na Bahia”. Rev. ALB, Salvador, v. 46, p.97-105, 2004.

Page 309: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 307

NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Os arquivos e o pro-fessor”. In: MATTA et al., Alfredo (org.). Educação, Cultura e Direito: coletânea em homenagem a Edivaldo M. Boaventura. Salvador: Edufba, 2004. p. 885-887.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “O mundo luso-brasilei-ro nos séculos XVII e XIX”. Rev. ALB, Salvador, v.47, p.135-142, 2006.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Formação das estrutu-ras cristãs do matrimônio, concessão dos dotes e arras”. Rev. IGHB, Salvador, v. 101, 9.55-72, 2006.NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Narrativas de tradições familiares”. Rev. ALB, Salvador, v. 48, p.11-29, 2008.

REFERÊNCIAS

ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Cadeira nº 3. In: ____Anuário da Academia de Letras da Bahia 2. Salvador: Quarteto, 2014.p.18-20.BAHIA. Lei Delegada nº 52, 31 maio 1983. Dispõe sobre a pro-teção dos arquivos públicos e privados, e dá outras providências. Estrutura legal da Educação Baiana. Secretaria de Educação e Cul-tura do Estado da Bahia. Salvador: ASSED, 1984, p.21-24.BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. Longos serões no campo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 2 v. Organização e notas Maria Clara Mariani Bittencourt.BoAVENTURA, Edivaldo M. A palavra e a convivência. In:___O território da palavra. Salvador: Ianamá, 2001, p.17-24.CApUT, Jean-pol. L’Academie Française. paris: pUF, 1986.CASTRo, Renato B. Breviário da Academia de Letras da Bahia 1917-1994.2. ed. atual. e aum. Salvador: Conselho Estadual de Cultura,1994.NUNES, Antonietta d’Aguiar. Arquivo Público da Bahia: constituição e trajetória. In: SILVA, João Carlos da, ORSO, Paulino José, CAS-TANHA, André Paulo, MAGALHÃES, Maria Diana Rocha (Orgs). História da Educação. Campinas Sp: Alínea, 2013, p.229-262.

Page 310: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

308 ◄◄

VALERY, paul.Regards sur le monde actuel. Paris: Gallimard, 1945.VEIGA, Cláudio. Discurso de recepção à acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento. Rev. ALB, v. 40, p.381-388, 1994.

DoCUMENToS

ALCÂNTARA, Divaldo Informações sinópticas sobre a execução do Projeto de Arquivos Municipais pelo Arquivo Público do Estadual no final da década de 90. Salvador, 2014.NASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. ofício de 24 de maio de 1984 ao secretário de Educação e Cultura da Bahia.NASCIMENTo, Anna Amélia Vieira. ofício de 23 de fevereiro de 1987 ao secretário de Educação e Cultura da Bahia1

Edivaldo M. Boaventura é bacharel em direito e em ciências sociais, mestre e Ph.D. em educação, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros de ensaios, sócio de inúmeras instituições culturais no Brasil e no exterior. É orador oficial do Instituto Geográfico e Históri-co da Bahia. Foi secretário de Educação e Cultura do Estado da Bahia, diretor-geral do jornal A Tarde e presidente da Academia de Letras da Bahia, da qual é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a Cadeira número 39 da ALB.

Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, como orador de sessão especial em homenagem póstuma à acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento, no dia 10 de abril de 2014.

Page 311: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 309

À MEMÓRIA Do ACADÊMICo GERSON PEREIRA DOS SANTOS

Sessão de saudade

João euriCo mAttA

Na sessão regimental da tarde do dia 27 de março p. p., dedicada a depoimentos informais de nós, acadêmicos,

em homenagem aos confrades recém-falecidos James Amado, Anna Amélia Vieira Nascimento e Gerson Pereira dos San-tos, recordei com emoção que há mais de seis décadas, desde 1951 a 1953, por três anos letivos no então formidável Colégio Estadual da Bahia (o Central ), fomos, eu e Luiz Humberto Maron Agle beirando os 16 anos de idade, colegas de turma e contemporâneos muito próximos amigos do jovem Gerson pereira, assim chamado ao completar seus 19 anos em feverei-ro de 1951. De nossa estudiosa e alegre turma colegial fizeram parte Ademar Bento Gomes e o hoje saudoso Gabino Kawark Kruschewsky, entre as garotas Yara Celestino e a hoje saudosa Maria Lina Foeppel. Fomos alunos de grandes mestres, res-salto três, de língua e literatura, que nos influenciaram muito, os hoje saudosos Manuel Peixoto, de inglês; o folclorista Luiz Almeida, de francês; e o latinista Auto José de Castro. Gerson e eu, mais do que Agle, estudávamos profundamente autores ingleses, franceses e latinos, bem como autores italianos e ale-mães, portugueses e brasileiros. Apresentávamos nossos en-saios em sala de aula, alguns dos meus publicados em jornais de Salvador até 1954, quando ingressamos por vestibular na Faculdade de Direito de mestre Orlando Gomes. Cursamos

Page 312: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

310 ◄◄

juntos o primeiro ano letivo, mas Gerson se transferiu para São Paulo, onde concluiu o Bacharelado em Direito e perma-neceu por sete anos, profissionalmente ocupado com a chefia do Departamento Jornalístico da Esso Brasileira de petróleo. Em São Paulo, 1959, Gerson Pereira, com este nome, publicou o livro de poemas intitulado Fuga e latitude, o bastante para que o notável romancista santamarense Clóvis Amorim iniciasse o seu prefácio de três páginas, intitulado “Com Licença”, à publi-cação de Gerson Pereira, Tempo de romance, Imprensa Oficial de Santo Amaro-Bahia, 1968, com o seguinte parágrafo:

Gerson Pereira, poeta bissexto, cronista, homem de jornal e publicidade, juiz acostumado a lidar com as leis na série complexa das ciências do Direito, revela-se, agora, um primoroso ensaísta, com esse Tempo de romance, muito bem escrito, onde há observações e conclusões, tantas e quantas, maduramente refletidas e duma nitidez de sínte-se, sem isso de minúcias ornamentais e inoportunas. Vale esse opúsculo pela soma de conhecimentos absorvidos e também como trabalho de seleção e de investigação, que presumem longa experiência de seu autor em tais assuntos. Com as suas humanidades bem aprendidas, dotado desse natural bom gosto que a cultura aprimorou, de intuição à altura das verdades fugidias, só percebidas pelos espíritos de escol, ninguém melhor aparelhado do que esse moço para as tarefas que bem exprimam força criadora.

Nessa ocasião já estava Gerson de retorno à Bahia desde

1961, ano em que esse moço de 29 anos, nascido em Mata de São João — Bahia, a 29 de fevereiro de 1932, ingressou, por concurso, na magistratura, como Pretor e Juiz de Direito que serviria, nos anos seguintes até 1978, “em Encruzilhada, Ita-quara, Catu, Santo Estêvão, Conceição do Almeida, Casa Nova, Santo Amaro, Mata de São João e Salvador, obtendo todas as promoções por merecimento, inclusive para Desembargador do

Page 313: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 311

Tribunal de Justiça do Estado, em 1978”, para este cargo de topo de carreira nomeado pelo então governador Roberto Santos.

Naquele ano, 1968, do prefácio do romancista Clovis Amorim ao opúsculo Tempo de romance, o jovem “espírito de es-col” já tinha publicado, no ano de seu retorno à Bahia, o en-saio O Romance total de Charles Morgan, Salvador, 1961, e o ensaio jurídico Aspectos da prejudicalidade, Salvador, 1967. Mas insisto aqui num comentário sobre as dezenove páginas daquele denso, de citações de autores magníficos e excertos em vários idiomas, e brilhante ensaio Tempo de romance, de 1968, para enumerar e enunciar, chamando especial atenção dos que me escutam, os seis títulos, em maiúsculas — como o próprio Gerson grafou, — de suas seções: 1. QUERENÇA E MISTÉRIo; 2. REALI-DADES; 3. FoRMA E ESSÊNCIA; 4. RoMANCE NoVo; 5. poESIA No RoMANCE; 6. o RoMANCE E o TEMpo. Pois eis que trinta e cinco anos depois, em 2003, na edição bela-mente ilustrada de sua magistral coletânea de ensaios, sob o títu-lo Aquelas noites tristes de exílio, Salvador, Fundação Gregório de Mattos, Gerson Pereira dos Santos (seu nome de autor há déca-das) apresenta uma “Introdução” com uma epígrafe ou mote in-titulado Tempo de romance em que transcreve, entre aspas, um lon-go comentário sobre “o meu romance”, de José Geraldo Vieira (A quadragésima porta), um ficcionista brasileiro de acentuada pre-dileção do Gerson colegial daqueles anos 1951-54, seguida de uma reescrita, atualização, acréscimo e aprofundamento daquele seu texto de 1968, adicionando àquelas seis seções outras novas que intitula PROTOCOLOS FICCIONAIS e RETÓRICA DA IRoNIA, nesta transcrevendo pertinentes excertos de Lawrence Sterne (Uma viagem sentimental), de Machado de Assis (Quincas Borba), de Vladimir Nobokov (Pnin), de Machado de Assis (Dom Casmurro e Esaú e Jacó), de João Ubaldo Ribeiro (Um brasileiro em Berlim) e de Jorge Amado (Jubiabá). A seguir, das págs. 41 a 244, publicam-se os oito requintados, verdadeiramente scholarly en-saios sobre Hermann Broch: Tempo e solidão; Vladimir Nabokov:

Page 314: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

312 ◄◄

Paisagem e memória; Ismail Kadaré e os cinco malditos da Albânia, agrupados sob o título A PÁTRIA QUE SE LEVA PARA O EXÍLIo; Dino Buzzati: O deserto dos tártaros; Uwe Johnson: Su-posições acerca de Jacó, agrupados sob o título o EXÍLIo CoMo ALEGORIA; e Joseph Conrad: A inflexibilidade ética; Thomas Bernhard: Extinção: uma anti-autobiografia?; e A propósito de James Joyce: decriptações.

Curiosamente, Gerson faz publicar, na contracapa dessa edição de Aquelas noites tristes de exílio, excertos do prefácio de Clóvis Amorim ao seu Tempo de romance, como: “Escritor, e dos melhores... Ensaísta, é dos poucos que ostentam poder criador... Ele é ele, com a cabeça no lugar, dono de seu nariz e da sua pena...” E põe, nas orelhas da capa, um precioso comentário crítico, “Prazeres do exílio”, da lavra do nosso confrade acadê-mico laureado Hélio Pólvora, ficcionista, cronista e ensaísta dos maiores do Brasil, que afirma sobre Aquelas noites... tratar-se de “um passeio, com um guia dos mais eruditos, pelos romances de ideias, de formação... A teia armada por Gerson Pereira dos Santos chega aos nossos dias, alcança a prosa de ficção brasileira, da qual ele parece ser também um acompanhante assíduo e aten-to...” Pois não é que Gerson vai publicar, em 2010, um alentado romance, de 340 pp., A ninfa e a gazela, Nova Alvorada Edições, Belo Horizonte, Brasil, que conta com uma apresentação de três páginas do nosso confrade Hélio pólvora, com o mesmo título do livro, onde se lê: “O fulcro do romance está nesse audaz in-ter-relacionamento: um trio em dó sustenido menor... Um tema quase proibido, em termos de tabu, ao qual se furtam autores menores, em vista dos óbices de expressão. E saiu-se bem...” Na mencionada sessão acadêmica dos depoimentos de saudade, o mesmo mestre escritor Hélio pólvora enviou-nos um texto em que diz: “O acadêmico Gerson Pereira dos Santos era um lei-tor de mestres supremos. Escreveu romances, mas o que nele so-bressai é a presença do crítico capaz de diálogos profundos com textos alheios... Foi um scholar. ... O discurso com que ingressou

Page 315: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 313

nesta Academia de Letras da Bahia e que ele reproduziu em seu livro O solitário ofício de julgar , é e será sempre uma página brilhante da prosa acadêmica brasileira.”

A alusão a esse livro sobre “o ofício de julgar” nos leva ao outro Gerson das Letras, agora o titular da Academia de Le-tras Jurídicas da Bahia, que nesta qualificação pronunciou, em 1992, ao ensejo do centenário de nascimento de meu pai Edgard Matta — advogado criminalista e professor de Economia, ad-mirador da carreira de intelectual de Gerson —, um eloquente discurso-registro encomiástico. Aqui se encontra o magistrado de carreira e desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia e coordenador científico e editorial, presidente da Comissão de Memória da Justiça Brasileira, autor internacionalmente reco-nhecido e premiado. Aqui se encontra o professor de Direito Penal concursado e autor de uma bibliografia enaltecida pela crí-tica especializada, na qual ressaem os títulos, publicados pela Sa-raiva, Direito Penal Econômico, 1981; Inovações do Código Penal, 1985 e Do passado ao futuro do Direito Penal, porto Alegre, 1991. E o diretor da Faculdade de Direito da UFBA, 1975 a 1979, ocasião em que nos reencontramos no egrégio Conselho Universitário, porquanto eu era, nessa ocasião, diretor da Escola de Adminis-tração da UFBA.

Permitam-me, aqui, que leia o próprio Gerson, pala-vras suas. primeiro, as seguintes dedicatórias, auto-reveladoras do temperamento, da sensibilidade e do caráter do escritor, de 2010, no seu romance A ninfa e a gazela: “Para a colega Ulla Vi-veka Bondeson, da Universidade de Copenhague, que semeou paisagens tantas vezes relembradas no estilo ébrio destas pági-nas”. “Para Edson O’Dwyer, Genaro de Oliveira e Gilberto Caribé — companheiros de magistério – por me aceitarem (a despeito de minha reclusão monástica) como amigo, a fim de juntos caminharmos pela vida nas ‘avenidas iluminadas’ da ciên-cia do Direito criminal”. “Para os meus netos Cássio e Jéssica, manhãs de estio em meu outono”. “Para Gerson Luis, sem quê

Page 316: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

314 ◄◄

nem pra quê, apenas amor”. “Para Maria Carmelita, que partici-pou comigo, por cinquenta e sete anos, da mesma caminhada”. Segundo, transcrevo as bondosas dedicatórias que autografou para mim e minha esposa Geísa, em 1985, assim: “Ao velho e querido amigo João Eurico Matta — companheiro inseparável nos caminhos nem sempre fáceis do viver —, estas Inovações do Código Penal – Parte Geral, e o abraço fraternal do Gerson”, e em 2003, no frontispício ilustrado da edição dos ensaios de Aquelas noites tristes de exílio, assim: “Para J. Eurico e Geísa, com um abra-ço do velho amigo G. P. Santos, em 02.12.03”.

E, por último, transcrevo a bela peroração poético-filosó-fica da conferência do desembargador Gerson Pereira dos San-tos por ele próprio intitulada, em maiúsculas, SUB DEo ET LEGE, e identificada como Oração proferida na Câmara de Verea-dores de Santo Amaro da Purificação, em 13 de maio de 1983, quando da comemoração do sesquicentenário de instalação da Comarca (lembro que por sete anos, de 1967 a 1974, Gerson foi titular da Vara Criminal da sesquicentenária Comarca de Santo Amaro da Puri-ficação, ascendida como tal em 1833):

...No ritual de nossa fé, homenageamos os varões de en-tão, rendendo graças a Deus, que vos vela e guarda, como guardou os vossos pais, seus pais e os pais de seus pais, e como haverá de guardar vossos filhos, seus filhos e os filhos de seus filhos, no curso das contínuas gerações, a cada uma delas ofertando, generosamente, o sentido do direito e o amor à liberdade, o mesmo Deus que vos per-mitiu viver, como comunidade civilizada, sob a proteção da justiça, postulada por advogados honrados, fiscalizada por um Ministério público cônscio de sua grandeza ins-titucional, e ministrada por juízes serenos e intimoratos, que nada quiseram para eles mesmos, sequer o reconheci-mento dos pósteros, depositando simplesmente suas vidas no altar da Justiça, como se espargissem flores nas clarei-ras dos caminhos. Nesse apostolado solitário, dessas vidas

Page 317: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 315

que se esvaíram sem realizações outras, sem pompa nem gala, tenham podido dizer, os que as viveram, ao chegar da hora do adeus, palavras semelhantes às de Jorge Luis Borges, em seu “El Aleph”: “Olho minha face no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo; eu não tenho!”

...Por todos eu vos saúdo nesta noite, que, em breve, se fará a mais esplêndida aurora, Nas cores do arrebol, se espraiardes a vista até o horizonte de todos os horizon-tes, vereis, na mais clara de todas as luzes da imaginação, a cruz, que simboliza a nossa fé em Deus, e, possivelmen-te, junto ao santo lenho, Themis, resgatada do paganismo para a sempiterna representação da justiça... Nos rumos do devir sem limites, continuai a marcha iniciada, há cento e cinquenta anos, pelos patriarcas desta cidade, sob Deus e a lei. E sede felizes para sempre!1

João Eurico Matta é bacharel em direito e ciências sociais, mestre em administração pública e professor emérito da Universidade Federal da Bahia. Foi diretor da Escola de Administração da UFBA, secretário de estado e conselheiro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. É membro da Academia Baiana de Educação, sócio do Instituto Geográ-fico e Histórico da Bahia e vice-presidente da Academia de Letras da Bahia (2013-2015). Desde 1989 ocupa a Cadeira número 16 da ALB.

Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, como orador de sessão especial em homenagem póstuma ao acadêmico Gerson Pereira dos Santos, no dia 15 de maio de 2014

Page 318: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 319: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 317

DISCURSo DE poSSE

ordeP serrA

Começarei por uma ampla saudação: quero dar a minhas palavras a forma de um abraço, singular e múltiplo. Nele

envolvo com alegria meus novos confrades, a Casa douta, os amigos que a ela me trouxeram, seu ilustre presidente e todo o público generoso aqui reunido, formado por pessoas queridas. Abraço a todos e cada um, temperando com afeto minha reve-rência às autoridades presentes. A honra que me fazem há de retornar a seu seio, multiplicada por gratidão e carinho.

Hoje me cabe fazer homenagens. A bela praxe da Aca-demia com justiça me impõe lembrar o patrono e os antecesso-res, os homens ilustres que enobreceram a cadeira da qual serei o novo ocupante. Vou fazê-lo com prazer. Mas antes tenho que percorrer uma trilha maior de celebrações.

Ela começa em terreno banhado pelos rios do tempo, um remoto mundo menino. para visitá-lo, preciso de achar a trilha certa, em que a saudade não me afogue e o floo da onda irrevogável não me perturbe. Tenho, por sorte, excelentes guias: meus netos Carlos e Letícia, acendem a aurora que me assinala o caminho. Na infânciaa que os doisme devolvem, faço minha pri-meira estação de festa. Reverencio o homem sereno cujo brando sorriso me banhava de alegria. Em minha lembrança, desfruto de novo a luz dos olhos calmos que me acompanharam nos pri-meiros passos, nas primeiras letras. Sinto sua amável presença, seu humor discreto, sua ponderação. Primeiro dos mestres, ele bem cedo me convenceu, por seu claro exemplo, de que a paz é a coroa do juízo, a grande meta da sabedoria, seu motor imóvel.

Page 320: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

318 ◄◄

A seu lado, outra visão me deslumbra. Reverencio a mu-lher luminosa que dava nomes divinos às cabras e brindava seus filhos com poemas: a altiva sertaneja que não teve escola, mas se empenhou em fundar um colégio e dirigiu uma biblioteca. Seus conterrâneos ainda colhem os frutos de sua cultura. por sua iniciativa, preservou-se uma cidade histórica. Seus versos, tal como suas telas, ainda hoje custodiam o patrimônio de Rio de Contas, que também integram. Declaro alegremente minha gra-tidão ao belo casal de cujo amor nasci: reverencio Pedro e Ester, que fizeram dos livros meu brinquedo predileto e ainda hoje me inspiram com seu poético exemplo.

A seu redor diviso um coro variado de mestres de en-cantamento: violeiros, contadores de causos, músicos de reisado tangendo bois dançarinos, rezadeiras, cordelistas, ourives de sol e lua. o grupo logo aumenta: incorpora melodiosos tropeiros que trilham as veias do sertão, chegam aos serros do Sincorá, alimentam as feiras do Jequi, tocam a Chapada e de novo des-cem rumo ao litoral. Aos poucos eles se transformam: cavalgam, agora, um trem de ferro. Já no Recôncavo, entre Cachoeira e Salvador, o coro mágico agrega sereias, orixás e profetas, anjos barrocos, mandus e madonas. Seu canto multicolorido corta as ondas num imponderável navio telúrico, com uma gloriosa tri-pulação de diabinhos risonhos.

O coral viajante chega ao porto de Iemanjá onde tem a regencia fantástica de Jorge Amado. Mais adiante, João Ubaldo tomará a batuta — que é, ao mesmo tempo, um pincel de Carybé — e desenhará novos maestros, gente de todas as músicas. Com eles chegam alabês, mestres de capoeira, marujos alucinados, ja-gunços líricos, sambistas das festas de largo, boêmios à volta de um Anjo Azul, pescadores com cestos de oferendas, baianas de acarajé, lânguidas ninfas da praia, foliões da avenida que um trio elétrico enlouquece e uma legião multicor de artistas: são poetas da Boa Terra, muitos deles indo e voltando desta Academia, a levá-la para a rua festiva, que depois lhe incorporam, num baile

Page 321: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 319

de luzes, com as cores delirantes de Jenner Augusto. o marulho do violão de Caymmi embriaga os navios, envolve a Bahia que Rômulo Almeida reinventa, contorna os seios da cidade onde Milton Santos logo virá sonhar uma ousada hermenêutica dos espaços. Numa praça radiosa,à vista de minha saudade, de mãos dadas com o povo da terra dançam baianos do mundo inteiro: Rolf Gelewsky, Yanka Rudzka, Ernst Widmer, o bruxo Smetak, o mago Kollreuter e Lina Bo Bardi, Agostinho da Silva e pier-re Verger misturam-se à negrada na grande ciranda de Edgar Santos. Sinto que ela se prolonga: ainda vejo meu primo Lin-denbergue Cardoso a marcar-lhe o ritmo. Glauber Rocha, com sua câmera dialética, rica de mistérios, faz girar a Terra do Sol. À porta de uma catedral demolida esbraveja o silêncio do Conse-lheiro arrancado ao ventre de uma árvore santa por artes sutis de Mário Cravo. À volta, florescem melodias docemente bárbaras. Nascem no Teatro dos Novos, em meio à safra dionisíaca de Martim Gonçalves, os fascinantes cantores da Tropicália.

Não estranhem, amigos, a figura exótica que se insinua nesse meio e me toma pela mão. Sei que a conhecem bem, a toga que ostenta não os surpreende. Eu o vejo elevar-se que nem o álamo (ou seria um loureiro?) sonhado por sua mãe às vésperas do parto feliz. Agradeço aos excelentes professores que abriram para mim a porta latina: graças a suas lições encontro o divino cantor de Eneias a bordo de seu maior poema, no Colégio aben-çoado pelo nome de Antônio Vieira. Atraído pelos versos fas-cinantes do mago de Mântua, procuro a fonte onde ele bebeu: Virgílio me faz sonhar com Homero. E vou a Brasília em busca de quem me revele sua poesia.

Chego, então, à Universidade que Anísio Teixeira e Darci Ribeiro estão a construir com ardente matéria de so-nho para berço de um novo Brasil. Bem cedo ela será atacada pelo obscurantismo de uma ditadura estúpida. Em diferentes momentos vão deixá-la muitos de seus artífices e inspirado-res — sábios, artistas, cientistas, mestres eméritos —: Roberto

Page 322: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

320 ◄◄

Salmerón, oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Waldir pires, Nelson Rossi, Cláudio Santoro… Centenas. Duzentos e vinte e três partirão numa só leva. Assistoa invasão do novo campus, vá-rias vezes repetida, por tropas lamentáveis que nem mesmo percebem onde se acham, muito menos entendem o sentido de seus próprios atos. Logo na primeira ocupação, as apostilas de grego que transporto me fazem suspeito aos olhos de um zeloso soldado. O infeliz imagina que eu carrego documentos em russo, propaganda soviética, sei lá o quê. Assim me torno o mais risonho dos universitários presos – e um dos primeiros a ser liberado: um oficial finalmente percebe que todos os deti-dos se divertem com meu caso. Mas logo terei de tomar cuida-do, pois os novos fiscais da política não demoram a descobrir que participei, no papel de monitor, do perigoso projeto de alfabetização de Paulo Freyre. Que já é um proscrito. Começo assim a aprendizagem da luta renhida pela democracia.

Calma, não devo antecipar. Quero deter-me um pouco no momento, para mim decisivo, em que encontrei Eudoro de Sou-sa, o mestre a quem devo minha formação intelectual. O célebre helenista, historiador e filósofo, amigo de Jaspers e discípulo de Heidegger, o erudito filólogo que se divertia estudando astrofí-sica, revelou-se um homem singular, arrebatado, generoso, com um temperamento explosivo e terno ao mesmo tempo.Trava-mos logo uma amizade profunda. Com este sábio descobri as riquezas da língua grega, os tesouros históricos acumulados na bacia do Mediterrâneo, os esplendores do Egeu. Comecei pelos grandes poemas atribuídos a Homero.

Ainda me lembro com emoção do dia em que terminei minha primeira leitura da Ilíada no original. À noite, fui celebrar esse feito em um boteco próximo ao campus, um barracão de madeira frequentado pelos peões que então edificavam o Insti-tuto Central de Ciências. Não demorei a ficar inteiramente bêba-do, pois aderi ao perigoso contraponto etílico dos candangos: a cada copo de cerveja, um estimulante gole de pinga. O resultado

Page 323: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 321

foi esquisito. Apenas me lembro de que a certa altura subi a uma mesa e comecei a recitar o primeiro canto da grande epopeia.

Não fui longe. Quando o sacerdote Crises invocou o se-nhor do arco de prata e o deus soturno veio, todo noite, nyk-tíeoikós, dizimar com suas flechas de peste os mulos, os cães e os guerreiros aqueus, a emoção já me banhava o rosto.

Deu-se então o inexplicável. Seria de esperar que a assis-tência vaiasse o desatinado, o moço bêbado que proferia com voz de assombro estranhos versos em língua desconhecida. Mas foi o contrário que sucedeu. Os candangos analfabetos (em gre-go, pelo menos), aplaudiram com entusiasmo. No dia seguinte, ao ressuscitar de uma ressaca homérica, julguei que Zeus tinha-me enviado um sonho bizarro. Mas ao chegar ao campus fui saudado por um peão, companheiro da recente farra, com efusi-vos parabéns: “Eh, baianinho danado! Que discurso bonito você fez ontem!”

Ainda estou perplexo. E só lhes conto essa passagem para explicar porque relaciono aqueles excelentes candangos entre meus mestres de poesia.

Só um colega do Centro de Estudos Clássicos achou tudo muito natural, não viu motivo algum para estranheza no aconte-cido. Foi justamente meu conterrâneo Jair Gramacho, o saudoso poeta, que encontrei no dia seguinte, na W3, abraçado a uma garrafa de vinho, festejando o aniversário de seu querido amigo Quintus Horatius Flaccus. Agradecido, sinto que devo incluir esses dois vates na minha homenagem, ao lado de Eudoro, de Homero e dos peões dionisíacos.

Na UnB iniciei minha carreira de professor universitário, ensinando grego a alunos de graduação dos Cursos de Letras, de Humanas e até de Ciências da Saúde. Também dei aulas a colegas mestrandos do próprio Centro de Estudos Clássicos. Mas isso pou-co durou. Minha incipiente carreira foi logo truncada: no período sinistro em que a ditadura se agravou e recrudesceram os ataques do obscurantismo à instituição universitária, um interventor tacanho,

Page 324: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

322 ◄◄

instalado abusivamente na reitoria da UnB, determinou o fecha-mento do notável Centro. Eudoro de Sousa foi acusado de subver-sivo por um energúmeno (um espião que mais tarde os estudantes expulsaram do campus) e respondeu a um Inquérito Policial Mili-tar. Ele não tinha qualquer atividade política, mas era por demais amigo de seus alunos e praticava a liberdade de pensamento — coi-sa, na época, muito mal vista. o professor Xavier Carneiro foi arbi-trariamente demitido. outros membros do CEC, como o também baiano Emanuel Araújo (o egiptólogo), viram-se redistribuídos. (Tempos mais tarde, Emanuel foi parar na cadeia, em razão de sua luta contra a ditadura). Tive cassada minha matrícula e cancelada a bolsa que recebia: uma espécie de expulsão branca, sumária, sem explicações. Assim como outros que a sofreram, eu era assíduo nos protestos contra o regime, na contestação dos desmandos que padecia a UnB. Era, sim, subversivo. Acho que continuo a ser. Com muito gosto: não me arrependo nem um pouco.

Mais tarde, quando a ditadura já começava a cair de podre, voltei à Universidade de Brasília para fazer o mestrado em An-tropologia Social. Tive excelentes professores. A todos homena-geio, na pessoa de Roberto Cardoso de oliveira, saudoso mestre, um dos patriarcas da nossa antropologia. Foi uma época bonita em que Brasília me premiou com muita felicidade. Eu costuma-va frequentar o espaço do Instituto Central de Artes, onde tinha lugar outro Programa de Pós-Graduação; mas confesso que não o fazia por interesse na ementa das disciplinas. Lá não assisti aula nenhuma. Em todo o caso, o motivo de minhas visitas era nobre. Nunca cesso de admirar uma propriedade mágica dos cursos de arquitetura, que sempre atraem bandos de moças bonitas. Com uma delas me casei, poucos meses depois de iniciado um namoro que dura até hoje, com paixão cada vez maior.

o casamento me rendeu grandes alegrias e também mu-danças positivas no plano intelectual. Tornou-me muito mais criativo. Minha produção foi bem pequena no período anterior, cresceu e tomou vulto após o matrimônio. Dividindo minha

Page 325: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 323

vida em “antes de Regina” e “depois de Regina”, verifico que só na presente era passei à condição de escritor, título que aqui me traz. Escrevi meu primeiro conto, que mais tarde foi premiado num concurso literário, com o puro propósito de atrair a queri-da contando-lhe histórias da minha terra (esse conto, de nome “Ajuda”, faz a celebração dos ótimos diabos de Cachoeira). Acho que deu certo. Agora tenho trinta e seis anos de recém-ca-sado e minha produtividade continua a crescer. Nada como uma boa musa! Agradecido, reverencio com muita saudade Carlos e Juracy, casal generoso e encantador a quem devo o que tenho de melhor, o melhor de mim: dona Regina, evidentemente.

Ainda no período de minha primeira pós-graduação, pas-sei uma temporada no Parque Nacional do Xingu, onde tive uma rica experiência de campo e fiz grandes amigos na fantástica ecumene que circunda as cabeceiras do rio, nicho de uma bela civilização selvagem. Impossível citá-los a todos. Elejo os saudo-sos Naho e Takuman, príncipes, respectivamente, dos Kuikuro e dos Kamayurá, para a homenagem que devo à gente xinguana, a suas culturas entrelaçadas, a seu mundo encantador. Ao mesmo tempo, celebro a luta que lá empreendem as novas lideranças — ao lado de antigos guerreiros como o cacique Raoni — em defe-sa da esplêndida bacia hoje severamente ameaçada. E aproveito para reiterar meu protesto contra a indecente política brasileira de desrespeito contumaz aos povos indígenas, às riquezas natu-rais por eles preservadas.

A prática antropológica me aproximou de vários povos e comunidades que sofrem abuso, violência, privação de direitos. Comprometeu-me com muita gente. Nisso foram meus modelos olympio Serra e pedro Agostinho. perigosos modelos, pois me envolveram em grandes lutas. Por sua causa amplio aqui meu rito de homenagem: faço uma saudação especial aos Tupinambá da Serra do padeiro, hostilizados com perversa tenacidade por ini-migos que cobiçam suas terras e contam com ferozes cúmplices no aparelho de estado. Saúdo o cacique Babau, o mais frequente

Page 326: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

324 ◄◄

preso político do Brasil de hoje. Homenageio da mesma forma o povo sofrido do Quilombo de Rio dos Macacos, agredido covar-de e sistematicamente, com estudada brutalidade, por uma força pública nacional. Estendo esta saudação dolorida à dizimada ju-ventude da periferia de Salvador, a Roma Negra que está sendo branqueada à bala, perante a indiferença dos nossos Pilatos. Fico só com esses exemplos, pois se fosse enumerar todas as gentes que padecem esbulhos esofrem sevícias em nosso país, seria mui-to longoeste discurso. E triste demais. Eu os evoco saudando quem luta por eles, como fazem, entre outros, Márcia Virgens, Lidivaldo Brito, Yulo oiticica, Rafael Soares, Lorena Volpini e o incansável Júlio Rocha.

Mas quero também falar de avanços, de triunfos. Relembro uma proeza de Olympio Serra que me evoca a história do ovo de Colombo: uma surpreendente e inovadora descoberta do óbvio, seguida de uma reconquista do tempo perdido, uma feliz inter-venção curativa na grande amnésia do Brasil. Chamado a ocupar um posto de coordenação na antiga Fundação Pró-Memória, ele resolveu desafiar o vezo etnocêntrico, o cristalizado viés elitista que marcava, até então, a política de preservação do nosso patri-mônio cultural. Descobriu Olympio que monumentos da gente branca e da classe de renda superior eram os únicos a merecer registro nos livros de tombo do IPHAN: uma evidência que nin-guém via, como há pouco Lidivaldo Brito mostrou. Feita essa curiosa descoberta, Olympio atirou-se à campanha que resultou no tombamento da Serra da Barriga, sede do quilombo de Pal-mares, com a fundação do Memorial Zumbi. Simultaneamente, fez-me a encomenda de um projeto voltado para a proteção de monumentos da tradição afro-brasileira. Elaborei esse projeto com a ajuda do arquiteto Orlando Ribeiro e tornei-me seu coor-denador. Pela primeira vez, um órgão de planejamento da pre-feitura municipal desta metrópole veio a ocupar-se de um tipo de assentamento urbano que antes nunca havia considerado: os numerosos terreiros da capital baiana.

Page 327: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 325

Nossa iniciativa teve pelo menos um grande sucesso: em 1984 o Ilê Axé Iyá Nassô oká, o venerável Terreiro do Engenho Velho, o formoso santuário da Casa Branca, tornou-se o primeiro templo de uma religião de matriz africana tombado no país, o primeiro monumento negro a ser oficialmente considerado patri-mônio histórico nacional. para isso, foi preciso vencer uma dura resistência no seio do próprio IpHAN. Homenagem faço a Aloy-sio Magalhães e Marcos Vinicius Vilaça, que abraçaram resoluta-mente a causa e perseguiram de forma tenaz sua realização.

Hoje há sete templos dessa natureza tombados no Brasil, seis deles em Salvador. Fui autor dos laudos antropológicos que fundamentaram a medida em quatro dos correspondentes pro-cessos (Casa Branca, Bate-Folha, Gantois, Oxumarê) e também integrei a equipe responsável pela exposição de motivos que fun-damentou o tombamento da Serra da Barriga. Agora estou apoian-do uma ousada iniciativa de lideranças de grandes abaçás baianos: cinco veneráveis Casas se propõem a trabalhar para que a cidade sagrada de Oyó, antiga capital do império ioruba (hoje parte do território da Nigéria) seja reconhecida pela UNESCO como patri-mônio da humanidade. Faço aqui minha homenagem ao templo de Iyá Nassô, ao Gantois, ao Ilê Oxumarê, ao Opô Afonjá e ao Ilê Maroiá Laji, que deflagraram essa bela campanha.

Do povo de santo, tenho conhecido grandes homens e mulheres. Muitos teria a celebrar. Do valor dessa gente bem sa-bem os membros da Academia que incorporou a seus quadros uma grande Ialorixá baiana, a Venerável Iyá Xangô, odé Kayo-dê, Maria Stella de Azevedo Santos. por falta de espaço, limito-me à recordação de dois outros sacerdotes do axé, juntando, no que lhes toca, a reverência à gratidão. É que ambos foram meus nominadores. Nas sociedades tradicionais de cuja herança me orgulho, o nominador deve ser especialmente honrado.

Com saudade, festejo o venerável Elemaxó do Engenho Ve-lho, Antônio Agnelo Pereira, que me presenteou com uma epiclese do Rei ardoroso. Olufihan me declaro, ciente do compromisso de

Page 328: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

326 ◄◄

luta que envolve este oiê. É um título um tanto curioso para um pacifista como eu, pois Olufihan quer dizer “guerreiro”. Mas sou grato à dádiva do bom ministro de Oxalá, pois ele detinha saber e autoridade. Aceito o dever que me impõe este nome solene, heran-ça de Xangô: a luta constante por justiça.

Com alegria, homenageio também o venerável Babá pecê, Silvanilton da Encarnação Mata, que rege o Palácio do Arco-Íris, o magnífico santuário baiano de Oxumarê. De seu egbé recebi um nome que muito me honra, olopitan. Graças ao bom amigo e a sua ilustre Casa, creio que sou o único historiador brasileiro com título dado não por uma universidade, mas por uma organização popular, uma instituição tradicional da Bahia negra.

Minha louvação se eleva agora ao tom do oriki: celebro o Rei de Justiça, o generoso e apaixonado Senhor do Fogo, semeador de luz e de encantos; invoco a Rainha de nove mun-dos, dançarina do vendaval, bela guerreira armada de raios, mãe amorosa. Por meio de ambos festejo a família inteira dos Encantados. Com sua bênção quero prosseguir meu rito de homenagem.

Não posso negar-me a fazê-lo. A sabedoria da Língua Por-tuguesa me adverte: ingrato é o mesmo que desgraçado. Não tenho como nomear todos os homens e mulheres a quem devo grati-dão; mas pelo menos contemplarei algumas pessoas capazes de simbolizar os inúmeros merecedores de meu reconhecimento.

Em meu doutorado fiz amplo contato com gente boa, ilustre e sábia. Haiganuch Sarian, minha orientadora, excelente arqueóloga, filóloga respeitada, helenista de prestígio internacio-nal, muitos caminhos me abriu. No Centre Louis Gernet da École de Hautes Études en Sciences Sociales, os saudosos mestres Jean-pierre Vernant e Pierre Vidal-Nacquet me acolheram generosamente. O assiriólogo Jean Bottero, bondoso amigo de quem tenho mui-ta saudade, fez-me reaproximar de seus akadianos, rever a trilha de Gilgamés. Aos mestres de Paris e da USP continuo, até hoje, muito agradecido.

Page 329: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 327

o caro amigo François Laplantine foi meu cúmplice na tentativa de aproximar nossas universidades, a UFBA e a Lyon II. Quando nada, realizamos três ótimos seminários Lyon - Sal-vador: um lá e dois aqui.

Por longo tempo, abriguei-me à sombra de uma grande árvore plantada por Thales de Azevedo. Exerci meu ofício de professor em dois departamentos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA e mesmo aposentado ainda partici-po de um seu Programa de Pós-Graduação. Não vou citar todos os bons colegas que tive e tenho, mas creio que celebrando nos-so patriarca homenageio a turma inteira.

Permitam-me que celebre também a mais extravagante das ciências sociais, a que continuo dedicado. Espero que meus colegas não achem muito irreverente este elogio que lhe faço em forma de parábola. É mesmo assim que vejo a Antropologia: como a macaca que finalmente olhou para o próprio rabo e, com o susto, passou por uma bela metamorfose. Ficou bonita, embora desvairada. Tornou-se uma princesa sem trono, que por não ter reino nem domínio algum frequenta as encruzilhadas: reconheceu-se filha de Hermes e namorada de Exu. Tendo des-coberto seu próprio etnocentrismo, ela já não se contenta em ser um discurso ocidental sobre o resto do mundo. Ficou de todo excêntrica. Com muito gosto, traiu os impérios onde teve berço. É hoje uma estrangeira onde nasceu, e em qualquer lugar onde se instale, erotizada pela saudade, sempre faminta de diálo-go e cheia de dúvidas. Há quem a considere demasiado errante e promíscua; há quem lhe reprove a mania de relativizar. Já eu espero que ela continue assim: inquieta, desaforada e um tanto escandalosa, herética, viciada em poesia.

Celebro também outra dama esquisita cujos delírios ainda me fascinam. Caboclo da aldeia cachoeirana, malungo de ter-reiro, poeta de cordel, por causa do mestre Eudoro tornei-me visitante de ilustres cenáculos. Eudoro mostrou-me a primeira Academia, que era um jardim. Como tantos têm feito, ao longo de

Page 330: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

328 ◄◄

séculos, procurei alimento no Banquete de que ainda se nutrem os pensadores modernos, se está certo Whitehead. para este, como todos recordam, a filosofia que até hoje se faz cifra-se em comen-tários à margem de Platão. Será um exagero, por certo: eu o quis transpor valendo-me da metáfora com que a soberba modéstia de Ésquilo qualificou sua própria poesia, quando ele disse que os criadores da tragédia se nutriam das migalhas do festim homéri-co. No banquete platônico, Eros foi celebrado, mas deixou a sala ainda faminto, pois é insaciável. E exagerado. por amor dele, fugi da severa República de que o próprio Platão se exilou: afinal, era poeta, nem ele mesmo o pôde negar. Relendo, há pouco, sua sétima epístola (que talvez nem seja sua) me convenci de que o grande filósofo, o primeiro acadêmico, nunca se ateve à letra de seus teoremas. Hoje procuro filosofia que cante e dance, como dizem que Parmênides fez quando o deslumbrou a revelação do Ser, no termo de uma viagem arrebatadora em carro divi-no puxado por éguas sagazes para além do horizonte. Nessa busca ainda prossigo, como diletante — título não desprezível, segundo Schopenhauer. Ainda tento seguir os passos da Dama esquisita, que sempre louvo, pedindo perdão pela ousadia aos seus seguidores profissionais. Eu os admiro, mas uma coisa não entendo: porque tanto se obstinam em decretar a morte de sua amada e promover-lhe sucessivos enterros? Já deviam ter nota-do que ela sempre ressuscita. Peço de novo aos filósofos aqui presentes que não se zanguem com meu atrevimento. Eu já disse que os admiro e não quero, de modo nenhum, ser irreverente. Juro pelas pernas de Diotima.

Após este elogio imprudente, sinto-me obrigado a mais uma homenagem: devo-a aos alunos com que aprendi e apren-do. É claro que não posso relacionar suas numerosas turmas, mas a todos me declaro agradecido. Felizmente continuo a be-neficiar-me do contato com muitos deles. Agradeço também a minhas filhas, Marina e Helena, e a meus netos, Carlos e Letícia, que seguem cuidando de minha educação.

Page 331: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 329

Não posso esquecer-me tampouco dos bravos compa-nheiros de luta pela cidadania. Saúdo os colegas do Movimen-to Vozes de Salvador, do Grupo Hermes de Cultura e Pro-moção Social, de Koinonia, do Desocupa, do SOS Barra, da nova Amabarra, do Movimento Nosso Bairro é Dois de Julho e do Fórum A Cidade Também É Nossa. Este fórum a cujas campanhas hoje me dedico de um modo especial reúne trinta e nove associações mobilizadas em defesa de nossa urbe, empe-nhadas em proteger a princesa do Atlântico ferozmente mal-tratada, desfigurada, mutilada pela ganância infrene de quem enxerga seu espaço como simples mercadoria. Saúdo quem defende Salvador da rapina, do esbulho, da destruição de suas áreas verdes, da venda imoral de seus espaços públicos, do se-pultamento de seus rios urbanos, da cruel segregação que nela cresce por obra de contumaz injustiça e de um vergonhoso sa-crifício do planejamento urbano, entregue a empresas privadas em prejuízo do interesse público. Saúdo quem, no país inteiro, combate esse urbanismo de apartheid e defende o direito do povo à cidade. Celebro com particular carinho os inconforma-dos com a degradação galopante da Região Metropolitana de Salvador e com as agressões brutais à Baía de Todos-os-Santos. A propósito, peço a meu caro amigo Agostinho Muniz que leve meu abraço aos sete jornalistas baianos processados por exercer com brio a liberdade de imprensa. Solidarizo-me tam-bém com quantos, dentro e fora desta Academia, se obstinam na defesa de nosso patrimônio histórico e resistem a um sis-temático descaso para com nossas riquezas culturais. Abraço, enfim, todos os que lutam contra abusos, desmandos e violên-cias feitas a nosso povo.

São muitos os que assim homenageio. Imposssível no-meá-los a todos e louvá-los como bem merecem. Fiel a meu método, escolho para os representar duas pessoas, duas mulhe-res admiráveis. Em nome de Todos os Santos da Bahia, ben-digo Cristina Seixas, bendigo Hortênsia pinho. Sua dignidade,

Page 332: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

330 ◄◄

valor e inteligência as tornam símbolos do que nossa Bahia tem de melhor.

Como sei que ambas gostam de música, quero associar-lhe nessa homenagem dois dos Novos Baianos, uma dupla ilustre: Carl von Hauenschild e Daniel Colina. Ficam eles a dever-lhes, desde agora, um tango e um lied.

Estendo, por fim, minha saudação a quantos, pelo mun-do afora, lutam por democracia verdadeira, com transparência e participação efetiva do povo nos processos de planejamento e gestão, na prática do governo responsável. Saúdo quem exige respeito aos direitos humanos e pugna pela preservação do meio ambiente. Festejo quem não se conforma com a desigualdade, com a opressão e a injustiça.

Com este mote passo ao núcleo de minha louvação, ago-ra dirigida, segundo a boa praxe, aos que me antecederam na sede a mim destinada pela boa vontade dos membros desta egrégia Academia.

O patrono da Cadeira que devo ocupar foi um cientista,

um brilhante médico e professor: Francisco Rodrigues da Silva, que nasceu em 1831 aqui em Salvador e faleceu em Paris, em 1886. Homem erudito, escreveu tratados de Física e Química, mas também se ocupou de educação. Tratou do que hoje cha-mamos de ensino fundamental e médio (primário e secundário, na nomenclatura da época), assim como das escolas normais; porém aplicou-se principalmente ao exame dos problemas que em seu tempo afetavam o ensino médico. Com toda a franqueza, criticou o despreparo dos alunos que lhe chegavam à Faculdade de Medicina. Isso bem indica que ele tinha razão de preocu-par-se com a formação preliminar dos estudantes, candidatos ao curso no qual pontificou. Consciente do seu papel de mes-tre, examinou com rigorosa atenção o “Estado do Ensino Su-perior”, apontando os “vícios e lacunas de sua organização” e preconizando as “reformas necessárias”. A seu critério, as que

Page 333: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 331

se ensaiaram no seu tempo eram falhas e precipitadas. Travou boa luta contra a burocracia dos regulamentos frouxos que da-vam espaço a práticas pedagógicas irresponsáveis. Vê-se bem que era um homem sério, um docente digno. Com muita justiça ele integrou o Conselho Superior de Instrução Pública, em que teve papel de destaque. Experiência didática não lhe faltou: além de ter ensinado Geometria e Trigonometria no Liceu Provincial, ele ocupou duas cátedras na Faculdade de Medicina da Bahia, de que veio a ser diretor. Era titular deste cargo quando faleceu. Homem de prol, teve reconhecidos seus méritos: recebeu as co-mendas das Ordem da Rosa e da Ordem de Cristo. Sua atuação na Campanha do paraguai lhe valeu uma medalha. Respeitado como poucos na profissão, ganhou fama também por seus dotes de orador e ingressou na política: elegeu-se deputado à Assem-bleia Legislativa da província.

Foi também um médico e um educador o primeiro a ocu-par a Cadeira 27 desta Academia: o Dr. Frederico de Castro Re-belo, nascido em Salvador no ano de 1885 e falecido na mesma cidade em 1928. De acordo com o Dr. José Tavares Neto, Castro Rabelo inaugurou a cátedra de pediatria da Faculdade de Medi-cina da Bahia, onde se formou. De começo, ofereceu-se para ensinar gratuitamente a matéria em que veio a especializar-se e ainda trabalhou de graça no hospital da instituição. Numerosos testemunhos dão conta de que este generoso clínico teve um sucesso extraordinário na profissão: segundo Antonio Vianna, ele era chamado até de “médico milagroso” e de “taumaturgo”. O Dr. Martagão Gesteira o intitulava “clínico profeta” e “quase divino”. Célebre por sua perícia, ele foi também muito festeja-do por sua abnegação. Chamaram-no de “médico dos pobres”, porque dedicava parte de seu tempo a tratar dos necessitados, de quem nada cobrava. Os escritos que deixou são basicamente teses e ensaios no campo da ciência médica; mas, tal como o patrono, ele também se preocupou com educação e abordou de forma crítica as reformas pedagógicas ensaiadas em sua época.

Page 334: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

332 ◄◄

Encontram-se ainda referências a seu talento musical e sua ha-bilidade de desenhista, a que certamente associava muito bom humor, pois gostava de caricaturar-se.

Louvo o patrono e o fundador com a lembrança do que os gregos diziam: tal como os poetas e os cisnes, também os médi-cos vêm de Apolo, regedor das Musas. Pode confirmá-lo nosso presidente, o escritor Aramis Ribeiro Costa, membro, também ele, do venerável clã asclepíada.

o segundo acadêmico eleito para a Cadeira 27 foi Anto-nio Gonçalves Vianna Júnior. Soteropolitano, Antonio Vianna (que era como assinava seus escritos) nasceu em 1984 e faleceu na sua cidade natal em 1952. Ao contrário de seu aristocrático antecessor e do abastado patrono, provinha da classe média. Fez uma bela carreira de funcionário público, chegando a ocupar altos postos. Considerava o jornalismo, ofício em que se distin-guiu, “a síntese de todas as profissões”. Suas crônicas saborosas, muitas delas reunidas no livro Casos e coisas da Bahia, são quasi-etnográficas: retratam vivamente costumes da terra, tradições baianas, tipos e festas populares da encantada Salvador do seu tempo. Legou-nos, por exemplo, um cálido quadro do São João desta capital, que na primeira metade do século passado pudera ainda classificar-se como “rurbana”; do mesmo modo nos re-tratou seu ciclo de Reis e os festejos da Conceição, entre outros eventos. Na verdade, ele veio a ser um de nossos mais notáveis folcloristas — e ainda nos deixou uma continuadora ilustre, sua filha Hildegardes Vianna, que também participou desta Aca-demia, onde ecoa sua saudade. A meu ver, merece destaque a produção lírica do melodioso bardo que foi Antonio Vianna, inspirado por imagética e sensibilidade musical tipicamente sim-bolistas. Destaco seu perfeito domínio da forma soneto. Talvez o mais conhecido dos seus poemas dessa classe seja o que leva o título de pesares e tem uma tessitura camoniana. Trata-se, a ri-gor, de um pastiche tão bem realizado que vai além do pastiche, pois não lhe falta originalidade. (É o mesmo que acontece, por

Page 335: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 333

exemplo, com as odes horacianas de Ricardo Reis, o heterônimo epicurista de Assembléia Fernando pessoa). parece-me, contu-do, que a maior parte dos sonetos de Vianna, quiçá os melhores, evocam antes o estilo onírico, musical e caprichoso de um Cruz e Sousa. Em alguns deles se percebe o mesmo tom de erotismo sutil que enfeitiça os poemas sousianos.

A Antonio Vianna sucedeu nesta ilustre Cadeira Jaime Tourinho Junqueira Aires, nascido em Salvador em 1901 e faleci-do na mesma cidade, em 1973. oriundo de uma família tradicio-nal do Recôncavo, passou a infância em Santo Amaro da puri-ficação. Transferindo-se bem cedo para a capital, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Bahia, onde depois ocupou a cátedra de Direito Civil. Foi também Li-vre Docente da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil e destacou-se por sua pedagogia brilhante. Teve uma notável carreira política: elegeu-se, por dois mandatos, deputado estadu-al constituinte e presidiu a Assembleia Legislativa da Bahia; nes-ta condição, por mais de uma vez ocupou o Governo interino do Estado. Sua obra édita compõe-se basicamente de estudos jurí-dicos (dois ensaios contemplando problemas de filiação) e peças de oratória, inclusive discursos pronunciados nesta Academia. Sabe-se, porém, que ele era chegado à sátira. E tinha afinidades com outras musas, mais amenas. No discurso com que o aco-lheu neste sodalício, otávio Mangabeira, entre outras deliciosas indiscrições, denunciou-lhe a feitura de um belo soneto. Acusou também seu gosto secreto por serenatas e modinhas.

Ao jurista emérito e cantor episódico sucedeu-lhe Antô-nio Loureiro de Sousa, renomado jornalista nascido em Cacho-eira no ano de 1913 e falecido em Salvador, em 1989. Na cidade de Castro Alves, ainda bem jovem, ele fundou um jornal; em Cachoeira destacou-se como redator de outro periódico; em Salvador, teve uma atuação significativa e múltipla na imprensa, em diferentes veículos: em A Tarde, sua seção crítica intitulada “Autores e Livros” marcou época. Sua colaboração foi constante

Page 336: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

334 ◄◄

e rica também nos periódicos Estado da Bahia e O Imparcial. Além disso, ele integrou o Conselho Estadual de Cultura, a Associação Baiana de Imprensa, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais da Bahia, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e o Instituto Histórico de São Paulo. Foi ainda Diretor do Arquivo Históri-co da prefeitura Municipal de Salvador e ocupou outros cargos importantes para a vida cultural baiana. Tendo-se bacharelado pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-dade Federal da Bahia, nela exerceu a docência, vindo mais tar-de a ensinar, também, na Escola de Biblioteconomia da mesma instituição universitária. Com seu livro Baianos Ilustres, Antonio Loureiro de Sousa obteve o prêmio Carlos de Laet da Academia Brasileira de Letras. Escreveu ainda outras obras importantes, a exemplo dos livros em que tratou de Gregório de Matos e de Balzac. Merece destaque, também, sua erudita Notícia histórica de Cachoeira. Em 1950, o cronista da Cidade Heroica atuou com brilho no III Congresso Brasileiro de Escritores.

Devo falar agora de um grande homem que esta Acade-mia ainda pranteia: o grapiuna James Amado, erudito a quem muito deve a cultura nacional, pois ele a ilustrou como escritor brilhante, crítico de arte, tradutor perito, príncipe dos edito-res, dedicado ao cultivo da inteligência e da liberdade, cidadão exemplar. Nascido em Ilhéus em 1922, morreu nosso polígrafo no ano passado, aqui em Salvador, depois de ter ocupado por vinte e três anos a Cadeira 27 da Academia de Letras da Bahia. Deixou o legado de uma obra muito rica e uma lacuna impos-sível de preencher. Formado pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, o saudoso escritor conviveu com uma plêiade de intelectuais que o admiravam profundamente e con-quistou, por seus muitos méritos, a estima do povo, o respeito dos estudiosos. Esta Casa tem muito que lhe agradecer, pois ele a enriqueceu com a extraordinária riqueza de seus escritos e também com a inclusão de um genial conviva, oriundo de nos-so passado. A Academia de Letras da Bahia pode já dizer que

Page 337: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 335

incorpora a seu grêmio o gênio de Gregório de Matos Guerra, desde quando um dos membros de seu sodalício resgatou-lhe a obra numa edição primorosa. Assim o erudito Amado fez volver a nossa terra um dos seus maiores escritores: trouxe a nós sua poesia renovada, livre das peias da moral hipócrita que a mutilava; reintegrou-a com apuro filológico, restaurou-a com clarividência de sábio. É certamente uma graça do céu ter conosco o Boca do Inferno — e nós devemos a James Amado esta grande dádiva. Bastaria sua bela proeza de filólogo para que ele fizesse jus ao reconhecimento dos acadêmicos baianos e de todos os brasileiros. Todavia suas façanhas foram muito além. Lembremos, para começar, outro feito semelhante: re-corde-se mais um dom de sua Editora Janaína, que grandes tesouros salvou do naufrágio. Como se sabe, ela fez emergir de novo a poesia de Junqueira Freire. Veem bem os amigos porque chamei o escritor a quem agora rendo homenagem de príncipe dos editores. Sequer se avaliou ainda a grandeza do trabalho realizado pelo Serviço de Informação Cultural conce-bido e implantado no Rio de Janeiro, na década de 1960, pelo incansável Amado, com a colaboração de Miécio Tati: uma es-plêndida máquina difusora de textos sobre livros, alcançando a imprensa de todo o país. Não há como negar que estamos falando de um produtor cultural incomum, prodigioso. E que dizer do tradutor de mais de cinquenta livros que tantas obras primas literárias tornou acessíveis aos brasileiros? poucas insti-tuições culturais terão feito tanto quanto ele para ilustrar nosso povo. Mas bastaria para consagrá-lo sua própria obra literária. Seu romance O chamado do mar e seu livro de contos intitulado A Rosa e a sentinela conquistaram a admiração de grandes mes-tres da ficção no Brasil, a exemplo de Osman Lins, José Geral-do Vieira, Graciliano Ramos. Sua novela “O levante do posto” foi muito esperada e louvada por quem logrou conhecê-la ain-da em esboço. Em matéria de ficção, cabe dizê-lo um grande escritor que escreveu pouco; só que seu pouco supera muitos.

Page 338: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

336 ◄◄

pode esta Casa orgulhar-se de ter abrigado expoentes de uma família que contribuiu com fantástica riqueza para a litera-tura nacional. Jorge, Zélia, James, esses três de fato não nos dei-xaram: seguem comunicando viço e esplendor a sua Academia.

Desejo concluir este discurso com um agradecimento sin-cero. premiando-me por duas vezes, esta Casa generosa acabou por fazer-me acreditar que sou mesmo escritor. A ficção que eu produzia per diletto, aproveitando os momentos de lazer, tornou-se, agora, um dos focos principais da minha atividade intelectual. A isso fui levado por seu estímulo. Como se não bastasse, Vossas Senhorias fizeram-me acadêmico. Que mais posso dizer-lhes? Só uma coisa: prezados confrades, queridas confreiras, aqui es-tou em lugar eminente, em alta sede colocado, um tanto perple-xo. Mas a culpa é sua.

Muito obrigado. 1

ordep Serra é graduado em letras e mestre em antropologia social pela Universidade de Brasília, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo. Dirigiu o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Es-tado da Bahia e foi diretor-presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia. É membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. É au-tor de vários livros de ensaios. Como ficionista, venceu por duas vezes o Concurso Nacional Academia de Letras da Bahia de Literatura, em 2008 com Sete portas, e em 2010 com Ronda — Oratório malungo. Eleito para a Cadeira número 27 da ALB em 22 de maio de 2014.

Discurso de posse do acadêmico ordep Serra na Cadeira número 27, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 4 de setembro de 2014.

Page 339: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 337

DISCURSO DE RECEPÇÃO A oRDEp SERRA

luís Antonio CAJAzeirA rAmos

Excelentíssimos membros da mesa desta Sessão Solene, es-critor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de

Letras da Bahia; professor Albino Rubim, secretário de cultura do Estado da Bahia; professora e acadêmica Consuelo pondé de Sena, presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia; professor, acadêmico e cachoeirano João Carlos Salles, reitor da Universidade Federal da Bahia; governador Waldir pires. Se-nhoras e senhores acadêmicos, meus caros confrades. Familiares do escritor e acadêmico Ordep Serra, em especial sua querida companheira, Regina Serra. Amigas e amigos de ordep Serra presentes a esta cerimônia.

Hoje é o dia mais importante da história desta Academia de Letras da Bahia. É um dia imortal. Um dia infinito. Ele teve um início, mas não terá fim. Este dia começou quando o en-genheiro Arlindo Fragoso, idealizador, organizador e fundador desta casa de cultura, tomou posse da Cadeira 19, que pertencia somente ao patrono, João Maurício Vanderley, Barão de Cotegi-pe, e ao fundador, Severino Vieira. Assim nasceu este dia: quan-do o patrono e o fundador de uma cadeira acadêmica acolheram, pela primeira vez, um novo ocupante da cátedra. Quis o destino que fosse ele, Arlindo Fragoso, a inaugurar esse congraçamento. Ele, que firmara a solidão dos quarenta patronos. Ele, que esta-belecera o diálogo dos patronos com os quarenta fundadores. Ele, sim, a ele coube ser o primeiro sucessor de uma cadeira aca-dêmica, dando início a este dia de eterno congraçamento, cujas

Page 340: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

338 ◄◄

horas, intermitentes, são contadas a cada sucessão nas quarenta cadeiras imortais, a cada ingresso de um novo membro na co-munidade acadêmica.

Este dia, portanto, permanece presente,chegando até hoje, quando um novo acadêmico toma posse e assume posição no silogeu, desta vez na Cadeira 27. os ocupantes dessa cátedra, o patrono, Francisco Rodrigues da Silva, o fundador, Frederico Rabelo, e os sucessores, Antônio Vianna, Jayme Junqueira Ayres, Antônio Loureiro de Souza e James Amado, estão no comando desta sessão. Aliás, eles comandam todo o processo sucessório da cadeira. Foram eles que saíram do conforto da eternidade e procuraram os demais confrades, um a um, para sugerir-lhes um nome, ou melhor, para convencê-los a aprovar o nome de sua preferência. E assim construíram a unanimidade da eleição. Depois, conversaram separadamente com o presidente Aramis Ribeiro Costa para propor-lhe o nome do confrade que deveria saudar o novato, porque eles, imersos na imortalidade, já não fa-lam ao público, já não participam do burburinho da vida social. E o nome que esses silentes, presentes e honoráveis senhores indicaram foi o meu.

Eis-me aqui, confrade Ordep Serra, nesta noite que não é noite, e sim dia claro, essa noite que é uma fração do dia lumino-so e iluminado do congraçamento acadêmico. Eis-me aqui, indi-cado por seus antecessores da Cadeira 27 e aprovado por nosso dileto presidente, para saudar o ingresso de Vossa Mercê neste sodalício. Em geral, recepcionar um confrade é uma das mais destacadas honrarias acadêmicas, uma prova de reconhecimento e amizade. No particular, é para mim uma alegria das maiores ter o prazer de estar aqui para falar de Ordep Serra, para dizer do respeito e da admiração que esse ser humano especial merece de todos nós. E que aqueles honoráveis senhores que o antece-deram me permitam uma confissão: eu também confabulei, eu também participei dessa trama. Orientado pela sabedoria que deles emana, eu fui um leva e traz de sua inquestionável vontade.

Page 341: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 339

Talvez por isso eu tenha caído nas graças desses antepassados. E espero estar à altura da missão com que me destacaram.

Começo a falar de ordep Serra fazendo um sumário cur-ricular de sua formação e de sua atuação universitária. Já sua vida privada, a convivência familiar, as iniciações e descobertas da in-fância, as experiências da juventude e os questionamentos íntimos da maturidade, eu prefiro deixar para seus biógrafos e para suas memórias. Nosso cachoeirano graduou-se em letras pela Univer-sidade de Brasília em 1967. Concluiu o mestrado em antropologia em 1979, também pela Universidade de Brasília, com a disserta-ção Na trilha das crianças: os erês num terreiro angola, sendo orientado pelo professor Roque de Barros Laraia. Doutorou-se em ciência socialem 1997, agora pela Universidade de São Paulo, na área de antropologia social, com a tese O reinado de Édipo, orientado pela professora Haiganuch Sarian. Em 2012, fez o pós-doutorado em letras na Universidade Federal da Bahia, no programa de literatura e cultura, na linha de pesquisa sobre estudos de teorias e represen-tações literárias e culturais, concentrando-se em criação literária, sob a orientação da professora Antônia Torreão Herrera.

o professor ordep Serra iniciou seu magistério no ensi-no médio, nas disciplinas de língua portuguesa, de literatura e de introdução à filosofia, em escolas de educação formal, como seu querido Colégio Antônio Vieira, em Salvador, e em cursos pré-vestibulares, como o Curso pré-Universitário de Brasília. No ensino superior, exerceu a docência por mais de três décadas, inicialmente na Universidade de Brasília, depois em Salvador, aposentando-se como professor adjunto da Faculdade de Fi-losofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, onde foi chefe do departamento de antropologia e etnologia, membro da congregação, membro do colegiado da pós-gradua-ção em ciências sociais, do mestrado em sociologia, do conselho do museu de arqueologia e etnologia, do conselho de ensino, pesquisa e extensão e de sua câmara de extensão, além de ter sido pró-reitor de extensão da universidade.

Page 342: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

340 ◄◄

Na atividade docente universitária, ministrou diversas disciplinas da graduação e da pós-graduação: tópicos em filo-sofia, introdução à sociologia, antropologia geral, teoria antro-pológica, antropologia da arte, antropologia simbólica, antro-pologia da religião, antropologia do negro brasileiro, territórios negros, comunidades tradicionais, antropologia das sociedades indígenas, etnografia, metodologia em antropologia social, hermenêutica sócio-antropológica, teorias sociais contempo-râneas, seminário de ciências sociais e de metodologia, ciências sociais em saúde, prática de pesquisa em antropologia e em sociologia. Na pesquisa acadêmica, desenvolveu estudos sobre etnologia, etnicidade e relações raciais; patrimônio, linguagens e memória social; religião e simbolismo. Foi ainda palestrante, colaborador e coordenador de cursos e atividades de diversas naturezas na extensão universitária.

Sua dedicada atuação como professor e pesquisador em sociologia e antropologia, sua participação em congressos, sim-pósios e os mais variados encontros de profisionais das ciên-cias sociais, seus serviços de monitoria, assessoria e consultoria acadêmica, suas inúmeras publicações científicas e técnicas em livros e revistas especializadas, enfim, seu intenso trabalho in-telectual e sua produção acadêmica fazem dele um destacado membro da comunidade científica brasileira nas áreas das huma-nidades. Seu primeiro livro publicado é uma ousadia do cientista social com formação em literatura: A gesta de Gilgamesh, uma tra-dução de fragmentos da epopeia sumeriana fundadora da poesia universal, um dos mais fecundos alicerces culturais do cadinho de povos que deram origem às grandes civilizações do Oriente próximo e de todo o ocidente.

Os livros seguintes de Ordep Serra são uma coleção de primorosos ensaios sobre os temas culturais que mais o apaixo-nam, situados num terreno limítrofe entre a linguística, a litera-tura, a filosofia, a política, a história, a sociologia, a antropologia, a etnologia e a religião, nos quais suas reflexões sobre a cultura

Page 343: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 341

clássicada Ásia Menor e da Europa Mediterrânea, a herança afri-cana, a herança indígena e as mais diversas manifestações da cultura popular se encontram, se confrontam, se comparam,se estranham, se entendem, se integram, dialogam e buscam con-ciliar uma compreensão do homem como ser social e agente de cultura. Neste meu discurso, porém, não cabe fazer apreciação de sua literatura científica, notadamente pelo incontornável fato de que me faltam o conhecimento, a formação acadêmica, a fun-damentação teórica, o instrumental metodológico, a experiência prática e o discernimento crítico para tamanha pretensão.

Numa visão panorâmica, vale registrar ao menos os te-mas explorados pelo autor. Em O simbolismo da cultura, conceitos como identidade, comportamento simbólico, produção simbóli-ca, monumento, mito. Em Águas do rei, considerações históricas, sociológicas, étnicas, linguísticas e religiosas de culturas africanas e afro-brasileiras. Em Rumores de festa, uma apreciação do sagrado e do profano nas festas cívicas, religiosas e mundanas de nossa baianidade. Em O mundo das folhas, um estudo etnobotânico e lin-guístico sobre as plantas nos rituais do candomblé. Em Veredas, o instigante tema da antropologia infernal, as viagens aos infer-nos e a consciência da morte em grandes obras da literatura. Em Um tumulto de asas – Apocalipse no Xingu, um estudo comparativo da mitologia xinguana, a partir do universo cultural dos índios kamayurá. o Hino homérico a Deméter e o Hino homérico a Hermes são dois livros de tradução de sua lavra helenística, ambos com alentados estudos introdutórios de cunho antropológico, filoló-gico e literário. Em sua tese vertida em livro, O reinado de Édipo, um estudo antropológico sobre o mito de Édipo e suas significa-ções na literatura, na psicanálise freudiana e nas ciências sociais, um livro que se completa com outro, Rei Édipo, traduzido de Sófocles. E o livro mais recente, Navegações da cabeça cortada, com diversos textos centrados em temas da cultura grega clássica.

A formação acadêmica, o vasto campo de pesquisa e produção literária e a inquietação intelectual de nosso confrade

Page 344: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

342 ◄◄

indicam os caminhos de sua vinculação política com diversos ambientes culturais da sociedade e os desdobramentos de sua ativa ação social. No setor institucional, Ordep Serra é membro da Associação Brasileira de Antropologia, da Sociedade Brasi-leira para o progresso da Ciência e da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Dirigiu o Instituto do patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia e foi diretor-presidente da Funda-ção Cultural do Estado da Bahia. Atualmente, é membro titular do Conselho de Cultura do Estado da Bahia, no qual acumula o cargo de presidente da câmara de patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural.

A participação associativa é uma marca da disposição de Ordep Serra para colaborar na discussão da cidadania e da pro-blemática social, com atuações efetivas e sempre consequentes. Assim, é membro fundador da organização não governamental Koinonia, Presença Ecumênica e Serviços, a qual visa ao diálogo interreligioso e à consecução de projetos de promoção social e de justiça social; é membro fundador da Associação Obser-vabaía; é membro do grupo de pesquisa Encruzilhada dos Sa-beres; é fundador, primeiro coordenador e atual conselheiro do Grupo Hermes de Cultura e Promoção Social; é coordenador do Movimento Vozes de Salvador; e é membro do Fórum A Cidade Também é Nossa, dentre outras associações.

A ligação visceral, sentimental e intelectual de Ordep Serracom as múltiplas expressõese manifestações da cultura de matriz africana faz dele um membro efetivo ou afetivo de uma espantosa quantidade de grupos culturais e instituições sociais e religiosas da Bahia Negra. Desde candomblés a comunidades quilombolas, de afoxés a blocos de samba ou batucada, de gru-pos de capoeira às inúmeras associações culturais que vicejam nos bairros de Salvador, nas cidades do Recôncavo e nas outras regiões e territórios identitários do estado. Em todos esses lugares largos Ordep Serra exerce, nem que sejam indiretamente, funções políticas, simbólicas, administrativas, educacionais, religiosas e be-

Page 345: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 343

neméritas, às vezes com a força suave e vigorosa de sua presença física, mas sempre por ser uma referência como liderança intelec-tual de resistência cultural e de labuta permanente e incansável pelo reconhecimento, pela valorização, pela preservação e pelo desenvolvimento desse patrimônio de nossa imanência e de nos-sa transcendência.

Por tudo o que eu resumi até aqui de forma superficial e ali-geirada, Ordep Serra já deveria estar compondo os quadros desta agremiação. Porque numa academia de letras assentam-se não ape-nas escritores que produzem no campo da criação literária, como ainda aqueles mestres cuja elaboração textual integra as tantas lite-raturas que transitam no universo das humanidades. Acontece que Vosmicê é também um artista, confrade Ordep Serra! E não so-mente um artista diletante, que arrisca nas artes uma fuga prazerosa da militância acadêmica, política e social. Suas incursões na música, nas artes visuais, nas artes cênicas e na poesia são registros de uma alma lírica engenhosa, com a disciplina técnica de um artista nato. Seu oratório Descrição do martírio foi musicado por Milton Gomes em 1965. Sua Louvação a Oxum foi musicada por Roberto Mendes e gravada por Maria Bethânia em 1992. Em 2004, Carlos Gregório gravou em vídeo seu trabalho Intolerância religiosa – Ameaça à paz. Em 2006, alguns cordéis de sua autoria foram reunidos no livro O encantamento de sua santidade – Canção de fogo. Um desses cordéis, adaptado para o teatro por Carlos Gregório, foi encenado no Tea-tro dos Novos em 2003, preservando o título original tipicamente cordelista: Bodas de mangue – A trágica história da gringa mal servida.

O flerte desta casa com Ordep Serra se transformou em namoro quando foi aberto o envelope com o nome do vence-dor do prêmio Nacional de Literatura da Academia de Letras da Bahia na categoria de contos em 2008. Seu livro Sete portas foi o vencedor. Para muitos, seria uma surpresa. Naqueles textos de ficção curta, o autor vertia da veia literária histórias de uma gente simples de sua cidade natal, numa linguagem despojada e carregada de sotaque, em que o épico e o lírico se condensavam

Page 346: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

344 ◄◄

em tramas comezinhas, para representar a complexidade univer-sal dos homens. Em 2010, um surpreendente e inédito bicampe-onato sela firmemente o compromisso de Ordep Serra com a literatura. Ele ganha mais um prêmio literário da Academia, na categoria ficção com temas de matriz africana. O livro Ronda — Oratório malungo, nas palavras do escritor, professor e acadêmico Aleilton Fonseca, “coloca em evidência a voz plural que repre-senta o universo afro-brasileiro, de forma efetiva, com alta carga de significação”. O último texto trazido pelo autor a esta casa foi a palestra Breve reflexão sobre os hinos órficos, proferida em sessão ordinária no dia seis de junho de 2013, seguida de sua leitura de alguns desses hinos traduzidos por ele diretamente do grego clássico. Finalmente, em sessão eleitoral no dia 22 de maio de 2014, seu nome foi unanimemente indicado para a vaga deixa-da pelo saudoso confrade James Amado, com votos suficientes para antecipar sua eleição.

E eis que chegamos a quatro de setembro de 2014, que não é somente esta data: é um dia histórico e infinito, em que Ordep Serra, indicado pelos antecessores, escolhido e conduzido pela ad-miração dos confrades, recebe a medalha e o diploma acadêmicos e toma posse eterna da Cadeira 27 deste templo das letras baianas. E, honrando a cátedra, acaba de dignificar a memória dos anteces-sores e narrar para todos nós sua emoção, seu orgulho, sua alegria. Sobre a fala do acadêmico, que ouvimos há pouco, eu faço duas observações. A primeira delas: o confrade fez uma longa lista de agradecimentos. Quase todo seu discurso foi uma sucessão de no-mes gratos, que lhe são caros. Quero crer que isso demonstra quão amplo, quão profundo é o respeito do confrade pela vida humana, quão intensa é a relação dele com as comunidades, as famílias e as pessoas de sua convivência. E mais: quão generoso é seu coração. A outra observação é sobre o final do discurso, quando ele dis-se aos acadêmicos: “A culpa é sua”. Quem lhe teria sugestionado a crer que seu ingresso nesta comunidade acadêmica seria culpa destes seus novos confrades? Qual nada! A culpa é sua, Ordep

Page 347: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 345

Serra! Vossa Mercê é o único culpado de ter dedicado a vida à inteligência, à produção intelectual, à atenção à cultura. Nós aqui fomos apenas seus juízes. Nós julgamos Vosmicê exemplarmente e chegamos à sentença mais justa. E, assim, nós decidimos que Você fosse condenado a uma pena inescapável: a imortalidade.

parabéns, acadêmico. parabéns, meu amigo. E muito obri-gado pela confiança. Se os antepassados sopraram-lhe meu nome para recepcioná-lo em nome de todos, sei que a decisão foi sua. Devo-lhe uma, agora. Mas eu quero pagar agora mesmo. Portan-to, venha, ordep. Abrace Regina e venha comigo. Vamos sair des-te mundo ilusório em que acordamos todos os dias quase que tão somente para termos de conviver com as dores tenazes e as ale-grias fugazes do cotidiano. Isso tudo é mentira, Ordep, tudo não passa de engano dos sentidos e da mente. Vamos embora para o mundo real e verdadeiro. Mas vamos preparados. para isso, deve-mos primeiramente mergulhar em suas mais profundas lembran-ças, em sua memória de infância em Cachoeira, em suas andanças pelo sertão e cidades da Bahia, em todo esse universo de cultura e saber de seus entes queridos e respeitados, em seu catálogo de observações das pessoas, das casas, das ruas, das praças, das feiras, das roças, dos terreiros, das capoeiras e de toda sua geografia.

pronto. Agora podemos seguir. E vamos cantar. Vamos chamar. Vamos mandar descer. Antes, vamos afinar os instru-mentos. A harpa, a lira, a flauta, a cítara. Os atabaques não podem parar de bater. A sanfona comendo no centro. Eia que lá vêm as crianças! Os efebos com seu aretê, os curumins buliçosos, os erês endiabrados, os querubins com suas faces de beatitude. Vamos pedir a eles que formem a primeira roda para dançar o quarup, pés avançando firmes no mesmo ritmo: tum, tum, tum. Depois, va-mos chamar. Vamos pedir pra descer. É certo que Eros e Exuvão chegar logo, esses dois curiosos. Eros ficará à espreita, desejoso do que está por vir. Exu subirá de volta, correndo, para avisar, numa excitação só, enquanto os penetras se adiantam em atrope-lo: sátiros e sacis, ninfas e uiaras, centauros e mulas sem cabeça,

Page 348: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

346 ◄◄

górgonas e curupiras, quimeras e boitatás, heróis e pretos velhos, santos e caboclos, magos e eguns. Todos aqui, no salão espaçoso, alegres, felizes, à espera da dádiva que vem do alto. Todos olhando para cima e aguardando. Enquanto afesta não para. Acendem-se as fogueiras. Soltam-se os rojões. Cresce a música. E todos riem, e dançam, e cantam, e chamam para descer.

A algazarra é tamanha, é tanta, e tão sincera, e tão con-tagiante, que os olhos poderosos nunca vistos agora se voltam para cá. E longe, onde estão, inalcançáveis, eles despertam. Mas não há fúria ou desprezo em seus semblantes. Há somente ter-nura e compaixão. Nossa esperança, então, se agiganta. Sem dú-vida, eles virão. Descerão com suas vestimentas deslumbrantes, com suas armas, suas joias, seus adereços. Lá fora será completa escuridão, porque eles trarão consigo toda a luz. E descerão res-plandecentes. E o Orun ficará vazio. E o Olimpo ficará deserto. Porque agora já é certo: todos eles virão. O corpo de Cristo reconstruído e transfigurado numa grande pajelança. Deuses, anjos e demônios, lado a lado com os homens, de mãos dadas, numa ciranda mágica, elevando o canto a uma única bênção, bença mãe, bença pai, uma só bênção, que se expande, se expan-de, expande, infinitamente, infinitamente...1

Luís Antonio Cajazeira Ramos é poeta, analista do Banco Central do Brasil e advogado. publicou cinco livros de poesia, além da participa-ção em antologias. Recebeu o Prêmio Nacional Gregório de Mattos da Academia de Letras da Bahia em 2000. Entre seus livros, estão Temporal temporal (2002) e Mais que sempre (2007). É sócio do Institu-to Geográfico e Histórico da Bahia e sócio fundador da Associação Amigos do Teatro Castro Alves. Desde 2012 ocupa a Cadeira número 35 da ALB.

Discurso de recepção ao acadêmico Ordep Serra, empossado na Ca-deira número 27, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Aca-demia de Letras da Bahia, em 4 de setembro de 2014.

Page 349: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 347

DISCURSo DE poSSE

urAniA tourinHo Peres

A infância de cada um é o romance definitivo: uns o escrevem e outros não. José Lezama Lima

Aqui estou para receber a Cadeira 40 desta Academia de Le-tras da Bahia, que foi por último ocupada pelo brilhantis-

mo de Consuelo Novais Sampaio e, anteriormente, por figuras igualmente notáveis da nossa cultura, otávio Mangabeira e Ma-nuel Pinto de Aguiar, tendo como patrono o jovem Francisco Mangabeira. Poderia me interrogar: que mérito tenho eu para aqui estar? Entretanto, sei que aqui me encontro por ter sido re-conhecida, por terem me atribuído, o que talvez eu não houvesse por mim mesma me atribuído: a condição de escritora, que me abre as portas desta casa, casa que abriga as letras, e que sempre admirei. Assim, a resposta antecede a pergunta, pois somos sem-pre constituídos pelo olhar de reconhecimento, prova de amor, que recebemos do Outro, e pelas palavras que, ao longo da vida, nos conferem e confirmam uma identidade. Deram-me a mão para que aqui hoje estivesse, e sou por isso agradecida. Aqui, confirmo a minha devoção à palavra. Aceito este dia como um ritual de passagem e recebo este lugar como uma doação, uma herança, uma herança exigente, e cumpre, então, bem usá-la e desenvolvê-la.

Somos constituídos por palavras que nos chegam e mar-cam nosso corpo, nos impregnam e vão traçando caminhos, imprimindo matizes e configurando nossa maneira de ser e vir

Page 350: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

348 ◄◄

a ser, falados antes de nos tornarmos falantes. As palavras do Outro nos dizem e nos assujeitam, sujeição necessária sem a qual permaneceríamos no limbo da incomunicabilidade, no pa-tamar da loucura. Em nossa chegada ao mundo, dizemos um hipotético sim a um código preexistente, um código abrangen-te, suposto tudo significar, mas que não contém aquela palavra única que, supostamente, nos significaria, que diria nossa sin-gularidade. Essa palavra falta, e, estranhamente, essa falta é que nos constitui em nossa dimensão desejante e nos impulsiona à procura dos sinais, as marcas de nossa singularidade. Recebemos um nome que define nossa filiação e nos insere no grupo a que pertencemos. Esse nome nos indica, mas não nos significa, po-dendo, inclusive, a outros pertencer. Também o “eu”, ao qual re-corremos quando queremos marcar a nossa presença, esse “eu” é de todos. A genialidade do poeta assinalou, magistralmente, ainda aos 17 anos, que “Eu é um Outro”. E saber chegara essa verdade, tão precocemente, não teria afastado das palavras o torturado Rimbaud? Ele abandonou a poesia pelo tráfico de armas, trocou as letras pelo dinheiro, porém não perdeu a sua condição de poeta maior, buscando revelar o enigma central da condição humana. Afinal, quem somos e como escrevemos a nossa existência? Uma interrogação a nortear nossas vidas, uma interrogação crucial para um psicanalista. A condição de “ser” pode chamar a si vários qualificativos, marcar uma pluralidade de papéis que a vida nos confere. Todos nos dizem parcialmente, nos inserem em uma multiplicidade, mas não atingem nossa sin-gularidade, pois cada um de nós é singular, único, na sua maneira de estar no mundo. para dizer essa singularidade, as palavras faltam, as palavras enganam, fazem promessas que não podem cumprir e, por isso mesmo, seduzem, nos envolvem e nos apri-sionam. Eu acredito que a sedução que as palavras exercem, ao tempo em que não se deixam apropriar, é um dos fatores que nos conduzem ao imperativo da criação, da arte e, seguramen-te, da escrita. Quanto mais tocado pelo enigma, maior a força

Page 351: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 349

propulsora para o caminho do desvelamento. Em verdade, a in-terrogação sobre o enigma está na origem da busca criativa do homem. O mistério joga o homem no religioso, na divindade; o enigma o faz interrogar, enfrentar o real na sua impossibilidade de ser dito. o artista luta contra essa impossibilidade e, por isso, ele cria. Disse Cézanne: “Eu não pinto a realidade, eu crio”. Os artistas são visionários, especialmente tocados pela insuficiência que nos modela e, exatamente por isso, vão além, transcendem, são inquietos, lutam contra o vazio da existência. E, nesse pon-to, se encontram arte e psicanálise. A psicanálise é uma prática transgressora, “o inconsciente é a hipótese de que não sonha-mos apenas quando dormimos”. O inconsciente é uma eterna busca, pois tudo é, mas pode ser também de uma outra maneira. Todos os sentidos podem se transformar em outros sentidos. o inconsciente nos liberta do aprisionamento das palavras, ele faz pacto com a poesia.

Faço uma escolha: primeiro vou falar de meus anteces-sores, patrono e ocupantes dessa Cadeira 40 da Academia de Letras da Bahia, e, em seguida, de mim falarei. procurarei ho-menageá-los e tentarei encontrar um fio condutor que nos ligará e que dará consistência à minha transitória permanência nesta casa. Vou em busca de uma transmissão.

Inicio por Francisco Cavalcanti Mangabeira, o patrono. Francisco Mangabeira, um jovem poeta. A vida ou o destino não lhe permitiram envelhecer, a juventude marcou a sua exis-tência. Aos 24 anos, a bordo de um ita, o São Salvador, partiu, não apenas para uma viagem programada. Desejava voltar à sua terra, à sua família e, sobretudo, abraçar o pai, mas, em verdade, navegou para a viagem definitiva, “o longo sono sem sonhos”, como ele acenou na dedicatória intitulada “Carta a um morto”, de seu livro Tragédia épica.(1)

Morreu Francisco Mangabeira no mar, próximo a Gurupi. Lamentou-se: “Morro sem abraçar meu pai”. Em São Luís do Maranhão, recebeu sua primeira sepultura. Uma vida de poucos

Page 352: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

350 ◄◄

anos mas, seguramente, intensa. No terceiro ano de medicina, aos 18 anos, resolveu colaborar com o governo e partiu para dar assistência aos feridos na Guerra de Canudos, servindo nos hos-pitais de sangue do Exército. Assim diria em uma das estrofes de “Adeus”, poema de abertura de seu livro Tragédia épica:

Lá vão eles! Já tristíssimos lamentosSe escutam... Um tremor agita os coraçõesDos que ficam, ao ver com que fatal loucuraVão em busca da glória ou, então, da sepulturaEste bando de heróis, homens feitos leões.(2)

Findo o conflito, retornou Francisco Mangabeira e con-cluiu o curso de medicina em 18 de dezembro de 1900. Inquieto, aventureiro, festejado pela sua geração — não pela sua aplicação à medicina, pois, segundo o seu biógrafo Almachio Diniz,(3) so-freu algumas reprovações, mas, sobretudo, pela sua produção poética —, Francisco congregava com a juventude amante das letras, dava vida e força ao Grêmio Literário do Instituto Oficial.

Diplomado, deixa sua terra natal e parte, segue para o Amazonas, onde adere à Revolução Acriana, chegando a ser no-meado secretário da revolução pelos chefes revolucionários. A poesia o acompanhava, e um poema seu tornou-se a letra do Hino do Acre, que assim se inicia:

Que este sol a brilhar soberanoSobre as matas que o veem com amorEncha o peito de cada acrianoDe nobreza, constância e valor...(4)

Na selva, exercendo a profissão, acabou por adoecer, e a medicina foi impotente para curá-lo. Uma polinevrite palustre, instalada em um corpo exausto e debilitado pelas precárias condi-ções de vida, comprovou-lhe a insuficiência da sua profissão, da

Page 353: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 351

sua prática clínica. Interpelado como doutor nos últimos instantes de vida, respondeu: “Não sou doutor, sou poeta”, e exclamou: “Como é que morre um poeta aos 25 anos!”(5)Aceitar a morte do médico sim, mas não a do poeta, apelando, então, para a imor-talidade da letra, a imortalidade da poesia. “Morreu no beliche 1 nº 106 camarote 40”, em 27 de janeiro de 1904.(6)o número 40 o acompanhou e o trouxe para esta casa, tornando-o patrono da Cadeira 40.

A Tragédia épica, escrita em 1900, dedicada à Guerra de Canudos, é considerada a sua obra mais significativa, pois nela encontramos a sua sensibilidade poética confrontada com a in-dignação de uma guerra cruenta, uma selvageria humana, que, lamentavelmente, prossegue, pois o homem não sabe viver sem a guerra. Francisco Mangabeira nos transmite a seriedade de um jovem comprometido com o sofrimento e a insensatez dos ho-mens, traduzida pela sua sensibilidade de poeta.

Trago as palavras de Otávio Mangabeira, seu irmão, ditas nesta casa, em 1954, para fazer a passagem do patrono ao pri-meiro ocupante da Cadeira 40:

Com uma tristeza que se reproduz sempre que o tra-go à lembrança, neste momento, sinto-a maior do que nunca: vi-o pagar, aos vinte e quatro anos, o doloroso tributo que a poesia bela demais para o mundo, paga frequentemente à desventura.(7)

otávio Mangabeira tornou-se o primeiro ocupante da Ca-deira 40.

Otávio não escondia a melancolia que o acompanhou na vida, pois as perdas lhe aconteceram muito precocemente: aos dois anos, perdeu a mãe; aos 18 anos, a irmã Maria Augusta, que fora sua mãe substituta, tomou a resolução de confinar-se em um convento, tornando-se freira do Bom Pastor, o que, em suas palavras foi um desgosto; e, aos 19 anos, perdeu o irmão

Page 354: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

352 ◄◄

idealizado e modelo inatingível, “o maior, entre nós, na inteli-gência, sendo por outro lado, ao mesmo tempo, um primor de coração; era a luz e a flor da casa”.(8)

O mundo esvaziou-se, a casa perdeu a luz e a flor, mas ele soube encontrar o caminho de um luto que se transformou em uma luta constante em busca de valores estáveis, pois desacredi-tava no efêmero, no transitório, e defendia a fé no eterno. Tor-nou-se um homem intimista, ainda que devotado à causa públi-ca. Disse: “Quanto mais apuro a inanidade ou precariedade do ‘visível’ tanto mais acredito no ‘invisível’”,(9)declaração que não deixa de assinalar uma decepção ou mesmo descrença de muitos que o acompanharam na luta política. A evidência falava menos que a crença e a força de suas convicções na fé. Mangabeira foi um homem religioso.

Amou a Bahia como poucos, sua terra-mãe, e, quem sabe, talvez por ter tão pequeno perdido a sua mãe biológica e afetiva, tornou-se filho de nossa terra. São palavras suas em discurso pronunciado quando de sua volta do exílio em 1934:

Para os que sabem o que é o amor filial, para os que prezam como sagrado entre todos os sentimentos da fidelidade ao berço em que nasceram, aos lares em que se criaram, nada iguala como prêmio, mas ao mesmo tempo como estímulo, ao carinho da bênção materna. [...] a voz da terra natal, fortalecendo-nos, é como a voz de Deus...(grifo nosso)(10)

Considerado por muitos um dos maiores estadistas da Re-pública, ocupou inúmeros cargos públicos, inclusive o governo da Bahia. Privilegiamos, entretanto, a sua palavra, “a serenidade de seu estilo”,(11)na medida em que consideramos que são mais valiosas que cargos e prêmios.

Li o que me foi possível para retirar da leitura essas poucas linhas, não porque fosse necessária tanta leitura, mas por ter sido

Page 355: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 353

aprisionada pelas palavras desse homem que, até então, conhecia à distância, como um grande político. Ele teve seu nome gra-vado em avenida e, agora, percebo que, entre muitas doações à nossa terra, ele nos trouxe o mar por onde navegou, mergulhado na tristeza, quando partiu para o exílio, mas, também, mergulha-do em glórias, quando aportou em regresso. A Avenida Otávio Mangabeira é das mais belas de nossa querida Salvador. Se, por meio dela, ele integrou o mar à nossa terra, ela soube devolver-lhe, dando-lhe a sua beleza e o sonoro movimento das ondas como homenagem perpétua. o mar da Avenida otávio Man-gabeira não se deixa estragar pela ação demolidora dos homens.

Recebo da parte de otávio Mangabeira, como legado, a mestria no uso da palavra e o amor à terra-mãe, o amor à Bahia.

Continuamos em nossa esteira de transmissões. Manuel pinto de Aguiar, segundo ocupante desta Cadeira, encontrou, no poema épico do jovem Francisco Mangabeira, a crueldade hu-mana retratada pela narrativa da Guerra de Canudos, e foi sen-sível ao abalo produzido “nas tendências esteticistas do início do século”.(12) Tanto a Tragédia épica, de Francisco Mangabeira, como Os sertões, de Euclides da Cunha, imprimiram nas Letras a necessidade de pensar o homem na sua vertente agressiva e des-truidora. Retrata-se, então, o drama da terra e do homem brasi-leiro.(13) para pinto de Aguiar, a temática literária mudou, passou a privilegiar uma temática centrada “nas coisas e nas gentes do Brasil”, atitude a que chamou de panteísta.(14) o mundo viveria a Primeira Guera Mundial, o mundo se revolucionava, e as artes também. Na Bahia, a inquietação se materializava no chamado movimento modernista, manifestado em dois distintos grupos que se materializaram em revistas: o primeiro publicou Samba e O Momento; o segundo grupo deu vida a Arco e Flexa, Mensário de Cultura Moderna. pinto de Aguiar ocupou o lugar de diretor de Arco e Flexa, ofereceu sua casa para sede da revista e usou a herança recebida do pai para ajudar na realização dos cinco nú-meros que lhe marcaram a existência.

Page 356: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

354 ◄◄

Podemos acompanhar o menino solitário que encontra-va nos livros o espaço livre de limites para o sonhar. Pequeno leitor, assim como pequeno construtor, pois passava horas da sua infância construindo pequenas cidades com pedaços de lou-ças quebradas, que chegavam em caixotes para a loja do pai. As letras, assim como o impulso construtor, reapareceram na vida adulta, quando avaliamos não apenas sua produção literária, mas, também, seu empenho em modificações em sua cidade, pela construção de casas populares e de bairros, como o Rio Vermelho. Sim, é verdade, pinto de Aguiar se autodenominou “salsaparrilha”, remédio para qualquer coisa. Talentoso, versátil e empreendedor, dentre todas as suas conquistas e realizações, ressaltou “a socialização da residência”,(15) enquanto esteve à frente da Caixa Econômica, e a sua preocupação em tornar a vida rural mais produtiva, com melhores condições de vida e trabalho. Na impossibilidade de enumerar todos os cargos que exerceu e todas as conquistas obtidas em sua preocupação pelo desenvolvimento de nossa terra, destaquei as que de alguma ma-neira sintetizam a sua visão humanitária e progressista.

Entretanto, para deixá-lo, não posso encerrar sem trazer o seu intenso amor ao livro. pinto de Aguiar, além de grande leitor, foi um bibliófilo exemplar e fundador da Editora Progres-so, que dirigiu por 15 anos, durante os quais chegou a publicar 440 títulos, cumprindo a louvável missão de editar escritores de nossa Bahia e de nos trazer importantes traduções de autores estrangeiros. Esse homem, incansável na luta em prol de suas realizações, não pode deixar de nos transmitir a intensidade de sua força desejante.

A bola corta o espaço, parte de um, segue para o outro e, finalmente, o salto e o corte preciso da pentacampeã baiana: Consuelo Novais Sampaio. Meus olhos adolescentes contempla-vam fascinados a figura esguia e ágil, de golpes certeiros: rainha no voleibol. Impossível a previsão, naquele momento, do que o

Page 357: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 355

futuro nos reservaria, mas uma certeza permanece: Consuelo foi campeã em muitos momentos da vida. Mulher valente e lutadora é o que todos confirmam; intelectual segura e criativa; e gosta-ria de acrescentar: elegante e carinhosa. Suas últimas palavras a mim dirigidas foram: “Urania, você é muito carinhosa”. E eu lhe respondi: ”Você também”. Ao tempo em que convivíamos, não sei se vivemos o melhor de nosa amizade, mas assim é a vida, sempre deixando os seus restos irrealizados.

Nasce Consuelo Novais “nos sertões de Jequié, crescen-do alimentada com leite de cabra, carne de sol e pirão de leite, saboreando suculentos umbus, ao tempo em que corria livre e solta, por entre a vegetação rasteira do agreste”.(16) Assim, refere-se ela à sua entrada no mundo, em seu discurso de posse nesta academia. Creio que essa entrada, aliás, como todas, definiu sua disposição para o futuro e deu-lhe a força que a acompanhou. Seguramente, Consuelo cumpriu a corrida livre e solta pela vida. Sua árvore genealógica traz a presença de sua bisavó, linda índia cariri, de longos cabelos e olhos negros, que foi enlaçada pelo bi-savô, belo português louro de olhos azuis. Uma cena novelesca de desejo e paixão. Assim, nasceu Dulce Novais, sua mãe muito amada e admirada. Podemos, sem dificuldade, desenhar uma li-nhagem de mulheres guerreiras, que neste momento me entre-gam o bastão para dar prosseguimento a este caminho, agora pelas letras. Gosto, e me sinto orgulhosa com esta doação, e em mim reconheço, também, o meu lado guerreiro, na luta com a palavra, na defesa da psicanálise e, consequentemente, da mino-ração do sofrimento humano.

Dulce Novais casou-se com Alarico Sampaio de Souza, fazendeiro e comerciante, nascendo, então, Consuelo, que ape-nas desfrutou da companhia do pai durante três anos. Aos 19 anos, Dulce tornou-se viúva. Entretanto, a precocidade da per-da não a submergiu em um luto estagnante, mas fez emergir a mulher que soube vislumbrar a riqueza de uma vida sempre à procura dos ideais de liberdade, e assim criou as quatro filhas —

Page 358: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

356 ◄◄

Consuelo, Aida, Niva e Ieda —, que com ela formavam um bra-vo quinteto de mulheres. Nossa homenageada passou a infância entre o Rio de Janeiro e Salvador, sempre frequentando os me-lhores colégios e completando a educação com o aprendizado de línguas, música e esporte. Estudou piano, acordeom, tênis, a que se acrescentaria, mais tarde, o voleibol. Foi seu encontro com o nosso acadêmico Luís Henrique Dias Tavares que selou a sua escolha profissional e a fez optar pelos caminhos fascinantes da historiografia. Iniciou o seu curso de formação na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e o concluiu na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Mestre em Ciências Sociais pela Univer-sidade Federal da Bahia, prosseguiu sua carreira indo buscar o título de doutor na John Hopkins University e, posteriormente, o pós-doutorado na University of California (UCLA), Los Angeles, ambas nos Estados Unidos da América. orgulhosa dos profes-sores que encontrou, dedicou-se, como ela mesma confessou, “quase à exaustão à História Colonial da América Latina”.(17) Autora reconhecida por seus méritos, foi vencedora, em 2004, da primeira edição do Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica — Clarival do prado Valladares, permitindo-lhe desenvolver um projeto de pesquisa que resultou no livro 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX.(18) Consuelo foi incansável na luta em preservar a memória do patrimônio cultural de nossa terra patrimônio. Mãe de dois filhos, Paulo e Andrea, aos quais muito amou e admirou.

Deixo meus antecessores e tomo a palavra como escri-tora. Se, neste momento, ocupo este espaço, é que, de fato, o aceitei e tenho de falar a partir dele. Tenho de buscar o que provocou em mim o apelo à palavra escrita, ao livro, e o apelo a escrever a palavra, a escritura. o primeiro me reservou o pa-pel de leitora, o segundo me trouxe ao lugar que aqui ocupo. Entretanto, saio desses dois espaços, e vou para um terceiro:

Page 359: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 357

o da palavra falada e da palavra escutada. Não tenho dúvida de que a condição de psicanalista, a prática da psicanálise, este conviver intenso com a palavra, deu corpo e exigência às três posições que mencionei. Lacan, definiu o psicanalista como um “artífice da palavra” e, já no final de sua vida, referiu-se à interpretação, à sua operacidade, pela sua irmandade com a poesia. Ou seja, abrindo as amarras do sentido, buscando pela sonoridade o encontro com as homofonias, produzindo sentido a partir do sem sentido, o inconsciente é justamente esta possibilidade de outro sentido, atuando no pressuposto da ausência de contradições. O psicanalista é um pesquisador, um ser em busca, um sabedor, sobretudo, da insuficiência do dizer. Ele perde a ingenuidade da prepotência da verdade, que ele sabe ser inatingível. Exatamente por isso, Freud designou de castração o conceito a marcar nossa insuficiência.

perdemos a harmonia com o universo da natureza, uma força instintiva a nos guiar, tornamo-nos falantes e insuficientes. A falta, o vazio, a angústia, a culpa, nossa sexualidade errante tornaram-se nossa herança maior. Entretanto, se, por um lado, a palavra determinou nosso universo metaforizado e insuficiente, por outro, constituiu-se e constitui-se como nossa força maior: somos falantes, somos seres de palavras.

A psicanálise não é uma ciência, não tem a pretensão de encontrar a verdade; não é, tampouco, uma religião, não nos afirma o sentido da vida. Ela se situa nas bordas das práticas de saber, daí sua proximidade com a arte.

Tentarei me apresentar, procurar os caminhos que aqui me trouxeram. Tenho de voltar ao meu passado e traçar o fio condutor que foi marcando, selando, configurando o meu fas-cínio pela palavra. Tenho de recorrer às lembranças, sabendo que jamais elas dizem a suposta verdade do acontecido, pois são sempre encobridoras, imperfeitas na sua transferência ao pre-sente. Vou, então, buscar imagens, retratos, e reconstruir cenas que possam me ajudar.

Page 360: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

358 ◄◄

Cheguei ao mundo aproximadamente12 dias antes do es-perado. Minha mãe, desejosa de que eu nascesse em Salvador, embarcou no dia 22 de setembro em um ita para fazer a traves-sia Ilhéus-Bahia — teria sido o São Salvador, no qual morreu Francisco Mangabeira? Um mar bravio com suas ondas gigantes transformou a embarcação em um grande berço ondulante, an-tecipando um trabalho de parto que estava previsto para acon-tecer no início de outubro. Saímos do navio, minha mãe e eu, em uma ambulância, que nos levaria à casa de minha avó, na Rua Marquês de Caravelas. Acasos da vida fizeram com que, no momento de nossa chegada, passasse pela rua uma enfermeira, parteira inglesa, nursey chamada, e, assim, dei o meu primeiro choro em vida nas mãos de uma britânica, que, durante um mês ou mais, impôs uma rotina rigorosa sob o imperativo: “bebê fica no berço”. E eu fiquei, independentemente de meus apelos e dos desejos de minha mãe.

Começou então a canção da minha vida. Recebi o nome de minha avó paterna, Urania Tourinho.

Somente muitos anos depois, dei-me conta de minha pre-maturidade, prematuridade essa que trouxe como consequência ter nascido no dia em que Freud morria, em Londres, anteci-pando a morte, por uma eutanásia combinada entre ele e o seu médico. A hora exata não sei, nem a em que ele morria, nem a em que eu nascia, porém, ambos, no final da manhã, ambos antecipando a hora. A essa coincidência, não fiquei indiferen-te. Quando dela tomei conhecimento, emocionei-me, mas nada pode ser dito sobre ela. Os acontecimentos da vida são sempre significados a posteriori, o que hoje posso pensar/dizer é que o meu encontro com Freud, o seu texto, a sua escritura me mar-caram de uma maneira contundente. Ele saía da vida, e eu che-gava para admirá-lo, para reverenciá-lo. Teria Freud me enviado a parteira inglesa? Freud morreu em Maresfield Garden, Londres.

Escutei dizerem que comecei a falar no fim de meu primei-ro ano. Fui à procura de registros da infância: retratos. Selecionei

Page 361: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 359

alguns. O primeiro que aqui trago na memória me cativou, pois tocou em uma das poucas certezas que tenho: a da importância do olhar da criança, olhar que os anos de vida fazem desaparecer, e de que, talvez, apenas os artistas conservem vestígios. Olhar que transmite uma interrogação, um porquê sobre tudo o queé visto descortinar-se à frente. Um olhar, quem sabe, de sideração. O “porquê” que este olhar transmite e esconde é fundamental, e sabemos que a criança pode acolher ou não o mundo que lhe é oferecido e que a configurará. Um assentimento hipotético e mítico para integrar, aceitar ou abdicar das leis que regem o universo da linguagem, as leis as quais nos subordinamos como seres de palavras. Se me detenho nesse olhar que foi meu, en-contro o olhar, que ainda em mim vejo, de muita perplexidade, de poucas certezas e com uma grande interrogação.

Três anos depois, em outro retrato, já me encontro sorri-dente, posando para a expectativa de uma família que me abri-gava. Esses retratos que selecionei são importantes para mim. Posso dizer que o instante que o primeiro captou conservo em mim mais reservado, mais íntimo, mais escondido. o segundo tem uma dimensão mais social, modelada. Lembro-me que o sapatinho que usei para a fotografia era apertado, e o pé doía, mas tinha de ser suportado nos instantes do retrato, pois ficava tudo “bonitinho”. Hoje, penso nos sapatos apertados que carre-gamos vida afora e que temos de suportar. Dois retratos, então, a revelar o que somos e o que mostramos ser.

Vivi em Ilhéus até os quatro anos de idade. Recordo-me que ia todas as tardes passear na Praça Rui Barbosa, e sempre vinha ao meu encontro um rapaz, que comigo brincava e me cumprimentava: “Urania, dos olhos negros que nem as asas da graúna”. Quem teria sido? Por que assim me falava e por que não esqueci esse encontro? Nada sei, apenas que deixou em mim, marcada, uma frase que me qualificava, que chamava a atenção para o olhar, o negro em meus olhos, e eu nunca esqueci. Olhos que lembravam as asas da graúna. Mas o que era a graúna? Eu

Page 362: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

360 ◄◄

não sabia, mas a palavra ficou impressa em meu corpo e marcou um olhar que voava e que ainda voa As palavras, como tatua-gens, deixam marcas que não se apagam.

Foi dessa época o acontecimento maior da minha infân-cia: a doença de meu pai, Mário Tourinho, agrônomo em Uru-çuca. Pai querido e admirado. Fragilizado por um tratamento médico inadequado, tornou-se receptivo a uma tuberculose que o acompanhou durante toda a minha infância. Ele foi, então, a mim interditado: não mais sentar em seu colo, abra-çá-lo ou beijá-lo. Frente à minha incompreensão, minha mãe respondia: “quando crescer, você vai compreender”. Cresci e não compreendi, mas a frase em mim ficou, e a interrogação sobre a incompreensão continuou e continua. Procuro sem-pre, ansiosamente, compreender a vida e seus acontecimentos, ainda que saiba que não o conseguirei, pois compreensão não há: o enigma nos constitui. Assim, ao completar quatro anos, não recebi beijos, mas uma cartinha do meu pai, que guardo comigo com veneração. O beijo transformou-se em palavras, texto escrito em letra perfeita. A letra de meu pai era linda e sempre me encantou. Essa carta não pôde ser respondida, e me interrogo: teria o vazio da resposta acionado a pulsão à es-crita? A nossa escrita, a quem responde? A quem se endereça? Digo hoje, na tessitura do fio que privilegio, dentro da rede em que se constituiu a minha vida, que seleciono o meu olhar na procura de imagens, assim como procuro palavras para tradu-zir, metaforizar-se em entendimento, o que foi visto e o que foi escutado. Imagens e palavras a exercer um fascínio que me envolve e inebria.

Para Freud, é traumático tudo o que se recusa a ser tra-duzido, tudo o que não se insere no universo simbólico, tudo aquilo a que a palavra é negada. Assim, as perdas e os traumas marcam as nossas existências com um silêncio abismal. Talvez sejamos mais seres de silêncios do que seres de palavras. Os psi-canalistas e os artistas sabem disso.

Page 363: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 361

A doença do meu pai nos retirou da nossa circunstância natal, ou seja, da família extensa e da Bahia; nos exilou. Fomos para Lagoa Santa, Minas Gerais, em busca de um clima, um ar purificante para um pulmão ferido. Essa temporada em Lagoa Santa, que durou três anos, creio eu, foi muito forte para todos nós. Deixamos uma família numerosa, Tourinho por parte de pai, Risério de Carvalho por parte de mãe. Sobre minha mãe, chamada Georgina, não encontro maneira de expressar, de dizer a beleza e grandiosidade de sua alma. Talvez possa resumir, afir-mando que nos amamos muito, e que o seu amor me transmitiu uma coragem que me acompanhou e acompanha no desfilar da minha vida. Ficamos, então, os quatro — e aqui acrescento o meu irmão, meu grande companheiro na infância, também cha-mado Mário. Inicialmente, em uma casa, cercada por eucalitpos, próxima à cidadezinha. Era um terreno imenso, com uma linda vegetação e grandes canteiros de flores lilases e brancas que se chamavam “bom-dia” e “boa-noite”. Meus companheiros, além do meu irmão, eram: uma galinha, a quem chamei Gotas de Bi-neli; um galo brigão, a quem dei o nome de Heleno de Freitas; e um casal de patinhos, Neguinho e Juraci. Mas era triste, tudo muito silencioso, sob o peso de uma doença que se manifestava quando minha mãe corria para aplicar uma injeção em meu pai, momentos que o meu querido Manuel Bandeira, anos depois, traduziu para mim:

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.A vida inteira que podia ter sido e que não foi.Tosse, tosse, tosse.Mandou chamar o médico:— Diga trinta e três.— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...— Respire................................................................................— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo

Page 364: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

362 ◄◄

e o pulmão direito infiltrado.— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotó-rax?— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango ar-gentino.(20)

Grande poeta, amigo e apaziguador. Visitei Bandeira aos 17 anos de idade. Ainda o vejo em seu apartamento cheio de livros, vestido com um chamado robe de chambre. perguntou-me o nome completo e se tinha apelido. Enviou-me, pouco tempo de-pois, em um cartão da Academia Brasileira de Letras, escrito pela sua letrinha, um poema que se encontra em Mafuá do malungo:

Urania junto a Maria, Não há nome mais bonito:A musa da AstronomiaJunto à mãe de Deus: Em ti Se vê, Urania Maria,Unir-se um a outro infinito,O mito à sabedoria,A vida ao seu outro lado,Ou seja, tudo abreviadoNum dissílabo – Teti.(21)

Volto a Lagoa Santa, depois de passar pela minha vaida-de... Volto às reuniões às 18 horas, hora do Ângelus, em que os quatro, meu pai, minha mãe, meu irmão e eu, rezávamos escutando a Ave-Maria transmitida por um rádio que conservo até hoje. Desse período, teria muito o que dizer, mas vou ser sintética e mencionar apenas quatro fatos importantes, quatro cenas infantis. O primeiro, a presença de Maria, que trabalhava na casa e passava os dias cantando Vicente Celestino. Com ela, sem exagero, aprendi todas as músicas cantadas por ele. Can-távamos alto e com o desespero próprio da canção. O outro,

Page 365: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 363

o temor pelos cangaceiros que diziam estar por perto e que fazia com que minha mãe fechasse portas e janelas na hora do Ângelus... O terceiro, a caixa de presentes que recebia em meu aniversário, dos parentes da Bahia, e que continha um exagera-do enxoval de roupas bordadas na Casa Stela, lápis, cadernos e chocolates Balangandã. Seleciono a alegria pelos lápis e cader-nos que compartia com meu irmão. E, por último, a existência de uma árvore que, na época, para mim era grande, mas que o retrato, hoje, diz ter sido pouco mais que um arbusto e que me acolhia em um dos seus galhos, horas a fio do meu dia. O meu retrato com essa árvore foi o terceiro que selecionei em minha memória. Com ela eu conversava muito, e dizia o nome que havia dado aos vestidos, que, por serem absolutamente impróprios ao uso na circunstância em que eu vivia, se cha-mavam: “Encanto de beleza”, “Céu estrelado”, “Maravilha das maravilhas”. Com essa árvore dei vazão à minha fantasia, um mundo imaginário, absolutamente solidário às palavras. Com essa árvore dei corpo e consistência ao fio, já quase uma corda, que estou seguindo e que sei que me conduziu aonde me en-contro. Com ela descobri que podemos criar um pensamento secreto, um mundo fascinante, perigoso e absolutamente sin-gular, frente à alienação que o outro nos provoca. Fascinante por não conter limites e perigoso pela mesma razão.

Encerro o período de Lagoa Santa, dizendo que nos mu-damos para uma casa linda aos meus olhos, próxima à lagoa, onde ia tomar “banho de lagoa” e me divertir, e que acolheu a minha família vinda da Bahia, que, em parte, foi nos visitar na época da Primeira Comunhão minha e de meu irmão. Foi nes-sa época, aos sete, oito anos, que encontrei Monteiro Lobato. passsei a viver no Sítio do picapau Amarelo. Adorava Emília, Dona Benta, Tia Nastácia; pedrinho e Narizinho eram meus amigos; o Visconde de Sabugosa me divertia; Flor das Alturas me enternecia; Peter Pan foi a minha primeira paixão. É verda-de: me apaixonei por peter pan e com ele sonhava. o menino

Page 366: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

364 ◄◄

que não queria crescer falou fundo à menina que guardava a ideia e o sentimento de ter perdido a infância. Eu cantarola-va sem parar, ainda que em silêncio, os versinhos: “Oh! que saudades que tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância perdida... — eu trocava o “querida” da canção pela perda sentida. Não, a minha infância não foi uma infância ale-gre, mas, seguramente, não foi perdida. Nenhuma infância é perdida, na medida em que ela de fato nos constitui, e tudo o que a ela se seguirá nada mais é que uma repetição metamor-foseada. Esta é uma lição central da psicanálise: o inconsciente como repetição. A minha infância me confrontou com a gravi-dade da vida, e essa nunca me abandonou.

Fomos ao Rio de Janeiro, para meu pai submeter-se a uma cirurgia delicada e violenta, que lhe arrancou o pulmão direito. Meu pai esteve entre a vida e a morte. Eu acompanhava tudo, sem saber exatamente o que eu estava acompanhando. Este não saber, de alguma maneira sabendo, acompanhou a minha vida de uma maneira profunda. Está aqui o inconsciente, este saber que não se sabe, este saber que não se sabe saber.

Seguiu-se um período difícil, não mais em Lagoa Santa, mas, em Belo Horizonte, onde frequentei o Grupo Escolar Ba-rão do Rio Branco e, depois, o Colégio Sacré-Coeur de Marie, as-sistindo a uma convalescença dolorosa, carregada de crises de angústia, as hoje denominadas de pânico, comuns a quem se submete a cirurgias difíceis e atravessa um período entre a vida e a morte. Meu irmão e eu fomos companheiros, brincávamos com os animais, jogávamos botão juntos, e aspirávamos às vitó-rias do Botafogo, alegria de meu pai naquela difícil fase de vida. Acabei por decorar o time campeão de 1948 e até hoje o sei es-calar. Esse período em Belo Horizonte foi carregado de leitura dos livros da Coleção Menina e Moça, da Livraria José Olympio Editora. Eram livros de autores franceses, muitos deles traduzi-dos por Rachel de Queiroz; guardo comigo muitos exemplares. Eu os adorava. Foi desse período a felicidade maior de minha

Page 367: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 365

infância, o nascimento da minha irmã Regina, que veio para ce-lebrar a recuperação da saúde de meu pai e trazer para mim a alegria, a revitalização e uma das maiores provas da terapia do amor. Voltamos para a Bahia, voltamos para a família. Regres-samos a uma vida saudável. Creio, que o reencontro com o mar nos transmitiu uma força prodigiosa.

Deixo a infância, abandono lembranças, interrompo ca-minhos e retomo a minha caminhada, procurando ser o mais sintética possível, pois o destino estava já traçado e, exatamente por isso, privilegiei a infância.

Fui estudar no Instituto Feminino da Bahia e lá encontrei a primeira biblioteca que frequentei e, literalmente, devorei uma coleção intitulada, se não me engano, Biblioteca das Moças. Lá encontrei Rosa Virgínia Mattos e Silva, que se tornaria minha amiga por toda a vida. Rosinha, como eu a chamava, tornou-se uma autoridade em Língua portuguesa, e em sua homenagem foi realizado um congresso internacional de Linguística Histó-rica a que denominaram Rosae. Para esse congresso, escrevi um trabalho no qual tentei mostrar a nossa trajetória conjunta com a palavra. Ela se preocupou com o que era a palavra, e eu, com o que a palavra produzia. Rosinha foi minha companheira de leitu-ras, passava com ela as férias em Mar Grande, dividindo o tempo entre a praia e a leitura na rede. Lembro-me que descobrimos com paixão Guimarães Rosa, mas não posso deixar de dizer que o primeiro “grande livro” que li, aos 14 anos, foi Anna Karenina, presente de um primo diplomata, e logo depois mergulhei em Guerra e paz. Passo rápido pela adolescência, não que não hou-vesse muito a dizer, mas, ao privilegiar a infância, sou coerente com as minhas suposições de saber.

Segui para o Colégio Sophia Costa pinto, pois para lá iriam Sônia Coutinho e Daisy Schwab, amigas do bairro, com as quais começava a me enturmar. Próxima ao colégio, bem de-fronte do atual Museu de Arte da Bahia, havia uma biblioteca pública, espaço que fomentou, entre nós três, uma competição

Page 368: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

366 ◄◄

feroz de leituras. Guardo ainda a emoção do encontro com A educação sentimental, de Flaubert. o período do Sophia foi muito intenso e bom, tão bom que muito chorei no meu último dia de aula. Amizades e amores se misturaram, comandados pela figura extraordinária de Dr. Tenório de Albuquerque, o diretor querido, admirado e temido. Muitas saudades se enraizaram e permaneceram.

Quero deter-me, por um instante, na minha amizade com Sônia Coutinho e Carlos Nelson Coutinho, amigos irmãos com os quais vivi o melhor de minha juventude. Sônia escrevia bem, se destacava nas redações em sala de aula e tornou-se escritora consagrada. Creio que com ela, em nossas intermináveis con-versas, deixei brotar em mim o interesse pela complexidade da alma humana, não mais a minha, como na infância, mas a do outro. Não falávamos apenas dos livros e seus personagens, fa-lávamos das nossas inquietações, nossos sofrimentos, nossas an-gústias diante da vida. E aí o texto de Sigmund Freud surgiu no meu horizonte. Com Carlos Nelson, Carlito, dei vazão à minha fascinação pela filosofia em nossas discussões intermináveis, ele penetrando no materialismo dialético, eu encantada pelo exis-tencialismo sartriano mesclado com o relativismo orteguiano. A leitura de Ortega y Gasset foi importante e, posteriormente, fiquei contente por saber do seu entusiasmo pelo texto freu-diano. ortega levou a psicanálise ao futuro grupo surrealista, especialmente a Salvador Dalí. Carlito, sem dúvida, foi das me-lhores pessoas que conheci. A absurdidade da vida o retirou de nossa companhia sem qualquer programação. A morte de Car-lito, seguida da morte de Rosinha e de Sonia, e aqui acrescento Johildo Athayde, Alberto Fiuza, pedro Moacir Maia, Eduardo Bustelo e Raquelita, me fizeram mergulhar em um luto intenso, parte de mim partiu com eles. Sim, é verdade; nesses últimos anos vivi um luto permanente, que já se esmaece pela pátina da vida que o tempo tintura. É preciso saber viver os lutos e poder transformá-los. Acrescento ainda uma imensa saudade

Page 369: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 367

e a certeza do valor de uma grande amizade com Henrique Oswald, Guita e José Mindlin, que também se foram, assim como partiu o querido Pedro Nava e o poeta Haroldo de Cam-pos, que me ajudou a navegar nas profundezas dos neologimos lacanianos. É importante parar, pois a lista pode ficar muito extensa, se deixo os amigos e entro na família: meu pai, minha mãe, meus tios, minhas tias Uranita, Idá e Deda, Dinda e Dindo, enfim, todos muito queridos.

O tempo passado na Faculdade de Filosofia da Univer-sidade Federal da Bahia foi muito rico: lá tive aulas com José Valladares, Antonio Luiz Machado Neto, que me encantavam, e conheci Pedro Moacir Maia, que, como já me referi em texto que escrevi quando de sua morte, foi um verdadeiro professor de beleza. pedro se surpreendia ao me ver lendo as poesias de Rai-ner Maria Rilke e tendo sempre comigo um exemplar de Marcel Proust. Saíamos juntos da faculdade, ele trazia um livro ou uma revista de arte para irmos, no ônibus, vendo e conversando e explorando um universo precioso de beleza e sensibilidade.

Foi desse período o meu ingresso na Escola de Dança. Aulas maravilhosas com a polonesa Yanka Rudzka, e mais a teo-ria que recebíamos pelas palavras de Hans Joachim Koellreutter, Yulo Brandão, Martim Gonçalves, Domitila do Amaral, Júlio Medaglia e muitos outros. Seguramente, um período de ouro da Universidade Federal da Bahia e não apenas por um Magnífico Reitor, mas sobretudo por um Reitor Magnifico: Edgard Santos. Eu amava Dr. Edgard, como o chamávamos, por tudo o que ele nos dava: concertos no Salão Nobre da Reitoria, teatro pela Escola de Teatro, o Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, o Fórum Universitário reunindo grandes professo-res de diferentes áreas. E foi nesse fórum que Fernando e eu nos sentamos lado a lado, e assim continuamos, e resultou, para nós, o início de uma relação amorosa que se prolongaria pelo resto de nossas vidas. Casei-me com Fernando, casei-me com a poesia. Cumprimos este ano 50 anos de casados. Tivemos dois

Page 370: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

368 ◄◄

filhos, Daniel e Maria Fernanda, e três queridos netos, Paula, João e Teresa. Maria Fernanda, hoje, docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Daniel docente de Filosofia em nossa Universidade Federal (UFBA). Não sei se soube externar o meu amor, amá-los como os amava e amo, mas guardo no meu íntimo o segredo de que os acho preciosos e, sem avaliações, os admiro muito. Quero ainda dizer que, para a nossa família, chegaram Moacyr Novaes e Rosa Gabriela, genro e nora a me desafiarem na posição de sogra. São todos mui-to queridos. E o irmão que Regina me trouxe, também muito querido, Fernando Jorge. E ainda sobrinhos e sobrinhas filhos, e netos sobrinhos. A família é sempre para ser amada, e é pena que nela também as dores se infiltrem.

Como prosseguir, pressionada pelo desejo narcisista de continuar a desfilar os acontecimentos de minha vida, que, ao ser narrada, revestiu-se de uma importância desmesurada, enga-nadora e vaidosa, mas, por outro lado, sendo admoestada, con-testada, pela importância de me conter, de me calar e, por que não dizer, o sentimento confuso da importância e da insignifi-cância de tudo. Afinal, a quem interessa a nossa vida?

Não posso, entretanto, deixar de voltar à minha luta entu-siasmada pela psicanálise. Sem dúvida, constituímos, aqui em Sal-vador, um grupo pensante que, seguramente, daria alegria a Freud. Fomos privilegiados, e para isso muito contribuiu a natureza es-plendorosa de nossa cidade, que nos facilitava a presença sobre-tudo de franceses e argentinos, os mais brilhantes, a nos ajudar no mergulho em uma teoria às vezes espinhosa. Trago então a figura de Emilio Rodrigué, cabeça analítica que se tornou escritor em nossa terra, terra por ele escolhida para viver, e que nos acompa-nhou no percurso labirítico de nossos inconscientes. Tive a sorte de fazer parte de um grupo aventureiro e que soube importar o melhor da França e da Argentina para uma transmissão teó-rica. Viajamos, fundamos instituições, escrevemos e publicamos, somos reconhecidos. Tenho, no Colégio de psicanálise da Bahia,

Page 371: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 369

que fundei e ajudei a crescer, o herdeiro, a prova maior de minha dedicação e amor à psicanálise. Muitos amigos, muitos encontros e, sobretudo, aqueles que a mim vieram para que juntos explorás-semos as profundezas de suas almas, meus analisandos.

Releio o texto e me surpreendo pelo caminho que ele to-mou, o percurso que realizou, a ênfase no sofrimento infantil, lá onde as coisas acontecem. poderia ter sido outro? Sim, pode-ria. Lagoa Santa poderia ter sido apenas um parágrafo, e toda a riqueza de experiências, descobertas e desafios da juventude e maturidade poderiam ter dominado. poderia ter falado de meus escritos, meus livros, já que aqui é uma casa de letras. Poderia ter me detido no período negro da ditadura que enlutou toda a minha geração e sacrificou Jorge Leal, companheiro da maior pureza nas nossas lutas políticas. E na minha segunda passagem pela Universidade Federal da Bahia: 15 anos vividos entre o Ins-tituto de Orientação Vocacional, dirigido pelo Dr. Emílio Mira y López, a sala de aula no Curso de Psicologia e, finalmente, na Faculdade de Medicina, no Departamento de Psiquiatria, com a lembrança dos companheiros e do querido Dr. Álvaro Rubim de Pinho. Porém, sem determinação prévia, o discurso aconteceu, me guiou e me deixa surpresa. É assim, somos guiados muito mais do que guias. Para que tenha sido assim, é importante bus-car as razões, mas tenho de terminar, não ousaria reformular; se assim aconteceu, é que assim tinha de acontecer.

Quero, então, me despedir e dizer que os amigos, que são muitos e muito queridos, não foram citados porque aqui ainda estão, e isso é o melhor que podemos festejar: a alegria da pre-sença no lugar da saudade da partida.

A Mário e Georgina, que me deram a vida em um ato de amor, e a Fernando, Daniel e Maria Fernanda, que deram senti-do à minha existência, o meu especial agradecimento.

Muito especialmente, agradeço a Aramis Ribeiro Costa, cujo olhar sobre o meu texto o transformou em escrita festejada.

Muito obrigada.

Page 372: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

370 ◄◄

REFERÊNCIAS

n. 1 MANGABEIRA, Francisco. Tragédia épica: (Guerra de Ca-nudos). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2010 [1900]. p.3-4.n. 2 Ibid., p.6.n. 3 DINIZ, Almachio. Francisco Mangabeira, creação e crítica. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola Profissional Álvaro Baptis-ta,1929. p.82.n. 4 Seu poema foi composto em 5 de outubro de 1903, na lo-calidade de Capatará, onde prestava serviços médicos no acam-pamento do Exército, e recebeu música do maestro amazonense Mozart Donizetti. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hino_do_Acre>. Acesso em: 16 set. 2014.n. 5 DINIZ, 1929, p.202-203. Embora seu biógrafo mencione 25 anos, Otávio Mangabeira, seu irmão, como dito adiante, re-fere-se a 24 anos.n. 6 Ibid., p.143.n. 7 oLIVEIRA, Yves de. Otavio Mangabeira: alma e voz da Re-pública. Rio de Janeiro: Saga, 1971. p.21. n. 8 Ibid, p.23.n. 9 Ibid, p.33n. 10 Otávio Mangabeira e a Bahia. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, [19--]. p.16.n. 11 Ibid.n. 12 SAMpAIo, Consuelo Novais. Pinto de Aguiar, audacioso ino-vador. Salvador: p55, 2011. p.77.n. 13 Ibid.n. 14 Ibid.n. 15 Ibid., p.143.n. 16 SAMPAIO, Consuelo Novais. Recepção da Acadêmica Consuelo Novais Sampaio em 26/11/1992. Revista da Academia de Letras da Bahia. nº 44, Salvador, 2000, p. 329-348.n. 17 Ibid. p. 12

Page 373: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 371

n. 18 SAMpAIo, Consuelo Novais. 50 anos de urbanização: Salva-dor da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.n. 19 BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Agui-lar, 1958. p.186.n. 20 BANDEIRA, Manuel. Mafuá do malungo. In: ______. Es-trela da vida inteira. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2007. p.340. 1

Urania Tourinho peres é psicanalista e escritora. Fundou e dirige o Colégio de psicanálise da Bahia. É membro da école lacanienne de psychanalyse, membro correspondente da Association Insistence, am-bas de paris, e A. E. pela Escuela Freudiana de Buenos Aires. Entre suas publicações, estão Moisaico de Letras, ensaios de psicanálise (1999) e Depressão e melancolia (2003). organizou coletâneas de ensaios de psica-nálise e assina artigos em livros e revistas especializados. Eleita em 24 de abril de 2014 para a Cadeira número 40 da ALB.

Discurso de posse da acadêmica Urania Tourinho peres na Cadeira número 40, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 25 de setembro de 2014.

Page 374: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 375: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 373

DISCURSO DAS MÃOS DADASRecepção a Urania Tourinho Peres

ArAmis ribeiro CostA

Senhora Acadêmica Urania Maria Tourinho peres:Na simbologia universal dos gestos, o caminhar de mãos da-

das é aquele que mais inspira confiança e respeito, porque além do companheirismo, da segurança, do afeto, da amizade ou do amor que possa significar, representa a igualdade do andar, sem que um ultrapasse o outro, avançando juntos e ao mesmo tempo o caminho longo ou curto que tenham a percorrer.

É difícil saber quando terá surgido esse hábito de anda-rem as pessoas de mãos dadas, unidas pela energia que passam num simples tocar de mãos. Sabe-se que é antigo e universal. Mesmo naquelas civilizações que mais proíbem a aproximação física em público, dão-se as mãos as pessoas nos seus andares reservados, num respeitoso amparo ou num significativo afeto. Mas não apenas os indivíduos. Também os ofícios, as ideias, as teorias se dão as mãos, sinalizando, com confiança e respeito, a ligação entre eles, além de buscarem o enriquecimento do que se propõem a fazer ou demonstrar.

Dão-se as mãos, por exemplo, a literatura e a psicanálise, e neste caso, parece-me, como irmãs diletas. Com enorme dife-rença de idade, de séculos, mas irmãs diletas, nascidas certamen-te da mesma necessidade.

Um escritor de prosa de ficção e um psicanalista encon-tram-se ambos no patamar vasto e fecundo das artes ou das ati-vidades que trabalham a natureza humana, um a tentar recriar a realidade, outro a buscar na escuridão o fiapo de luz que ilumina

Page 376: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

374 ◄◄

o espírito. A massa, o barro ou o bronze de suas esculturas é o mesmo: a condição humana, que nos faz sofrer ou sorrir, que nos limita e nos engrandece. Um poderá produzir uma página brilhan-te, que será lida cem anos depois — ou sempre; o outro dará ao escritor uma razão a mais para escrever, ou escreverá ele próprio um destino mais alto ou menos infeliz para o ser humano.

De qualquer forma, aqui e alhures, agora e sempre, dão-se as mãos a psicanálise e a literatura em muitas estradas, cami-nhando juntas difíceis e sedutores caminhos, na busca da com-preensão e da perenidade da perplexa criatura humana; Freud a buscar nas velhas tragédias gregas os modelos imortais de suas teorias, seu velho amigo e colega Schnitzler a criar tipos de com-portamentos instigantes, antecipando nos seus enredos algumas ideias do criador da psicanálise. Faces e perspectivas múltiplas de um mesmo objetivo, observações, deduções e recriações de uma mesma realidade.

porém, há mais: para Freud, o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, e sabemos todos o quanto dessa realidade é posta na escrita da poesia e da prosa de ficção. Assim, a psi-canálise e a literatura tornam-se, também aí, na descoberta do inconsciente e na produção literária, revelações de uma mesma realidade, a realidade interior mais profunda e maior, a que do-mina o consciente e as ações dos indivíduos e dos personagens.

Como se não bastasse, as academias de letras, essas insti-tuições culturais que vão encontrar suas origens naquele alvo-recer luminoso da civilização ocidental, que nos legou a Grécia de Péricles e Aspásia, sempre entenderam a denominação “de letras” no seu sentido mais amplo, abarcando as manifestações da inteligência por meio da escrita de alto nível em todas as áre-as, e não apenas na literatura. Dessa forma sempre entendeu a academia de Richelieu, o primeiro paradigma; dessa maneira sempre considerou a academia de Machado, o paradigma bra-sileiro. Desse modo tem sido na Academia de Letras da Bahia, desde a fundação em 1917.

Page 377: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 375

De uma dessas formas, ou de ambas, entenderam nossos pares, e aqui chegais, senhora acadêmica, na condição confortá-vel e honrosa de uma votação consagradora e unânime, na su-cessão, e não na substituição — porque nem aqui nem em lugar algum, alguma criatura humana substitui outra — de uma mu-lher elegante e culta, de forte personalidade, mas de uma imensa ternura, que tinha no estudo da História da Bahia e na preser-vação da nossa memória cultural os objetivos intelectuais da sua vida: a nossa inesquecível Consuelo Novais Sampaio.

Uma votação consagradora e unânime que garantiu a esta Casa a chave de ouro em nosso Quadro Social, na Cadeira 40. Assim, na diversidade e nos paradoxais pontos de semelhança que marcam as trajetórias imprevisíveis das Cadeiras acadêmi-cas, à rigorosa analista da história sucede nessa Cadeira uma apaixonada analista da alma humana. A primeira psicanalista a ter assento nesta Casa. Também elegante e culta, também de forte personalidade, e também de uma imensa ternura. porém aqui estais, principalmente, e regimentalmente, senhora acadê-mica, por serdes uma escritora, por colocar vossos conhecimen-tos e vossas ideias na forma escrita, a mais antiga e permanente forma de fixação dos saberes humanos, e realizar essa tarefa no alto nível que o nosso regimento exige.

Tenho diante de mim a vossa obra de escritora. Imagino, diante dos vossos textos, e sabendo de vosso perfeccionismo e de vosso rigor profissional, o quanto de tempo, de estudos, de reflexões, foi consumido na elaboração dessa escrita límpida e profunda, desses conceitos que vasculham, esquadrinham e ten-tam desvendar um universo jamais completamente desvendado.

Como os escritores de prosa de ficção, porém imbuída de outros propósitos que não o da criação de personagens e tramas, vejo-vos a se debater com as ações e as reações dos in-divíduos, os comportamentos, as atitudes, os estados paralisantes ou inibidores, as excitações, e, acima de tudo, os sentimentos e as emoções, esses oceanos imensos e fundos que encharcam e

Page 378: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

376 ◄◄

determinam os destinos humanos, a procurar dominá-los,entendê-los, explicá-los ou resolvê-los em vossas páginas contidas e bem escritas. Aqui vejo o luto, do qual nenhum de nós escapa. Ali a melancolia. Adiante, a depressão — esse manto negro e espesso que parece cair como uma noite interminável na alma e na vida. por toda a parte os medos, as fobias, as manias, os sentimentos de culpa, as frustrações, os desejos, o pânico, e, como um des-campado a perder de vista, numa vastidão que atinge espaço e tempo, o anátema singular e perpétuo da criatura humana, da simbólica expulsão do Éden aos finais imprevisíveis da própria humanidade, o imenso desamparo.

A permear tudo isso, na vossa escrita das teorias psicana-listas, a vontade ou a determinação de vencer os estados nega-tivos e perturbadores do pensamento. Afinal, quem somos? — perguntaria o filósofo, com o semblante sereno ou angustiado, ao psicanalista, enquanto o médico sorri como se soubesse a resposta, e o escritor de ficção apenas imagina um bom enredo.

Uma obra escrita e organizada que não apenas resulta de vossa atividade profissional, mas extrapola os limites do con-sultório e acompanha vossos passos pelo mundo, no intercâm-bio permanente com os da vossa especialidade, no esforço de aprender, concluir e ensinar dos congressos e das instituições. Já se disse que a melhor maneira de aprender é ensinar; talvez por isso os psicanalistas sabiamente explanem com tanto empenho e tanto esmero suas teorias. De qualquer maneira, sempre se aven-turam no labirinto, arriscando-se ao Minotauro, e jamais deixam de procurar o fio de Ariadne.

Creio que iniciais a vossa experiência editorial organi-zando uma coletânea intitulada Melancolia, para a Biblioteca de Psicopatologia Fundamental, uma coleção dirigida por Manoel Tosta Berlinck. Nesse volume de 1996, publicado pela Editora Escuta, de São Paulo, e escrito por mais três autores além de vós, o vosso trabalho, o mais extenso, “Dúvida melancólica, dívida melancólica, vida melancólica”, abre a coletânea, e o faz trazendo

Page 379: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 377

como epígrafe o último quarteto do belo poema “Estátua falsa”, de Mário de Sá-Carneiro, aquele que tão belamente exclama: “Sou estrela ébria que perdeu os céus, / Sereia louca que deixou o mar; / Sou templo prestes a ruir sem deus, / Estátua falsa ainda er-guida ao ar...”, como se quisésseis, desde o início, como vosso mestre Sigmund, e vosso outro mestre Lacan, dar as mãos à lite-ratura, para demonstrar a alma humana. Não poderia haver mais belo nem mais consistente amparo.

Segue-se outra obra organizada, os anais do primeiro Congresso Internacional do Colégio de psicanálise da Bahia, que inclui o vosso texto “O inconsciente e a poesia”. Vede, se-nhora acadêmica, a reincidência esplêndida, que me faz retomar inevitavelmente o fio condutor das mãos dadas, as mãos que se procuram, se tocam, se enriquecem: sempre a literatura a per-mear, sugerir, inspirar ou exemplificar os vossos ensaios, numa reiterada demonstração de que jamais tivestes receio de dar as mãos às imaginações e aos versos, para explanar as teorias do vosso ofício, pelo contrário, tomais por fundamento a percep-ção de Freud, de que os poetas e os escritores mostram e muitas vezes antecipam o que a clínica ensina.

Em 1999, e também pela Editora Escuta, de São Paulo, é que entregais ao público vosso primeiro livro de autora, não de organizadora: Mosaico de letras, ensaios de psicanálise. Esse admirável mosaico arrepanha a produção esparsa até aquele momento, e põe, entre suas duas dezenas de preciosos ladrilhos de matizes diversas — que, entretanto, exibem um entrosamento coerente e harmônico —, evocações exemplificadoras dos artistas e das artes, as mãos dadas, e agora também à pintura e ao cinema: de Claudel, Camus e Joyce — entre outros poetas e escritores — a literatura; de Leonardo da Vinci e Salvador Dali — a pintura; e de Glauber, o impetuoso baiano Glauber, “esse vulcão” — o cinema. Novas faces e perspectivas múltiplas de uma mesma realidade.

Daí por diante, a obra escrita, que já vinha sendo apresen-tada nos congressos e aparecendo em periódicos especializados,

Page 380: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

378 ◄◄

como gotas de orvalho de vossa inteligência e de vossos conheci-mentos, passa a ser cristalizada, de forma sistemática e frequente, em livros de vossa autoria ou organizados por vós, com a vossa importante participação de autora, integrando fundamentalmente a vossa atividade profissional, o que vale dizer, a vossa vida.

Além de não caber, num aligeirado discurso de recepção, seria uma temeridade de minha parte, arriscar-me a comentar qualquer dessas obras. Há muito que os médicos, quando as pa-tologias ultrapassam as fronteiras da psiquiatria, sensatamente entregaram aos psicólogos, psicoterapeutas e psicanalistas a ta-refa imensa de entender e explicar os comportamentos huma-nos. E os escritores de prosa de ficção não entendem nem ex-plicam nada, apenas narram. Felizmente, para vos saudar, nesta vossa chegada a esta Casa, basta-me mencionar os títulos das vossas obras, e com isso estabelecer um roteiro de um trabalho em andamento, porque a vossa escrita segue em obras que atual-mente estão sendo elaboradas e levadas ao prelo, palavra antiga e hoje inadequada, mas tão arraigada ainda ao vocabulário dos que escrevem e editam.

Ao Mosaico de letras, seguiu-se, em 2001, também pela Editora Escuta, de São Paulo, também para a Biblioteca de Psi-copatologia Fundamental, um volume organizado, intitulado Culpa. Aqui, além de organizadora, vosso texto abre o volume interrogando: “Por que a Culpa?” É um tema instigante, insti-gante também para a literatura — não esqueçamos Raskólni-kov, de Crime e castigo, do grande Dostoiévski —, e que retorna com força na obra seguinte, no volumoso anais do Segundo Congresso Internacional do Colégio de psicanálise da Bahia, também de 2001.

Em 2003, vindes com a vossa preciosa obra Depressão e melancolia, por Jorge Zahar Editor, do Rio de Janeiro, dentro da disputada coleção “Psicanálise Passo a Passo”, um texto que, sem perda da qualidade literária ou técnica, é de muito agradável leitura, e não apenas para os oficiais do ofício. Não foi por outro

Page 381: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 379

motivo que esse livro se tornou imediatamente de ampla aceita-ção comercial, e já se encontra em terceira edição.

Em 2004, agora pela Editora Corrupio, publicais o volu-me organizado, Emílio Rodrigué, caçador de labirintos, e essa obra pode ser vista, além do seu valor de conteúdo para os da vossa especialidade, como o vosso tributo ao psicanalista argentino que tanto contribuiu para a vossa formação de psicanalista.

Em 2005, participais do volume Obssessiva neurose, organi-zado por Manoel Tosta Berlink para a Biblioteca de psicopatolo-gia Fundamental, com o texto “Notas Sobre a Neurose Obsessi-va em Freud e Lacan”, um texto extenso, profundo e fartamente embasado, que desmente a modéstia do título.

Em 2007, lançais o volume organizado Frida Kahlo: dor e arte, no qual, além da organização, o vosso texto, sempre o mais extenso, é o que abre o volume e dá o título à coletânea.

Finalmente, na obra até aqui publicada, em 2011, o longo e esclarecedor posfácio, tão extenso quanto o texto principal, intitulado “Uma ferida a sangrar-lhe a alma”, ao clássico de Sig-mund Freud, Luto e melancolia, numa esmerada edição em capa dura da prestigiosa Cosacnaify, de São Paulo. Também esta uma obra de grande aceitação de público, especializado e não.

Este o presumível roteiro dos trabalhos que vos trouxeram a sentar-se na Cadeira 40, no qual eu incluiria ainda os vários tex-tos inéditos em livro, quase todos apresentados em congressos e publicados em periódicos, e que dariam outro belo volume, um segundo mosaico de letras, tão rico e precioso quanto o primei-ro, aquele que iniciou a vossa trajetória independente de autora.

É preciso observar que essa obra organizada e escrita, que se desdobra com rigorosa qualidade em dez volumes, é também ou principalmente o resultado de uma intensa atividade profissio-nal e institucional, que envolve liderança e capacidade realizadora.

O precoce desejo de vos tornar psicanalista, numa terra que não dispunha de formação e de profissionais nessa área, vos levou, quando do vosso trabalho de psicóloga no Departamento

Page 382: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

380 ◄◄

de Psiquiatria do Hospital Professor Edgar Santos, a constituir grupos com o mesmo interesse e iniciar, com dedicados compa-nheiros, situações e organismos de fundamental importância para a implantação da psicanálise na Bahia. Foram eles a CLAPP, Clí-nica de Atendimento psicoterápico e psicanalista, o NEp, Núcleo de Estudos psicoterápicos, e o Colégio Freudiano da Bahia, atual Colégio de psicanálise da Bahia. por meio dessas instituições pio-neiras, foram trazidos de toda a parte, particularmente da França, da Inglaterra e da Argentina, renomados psicanalistas ao nosso estado, e aqui realizados cursos, palestras, encontros, entre eles seis Jornadas de História da psicanálise na Cidade de Cachoeira sob vossa presidência, mas, principalmente, os dois importantes congressos internacionais de psicanálise aqui referidos, ambos do Colégio de psicanálise da Bahia, ambos organizados e pre-sididos por vós, o de1996 e o de 2001. A esses congressos se-guiram-se os alentados anais também aqui mencionados, ambos com vossa organização.

Essas iniciativas e atividades no solo baiano vos levaram, por sua vez, a visitar outros centros de maior avanço nas ativi-dades e práticas psicanalíticas, a participar, como expositora, de jornadas, seminários e congressos, a se tornar conhecida e res-peitada internacionalmente, membro da école lacanienne de psycha-nalyse, em paris, membro correspondente da Association Insistence, em Paris, e Analista da Escola, cujo título é A. E., pela Escuela Freudiana de Buenos Aires.

Após essa enumeração de vossa obra e de vossas ativi-dades profissionais, senhora acadêmica, eu bem gostaria, para concluir esta saudação, de apresentar um mosaico, não de letras, como no vosso admirável livro de ensaios, mas de aspectos da vossa vida particular, onde guardais os vossos afetos e as vossas particulares alegrias, e que nos trouxesse não a autora, não a re-alizadora, mas a vossa figura humana.

Não me é possível compor esse mosaico. Ainda que vos tivesse acompanhado a vida, como alguns de nossos confrades,

Page 383: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 381

que são vossos amigos desde os tempos da mocidade, os ladrilhos, poucos, que pudesse juntar, jamais apresentariam as imagens, as falas, as cores, os tons e as luzes das circunstâncias originais, tais como nos foram trazidos em vosso discurso de posse, e que su-gerem um tocante livro de memórias, que não deixarei de vos cobrar. Apesar disso, e para que não se perca a intenção de vos trazer para além de vossas atividades, arrisco lembrar, ou imagino — afinal, para isso servem os ficcionistas —, apenas algumas cenas.

Por exemplo, a menina de olhos negros como “as asas da graúna”, mas certamente já observadores e reflexivos, filha amorosa de Mário Tourinho, engenheiro agrônomo, e de dona Georgina de Carvalho Tourinho, uma excepcional dona de casa e talentosa pintora amadora, pais admirados e queridos, irmã de Mário e de Regina, que economizou pacientemente moeda após moeda num porquinho-mealheiro, e, um dia, resolutamente que-brou o porquinho para comprar um presente para a mãe.

Por exemplo, a adolescente que se encantava com os po-emas de Bandeira, Drummond e Pessoa, que lia Flaubert, Tols-toi, Stendhal, Rilke, que tinha na literatura um de seus maiores prazeres, e que, jovem, se sentiu particularmente inclinada para a psicanálise ao mergulhar na leitura de Em busca do tempo per-dido, de Proust. A viagem ao passado não exatamente perdido do inesgotável Marcel contribuiu para impulsionar a seduzida leitora à viagem profissional que faria por toda a vida às razões, motivações e marcas do passado, o conhecimento do eu mais profundo, que é a busca permanente da psicanálise.

Por exemplo, a cena já referida no vosso discurso de posse, mas que não poderia faltar ao meu mosaico, a visita, aos dezessete anos de idade, com amigas, ao admirado poeta Manoel Bandeira, e o poema recebido dele, dias após, com a letrinha miúda do poe-ta, num cartão da Academia Brasileira, intitulado “Urania Maria”, poema incluído no livro Mafuá do malungo, o que significa ter sido imortalizada também nos versos do poeta imortal.

Page 384: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

382 ◄◄

Por exemplo, a universitária de vários interesses, naquela movimentada universidade do reitor Edgard Santos, uma época singular da Bahia, a ouvir palestras sobre filosofia e teatro, a se interessar, particularmente, pela dança.

por exemplo, certa visita ao palácio da Reitoria da Univer-sidade Federal da Bahia em companhia da amiga e escritora Sô-nia Coutinho, e a primeira visão a distância de três rapazes que já eram conhecidos de nome, e eram admirados, porque declama-vam com grande êxito poemas no Colégio da Bahia e editavam uma revista chamada Mapa: Paulo Gil Soares, Glauber Rocha e Fernando da Rocha peres.

por exemplo, tempos depois da cena anterior, e também registrado em vosso discurso, o encontro com um desses moços, o declamador das Jogralescas, o poeta alto, bonito e veemente, como um Gregório de Mattos moderno, Fernando da Rocha Pe-res, que seria o vosso poeta particular, para sempre. O caminhar de mãos dadas do amor, o caminhar de mãos dadas também da psicanálise com a poesia.

Por exemplo, a mãe extremosa, na alegria da maternidade de Daniel e Maria Fernanda.

por exemplo, a amizade e a convivência do casal Urania e Fernando com intelectuais notáveis, escritores e poetas, inú-meros, como pedro Nava, José Mindlin, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes, apenas para citar quatro dos mais conhecidos, e que já se foram. À semelhança de Bandeira, o poe-ta de Itabira também vos escreveu um poema, este inédito.

por exemplo, as viagens do casal pelo mundo, navegadores de olhar agudo e abrangente, a descortinar insuspeitadas paisa-gens, a travar novos conhecimentos humanos, a visitar museus, bibliotecas, livrarias, restaurantes finos, a escolher bons pratos, a degustar bons vinhos, a colher impressões e registros enriquece-dores de lugares e pessoas, com a preferência e o retorno cons-tante a portugal.

Por exemplo, a avó feliz de Paula, João e Tereza.

Page 385: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 383

Basta. De fato, não me seria possível compor o pretendi-do mosaico. E para quê, se vós mesma já vos trouxestes inteira, e com tanta emoção e tanta beleza, nas coisas ditas e na maneira de dizer, nas lembranças e nos conceitos, na linguagem, na voz, no olhar e nos gestos, na saudade e na gratidão imensa dessas lembranças, em vosso discurso de posse?

Prefiro então trocar o irrealizado mosaico pela cena úni-ca desta noite de todas as festas, e contemplar-vos serenamente sentada, merecidamente sentada numa das Cadeiras desta nobre instituição quase centenária, que é a Academia de Letras da Bahia, ao lado de vossos novos pares, ao lado de vosso poeta particular, ostentando o colar de ouro do nosso reconhecimento.

Senhora acadêmica, estimada confreira, querida Urania:Demo-nos as mãos, mais uma vez, e agora para sempre, a

literatura e a psicanálise, e confundamos todos os nossos senti-mentos no amor às letras e ao imortal espírito humano.

Sede bem vinda.1

Aramis Ribeiro Costa é médico, também graduado em letras. É es-critor, autor de duas dezenas de livros de ficção e poesia, entre eles A assinatura perdida (1996), Baú dos inventados (2003), e Contos reunidos (2010). Foi conselheiro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia (2011-2013). Presidiu a Academia de Letras da Bahia na gestão 2011-2013, sendo reeleito para o período 2013-2015. Desde 1999 ocupa a Cadeira número 12 da ALB.

Discurso de recepção à acadêmica Urânia Tourinho Peres, empossada na Cadeira número 40, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 25 de setembro de 2014.

Page 386: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 387: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 385

DISCURSo DE poSSE

GuilHerme rAdel

Senhoras e senhores,Agradeço a presença de todos vocês que vieram abrilhan-

tar e prestigiar esta festa. Ao tomar posse na Cadeira número 3 desta Academia, minha alma se enche de júbilo e meu coração transborda de alegria. Estou emocionado.

Vou dar início à minha oração de posse louvando o fun-dador desta Casa.

Arlindo Fragoso foi uma figura notável. Deve estar entre os 10 baianos que mais contribuíram para o desenvolvimento da Bahia. Fundou o Instituo Politécnico da Bahia, a partir do qual, fundou a Escola politécnica, preocupado em dar condições de soerguer a Bahia. Se cuidou da área técnica, não se descuidou da área cultural. Fundou a Academia de Letras da Bahia. Se cuidou de técnica e de cultura, não se descuidou de saúde. Fundou o Clube de Natação e Regatas São Salvador. Mens sana in corpore sano. Era um fundador. Fez estas fundações sem estar ligado ao poder e cuidou delas como se fossem filhas.

Trabalhou na construção da estrada Madeira/Mamoré, exerceu função no Ministério da Indústria e Comércio, onde foi colega de Machado de Assis. Nas administrações do governador José Joaquim Seabra, 1912/1916 e 1920/1924, Arlindo Fragoso assumiu superpoderes como secretário de Viação e Obras Públi-cas. Foi o gestor, concebendo e fiscalizando, das obras do aterro da Cidade Baixa, da Avenida Jequitaia, levando-a até a Calçada, da Avenida Sete de Setembro, demolindo o que obstava seu tra-çado, levando-a da Praça da Sé até o fim da Avenida Oceânica,

Page 388: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

386 ◄◄

onde fica hoje a imagem do Cristo Redentor, e do quebramar principal do porto de Salvador, o do sul.

Arlindo Fragoso exerceu a profissão de engenheiro em toda sua plenitude. Era engenheiro e cultivava as letras. Coisa não muito comum ainda hoje. Haja vista que, dos 211 acadêmi-cos que passaram por esta casa, só 11 eram engenheiros.

Arlindo Fragoso, infelizmente, é pouco conhecido. Não há divulgação de seus trabalhos. Parodiando Pirandello, poder-se-ia dizer que Arlindo Fragoso é um personagem à procura de um autor.

o patrono da Cadeira número 3 da Academia de Letras da Bahia é Manuel Botelho de oliveira (1636-1711). Nascido na Bahia, Botelho era um homem abastado, usineiro, produtor de açúcar, chegou a praticar agiotagem, mas sem grande usura, cobrando juros a 6,25% ao ano.

Diplomou-se em Direito em Coimbra, onde foi colega de Gregório de Matos. Foi poeta, publicando Música do parnaso ou Música da poesia. Sua obra mais conhecida é o poema A Ilha de Maré, onde em octetos bem metrificados e com rimas ricas, tece louvores à beleza da ilha. São versos bem trabalhados, mas sem os arroubos que só a juventude permite aos poetas.

o fundador, primeiro ocupante da Cadeira de número 3 da ALB foi Arthur de Sales, nascido em 7 de março de 1879 em Salvador, Bahia. Foi poeta como o patrono. Na juventude fez versos de excelente qualidade, mas, quando amadureceu, suas poesias nasciam do conhecimento, da prática do instrumental que o tempo lhe concedeu.

Aos 18 anos, sentou praça no Exército, e, pensando em fazer carreira militar, matriculou-se na Escola Militar de Realen-go. Vendo que não se adaptaria ao regime militar, voltou a Salva-dor e se matriculou na Escola Normal, onde se diplomou.

Aos 35 anos, escreveu Sub-umbra, seu melhor trabalho, quando habitava no velho convento dos beneditinos na Abadia de Brotas.

Page 389: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 387

Em 1908, foi nomeado bibliotecário da Escola Agrícola e, em 1911, professor do Aprendizado Agrícola da Bahia.

Em 1973, a Secretaria de Educação e Cultura fez publicar a Obra poética de Arthur de Sales, com prefácio de Hélio Simões, que inclui sua magistral tradução de Macbeth de William Shakespeare.

Arthur de Sales escreveu o auto religioso Sangue mau e os hinos de Nosso Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora da Con-ceição da Praia. Se seus versos eram leves, sua prosa era pesada. O prefácio que fez para sua tradução de Macbeth tem parágrafos de página e meia.

Tendo levado toda a vida com dificuldades financeiras, morreu praticamente na miséria em 27 de junho de 1952, laure-ado como o melhor poeta baiano do século XX.

Quem sucedeu Arthur de Sales foi Eloywaldo Chagas de oliveira, poeta como o antecessor. Eloywaldo Chagas publicou livros, onde têm maior evidencia seus sonetos.

Eloywaldo Chagas diplomou-se em Engenharia Civil, mas nunca exerceu a profissão, pois sua motivação maior era o en-sino. Acumulou títulos universitários como doutor em Ciências Físicas e Matemática, professor catedrático de Estatística, Eco-nomia política e Finanças na Escola politécnica da Bahia e da Crítica dos príncipios e Complementos de Matemática na Fa-culdade de Filosofia. Era docente livre da Faculdade de Ciências Econômicas do Brasil.

Foi professor da disciplina Estatística, Economia política e Finanças na Escola Politécnica da UFBA até 1952, quando tomou posse na Cadeira número 3 da ALB. Tendo assumido o cargo de presidente do Instituto de Aposentadoria e pensões dos Comerciários (IAPC), não mais voltou a ensinar na Esco-la politécnica, onde foi substituído por Humberto Lírio, outro poeta. Quando Eloywaldo Chagas faleceu, quem o sucedeu na Cadeira número 3 da ALB foi a historiadora Anna Amélia Vieira Nascimento. Após três poetas, assumiu a Cadeira número 3 uma historiadora. Sábia eleição.

Page 390: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

388 ◄◄

Anna Amélia foi uma figura invulgar. Como pessoa huma-na, era conhecida pelo trato lhano, pela simplicidade. Era afável, alegre. Como historiadora, era dona de um estilo sóbrio, claro e conciso. Seus textos são lapidares. Lê-los é tomar uma aula de estilo. Seus trabalhos são precisos e detalhados. Ela esmiuçava os documentos na procura dos detalhes que comprovassem suas assertivas. Como cidadã, se preocupou com o status inferior que as mulheres tinham na sociedade de sua época. Uma condição instituída de submissão.

Edivaldo Boaventura chama atenção para o que denomi-nou de triângulo de Anna Amélia, que tinham os vértices no Convento de Santa Clara do Desterro, na Faculdade de Letras e na Academia de Letras da Bahia. Este triângulo virou um qua-drilátero quando Ana Amélia assumiu as funções de diretora do Arquivo Público do Estado da Bahia.

Sua obra O Convento do Desterro da Bahia estuda a vida da instituição religiosa e aproveita para destacar a condição patriarcal da família brasileira. Após esta obra, vem o alentado Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas do Convento do Dester-ro da Bahia (1677-1890), que é essencial para que se possa co-nhecer a relação religiosa com a sociedade, a economia e a po-lítica da época colonial. A obra A postura escravocrata no convento de religiosas, dá possibilidade a que melhor seja posicionado o tema igreja e escravidão. Em seguida, Anna Amélia publicou Letras de riscos e Carregações do comércio colonial da Bahia (1660-1730) e o destacado Dez freguesias da Cidade do Salvador, anali-sando aspectos sociais e urbanos do século XIX, ressaltando o aspecto social da História. Esta obra é considerada o melhor trabalho de Ana Amélia, opinião com a qual eu não concordo. Penso que sua melhor obra é Patriarcado e religião, que evidencia seu trabalho de pesquisadora, garimpeira de documentos. Vie-ram os trabalhos sobre a Santa Casa de Misericórdia, versando sobre a formação de famílias de baixa renda, estrutura cristã do matrimônio.

Page 391: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 389

Anna Amélia organizou os arquivos da FIEB — Federa-ção de Indústria do Estado da Bahia (1997), e os arquivos do Tribunal de Justiça da Bahia (1990).

Anna Amélia foi a nona diretora do Arquivo Público do Estado da Bahia. Esteve neste cargo por duas vezes, de 1979 a 1987 e de 1991 a 2002. Na sua administração, mudou o arquivo da Rua Carlos Gomes para a Quinta do Tanque, que sofrera restau-ração no governo do confrade Roberto Santos, com base em pro-jeto do confrade Paulo Ormindo, e lá equipou a instituição com laboratório de restauração de documentos, desumidificadores e outros equipamentos necessários para a conserva de um arquivo. Construiu também anexos. Anna Amélia preparou, a pedido do confrade Edivaldo Boaventura, a Lei de Proteção aos Arquivos Públicos e Privados, criando o sistema estadual de arquivos.

Em 21 de agosto de 1991, Anna Amélia foi eleita para su-ceder Eloywaldo Chagas na Cadeira de número 3, com 23 votos, tomando posse em 26 de março de 1992.

Anna Amélia enobreceu, por suas vida e obra, esta Casa.Estou com 84 anos. Em pleno gozo da velhice. o cine-

ma Glauber Rocha vende dois tipos de meia-entrada. Um para estudante, a outra para a melhor idade. Suprema mordacidade. Jorge Amado disse uma frase, que foi recolhida e divulgada por João Ubaldo Ribeiro, que é a verdade mais verdadeira. Eu só aprendi uma coisa com a velhice é que a velhice é uma desgraça. A natureza cobra caro de quem passa do prazo de validade. Começam as dores. Perdem-se tônus muscular, coordenação motora, olfato, paladar, audição, visão. Perdem-se memória e outras cositas mais.

Estou com 84 anos, mas me considero um jovem escritor, pois publiquei meus dois primeiros livros, Cuba libre e Apren-diz de fazendeiro, em 1998, há 16 anos, quando tinha 68 anos. O lançamento destes dois livros foi inusitado, pois nunca se viu o lançamento de dois livros numa mesma noite. Ele poderia ter sido mais inusitado ainda, pois marcado para ter início às 18:00 horas, os livros só chegaram às 19:00.

Page 392: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

390 ◄◄

Em quase tudo na vida, eu disse quase tudo, fazemos me-lhor as coisas na velhice. Vejam o caso de Shakespeare. Compa-re-se Romeu e Julieta e a Megera domada com Hamlet, Otelo e Ma-cbeth. É de água para o vinho. Vejam o caso de Machado de Assis. Faça-se uma comparação entre Iaiá Garcia, Helena e A mão e a luva com Memorial de Ayres, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. É de água para o vinho. Compare-se a escultura de Michelangelo “A madona e o menino”, exposta numa igreja em Bruges, na Bélgica, em que Maria ampara na coxa o Menino Jesus, com sua escultura Lá pietá, exposta no Museu do Vaticano, em que Maria tem no colo, inerme, inerte, morto, seu filho Jesus. É de água para o vinho.

As melhores obras dos intelectuais geralmente são as últimas. Moisés de Michelangelo, A morte do caixeiro viajante de Arthur Miller, Os imperdoáveis de Clint Eastwood, a casa sobre a queda d’água e o Museu Guggenheim, em Nova York de Frank Lloyd Wright, Crítica da razão pura e Crítica da razão prática de Kant, A montanha mágica de Thomas Mann, A moça com a argola de pérola de Vermeer, os últimos três quartetos e a Sinfonia Coral de Beethoven.

Façamos um parêntesis. O arquiduque escolheu Beetho-ven para abrir o ano musical de Viena, contra a opinião do di-retor musical da Ópera de Viena, que o achou acabado depois de sua pesada Oitava Sinfonia e dos seus últimos três quartetos. Estes quartetos são considerados hoje o suprassumo da música de câmara, mas, por serem revolucionários, não foram entendi-dos à época. Com seis meses, Beethoven não terminara a parti-tura da sinfonia. Faltando três meses para a abertura, Beethoven pediu que fossem reforçados os metais, as madeiras e as cordas, fossem contratados um tenor, um barítono, um baixo, uma so-prano, uma mesossoprano, uma contralto e um coro com ses-senta vozes. O diretor musical achou que Beethoven teria pira-do. “Onde já se viu usar vozes em sinfonia?”. Foi ao arquiduque, que o ordenou a conceder tudo que Beethoven pleiteasse. Assim

Page 393: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 391

foi feito. No dia da abertura do ano musical de Viena, após a execução da Nona Sinfonia de Beethoven, a plateia aplaudiu de pé e metade chorava.

os físicos, os matemáticos e os poetas fogem desta regra. Newton, que nos deu, ainda jovem, as leis da gravitação e do movimento, terminou seus dias tentando dar base científica à Astrologia. Einstein, que nos deu a Teoria geral da relatividade, aos 35 anos, morreu sem mais nada adicionar ao seu grande traba-lho. Euclides, que nos deu a Geometria, em que nos ofereceu os teoremas, os corolários e os axiomas até hoje atuais, não fez mais nada de importante até sua morte. Descartes que cons-truiu a Geometria Analítica, introduzindo a Álgebra na Geometria e permitindo a solução, das cônicas, dos problemas envolvendo elipses, parábolas e hipérboles, ao amadurecer virou filósofo e nos deu O discurso do método. Rimbaud, que, com seus versos no A descida ao inferno, liberou a poesia das amarras da rima e da mé-trica, aos 30 anos passou à prática do comércio clandestino, no norte da África, lá adoeceu e veio a falecer. Vinicius de Moraes, o poetinha, poeta inspirado, após os 35 anos tornou-se milonguei-ro. João Cabral de Melo Neto escreveu, aos 32 anos Morte e vida Severina, e, aos 42 anos, sua obra principal, a Educação pela pedra. São 42 poesias, mas a que dá nome ao livro é a mais extraordiná-ria. Sem mostrar a carpintaria, João Cabral, num construtivismo singular, levanta sem becos, numa cadência que é racional, não é emocional, mas que nos deixa envolver por lirismo surpreen-dente. João Cabral escreveu até sua morte, mas nunca mais fez alguma coisa que se comparasse às poesias de Educação pela pedra. Não cito Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira por elas nunca terem alcançado um apogeu.

Em culinária, diríamos que estes 35 anos não são um pra-zo de validade, é o ponto de melhor consumo, indicação muito comum dada a queijos e vinhos. Temos um bom exemplo no consumo de cabrito. No semiárido brasileiro, só se abate o cabrito quando ele chega aos três meses. Na Itália, Espanha e portugal, este prazo

Page 394: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

392 ◄◄

diminui para um mês. Há até um ditado português interessante que diz: “Cabrito de um mês, porco de um ano, mulher de 23”.

Até os 68 anos, nunca me passou pela cabeça me tornar escritor. Tinha escrito vários trabalhos técnicos, mas só tinha sa-ído dessa seara em 1968, quando tinha 38 anos, e escrevi A carne de sol. Só 30 anos depois saí de novo da seara técnica.

Ao iniciar meus estudos no 3º ano do curso de colégio, no Colégio da Bahia, tinha que escolher uma profissão a seguir. Naquela época, só havia três profissões que permitiam ascensão social: médico, bacharel em direito e engenheiro. Quem tinha facilidade com as letras fazia direito. Quem não tinha horror a sangue fazia medicina. Quem tinha facilidade com os núme-ros fazia engenharia. Eu queria fazer vestibular para arquitetura, mas, naquela época, seu curso não era reconhecido federalmen-te. Meus familiares me convenceram a fazer o vestibular para a engenharia. Foi um conselho acertado. Tudo que fui e sou agradeço à engenharia.

Só que minha mãe e eu não sabíamos que na prática de engenharia eu viria a escrever tanto. Eram memorial descriti-vo, memórias de cálculo, especificações gerais, especificações de materiais e equipamentos, relatório de inspeção, relatórios de diligência, sugestão de editais, relatório mensal de progresso, re-latórios finais.

Escrevi e escrevi muito. Escrevi e aprendi muito. Aprendi que o texto só é perfeito se ele é claro, conciso e preciso. Para al-cançar a clareza, a concisão e a precisão o texto deve ser feito na ordem direta (sujeito — predicado — objeto ou complemento), ter períodos curtos, não utilizar orações intercaladas explicativas, usar a voz ativa e a forma afirmativa, usar poucos adjetivos e ne-nhuma locução adverbial de modo do tipo de forma adequada, evitar ambiguidades, construir parágrafos curtos e usar a palavra que melhor exprime o que se pensa.

Discordo de Carlos Drummond de Andrade quando ele diz que “a procura da palavra é uma batalha perdida”. Acho que

Page 395: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 393

a função maior do autor é achar a palavra que melhor exprima o que se pretende transmitir a quem lê o seu texto.

Aprendi cedo a procurar a palavra adequada, a que me-lhor exprimisse o que pensava. Estive fazendo um relatório de inspeção de uma obra e ao relatar o sentimento que senti ao ver a má qualidade da construção, usei a palavra estupefato. Relen-do o texto, achei que a palavra tinha possibilidade de ser vista como cabotinismo. Tentei substituí-la por atônito, amedrontado, assombrado, aterrorizado, estarrecido, espantado, perplexo ou pasmo. Nenhuma tinha a força de estupefato, nenhuma expres-sava o que verdadeiramente eu sentira. Ficou estupefato.

Aprendi cedo que as palavras devem ser precisas para que o texto seja claro.

Em 1954, ocorreram chuvas intensas por toda Bahia. Ci-dades inundadas, deslizamentos de terra nas estradas, pontes caídas, rupturas em barragens, uma tragédia. Àquela época, eu era estagiário no DNOCS e assisti Oyana Pedreira, que era o diretor geral dar instruções a um topógrafo para, com urgência, visitar as obras do Açude Ceriema para avaliar os estragos que lá tinham ocorrido. Na sua volta, o topógrafo se apresentou a Oyana Pedreira que estava ao lado de minha prancheta, onde desenvolvia um projeto de um açude.

— E aí, Antônio, quais foram os estragos?— Doutor oyana a coisa é seria. Houve um grande desli-

zamento de terra no talude de jusante.— E a estrutura do sangradouro sofreu?— Sofreu.— Fissura ou trincou?— Doutor Oyana, eu não sei a diferença.Então, ele explicou.— Fissura é uma abertura pequena, quase um fio de cabe-

lo. Trinca é uma abertura maior, quase uma rachadura.— Então, foi trinca, doutor Oyana. Eu passei por dentro

dela montado num jumento.

Page 396: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

394 ◄◄

Para obter sucesso na literatura de ficção — romance, novela, conto — o escritor deve conhecer o assunto sobre o qual pretende escrever, o ambiente, as pessoas, os costumes, a linguagem, forma de alicerçar e dar realidade ao que se conta. O escritor precisa ter dados. Dados que tenham aderência, con-gruência e coerência, principalmente coerência. o escritor passa tempo tomando notas, notas que serão mais tarde aproveitadas. O escritor vê os ambientes e sua geografia. Ele é o palco de sua história. O escritor vivencia o labor, o trabalho que os seus personagens assumirão na história. É certo que Bradbury não precisou ir a Marte para escrever seu grande sucesso As crônicas marcianas, mas Herman Melville escreveu Moby Dick após traba-lhar três anos numa baleeira, pescando nos mares do Pacífico. Joseph Conrad escreveu o Coração das trevas após passar três anos comerciando marfim no Congo. Somerset Maugham escreveu Servidão humana com o conhecimento da vida acadêmica, pois fez o curso de medicina até o terceiro ano. Thomas Mann es-creveu A montanha mágica, aproveitando a experiência de ter sido paciente de um clinica tisiológica nos Alpes Suíços, e escreveu A morte em Veneza após passar uma temporada de veraneio naque-la cidade. Ernest Hemingway escreveu Por quem os sinos dobram, com base em sua participação na Guerra Civil Espanhola, es-creveu seu melhor conto, As neves do Kilimanjaro, aproveitando o conhecimento adquirido nas diversas caçadas que fez na África e escreve sua obra-prima, O velho e o mar por ter morado em Havana, velejado e pescado por seus mares durante dez anos e John Le Carré escreveu O espião que saiu do frio, conhecendo bem o assunto por ter sido durante muitos anos agente secreto britânico, trabalhando nas M6 e M15, agências de espionagem que foram badaladas por James Bond. Nosso falecido confrade Jorge Amado escreveu, a meu ver, seus três melhores livros, Ter-ras do sem fim, São Jorge dos Ilhéus e Gabriela cravo e canela, por terem como palco Ilhéus, cidade onde passou a juventude e conheceu os Badaró, as terras adubadas de sangue, Nacib e o Bar Vesúvio.

Page 397: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 395

Só não deixou escapar quem foi Gabriela com medo do ciúme de Zélia Gattai.

os dados podem ser memorizados, mas o melhor é tê-los anotados.

Aprendi com meu tio Zezinho que é preciso ter os dados, saber onde eles estão e saber usá-los, quando necessário.

Meu tio Zezinho morava em Jauá, onde tinha um coquei-ral em quase uma légua de praia. Antes de enviuvar, morava em Camaçari. Ao ficar viúvo, mudou-se com uma filha solteira para Jauá. passei com ele algumas férias.

Enquanto casado, era um homem de hábitos morigerados, mas, quando se mudou para Jauá, segundo as más línguas, che-gou a ter cerca de cem filhos com cerca de vinte mulheres.

Em Jauá, comíamos peixe todos os dias. Peixe de moque-ca, de ensopado, escaldado, frito, ao forno, grelhado, sempre acompanhado por feijão de leite e arroz de viúva.

Só escapávamos dessa dieta aos domingos, pois aos sá-bados meu tio trazia um paulista que era assado na panela. Num desses sábados, quando eu acompanhava meu tio na sua ida à Camaçari, ele montado em uma mula bem ajaezada e eu, num pangaré, um garoto pulou à frente da mula em que meu tio montava.

— Benção, meu pai — gritou o garoto.Meu tio sofreou a mula, tirou do bolso superior do dóeman

uma pequena caderneta preta.— Como é o nome de sua mãe? — perguntou meu tio.— Joana.Meu tio folheou a caderneta, procurando a folha Joana, e,

quando a achou, dirigiu-se ao garoto.— Como é seu nome?— Agapito.Meu tio correu o dedo pelas linhas da folha e quando

achou Agapito foi solene.— Deus o abençoe, meu filho.

Page 398: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

396 ◄◄

Meu tio tinha os dados, sabia onde estavam e sabia usá-los.Quero agradecer a todos vocês sua presença, aos meus

confrades por terem me eleito por unanimidade, a Joaci Góes que foi quem me indicou para ocupar a vaga na Cadeira de nú-mero 3, aos meus familiares, que me apoiaram em tudo que fiz de bom. Que Deus abençoe vocês todos. Muito obrigado.1

Guilherme Radel é engenheiro civil e engenheiro eletricista pela Es-cola politécnica da Universidade Federal da Bahia, onde foi professor. Estudioso da cozinha baiana, publicou A cozinha sertaneja da Bahia, A cozinha praiana da Bahia, A cozinha africana da Bahia e A doçaria da Bahia. Na ficção, entre outras obras, publicou romance A longa viagem. Eleito no dia 5 de junho de 2014 para a Cadeira número 3 da ALB.

Discurso de posse do acadêmico Guilherme Radel na Cadeira núme-ro 3, proferido de improviso em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 9 de outubro de 2014. Gravado, o improviso foi posteriormente escrito pelo próprio autor.

Page 399: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 397

DISCURSO DE RECEPÇÃO A GUILHERME RADEL

JoACi Góes

Guilherme Requião Radel passa a ser o membro desta Aca-demia de mais difícil enquadramento intelectual-temáti-

co. Se escolhermos, ao acaso, alguns dos ilustres confrades que temos diante dos olhos, logo nos vêm à mente um ou mais atri-butos que respondem,prioritariamente,pelo papel exponencial que desempenham em nosso meio,razão maior do seu ingresso nesta casa.

Com Guilherme Radel esta tendência se amplia, tal a di-versidade dos assuntos do seu permanente interesse, sobre os quais produziu trabalhos de fôlego. De fato, não são poucos os feitos que compõem a impressionante biografia intelectual deste baiano que se nos afigura como um dos maiores polígrafos bra-sileiros. Radel é polígrafo no que a palavra tem de mais exigente, consoante a teoria literária que restringe a aplicação do conceitoa quem aborda diferentes temas, com superior qualidade. Trata-se de ofício que requer inteligência múltipla, vasta erudição, grande capacidade analítica e curiosidade visceral, desembocando, tudo isso, em sólida formação cultural, perífrase para significar ca-pacidade de pensar sistêmico. Some-se a todos esses atributos, a fidelidade que dedica aos três hábitos do caráter: 1°— proa-tividade, postura de tomar nas próprias mãos, as rédeas do seu destino; 2°— agir com base em projetos e 3°— valorização do tempo. A lição de Goethe, sem dúvida, foi por ele exemplar-mente aprendida: “o maior de todos os erros é o de permitir que

Page 400: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

398 ◄◄

as coisas menores impeçam a realização das maiores”. De fato, sem o desenvolvimento do hábito de valorizar sistematicamen-te o tempo, destinando-o a atividades relevantes, não teria sido possível a Guilherme Radel realizar obra tão prodigiosa.

personalidade renascentista, Radel, ignorando a impos-sibilidade do ambicioso projeto a que se dedicou, desde cedo, de amealhar a totalidade do saber humano, nos mais diferentes domínios das ciências da natureza e do espírito, na sua tentativa de chegar às estrelas, alcançou um ponto muito alto no meio do caminho. Essa olímpica trajetória intelectual não impediu que o jovem Guilherme se afirmasse, na prática do esporte amador, como personalidade de proa das esquadras itapagipanas que re-presentaram a Bahia em torneios municipais, estaduais e nacio-nais de voleibol, futebol e remo.

Desde há muito, observamos a lentidão com que nosso mundo cultural se rende ao reconhecimento do singular valor intelectual de Radel, de um modo que nos evoca a afirmação, revestida de justificado orgulho, com que o Mestre Orlando Gomes nos dizia ser ele o único intelectual baiano a granjear notoriedade nacional sem sair da Bahia. Como afirmamos desta Tribuna, ao saudar o pranteado confrade João Ubaldo Ribei-ro, festejados intelectuais de nossa terra torciam o nariz quando os presenteávamos com seus livros, quando ele ainda vivia na Bahia. Depois de consagrado pela crítica internacional e nacio-nal, nessa ordem, Ubaldo passou a ser tratado como gênio pelos mesmos que subestimavam a qualidade de sua obra.

Essa submissão aos padrões estabelecidos na corte é, des-de sempre, a marca maior do comportamento provinciano.

Entre os grandes polígrafos brasileiros, avultam os no-mes marcantes dos baianos Afrânio peixoto e pedro Calmon. Afrânio nasceu em 1876, em Lençóis, e faleceu em 1947, ten-do vivido, portanto, 71 anos. Calmon, nascido em 1902, em Amargosa, e morto em 1985, viveu quase 83 anos. Radel, nasci-do em fevereiro de 1930, continua lépido, fagueiro e dedicado à

Page 401: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 399

finalização de seu monumental dicionário dos verbos da língua portuguesa, com o que alarga, ainda, mais a diversidade de sua rica produção.

Diferentemente de Pedro Calmon e Afrânio Peixoto que, desde cedo, saíram da Boa Terra atraídos pelas luzes da metró-pole, Radel cedeu ao feitiço e aos apelos emocionais do berço esplêndido e permaneceu na Bahia, onde se realizou plenamen-te, enquanto percebia, sem jamais se indignar, que santo de casa não faz milagre, como ensina a sabedoria popular.

Façamos, então, uma retrospectiva, à vol d´oiseaux, dos feitos que tornam Radel um dos maiores polígrafos brasileiros, com predicados que o habilitam a integrar as melhores acade-mias do mundo.

Até ser consagrado como professor Emérito da Universi-dade Federal da Bahia, este professor da mais importante escola de engenharia do Nordeste brasileiro percorreu uma longa ave-nida de notáveis realizações, na teoria e na práxis, em campos tão distintos como a engenharia sanitária, o direito administra-tivo, a agropecuária, a culinária, a história, o romance, a crônica de costumes e de viagens, o teatro, a memorialística, a língua portuguesa. poeta bissexto, Radel recusa-se a arrolar a poesia em seu acervo literário.

Ele ensinou Topografia, Instalações Domiciliares, Hidráu-lica e Obras Hidráulicas, tendo chefiado o Departamento de Hi-dráulica e Saneamento da UFBA. Seu espírito de liderança levou-o a presidir a Associação dos Professores Universitários da Bahia. Conferencista destacado em congressos sobre abastecimento d’água, dentro e fora do Brasil, sua atuação profissional faz dele um dos mais respeitados especialistas no campo da engenharia sanitária em todo o país. Na Bahia, seu nome está associado a praticamente tudo que se fez no estado, no campo do saneamento básico, nos últimos 50 anos, de que são prova os trabalhos que projetou, fiscalizou ou realizou nas regiões de Salvador, Itapari-ca, Camaçari, Teodoro Sampaio, Feira de Santana, Ilhéus, Jequié,

Page 402: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

400 ◄◄

Brumado, Andaraí. obras como o Sistema Adutor de pedra do Cavalo, as barragens do Joanes e de Ipitanga integram o seu currículo. Fora da Bahia respondeu por trabalhos nos estados do Amazonas, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Paraná. No exterior realizou trabalhos para a Costa Rica e o Peru. Pode-se dizer, sem medo de errar, que o seu trabalho como engenheiro sanitarista representa uma das maiores contribuições individuais ao conforto e à promoção da saúde dos baianos e dos brasileiros.

Entre os inúmeros trabalhos técnicos que publicou, in-cluem-se vários de viés literário entre os quais Política setorial de saneamento dentro dos problemas ambientais urbanos, O rio São Francisco: a questão da transposição, O aquecimento global, Modelo agropecuário re-sistente às secas, A Barbará não virou homem e Alvinho foi para o céu, e o clássico A obra pública ou um dos diálogos que Platão não escreveu, em que desenvolve um diálogo maiêutico entre Sócrates e seu ima-ginário discípulo Ascórbius, às onze da manhã, em plena ágora ateniense, para alcançar o perfeito entendimento do que seria o melhor preço ou a proposta mais vantajosa. Nada se escreveu de mais esclarecedor sobre a momentosa questão, fonte dos super-faturamentos que esfolam o contribuinte brasileiro e escandali-zam o mundo moderno, levando à bancarrota empresas como a petrobras e a Eletrobras.

É grande o acervo de obras com que Radel afirma o seu nome nos meios técnicos nacionais, a exemplo de:

• “Esvaziamento de um reservatório por tubulações longas” — trabalho publicado no boletim da Seção Bahia da ABES e pela revista Saneamento.

• “O buster e a sua aplicação” — trabalho apresentado no IV Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, em Brasília e publicado pela revista Saneamento.

• “Uma experiência de assentamento de tubulações plásticas em rede distribuidora de água” — trabalho

Page 403: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 401

apresentado no V Congresso Brasileiro de Engenha-ria Sanitária, em Recife, premiado na 3ª. Comissão, e publicado na revista Engenharia Sanitária.

• “Uma experiência de execução de uma linha aduto-ra em concreto armado moldado in loco” — trabalho apresentado no V Congresso Brasileiro de Engenha-ria Sanitária, em Recife.

• “Conveniência da utilização de tubos plásticos de pVC rígido em rede distribuidora de água” – trabalho apresentado em simpósio patrocinado pelo Centro Tecnológico de Saneamento Básico, em São Paulo, e publicado pelo CETESB e pela revista Abes-BA.

• “A obra pública ou um dos diálogos que Platão não escreveu” – trabalho apresentado no VI Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, em São Paulo, e publicado nos Anais do VI Congresso e na revista Abes-BA e em brochura pela Barbará, Civilit e promon.

• “Posicionamento de E.T.A. em sistema de abasteci-mento de água de pequenas comunidades” – apre-sentado no VII Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, no Rio de Janeiro, Interamericano de Enge-nharia Sanitária, em Buenos Aires. publicado na revis-ta Engenharia Sanitária, vol. 15, nº 1, janeiro e março de 1976.

• “Diagnóstico de sistemas de abastecimento de água existentes” – apresentado no X Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, em Manaus, em janeiro de 1979.

• “Bases para uma política de águas regional – Uma ex-periência no Nordeste Brasileiro”, apresentado no X Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, em Ma-naus, em janeiro de 1979.

• “Modelo agropecuário resistente às secas” — apre-sentado no XII Congresso de Engenharia Sanitária, em Camboriú-SC, em novembro de 1983.

Page 404: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

402 ◄◄

• “A Barbará não virou lobisomem e Alvinho foi para o Céu” – apresentado no XV Congresso de Engenharia Sanitária em Belém-pA, em setembro de 1989.

• “Política setorial de saneamento dentro do tema pro-blemas ambientais urbanos” — ECo-URBS-92, Rio de Janeiro, RJ, 1992.

• “Relatório do painel ‘As Condições Sanitárias dos Pa-íses do Terceiro Mundo’” — na ECO-RIO, Rio de Janeiro, RJ, 1992.

• “O Rio São Francisco: a questão da transposição” — Vanguarda Rural no. 3, abril-maio/1995.

• “Aula inaugural dos cursos da Universidade Federal da Bahia — O aquecimento global” — março de 2007, Salvador, BA.

3.4. CULINÁRIA

• A carne de sol, com 26 páginas.• A cozinha sertaneja da Bahia, em 2ª edição, com 504 pá-

ginas.• A cozinha praiana da Bahia, preparando 2ª edição, com

280 páginas.• A cozinha africana da Bahia, com 479 páginas.

3.5. RoMANCE

• A longa viagem, com 393 páginas.

3.6. MEMÓRIA

• Mamãe e eu no paraíso, com 377 páginas.• 80 casos vividos, com 283 páginas.

Page 405: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 403

3.7. TEATRo

• A partida (drama em 2 atos).

3.8. LINGUA PORTUGUESA

• Dicionário Radel (14.501 verbos da língua portuguesa) 1º Volume: Morfologia e sintaxe, conjugações, concor-

dância verbal, regência verbal, com 425 páginas. 2º. Volume: (em preparo)

Água de beber, camará, a história do abastecimento d´água, desde a chegada de Tomé de Souza, abrangendo o Brasil Colô-nia, Império e República, recentemente editada pela Assembleia Legislativa, que se afirma como a mais importante editora do Estado da Bahia, evidencia o protagonismo de Teodoro Sam-paio, Saturnino de Brito e Guilherme Radel, como as personali-dades de nosso abastecimento hídrico.

De sua experiência como pecuarista, nasceu o livro Aprendiz de fazendeiro, em que ensina como otimizar os recursos do semiárido para a bovinocultura e a caprinocultura, campo em que se destaca como dos maiores criadores do Brasil. A dedica-tória com que nos distinguiu nesta obra constitui a mais aperta-da síntese de nossa vida. Escreveu ele: “Ao querido amigo Joaci Góes que fugiu da caatinga para não ficar com o pescoço torto de tanto olhar para o céu”.

De sua visita a Cuba resultou o delicioso Cuba libre, do mesmo nível ou superior a tudo de melhor que já se escreveu sobre a famosa ilha caribenha, inclusive o produzido no início da década de 1960 por Jean-paul Sartre, Furacão sobre Cuba, e Anatomia de uma revolução, de paul M. Sweezy e Leo Huberman.

Estimulado pelo êxito do opúsculo de 26 páginas, A car-ne de sol, Radel, no melhor espírito de Câmara Cascudo, pesqui-sou ao longo de meio século, para escrever as 1263 páginas que

Page 406: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

404 ◄◄

compõem a já clássica trilogia sobre a culinária baiana: A cozinha sertaneja da Bahia, A cozinha praiana da Bahia e A cozinha africana da Bahia. Às suas expensas, visitou países africanos e vários estados brasileiros para exaurir os fundamentos histórico-geográficos e sócio-antropológicos de nossa culinária. os historiadores sabem da importância da alimentação como prodigiosa fonte para os estudos da História.

Como memorialista, Radel nos legou Mamãe e eu no paraíso e 80 casos vividos, com que celebrou a passagem de oito décadas de vida.

A partida, drama em dois atos, é o produto de sua incursão no teatro.

o segundo e último volume do seu magnum opus, Dicionário Radel, em que disseca a morfologia, sintaxe, conjugação, con-cordância e regência de 14.501 verbos da língua portuguesa, é o épico trabalho a que tem dedicado substancial parcela do seu tempo. O primeiro já veio a lume.

Em 2011, Radel surpreendeu o mundo literário com a publicação pela Assembleia Legislativa do romance A longa via-gem, com avaliação crítica de João Cezar Piorobon e do médico e ficcionista Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, que concluiu sua avaliação, sustentando que se trata de “um romance denso e surpreendente, na forma e no conteúdo, que acaba levando o leitor, de fato, a uma longa via-gem no plano de uma boa literatura”.

Já se encontra no prelo seu novo livro intitulado Raízes da culinária baiana, abordagem sociológica, histórica, econômica, étnica e antropológica de um dos esteios da cultura da Bahia, monumental pela erudição das fontes que foi buscar em paciente vilegiatura, às suas expensas, em países como Moçambique, África do Sul, An-gola, Congo, Nigéria e portugal, bem como nos estados brasi-leiros de Minas Gerais, Goiás, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, paraíba, pernambuco, Alagoas, e Sergipe. Entre os his-toriadores em que bebeu, destacam-se o padre Fernão Cardim,

Page 407: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 405

Gabriel Soares de Souza, Luís dos Santos Vilhena, o inglês James Wetherell, Manuel Querino, Hildegardes Vianna, Roger Bastide, Kátia Queiroz Mattoso e Luís da Câmara Cascudo. Tudo isso sem mencionar sua aguda observação da cena contemporânea da culinária baiana.

Íntegro, por excelência, Radel é uma personalidade sin-gularmente afetuosa, como atestam familiares e sua numerosa legião de amigos e admiradores.

Que nos orgulhemos os baianos, em geral, e os membros desta Academia, em particular, ao recebermos nosso confrade benjamim: o engenheiro civil e eletricista, Guilherme Requião Radel, filho de Gustavo Gesteira Radel e Maria da Glória Re-quião Radel, marido da engenheira civil Luzia, sua colega de gra-duação universitária, musa e esteio de toda a vida, pai de cinco filhos e avô de seis netos, é o maior polígrafo vivo do Brasil.

Seja bem vindo, querido confrade, à convivência amena na casa de Arlindo Fragoso!1

Joaci Góes é bacharel em direito, escritor, orador, político, empresário e consultor educacional. Foi deputado federal constituinte em 1988, tendo sido o relator do Código de Defesa do Consumidor. Entre outras obras, publicou os ensaios A força da vocação no desenvolvimento das pessoas e dos povos (2009), e (as) 51 personalidades (mais) marcantes do Brasil (2014). Desde 2009 ocupa a Cadeira número 7 da ALB.

Discurso de recepção ao acadêmico Guilherme Radel, empossado na Cadeira número 3, proferido de improviso em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 9 de outubro de 2014. Gravado, o improviso foi escrito posteriormente pelo próprio autor.

Page 408: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 409: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 407

A INVENÇÃO DO ESCRITORDiscurso de posse

João CArlos sAlles

1.

Filosofar é dizer o óbvio, ou melhor, é saber como dizer o óbvio. É claro que nossa obviedade sempre está encoberta

por muitos considerandos, mesmo quando agarrada à superfície das coisas. Por isso, a filosofia tanto guarda o gosto profundo da evidência, da prova, da demonstração, quanto jamais desco-nhece o fino sentido da ambiguidade. Conservados esses polos, entre o mais trivial e o deveras ambíguo, se feliz o filósofo, a demonstração não se descola do mundo e a ambiguidade não desanda em mero equívoco.1

Ora, uma tensão como essa só se pode manter mediante um jogo reiterado de recomeços, de novas considerações, quan-do tudo já pareceria esclarecido. O que o filósofo então cultiva é um senso agudo de modalidades, matizando e sopesando enun-ciados dispostos entre a contingência e a necessidade, pois todo discurso filosófico tem de seu exatamente o dom de provocar desvios, por meio dos quais voltamos a nossas certezas e as tes-tamos, ou seja, testamos os direitos e a qualidade dos argumen-tos, do processo constante de justificar a palavra pela palavra, proposições por outras proposições, em meio ao mundo que, sempre à espreita, nos solicita e desafia.

1 Cf. Merleau-ponty, Éloge de la philosophie, Paris, Gallimard, 2008.

Page 410: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

408 ◄◄

Ao constituir-se, ao ter a necessidade de justificação como marca, nosso discurso obriga-se ao outro. Mesmo o mais solitário dos discursos filosóficos guarda a possibilidade da hu-manidade inteira e, logo, inaugura um espaço de convívio, de sorte que o fazer da filosofia, agressivo ou não, é sempre um exercício, voluntário ou inadvertido, de tolerância. por óbvio, então, o lugar da filosofia é o do cultivo da palavra, sendo seu exercício, entre a frieza da razão e a liberdade da imaginação, próximo das ciências e das letras, e delas igualmente distan-te. Cálculo e aventura, atenta ao mundo e à razão, à lógica e ao imprevisível, o instrumento da filosofia não é a régua, o compasso, nem sequer o astrolábio concreto, mas sim a ideia mesma do astrolábio.

2.

Filósofos podem definir seu trabalho de muitas formas, sempre procurando traduzir uma tensão constitutiva. Agrada-me, é claro, a ideia wittgensteiniana, bastante sóbria, de que a filosofia é tão somente a gramática do necessário e do possível, em cujos limites se distinguem o significativo (o que pode ser dito pela ciência, mas nada tem de relevante) e o relevante, o que toca enfim os valores mais elevados e pode inclusive unir ética e estética, mas, não obstante, é inefável. Qualquer o modo, porém, a medida da filosofia não aceita concessões, a ponto de se dizer também, simples e gravemente, como a resistir ao ape-lo mundano e à opinião do comum dos homens, que filosofar não seria outra coisa que aprender a morrer. Primeiro, diriam, porque o estudo e a contemplação nos separariam do corpo, em experiência talvez próxima à da morte, ou talvez, segundo, porque de toda busca da sabedoria resultaria não termos mais receio de morrer.2

2 Cf. Montaigne, “De como filosofar é aprender a morrer”.

Page 411: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 409

A ideia não expressa, na origem, uma mera posição reli-giosa, mesmo que se formule em consonância com a tradição grega e logo com a vindoura tradição cristã. Ela reflete antes, no contexto dos diálogos platônicos, uma necessidade epistemo-lógica, qual seja, a ideia de que o conhecimento, tendo sua pos-sibilidade lógica em um reconhecimento, solicitaria uma alma imortal, a jungir em sua operação mais simples o mundo das ideias e esse nosso mundo das sombras.

O máximo e emblemático exemplo dessa definição da fi-losofia seria a morte de Sócrates, tal como relatada no Fédon. A morte aparece então como retorno à dimensão da alma, ao mundo imaterial e imortal das ideias. por isso mesmo, nenhum temor haveria em abandonar o corpo. Sócrates até recrimina os circunstantes que desatam a chorar quando o veneno começa a fazer efeito, e lembra enfim, como sintoma de continuidade da vida, a manutenção de seu compromisso com suas dívidas, que a morte não faz cessar. Em suas últimas palavras, solicita a um discípulo: “— Críton, devemos um galo a Asclépio; não esqueça de pagar essa dívida”.

Uma leitura piedosa do episódio, decerto enigmático, su-geriria que, se a vida conduz sem clemência à morte, o viver do filósofo teria o condão de fazer a morte conduzir-nos à verda-deira vida. Sócrates não é tão piedoso. Exercita sim, ao final ou ao começo, uma ironia de preço elevado. A ironia de reverenciar ao final um dos deuses por cuja suposta descrença teria sido levado à condenação. A ironia performática de aceitar a conde-nação que rejeita, o veredito que nega, de colher sua identidade como ateniense no juízo de quem não representa a cidade. Po-dendo fugir, aceita afirmar sua identidade como grego, como ateniense, como filósofo, desafiando os juízes à própria cruel-dade: mesmo que tivesse que morrer várias vezes, não deixaria de filosofar. Como a dizer (com Fernando Pessoa, é claro) um último sortilégio:

Page 412: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

410 ◄◄

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,Anônima presença que se beija,Carne do meu abstrato amor cativo,Seja a morte de mim em que revivo;E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!3

3.

Vale a pena reter da imagem socrática, porque caro à li-nhagem filosófica a que me vinculo, o gesto de um conheci-mento irmanado a um traço moral, a recusa em separar reflexão lógica e posição ética. Não por acaso, podemos ver Ludwig Wit-tgenstein, jovem e atormentado por seus fantasmas, caminhan-do pelos aposentos de Bertrand Russell, horas a fio em agitado silêncio. Estaria pensando sobre lógica ou sobre seus pecados? — As duas coisas, responde a Russell.

Lógica e ética não se separam, determinando-se uma pe-los limites da outra. Entretanto, se aprender a morrer é reen-contrar ou descobrir uma identidade, nisso residindo o exercí-cio próprio do filosofar, o que lhes trago é uma proposta talvez mais insossa e ingente, para a qual, todavia, considero-me muito habilitado, pois arrasto a esta Academia um ser andrajoso, que estes trajes mal escondem. Trago-lhes, pois, bem menos que um filósofo completo: apenas um profissional da filosofia, um que aceita acompanhar com colegas professores e alunos conjuntos de textos, de variada ordem, sem medo dos paradoxos que pode explicitar ou de contradições que deve combater, pois sabe ser mais digno dar vazão a paradoxos do que guarida a preconceitos. E nesse ofício descobri, após muito refletir, ser mais caracterís-tico de mim e desse modo, digamos, empirista de fazer filosofia um gesto oposto ao da morte, mas que, ao fim e ao cabo, não deixa de ser o mesmo.

3 Fernando Pessoa, “O último sortilégio”.

Page 413: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 411

Uma ideia comum a todo meu trabalho, que aqui associo ao ofício de nascer tantas vezes, é a de não ter constituída, de uma vez por todas, antes do mundo, uma identidade. Não é cau-sal minha simpatia por filosofias que, como a marxista, fazem a consciência depender da existência, ou veem o eu como um mero feixe de características por si externas, na tradição do maior filósofo de língua inglesa, David Hume, ou sabem ser a própria noção de indivíduo uma construção histórica, uma invenção da modernidade, não sendo o indivíduo anterior à sociedade que o constitui. E sempre, como a conciliar a exigência mais radical de objetividade científica com uma ainda mais profunda de quase hiperespiritualidade, podemos dizer com Durkheim, descartan-do leituras ingênuas, que

o pensamento coletivo metamorfoseia tudo aquilo que toca. Ele mistura os reinos, confunde os contrários, inver-te aquilo que se poderia tomar como a hierarquia natural dos seres, nivela as diferenças, diferencia os semelhantes, numa palavra, substitui o mundo que nos é revelado pelos sentidos por um outro mundo absolutamente diferente, que não é mais que a sombra projetada pelos ideais que ele constrói.4

Da mesma forma, no que se refere à constituição do es-paço lógico, cujos limites cabe investigar com Wittgenstein, seja em uma perspectiva universal, por meio da qual se sepa-ram de uma vez por todas o dizível e o inefável, seja em uma perspectiva gramatical, que não recusa o solo áspero em que jogos de linguagem se decantam em específicas formas de vida, inclino-me às posições que não reconhecem no aními-co o princípio constitutivo da significação. A lógica não deve desandar em teoria do conhecimento, mesmo segundo uma

4 Durkheim, Sociologia e Filosofia, Rio de Janeiro, Forense, 1970, p. 112.

Page 414: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

412 ◄◄

perspectiva universal. Também a significação, ao fim e ao cabo, se dá no mundo, não podendo dispensar critérios externos, nem contornar a materialidade das palavras e menos ainda as ações por que se fixam os sentidos, não havendo, stricto sensu, um homem interior, uma vez que “o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”.5

Sem predicados previamente pendurados no trapézio do cérebro ou prestes a despertar, colocamo-nos antes de iniciar o jogo da verdade e do falso, como se pudéssemos habitar a dimensão das condições do sentido e, nessa atmosfera rarefei-ta, pudéssemos ainda escolher entre os predicados possíveis, pequenos retalhos, e compor com eles uma colcha de fuxicos, na tradição dos Salles do Recôncavo. Minha proposta é simples e óbvia, e cópia conforme a todo meu trabalho. Filosofar, em verdade, é aprender a nascer. Em sendo assim, inventar a pró-pria identidade não é reencontrar uma escolha anterior a nos-sa existência, um pensamento anterior à linguagem, mas antes deixar que a existência mesma nos surpreenda e que escolhas se fixem na linguagem, único meio por que se podem inventar essências e liberdades.

4.

Posições filosóficas condensam-se em estilos. De minha parte, professor de filosofia, creio mais ter cacoetes, vícios, que vejo tramados por minhas circunstâncias e escolhas, a desenha-rem sim um ponto de resistência, uma repetição, que apenas com boa vontade chamaríamos de estilo. Listo alguns de seus traços, aqueles que julgo controlar.

Primeiro, a preferência por imagens que guardam a pre-sença do trabalho manual, o que é perceptível, para bom en-

5 Cf. Merleau-Ponty, “Prefácio” à Phénoménologie de la perception, paris, Gallimard, 1945, p. v.

Page 415: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 413

tendedor, até nos mais simples gestos, quando falo em público ou quando cismo calado. Eis que, com as mãos, apalpo, sopeso, costuro, agarro, teço, meço, prendo os fios de rendas de bilro, componho palavras destinadas ao prelo. Não duvido que seja uma herança do curso de datilografia e mecanografia feito aos dez anos na Escola Dactilográfica Nossa Senhora de Fátima, e de cedo ter aprendido artes tipográficas com o venerando Prof. Raimundo Cerqueira, sendo naturais tanto a queda pelas fontes serifadas (e não pelas cursivas) quanto o desejo juvenil de um dia tornar-me um “datilógrafo com redação própria”. Com mais nobreza, essa herança alimenta a boa imagem empirista da razão como um cálculo, que se faz pelo manipular de pedras e letras, de modo que, sem sinais sensíveis, não haveria pensamento, mas também, em aspecto menos elevado, alimenta o apego à mate-rialidade imagética da palavra, que me leva a resistir a reformas ortográficas e me fez sentir a supressão do trema como a perda de um parente próximo.

Segundo, meu modo de escrever, de caso pensado, é la-cunar. Alguns, que gostam de ser guiados, lhe sentem mesmo a falta de palavras. Considero, porém, instigantes os zeugmas semânticos e mais vivos pensamentos que, como em aforismos, precisam completar-se no leitor. Não acredito que realize a con-tento essa exigência, mas essa é a matriz pura da filosofia de Wittgenstein, que certa feita, como a lançar um desafio, afirmou que a filosofia deveria realmente ser escrita como uma forma de composição poética.6 Assim, o verdadeiro filósofo é um Dichter e não um simples Schriftsteller.

Como me coloco na condição de professor de filosofia, espécie de antessala da verdadeira filosofia, costumo espalhar ‘poréns’ e ‘portantos’ em meus textos, salpico ‘todavias’ e ‘por conseguintes’, como a amarrar o texto ao rés do chão, deixando-o

6 Cf. Wittgenstein, Vermischte Bemerkungen, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1984, p. 483.

Page 416: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

414 ◄◄

estendido entre as ciências e as letras. É uma medida de proteção. Soube que, recentemente, meu orientador de doutorado, Arley Ramos Moreno, maior especialista em Wittgenstein de nosso país, declarou que meus textos exemplificariam um casamento bem sucedido entre argumentação e poesia. Entendi logo, entre grato e surpreso, que ele fizera o maior elogio wittgensteiniano — descartável embora, também o sabia, por ter vindo de um orientador e amigo.

Fixo o ponto, contudo, por ele enunciar o elemento má-ximo da nossa ambição. Sei que Arley, com sua autoridade, ao lançar em público esse elogio, está dizendo pouco e demasiado. Concede-me, afinal, a cláusula mínima que justifica o fazer filo-sófico wittgensteiniano. Não que tenha vergonha de ser escritor, mas tenho sim senso de proporção. Exatamente por pudor (e não para não desandar em poesia – algo condenável apenas em meios acadêmicos superficiais), tenho o vezo das conjunções, em especial, as adversativas, mas aceito ser essa arte de enco-brimento ela própria uma arte de composição, de tecido, de tra-balho de pano da costa, de desejo de controlar o deslocamento entre o datilógrafo e o escritor.

E ouso ver nesse traço de estilo, letra comprimida no muro, um projeto de filosofia. Tenho a firme convicção de que a língua portuguesa é sim propícia à mais refinada elaboração filosófica, apesar da evidência contrária de muitos dos textos publicados. É preciso, porém, saber procurar para além dos textos profissionais e ter uma pauta que ultrapassa a também necessária produção de papers. Assim, da mesma forma que O Alienista estava muito à frente da ciência psicológica do seu tempo, wittgensteinianos precisam enriquecer o vocabulário com Claro enigma e Mensagem, como filósofos alemães fizeram com Hölderlin ou Hebel. para pensar com nossa linguagem, precisamos estar atentos à economia verbal de O Guardador de rebanhos, havendo sim muita metafísica em não pensar em nada; e precisamos reconhecer o quão longe ainda estamos da

Page 417: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 415

Invenção de Orfeu. E, com um olhar assim, facilmente percebe-remos, por exemplo, que em O Cão sem plumas expandiu-se o jogo da predicação para além do que pode suportar qualquer de nossos livros de lógica.

Terceiro, as palavras não devem aparecer em uma frase como crianças em roupa de domingo, apertadas e tolhidas em seus movimentos, a menos, é claro, que seja um texto de domingo, que todas as crianças assim o estejam e, por isso, em meio à missa, sejam ainda crianças, mostrem sua força, sua re-beldia, e gritem, quando lhes convenha. Nada mais simpático então que um ‘outrossim’ puxando a cadeira de um ‘deveras’, os dois sobremaneira excitados e muito à vontade em seus trajes de missa, acompanhados de vocábulos raros, mas con-tentes por terem sido despertos no lugar certo – por vezes, deslocados do pretenso lugar natural. Por isso, não há por que estranhar um ‘esconso’, um ‘especioso’, um ‘eludir’ ou um ‘delir’ qualquer perdido em meus textos, ou construções pouco usitadas. Espero, aliás, com a salvaguarda que hoje me é concedida, não mais precisar recitar Drummond ou Pessoa para conceder direito de cidadania a vocábulos ou estruturas que andam soltos em nossa poesia e podem sim ser caros à precisa navegação filosófica, mesmo ao preço de impregnar a escrita com o barroco um tanto afetado do recôncavo. paciên-cia. Sou do início do século passado, e de Cachoeira, cidade de mais de 100 jornais em sua história, alguns de longa existên-cia, centro de letras e de contradições, dispondo-se, muita vez, entre monumentos e ruínas.7 Como descreve Gerson Pereira

7 Quem, como eu, ao longo de mais de 10 anos, cantou seu hino, com-posto pelo maestro Tranquilino Bastos, mal pode evitar inclinações hiperbólicas, oposições conceituais e exageros cívicos: “Mocidade vi-brante e altaneira! / Revivei, constelada de sóis! / Toda glória de nossa Cachoeira, / De teus filhos amados soldados e heróis! / Daquele san-gue bendito, que deram nossos avós. / Ao prélio, em transe inaudito, / Ainda existe e ferve em nós! Em nós!”

Page 418: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

416 ◄◄

dos Santos, não é uma cidade qualquer, mais uma no cenário da Bahia, mas sim a Cachoeira mística e majestosa, de lonjuras votivas, cheia da lembrança dos tempos e dos seus corres-pondentes olvidos.8 Uma Cachoeira que certamente não mais existe e, não obstante, é ainda minha neblina, ponto cego, quem sabe, do meu estilo.

5.

Filosofar, retomo e insisto, é aprender a nascer. E digo isso com autoridade, se não como filósofo, como especialista em nascimentos. Tendo tido tantas mães, estando uma delas aqui presente, minha mãe Maria Cardozo; tendo experimentado em vida tantos trabalhos de parto, julgo poder reivindicar esse lugar de especialista como o mais adequado para a conversão do olhar por que me torno membro desta Academia e ouso unir meu nome aos de meus confrades e confreiras. Quis primeiro trazer-lhes uma voz própria, uma que lhes justificasse em parte a esco-lha, esclarecendo o que julgo ser lícito pedir de um profissional da filosofia de extração wittgensteiniana. Preciso agora vindicar o sentido de ocupar a Cadeira de número 32, que tem como patrono André pinto Rebouças, como fundador Theodoro Fer-nandes Sampaio, e como sucessores Isaías Alves de Almeida, Zitelmann José Santos de Oliva e Gerson Pereira dos Santos. E tendo assim esses guias, modelos, companhias, preciso rememo-rar, brevemente, alguns nascimentos anteriores.

Nasci, pela primeira vez, em Cachoeira, em maio de 1962 — um prematuro de menos de sete meses e mais de três quilos e quinhentos gramas, filho de Wanderley e Leda Lícia. Tive de nascer de novo, na casa de Divaldo e Guiminha, no mes-mo sobrado da praça da aclamação que figura ao fundo de

8 Cf. Gerson Pereira dos Santos, O solitário ofício de julgar, Belo Horizon-te, Ciência Jurídica, 2006.

Page 419: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 417

um tambor Soledade caído no quadro de Antonio Parreiras, mas onze meses depois, quando Leda tomou sua própria vida e entrou decidida como um pássaro no espelho. Cedo, a pai-xão pelas letras. Afinal, a herança mais perceptível deixada por Leda, além de uma neblina de silêncio e preconceito, foi um caderno em que copiara muitas poesias, de Castro Alves a sim-bolistas, versos condoreiros ou líricos, passando por parnasia-nos e por versos edificantes, como os sobre o indefectível cão veludo.9 Dieta difícil. Nenhum Drummond, nenhum Bandeira, nenhum Pessoa, até os 13 anos!

Voltei a nascer em 1975, tal o impacto que em minha vida teve a mudança para Salvador para completar os estudos secun-dários. Fiz a oitava série e o colegial no 2 de Julho, e descobri uma Salvador plena de movimentações culturais e políticas. UFBA e ICBA, Kafka e Brecht, Drummond e Cassiano, pessoa e Murilo Mendes. A dieta poética ampliou-se bastante, e contemplou até mesmo um poeta bissexto como o filósofo Bento Prado Júnior, que primeiro li em uma antologia de poetas brasileiros e surpre-endi pessoalmente por lhe recitar de cor um poema de inteiro sabor filosófico de antes de 1964, poema bem ao encontro de minhas posições sobre a linguagem. Saber esse poema, admito, o surpreendeu mais que minhas considerações sobre cores em Hume e Wittgenstein, e talvez eu deva a esse acaso minha inser-ção na filosofia nacional:

Não sou eu quem o diz!Mas este corpo estranho pulsa em mimComo um coração, não meu, mas de alguémComposto de outras fibras, outras carnes

9 Versos de Luiz Guimarães, com sua conhecida primeira estrofe: “Eu tive um cão. Chamava-se Veludo: / Magro, asqueroso, revoltante, imundo, / Para dizer numa palavra tudo /Foi o mais feio cão que houve no mundo”.

Page 420: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

418 ◄◄

Que não estas humanas. Quem me obrigaSerá antes a dor, que, incrustadaEm meu ser, já se não distingue daComposição escassa de meu corpo,

Veículo insolúvel que a transporta,Anjo ou dor ou enfim força alheia aoArbítrio da vontade, nem sequer

Válida no restrito territórioQue sou, a mim me impinges a palavra:Impõe-se o canto à boca que o articula.10

Além de literatura e poesia, vieram, enfim, como seria de esperar, Huberman, plekhanov, Lenin e, é claro, Marx, ao lado de um bom punhado de textos clandestinos. Logo, como esgar-çado em várias direções, me vi macrobiótico e marxista, con-vivendo com a contracultura e com a militância, e esta enfim imperou, inclusive com novo nome. Nasci então como Afonso, nome que escolhi para novo batismo ao ser recrutado para a Ação Popular Marxista Leninista, em 1977. Militante, produzia também textos clandestinos ou panfletos, tendo em casa, escon-dido, meu próprio mimeógrafo e todos os sonhos do mundo. Foram cinco anos dos mais intensos, tendo por companheiro de luta mais próximo e afim Jorge Almeida, sobrinho de Isaías Alves de Almeida. Tempos intensos, nos quais, entre a teoria e a prática, cumprido um ciclo, formulei minhas próprias críticas à concepção leninista de partido, enquanto me encantava, em diálogo com Ubirajara Rebouças e Fernando Rego, com um re-pertório filosófico mais extenso.

10 Bento prado Jr., in A. T. Alves (org.), Antologia de Poetas Brasileiros, São Paulo, Logos, 1964, p. 241.

Page 421: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 419

Essa passagem no tempo, em 1981, é das mais significati-vas. Migrei da economia para a filosofia, da militância para a Uni-versidade e casei com Elisabete Santos, que, desde então, tem sido meu horizonte e a pedra de toque de meus pensamentos. Deixei a organização, mas não a perspectiva política marcadamente de esquerda. Perdi o bonde, mas não a esperança. E continuei gauche na vida, mas como dedicado estudante e professor de filosofia. para dizer numa palavra tudo, a disciplina e a energia do militante se voltaram para a Universidade Federal da Bahia, instituição a que tudo devo, em medida que jamais serei capaz de retribuir, pois é meu lugar de formação, de professor, pesquisador e gestor, tendo sido chefe de departamento, coordenador do programa de Filo-sofia, presidente da ANPOF, coordenador de pesquisa, diretor da FFCH, presidente da Sociedade Interamericana de Filosofia e, enfim, como todos sabem, reitor, como resultado daquela cons-trução coletiva, conhecida de todos. Permitam-me homenagear os muitos colegas que participaram ou participam dessa trajetória de trabalho e gestão na UFBA, pela menção a um companheiro, meu amigo paulo César Miguez de oliveira.

6.

Esse sucinto resumo de alguns nascimentos permite-me agora aproximar minha trajetória pessoal daquela dos confra-des da Cadeira 32. Começo pelo mais próximo, por Gerson Pe-reira dos Santos, filho de Mata de São João, bacharel, jornalista, juiz de direito, professor, desembargador, escritor, tradutor. A UFBA também foi, em grande parte, sua casa, tendo sido pro-fessor e mesmo diretor da Faculdade de Direito, de 1975 a 1979. Nesses anos, estivemos certamente em campos políticos distintos. Caso tivéssemos convivido, teríamos estado prova-velmente em conflito. Entretanto, passado o momento, bem que poderíamos doravante contrapor nossos gostos literários, sendo bastante rica sua leitura de clássicos e contemporâneos.

Page 422: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

420 ◄◄

O repertório é mesmo espantoso. Seu filho, Luis Marinho, trouxe-me o especial testemunho de seu último ano — o me-lhor, diz ele, de suas vidas em comum. Grande conversador, seu tema favorito era mesmo a literatura: Faulkner, Wilson e Durrell; Hermann Broch e Charles Morgan; Joyce, Tolstoi e Nabokov. Sabia ver o mundo pela neblina da literatura (e do cigarro). Dei-xara a UFBA com grande relutância pela necessidade de se dedi-car ao judiciário e a uma fina e constante reflexão sobre direito penal, que, a seu ver, apresentaria as maiores dificuldades ou os dilemas humanos mais intensos.

o texto sempre carregado de citações apaixonadas, rebus-cado ao limite do gongórico, é uma sua marca pessoal, um traço de identidade, pois julgava que, forçado a simplificar a expres-são, nela não mais se reconheceria. E a literatura, sorvida em grandes goles, além de lhe cultivar e mesmo rebuscar o estilo, também se lhe afigurava essencial para que o ofício solitário de julgar não o desterrasse do mundo e dos vetores da cultura de nossos dias, com a lição (que, de resto, vale para qualquer cien-tista ou filósofo profissional) da necessária atenção à literatura, no sopesar de qualquer argumento ou decisão.

Com o nome de Zitelmann de Oliva, a UFBA tem todo destaque. Esse militante anti-fascista, comunista depois conver-tido ao catolicismo pelas mãos de beneditinos como Dom Ti-móteo, foi o braço direito e o esquerdo de Miguel Calmon, que lhe tinha total confiança. Como chefe de gabinete da Reitoria, foi sim seu grande e direto administrador, arrumando a casa e, depois, preparando com finura a lista sucessória que conduziu ao reitorado de Roberto Santos.

Complexo e múltiplo, gregário e polêmico, Zitelmann vi-veu com intensidade a militância no partidão e a decepção pró-pria dos exilados da era pós-Stalin. Viveu entre pessoas raras, talentosas, no olho do furacão de decisões públicas ou pessoais. Gestor de sucesso, intelectual e prático, envolto em trabalho e amizades, seja na UFBA, seja depois como um bem sucedido

Page 423: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 421

executivo do Banco Econômico, como gerente das Artes Gráfi-cas, ou como um dos fundadores do Jornal da Bahia. Zitelmann conseguia ser, ao mesmo tempo, dogmático e aberto. por exem-plo, como me relatou sua filha Maria Thereza, sendo crítico do marxismo que antes abraçara, nunca impediu que seus filhos participassem de manifestações contra a ditadura, e ele mesmo, em seu discurso de posse na Academia, em 1968, não deixou de honrar os melhores princípios democráticos.

Ao lado dessa presença pública, temos o cultor refinado das letras e das artes, amante da beleza e amigo dos artistas, tendo sido um colecionador capaz de reconhecer o talento dos novos e de renovar o prazer pelos mais consagrados. Vale o registro de sua coleção de vias sacras, das quais chegou a ter 14, pois talvez, quero acreditar, estivesse ele a sinalizar, pelo contraste com o exemplo sublime do cristo, a comum trajetória dos que se convertem e, no desmedido do paradoxo, passam a submeter suas vidas terrenas a um investimento cotidiano em valores elevados.

7.

Com Isaías Alves, Theodoro Sampaio e André Rebouças, nós nos aproximamos de uma dimensão quase mitológica. Não são mais apenas pessoas, são tipos ideais.

Senão vejamos. Aluno de Ernesto Carneiro Ribeiro, ao vir de Santo Antônio de Jesus para Salvador, Isaías Alves de Almeida se destaca como professor, Secretário de Educação, líder universitário, administrador. Com formação sólida, no Brasil e nos Estados Unidos, destaca-se como pesquisador, mas também como homem da prática educacional, da cons-trução de instituições. No mesmo ano em que foi eleito para a Academia, em 1941, criou a Faculdade de Filosofia da Bahia, um dos pilares essenciais e necessários à constituição da Uni-versidade Federal da Bahia, tendo se originado da Faculdade

Page 424: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

422 ◄◄

de Filosofia muitas das nossas atuais unidades universitárias, a exemplo da Matemática, da Física, das Letras, da Educação e a própria Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da qual vim a ser Diretor.

podemos ver o homem no modo como reverencia seus antecessores. Assim, é também Isaías, no que projeta de valores, que flagramos em sua homenagem a André Rebouças e Theo-doro Sampaio.

Ambos engenheiros e patriotas — descreve Isaías —, [am-bos] devotados à construção e à defesa da nacionalidade, demarcando a terra, levantando rios, explorando estradas, perfurando túneis, saneando cidades, canalizando águas e dessedentando populações, construindo portos, revendo as fundações de fortalezas, ambos sociólogos e historia-dores, economistas e humanistas, ambos geógrafos e na-turalistas, deixaram esses dois brasileiros um imperecível padrão de dignidade humana, que edificará a juventude, no decorrer das gerações.11

Isaías escolhe bem as palavras, torna André e Theodo-ro modelos à sua própria semelhança, e assim lhes destaca a devoção, o nacionalismo, a ação, o humanismo, o patriotismo, ocultando no elogio o lema mesmo da Faculdade de Filoso-fia que acabara de fundar: “Cultiva com tradição a juventude brasileira”.

Como não enxergar uma grata simetria no fato de ser elei-to acadêmico e reitor da UFBA neste mesmo ano, assim como Isaías Alves foi eleito acadêmico no ano em que fundou a Fa-culdade de Filosofia da Bahia? Vendo o discurso longo, belo e detalhado, e insubstituível na descrição de André e Theodoro, vem-me o pensamento de que meus antecessores tinham sim

11 Isaías Alves, Discurso de posse, Revista da Academia de Letras da Bahia, Anos XI e XII, 1940-1941, Vol. VII, p. 209.

Page 425: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 423

mais talento... e mais tempo. E sei bem que minha contribuição para a UFBA nunca será tão importante quanto o foi a de Isaías, que lhe assentou uma pedra fundamental. Não posso emular-lhe a medida elevada, mas não será menor o empenho, e já neste instante, reconheço traços de identidade, que trazem e juntam predicados a uma substância antes informe, como que abenço-ando minha chegada a esta casa.

Tive primeiro notícia de Theodoro Sampaio, devo con-fessar, pelo trabalho competente de meu amigo José Carlos Barreto de Santana, quando juntos, com Olival Freire à frente, Robinson Tenório e outros colegas, lutamos pela implantação do Programa de Ensino, Filosofia e História das Ciências. Na-tural de Santo Amaro, Theodoro é um dos mais destacados intelectuais brasileiros, sendo célebre, entre tantos trabalhos e temas, por sua vasta erudição geográfica e histórica, seus tra-balhos sobre as bandeiras paulistas na formação do território nacional, bem como por sua sensibilidade para os saberes indí-genas, tendo aberto a seu amigo Euclides da Cunha o veio de pesquisa dos sertões. Podemos bem dizer que seus trabalhos abrem um programa de investigação que está longe de se ter esgotado, recortando objetos e temas que, ademais, exigem fô-lego multidisciplinar.

8.

Com André Pinto Rebouças, filho de Cachoeira, aproxi-mo-me ainda mais do meu próprio centro, de minha álgebra, como se com nosso patrono reencontrasse sonhos e fantas-mas. Ao lado de Theodoro, nosso patrono é, com efeito, um verdadeiro modelo. Engenheiro, inventor, gestor, poliglota, amigo e incentivador da carreira de Carlos Gomes, líder aboli-cionista, André Rebouças ajudou a criar a Sociedade Brasileira contra a escravidão, ao lado de Joaquim Nabuco, José do Pa-trocínio e outros. Tendo se exilado na Europa, após a queda

Page 426: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

424 ◄◄

do Império, aceita um emprego em Luanda e, posteriormente, tudo indica, dá fim à própria vida em Funchal, na Ilha da Ma-deira, em 1898.

Não posso deixar de ver um bom sinal em ter como patro-no um cachoeirano dessa envergadura. Com tal patrono, essa ca-deira promete-nos trabalhadores incansáveis — e já me vejo, de todos, o mais preguiçoso. Só a lista de seus feitos e sucessos em inúmeras e difíceis missões pode cansar o comum dos mortais. Tenho de corrigir isso, tenho de empenhar-me ainda mais, pois reparo que, no limite da dedicação, são um modelo de entrega ao trabalho, que lhes serve às vezes de consolo até para a depressão, como o afirma André Rebouças em carta a um amigo, pouco antes de sua morte talvez voluntária:

Já lhe disse que só venço a dor e a saudade, aprofundando infinitos cálculos matemáticos. Você verá cadernos e ca-dernos cheios das mais curiosas Curvas e Superfícies, com equações de coeficientes impossíveis a desafiar a paciência de 30 Beneditinos.12

De minha parte, como não deliciar-me com a coincidência de ter sido eleito, pela primeira vez, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia exatamente na Ave-nida Rebouças, no Centro Rebouças, que, em São Paulo, home-nageiam nosso patrono — fato que marcou com tinta indelével minha carreira e, com o grande apoio dos colegas do Departa-mento de Filosofia da UFBA, contribuiu para mudar a face do trabalho profissional de filosofia em nosso Estado, com a reali-zação em Salvador de grandes encontros de filosofia.

Não foi uma escolha trivial para a comunidade de filoso-fia. E foram muitas e justas as resistências, a começar pelas mi-nhas. Como fazer deslocar-se para o nordeste, onde nunca esti-vera, e ainda para outra geração um cargo antes ocupado, entre

12 Isaías Alves, Discurso de posse, p. 220.

Page 427: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 425

outros, por José Arthur Giannotti, Marilena Chauí, Oswaldo Giacoia e Bento Prado Júnior? Que imenso risco, diziam, sen-do eu o primeiro a concordar. Só posso hoje ter por certo, sem mentira e muito verdadeiro, que, naquelas noites distantes de 2002, André Rebouças confabulou com Theodoro Sampaio para ajudar um conterrâneo. Como me chamou a atenção Oli-val Freire, a Rua Teodoro Sampaio corre paralela à Avenida Rebouças no coração de São Paulo, como tatuagens simbóli-cas, de modo que esses dois engenheiros negros e baianos, de talento e força ímpar, lembram diariamente aos paulistas que, não importando o jogo das forças econômicas e políticas, a Bahia continua o centro do universo.

Pois bem, durante quase uma semana, começava os dias sendo lembrado como o melhor nome e, ante resistências tantas, dormia tranquilo pensando não mais ser o candidato. Durante a noite, porém, com toda certeza, André e Theodoro refaziam as contas, recompunham os planos, faziam campanha, retoma-vam o trabalho de parto, sendo eu eleito então, com amplíssima maioria, e depois reconduzido na Bahia por aclamação, tendo feito também meu sucessor.

9.

Se mesmo a morte voluntária tem sua medida social, ima-ginem os nascimentos. André, Theodoro e Isaías descrevem um arco para esta Cadeira, a partir de Cachoeira até Salvador. Temos uma Cadeira de homens práticos, de metafísicos que carregam pedras, divididos entre as ideias e a ação, militantes, políticos, gestores, educadores, como convertidos que sabem o peso da conversão, com certo toque de barroco, no limite do gongórico, pois que, no Recôncavo, sabemos bem a gravidade das vias sa-cras entre o demasiado humano e o divino, entre o grotesco e o sublime. No Recôncavo, mesmo o simples, o estilo mais ático, tende ao barroco.

Page 428: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

426 ◄◄

Concluo agradecendo a alguns confrades e confreiras, pois, vejam todos, meu primeiro livro, O claro e o obscuro, começa nesta Academia. Editado por Claudius Portugal, não viria à luz sem a generosidade de Myriam Fraga, tendo sido o texto apre-sentado a ela, em 1989, por Fernando da Rocha peres.

Escrevi então, na casa dos 20 e poucos anos, referindo-me ao lugar vazio do leitor, ao texto da leitura: “Pouco impor-ta quem sou. Muitos já estiveram neste mesmo caminho, neste mesmo começo.” Ao mesmo tempo, já fazia da leitura o começo mesmo da escrita, pois não pensamos, salvo contra uma tradi-ção, que alimentamos e negamos. Por isso, concluía:

Agora posso suspeitar: fosse infinita nossa energia e, com que prazer, infinitamente nos iludiria. Milhares de portas, milhares de pistas, milhares de letras — nenhuma o alcan-ça. Nenhum dos caminhos e todos dele fazem parte. (...) Efêmero e eterno, pessoal e outro, ilude-nos com suas ma-nifestações — identidades do finito e do infinito. (...) Sem compreender, retomo minha inútil e deliciosa mística. Em minhas mãos, ponho o mistério em exercício. Faço nascer o inacessível texto.13

Estar aqui faz parte da indagação sobre minha própria identidade. É a soma derradeira, creio eu, de vários nascimentos, de tentativas diversas de invenção. Posso errar e certamente erra-rei muitas vezes, mas não por me faltarem os melhores modelos, por não poder escolher entre os melhores predicados, por não ter os melhores confrades e confreiras. Agora que vou nascer de novo, já me apontam quem posso ser, que linguagem posso usar. Não estou aguardando em um buraco, sem determinações, podendo ocorrer em qualquer parte e, logo, em nenhuma. Não me vejo no desamparo de Alice:

13 João Carlos Salles, O Claro e o Obscuro, p. 93-95.

Page 429: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 427

Não, já resolvi – exaspera-se Alice —: se eu sou Mabel [que é tão burrinha], então vou ficar aqui embaixo mesmo! Não adianta botarem a cabeça e pedirem: “Suba outra vez, querida!” Só vou levantar a cabeça e dizer: “Quem é que eu sou? Digam primeiro, e se eu gostar de ser a tal pessoa, então subo. Se não, fico aqui embaixo mesmo até que eu seja outra pessoa...”14

Tudo antecede o parto. Barulho e silêncio. preciso assim dizer da minha gratidão aos operários da maiêutica. Agradeço agora aos companheiros silenciosos que, ano passado, me son-daram e urdiram minha chegada. Meu agradecimento, portanto, aos que cometeram a temeridade da escolha e, ainda mais grave, a da campanha. Fiz o que pude, neste discurso, para diminuir-lhes a falha.

Agradeço a gentileza e a boa condução de nosso presiden-te, Aramis Ribeiro Costa, ao tempo que registro minha alegria por vê-lo proferir um perfeito e exemplar performativo.

Agradeço a visita de Cajazeira Ramos a nosso grupo de pesquisa, por uma razão especial. Se fui feliz na tese principal deste discurso, se consegui mostrar um laço necessário entre o labor filosófico e o poético, talvez, Cajazeira, você entenda agora como nos fez um grande cumprimento ao se sentir instado a declamar para nós um poema.

Não farei outras menções a acadêmicos, exceto uma, im-portantíssima. Quero registrar que, além dos patronos invisíveis, esta Casa tem um anjo zeloso, que cuida simplesmente de forma e conteúdo, que estimula e corrige. Como grande mestre, ajuda a ver. Refiro-me, é claro, ao mestre Edivaldo Boaventura, que muito me ajudou e orientou neste discurso, sem que ele seja culpado por qualquer de minhas construções.

14 Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, São Paulo, Summus Edi-torial, 1980, p. 49.

Page 430: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

428 ◄◄

E Edivaldo tinha toda razão em se preocupar. Sinto ame-açadas a escrita e a leitura desde a eleição para a Academia, como se doravante não mais pudesse estar sozinho, e cada pa-lavra quisesse resistir ou esconder-se, como objeto perdido ou criança malina, e tudo se dissesse em tom esconso. Cada frase agora desafia e exige mais, na proporção, quero crer, de quanto prezo os nomes, a história e a obra dos confrades e confreiras que ora me acolhem.

Por outro lado, tenho a escrita enfim liberta. Entendi que esse importante diploma, entre outras coisas, me dá o direito de ser simples ou gongórico, de inventar o escritor e encontrar a escrita adequada ao labor e ao diálogo filosófico. Devo tomar posições, definir-me. Agora tenho um lugar definitivo de fala, e nesse lugar, e nesse eu, que nunca senti importar, não mais estarei sozinho.

Após muitos sofrimentos, muitos partos, tenho apren-dido a nascer cada vez melhor e na melhor companhia. Vo-cês aqui dão brilho a este momento, amigos de nossa UFBA, amigos os mais chegados, familiares queridos, confrades e confreiras da Academia de Ciências e da Academia de Letras da Bahia. Que testemunhem, pois, este definitivo nascimento, por que retorno a minha terra, da qual certamente nunca hei de ter saído.

Se sempre lutei para conter ou diminuir a força das pro-cissões em meus textos, o cheiro do incenso, a marcha da irmandade da Boa Morte, o canto das Verônicas nas procis-sões do Senhor dos passos, os enigmas dos contos vindos dos terreiros, o colorido de mandús e cabeçorras, as melodias e ritmos da Minerva e da Lira, agora estou liberado. Eis que nasço mais uma vez, pelas mãos hábeis de meus confrades e confreiras, recolhendo num instante as escolhas passadas e futuras, pois filosofar, contrariamente ao que afirma a tra-dição, é isso, como quis demonstrar. Filosofar é aprender a nascer, com a madureza e a candura de saber “ter o pasmo

Page 431: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 429

essencial / Que tem a criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras...”15

No momento então deste meu derradeiro nascimento, digo a meu mestre, meu amigo, paulo Costa Lima, papa paulo,16 estas minhas últimas ou primeiras palavras:

— Paulo, agora é com você, paga o galo que devemos você bem sabe a quem.17

15 Fernando Pessoa, O Guardador de Rebanhos.16 A quem cabia a saudação ao novo acadêmico.

João Carlos Salles é mestre em ciências sociais, doutor em filosofia, professor da Universidade Federal da Bahia. Foi diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e é o atual reitor da Universidade Federal da Bahia. Entre outros livros, publicou A gramática das cores em Wittgenstein (2002), O retrato do vermelho e outros ensaios (2006), e O cético e o enxadrista: significação e experiência em Wittgenstein (2012). Eleito no dia 3 de julho de 2014 para a Cadeira número 32 da ALB.

Discurso de posse do acadêmico João Carlos Salles na Cadeira núme-ro 32, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 6 de novembro de 2014.

Page 432: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 433: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 431

DISCURSO DE RECEPÇÃO A JOÃO CARLOS SALLES

PAulo CostA limA

Dessa forma, à luz de seu labor, fazer filosofia implica um esforço argumentativo,

mas também um esforço em favor da palavra.João Carlos Salles

1. introdução sostenuto: sintaxe e semântica da recepção

Comecemos pelo cerne da questão. A relação entre filoso-fia e escritura. (Pois não se trata de um filósofo que também es-creve; trata-se de um filósofo que se constitui como tal no cam-po da escrita, e isso afeta ambos, filosofia e escritura). Vejamos o gesto de abertura do livro Secos & molhados de João Carlos Salles:

A crônica não é meu forte. Assim, devia ter recusado o convite carinhoso de Bob Fernandes para escrever no Ter-ra Magazine. Por fraqueza, por vaidade, ou simplesmente por incapacidade doentia de dizer ‘não’, aceitei. E logo me vi aturdido pelo gênero, que, de tão flexível, tem exigências as mais severas.

O parágrafo atesta aquilo que o autor nega — sua capa-cidade de entender o gênero como poucos, sua capacidade de brincar com as ideias. E não é apenas humor, é o gosto pela

Page 434: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

432 ◄◄

sutileza, se é que não são a mesma coisa. Gosto pela distinção fina entre isso e quase isso, habilidade de surpreender o leitor com a aproximação inesperada entre flexibilidade e rigidez, a rigidez da flexibilidade — facilmente transitaria para a flexibili-dade da rigidez. Em suma, falando que não entende de crônica, João consegue não apenas evocar o seu estilo, como também torcê-lo na direção de um torvelinho filosófico e literário. Pode? Pode sim, e não pára por aí:

Uma coluna, afinal, nos convida a ser rasos, a deslizar por uma superfície. Pouco importa a máscara que escolhemos. Todo e qualquer relevo não deve ser mais que uma ilusão de ótica, e assustadora a ideia de profundidade.

Touché.

2.

Confesso que sou navegador de primeiras águas na arte de perpetrar discursos de recepção, estou mais para bardo compo-sitor, membro de uma comunidade linguística, melhor, comuni-dade de afetos e perceptos que se alimenta da possibilidade de reconfigurar experiências a serem ouvidas, não aceitando nada como princípios previamente declarados.

Não devo calar a voz que insiste em dialogar com aquele que discursa, no momento em que o faz. Essa voz quer saber que música será essa? Qual sua forma e propósito, seu devaneio e seu estribilho? Será minueto ou rondó? Essa voz quer saber todas essas coisas por que considera a ocasião muito especial, muito honrosa, e deveras sente a responsabilidade que encerra. Mas qual encerra? Isso aqui não é o Hino da Bandeira.

A semântica e a sintaxe da recepção. A principal quadra: os feitos de quem é recepcionado. (fez isso, fez isso, fez aquilo) Mas quando a prosa é boa e sustentável, no sentido ecológico

Page 435: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 433

da mente humana, vamos aos poucos percebendo uma outra dimensão para além dos feitos: aquilo que o recepcionado é, sua natureza, seu estilo e seu caráter.

Há uma terceira dimensão: avanços interpretativos, por exemplo, o que isso significa do ponto de vista da Academia, tal como entende aquele que recepciona. Qual o papel que o ilustre recém-chegado pode e deve vir a representar em nosso meio?

E ainda uma quarta dimensão, que é da ordem do encon-tro. Simplesmente a experiência vivida e compartilhada de dia-logar e de encontrar os caminhos e os termos dessa tradução de vida em discurso. Talvez seja a hora de lembrar a humildade do discurso, tão menor do que a vida e trajetória que o sus-tentam, a rigor, apenas um hip-hurra florido para uma ocasião festiva.

E sobre sintaxe, nada fala? Insiste a tal voz e co-autora. ora, a sintaxe está posta, e assim pretende permanecer, com poucas conjugações da segunda pessoa do plural, embora reco-nheça que são elegantes e pomposas. Mas, convém lembrar, o que pode ser dito, pode ser dito claramente.

2. Allegro com brio: Um feito discursivo recente

Posso economizar nos volteios de linguagem, mas não posso economizar em esclarecer meus termos. Qual a semân-tica da recepção? De onde falo? O que é uma pessoa, para que possamos melhor recebê-la? Meu ilustre recipiendário dedicou grande afinco em ocasião recente, sua Posse como Magnífico Reitor da UFBA, buscando deslindar o que era a UFBA. Foi um discurso brilhante que tomo como ponto de convergência nessa longa série de feitos, que vistos daqui, o direcionam para a nossa acolhida.

Ao longo de todas as décadas que acompanho a vida na Universidade, e tendo assistido muitas outras solenidades de posse na Reitoria, devo registrar que nunca vi alguém fazer isso.

Page 436: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

434 ◄◄

É um momento em que se toma como pressuposto o que é a Universidade, e fala-se a partir desse pressuposto oculto. Mas não João Carlos Salles Pires da Silva.

o discurso manteve cerca de 800 pessoas atentas e partici-pativas, acompanhando cada passo lógico esboçado, cada virada de mesa das expectativas de significação1. Ao tomar esse cami-nho discursivo, João buscava desnaturalizar a ideia de univer-sidade. Desnaturalizar a ingerência de todo um aparato lógico conceitual que se esconde por trás da forma da própria pergunta “o que é uma Universidade?”. Essa pergunta absorve todas as inhanhas possíveis de uma forma de pensar que nos diz que a Universidade seria uma coisa, entre tantas outras que nos cer-cam. Mas não, diz João, a Universidade é mais da ordem de um sujeito do que de uma coisa.

Alguns passos adiante, ele dirá que não se trata de um sujeito abstrato, suspenso em alguma epistemologia vaporo-sa. Esse sujeito é coletivo, somos nós, e o que dela fazemos. E como toda instituição em sociedade, a Universidade “deve jus-tificar seu direito à existência”2— e tal missão comporta o desa-fio de lidar com as vicissitudes desse sujeito coletivo. Não pode haver pensamento mais concreto, práxis que seja, a iluminar as perspectivas que este reitor traça para a Universidade Federal da Bahia. A visão de que as pessoas são o maior patrimônio pos-sível, e de que é preciso ouvi-las, é preciso dialogar e construir caminhos de sinergia e emancipação. E apesar da concretude, o desafio remete à delicadeza do cristal.

1 Havia um rapaz em pé, ao meu lado, provavelmente um estudante de final de curso. Não sei bem de qual área ele vinha, mas imaginei que seria da área da saúde. Depois de um certo tempo, disse para o colega do outro lado: “é discurso de filósofo, mas é muito bom”. 2 Essa a lição de Fichte, nos afirma Salles (2006, p. 213).

Page 437: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 435

3. Refrão 1

pelo menos dois valores emergem com muita força da análise desse momento: a inteligência crítica e a coragem de desenhar o próprio caminho. Não são manifestações isoladas, se espalham pela obra e pela trajetória deste que acolhemos hoje. Escutem o seguinte:

Filosofar é, enfim, preciso por significar viver ainda mais intensamente. A precisão, a exatidão, nesse caso, nunca é renúncia à aventura. É antes aventura que se sabe profun-da e comedida, uma vez que, nela, o pensamento não se furta ao caminho laborioso do conceito. Com isso, ao lon-go da história da filosofia, renova-se o desafio singular de uma navegação que se pretenda exata, sem deixar contudo de alimentar-se da inexatidão mesma da vida.

Novamente somos conduzidos pelo autor ao núcleo dra-mático de um paradoxo, na medida em que exatidão e inexatidão se retroalimentam.

4. rondó e stretto: Diferentes séries de eventos atravessam esse feito discursivo

E eis aqui então o meu método: O discurso de posse na Reitoria deve ser colocado em perspectiva. Não apenas uma, mas várias. Todas as linhas de vida de João convergem neste ponto, e o constituem. Tal como na forma musical, as seções de refrão e de episódio vão construindo camadas de significação que modelam o todo.

De forma mais imediata, devemos acentuar que sendo um discurso de posse, aconteceu como (i) culminância de um longo processo eleitoral propositivo que mobilizou a Univer-sidade, que envolveu dezenas e dezenas de encontros, debates, lapidação de ideias e caminhos, plasmação de parcerias e de

Page 438: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

436 ◄◄

divergências, artimanhas e contra-artimanhas, ignição de ide-ais. E tudo isso ecoou na fala inaugural. Mas também muitas outras séries:

ii) Ora, João não tomou posse sozinho; também discursou o menino de Cachoeira, onde foi plasmado o seu modo de ver o mundo;

iii) e também o jovem recém-chegado a Salvador e mer-gulhado em descobrir o campo da vida, e o perfil cultural da cidade, o militante de esquerda no ocaso da ditadura;

iv) o estudante de economia que se descobre apaixonado pela filosofia;

v) o professor que começou pelo ensino de Lógica;vi) aquele que fez de Durkheim seu objeto de mestrado,

ou seja, que esculpiu nas Ciências Sociais seu objeto filosófico;vii) e que descobriu a paixão pelo modo de filosofar de

Wittgenstein e se afastou de Salvador para um brilhante douto-rado na Universidade de Campinas;

viii) o professor que retorna e enfrenta a lacuna histórica da construção de uma plataforma de pós-graduação em filosofia na UFBA (mestrado e doutorado);

ix) mas que também se envolve com as Pró-Reitorias de Extensão e de Pesquisa (na qual exerceu o cargo de coordenador de pesquisa da UFBA);

x) o pesquisador que se torna o primeiro presidente baia-no da prestigiosa ANpoF por dois mandatos, e após isso assu-me a presidência da Sociedade Interamericana de Filosofia;

xi) o diretor da Faculdade de Filosofia, merecedor da confiança de toda sua comunidade, não apenas pelo que fez, mas especialmente pelo que conseguiu agregar, estimular, levar a fazer;

xii) o escritor de muitos textos, autor de inúmeros percur-sos de reflexão;

Page 439: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 437

5. Primeiro Episódio: filosofia e gestão

Como dissemos, todas essas perspectivas atravessam o feito discursivo, garantindo a complexidade daquele momento.

Não se constrói um estilo de pensar impunemente. O dis-curso de posse remete a um longo processo de formação como pensador filósofo. Quando pondera sobre “o que é a UFBA”, João Carlos Salles expõe sua orientação wittgensteiniana de uma preocupação maior com as condições de construção de sentido, do que com a delimitação do campo das verdades. E eis que aponta assim para um estilo de gestão que não se apressa em ultrapassar todos os ‘nós conceituais’ que as próprias práticas de gestão fazem emergir — como se a mera eficácia pudesse curá-los. Não é bem assim, reflete João: “como se pode enxergar esse problema de forma que se torne solúvel?” — como tratar não apenas das respostas no campo da eficácia, mas também no campo do desatamento de nós, da terapia de desatar nós con-ceituais ou mesmo institucionais? Que instituição é essa, onde reside a capacidade de se reinventar o que seja uma universidade, reinventar a partir das pessoas, de sua capacidade crítica e de vinculação aos melhores ideais?

6. Refrão 2

Os valores também são células geradoras. Já menciona-mos a inteligência crítica, a coragem e o humor — humor filo-sofante, como bem mostramos.

A filosofia é escrita. E o filósofo, esse ser da palavra, nunca escreve apenas para si mesmo. A imagem do pensamento como um diálogo que, travado consigo mesmo, pudesse dispensar a linguagem, é talvez pouco mais que uma fan-tasia absurda.

Page 440: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

438 ◄◄

Da inteligência crítica para o amor à profundidade — “re-solver suas aporias, vencer indigência conceitual e preconceitos, e enfrentar, ao fim e ao cabo, o olhar enviesado dos seus leito-res...” Da coragem para a liberdade. E a liberdade é um valor político. A dimensão política da presença de João Carlos Salles. Do humor à sutileza mais fina. Em suma, os valores vão se di-versificando uns em outros.

7. Segundo Episódio: coração de filósofo

João nasceu e foi criado até os 13 anos em Cachoeira. Mu-dou-se para Salvador no começo da década de 70, sendo matri-culado no Colégio Dois de Julho. Aos poucos vai descobrindo a cidade grande e como bem fraseou Mariluce Moura em recente entrevista do BahiaCiência:

...as novas formas aventurosas de estar no mundo. Expe-rimentará um certo modo de ser hippie, a macrobiótica e uns tantos percursos até a militância estudantil e a partici-pação na Ação Popular Marxista Leninista, a AP, que al-guns jovens idealistas buscam reorganizar em 1977, depois de a organização ter sido destroçada em 1973.

Mas é também da convivência no movimento estudantil que nasce a relação frondosa com Maria Elisabete Pereira dos Santos, Bete Santos, sua alma gêmea desde 1981. Dez anos de-pois, nascerá pedro, e a família estará assim composta. Embora João Carlos Salles tenha começado seus estudos na Faculdade de Economia, foi aos poucos percebendo que seu coração batia em outro lugar, em São Lázaro. Começou Economia em 1979, e acabou filósofo em 1986. E aí acontece algo bastante espe-cial. Durante a graduação, João Carlos aproximou-se bastante do professor Ubirajara Rebouças, um dos melhores pensadores e pedagogos que a UFBA já acolheu.

Page 441: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 439

Que pessoa excepcional. Teve um papel importantíssimo na plasmação de referenciais para a Universidade que se estrutu-rava ao final do período da ditadura. Exemplo de conduta. Aten-ção para o coletivo. E eis aí um importante ponto de entrelaça-mento com o perfil de João Carlos Salles. Pois, bem sabemos, a Universidade é lugar de construção e difusão de conhecimento, e sua ferramenta mais potente é da ordem da transferência. Não há pesquisa nem ensino que se sustentem sem o amor à Causa — ponto que João mesmo registra e elabora como ninguém em seu ensaio Ubirajara Rebouças (1937-2001).

Pois então, esse professor de filosofia, mais especifica-mente de Lógica, sempre muito cioso das responsabilidades daí advindas, sempre muito respeitado por suas opiniões acadêmi-cas, e sempre muito exigente, resolve então convidar João Carlos Salles para assumir a sua disciplina. Ora, ninguém imaginaria que Ubirajara Rebouças fizesse isso, confiando sua disciplina a um jovem filósofo recém-formado.

8. Refrão 3

Aqui neste refrão, e tendo Ubirajara Rebouças como ins-piração, o valor a ser abstraído é, sem dúvida, a amizade, ou melhor, a capacidade de ser amigo, de entender o outro. Não preciso de argumentos para desfiar essa proposição — o audi-tório está repleto deles, que agora me vêem e me escutam. E, no caso, este discurso, além de recepção, também é testemunho. “A amizade como uma espécie de concórdia, mas uma concór-dia que não repousa na identidade de opiniões”3 — a amizade como plataforma de diálogo e de compartilhamento da própria diferença de perspectiva que cada um vive, amizade e respeito. Ora, todos sabem da importância da amizade para a filosofia. E bem sabemos, João é amigo e é filósofo, e com isso, não estou

3 Tal como está no Abbagnano, verbete ‘Amizade’.

Page 442: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

440 ◄◄

dizendo que ame as pessoas da mesma forma que os conceitos — muito mais os conceitos, brincando... — resto convicto de que foi o modelo da amizade que o impulsionou para a filosofia, ou seja, que o aporte dos conceitos herda em João as estruturas que foram desenvolvidas lá na cidade heroica, na relação com as pessoas e com as coisas do seu tempo.

Algum biógrafo futuro, ainda escreverá o capítulo sobre a presença de Cachoeira no modo de pensar de João Carlos Salles — deixo aqui a porta entreaberta para tal empreitada, fazendo ecoar algo da sua deliciosa crônica A máquina de escrever e o pro-gresso — Salles (2009):

Não consta do meu lattes, mas tenho diploma de datilo-grafia e mecanografia pela Escola Dactilográfica Nossa Senhora de Fátima (...) Sem muitas opções em minha terra (a Cachoeira de mais de 100 jornais) cheguei a entalhar madeira para xilogravuras, e, com o professor Raimundo, aprendi bastante bem a compor páginas para a impressão tipográfica. O trabalho árduo da composição, suspeito, in-terfere até hoje em minha escrita (...)

Obsoleto, portanto, e talvez desconfiado em demasia. De fato, se não me falha a memória, não vi lá muita graça na TV a cores. Com os aparelhos de vídeocassete, lembro que pensei: isso não vai dar certo. Depois tive a mesma sensa-ção com os CDs e, acreditem, com a União Europeia (...)

E talvez por simples apego ou puro conservadorismo re-cebo a nova da reforma ortográfica como o relato de um genocídio e me despeço do trema como se perdesse um parente próximo.

9. Terceiro Episódio: Durkheim

Bem, o fato é que não havia mestrado em Filosofia na UFBA, João caminha para fazê-lo em Ciências Sociais, com

Page 443: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 441

orientação de Ubirajara Rebouças. Retornando a esse cenário teórico em seu ensaio recente Sobre fatos e valores (Salles, 2013, p. 105-116) João comenta como Durkheim em seu Juízos de valor e juízos de realidade, “com falsa modéstia e simulada inocência”, num encontro internacional de filosofia, pretende mostrar como a sociologia “seria enfim a resposta completa a todos os proble-mas da filosofia”. A análise de João vai acabar revelando um proje-to que permitisse à sociologia “aparecer como estudo da invenção do sujeito como indivíduo, e, logo, como uma invenção superior da modernidade, que portanto representa”. E como interpreta em seguida, “um tanto a mais de positivismo (...) salga-nos e estraga a comida. Com efeito, a moral não pode ser reduzida à causalidade e a dimensão ética parece guardar independência (mesmo relativa) da produção coletiva de valores”. Parece importante salientar o quanto essa escola interpretativa de Durkheim preparou o terreno para o desafio posterior do encontro com Wittgenstein.

10. Quarto Episódio: O Doutorado em Campinas com Arley Ramos Moreno

Neste episódio vamos resgatar o João que se aproxima do doutorado, que imagina objetos de estudo, e que se aproxima de Arley Ramos Moreno como orientando na construção de sua tese, A Gramática das Cores em Wittgenstein — Salles (2002, p.22). para Moreno, trata-se

...de uma análise minuciosa e completa do tema das cores em Wittgenstein, aliás, a mais completa e minuciosa até agora publicada, que acompanha os principais passos da evolução do pensamento do filósofo a esse respeito, re-traçando, com isso, a evolução de tantos outros conceitos ligados à concepção de linguagem e de filosofia.

Há nessa declaração o atestado da integração e do diá-logo profundo entre João e Arley. E há nesses dois curiosos

Page 444: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

442 ◄◄

adjetivos — completa e minuciosa — uma leitura de carac-terísticas do próprio autor, na medida em que projeta quali-dades em sua obra. É que essa completude, esse amor pela abrangência, e ao mesmo tempo pelo detalhe, figuram como dois valores joaninos por excelência.

E sobre a aventura que Wittgenstein representa, depois de esboçar em alguns traços o “drama filosófico (...) de refle-tir sobre as relações nebulosas” entre o empírico e o inteligível, ou, para usar sua expressão, “o abismo parmediano”, acrescenta Moreno que:

...a atividade filosófica adequada à nova tarefa será conce-bida como descrição gramatical, ou, ainda, como análise conceitual a ser realizada através descrições de palavras, para exibir, ao olhar, usos dos conceitos, seus sentidos (...) a apresentação da prática conceitual com que estamos bas-tante familiarizados, mas que, frequentemente, por causa mesmo de tal familiaridade, passa-nos desapercebida.

Trata-se ainda da coragem de

(...) escapar do realismo, escapar do idealismo do sujeito puro kantiano, assim como do sujeito intencional husser-liano (...) evitando a construção de um sistema filosófico de teses a respeito dessas certezas...

Temperado pelo envolvimento nas atividades de resistên-cia ao final da ditadura, e trazendo consigo a herança de resis-tência e de desafio do povo de Cachoeira, João ingressa na filo-sofia e vai fazer sua morada nesse sofisticado movimento que se constitui em torno da ideia “de uma fenomenologia como análise conceitual”.

Page 445: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 443

11. Refrão 4

Celebra-se aqui os valores que o próprio Arley Moreno apontou: a busca polifônica de completude, portanto, abran-gência e detalhe. o traço aparece em muitos lugares, mas de-vemos aproveitar a oportunidade para apontar um outro valor, sem o qual nem uma das direções seria possível, trata-se da per-sistência. A persistência não pela persistência, e sim pelo com-promisso com a completude e a abrangência — algumas outras vezes a persistência como coragem, como decisão de empacar e não arredar pé. Essa tríade (persistência, abrangência e detalhe) acompanha a trajetória de João, como pensador, como professor e como liderança universitária. Mas, não se creia aqui, que essa engrenagem da persistência trabalhe em favor de uma visão mais e mais carregada. Bem ao contrário, o seu destino parece ser a leveza. Vejam se não estou certo, julgando pelo relato confessio-nal abaixo — Salles (2009):

Com meus amigos, vejo agora, devo ter me reconciliado com minha trajetória pessoal, tendo recuperado uma pos-sível leveza, após anos de militância política cerrada e algo carrancuda. Com eles, percebi talvez que não adiantava me cobrar tanto, pois nunca poderia mesmo, estar mais próximo do núcleo central da história do que já tinha estado outrora, quando, com quatro ou cinco anos, da janela de um sobrado em Cachoeira, fiz xixi em Carlos Lacerda e comitiva.

Teleologia e xixi numa mesma frase. Esse é o velho João.

12. Quinto episódio: João na UFBA após o doutorado (i)

A partir desse ponto, sou testemunha ocular da presença e atuação diferenciadas de João Carlos Salles na Universidade Federal da Bahia. Foi, aliás, quando nos conhecemos; quando

Page 446: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

444 ◄◄

estava como pró-reitor de Extensão da UFBA, no âmbito das atividades do programa UFBA em Campo e ACC-Atividade Curricular em Comunidade. o UFBA em Campo começou como uma forma de dinamizar a Extensão, mas acabou mos-trando ser uma luta para conceber e deixar nascer uma outra universidade, e isso numa época de vacas magras e de um ver-dadeiro desmonte da universidade pública brasileira — exigia mudar muitas coisas, porque ignorava as fronteiras tradicionais entre os ‘de dentro’ e os ‘de fora’, colocava em jogo outras dinâ-micas de relacionamento com a questão do conhecimento. Luta e movimento, diga-se de passagem, apoiados por muitos e mui-tos professores que entendiam e se solidarizam com as direções ali estabelecidas, mas também pouco entendidos e até mesmo barrados por outros.

Foi mais ou menos esse o ambiente que trouxe João Car-los Salles à Pró-Reitoria de Extensão. Ele entendeu e se solida-rizou de forma imediata com aquele movimento. Trouxe para a roda outros professores e estudantes de filosofia. Contribuiu de maneira decisiva com a formulação conceitual da Extensão:

a extensão não é sobretudo o que se faz fora, mas o lugar onde se mostra o que está dentro, onde se cifra, em suma, o que é ser Universidade. A extensão desafia a setorialida-de, solicita inteireza (...) Em suma, a extensão, decidin-do-se dentro, solicitando a quebra das especializações, é uma função definidora, porquanto ensina a Universidade a realizar sua essência e mesmo a desconhecer fronteiras.

o conceito de inteireza ainda guarda a mesma potência do tempo de sua criação — ainda exerce com sutileza sua função de desconstruir essa oposição fictícia entre o dentro e o fora, pois nos fala de uma dinâmica, do desafio de cifrar o que seja Univer-sidade, em qualquer tempo e lugar.

Page 447: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 445

13. sexto episódio: João na UFBA após o doutorado (ii)

E não basta criar, é preciso buscar reconhecimento nacio-nal e internacional. Pois é o que será claramente atingido a partir da eleição de João Carlos Salles para a presidência da ANPOF, entre 2004 e 2008, justamente uma época de consolidação do mestrado na direção da criação do doutorado.

A lista de ex-presidentes da ANpoF é bastante restrita, são cerca de dez nomes de peso tais como Bento Prado Junior, Oswaldo Giacoia, Marilena Chauí. Nenhum deles de alguma universidade do norte, nordeste ou centro-oeste, apenas João Carlos Salles, da UFBA. Esse é um feito de grandes proporções, até mesmo pois, de forma absolutamente inusitada, este presi-dente baiano da ANPOF foi reconduzido, ficando quatro anos como liderança da área. Claro que para quem assistiu os Encon-tros da ANPOF aqui realizados, nas dependências do Centro de Convenções do Othon, a presença estonteante de filósofos por toda a parte, centenas de trabalhos apresentados, encontros diversos, intensa programação cultural — para quem viu tudo isso, a escolha foi bastante previsível.

E o curioso é que só depois de testado nessa arena na-cional, mostrando-se capaz de articular todo esse movimento, é que João Carlos Salles assume a diretoria de sua Unidade, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas — um lugar re-conhecido por todos na Universidade como de difícil admi-nistração, com uma área enorme a manter, com vizinhanças diversificadas, e internamente com diversos núcleos distintos de interesse acadêmico.

pouco a pouco, as feições de FFCH foram sendo trans-formadas. A face mais visível estava no próprio território de São Lázaro, novas edificações, ambientes de natureza univer-sitária, convivência mais tranquila. Porém, o melhor indicador aparece durante o processo eleitoral para reitor da UFBA. Não

Page 448: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

446 ◄◄

apenas pela votação maciça que aquela Unidade trouxe para a eleição de João, mas também pelos diversos depoimentos prestados, que davam conta de um diretor que não se opunha à diferença, que articulava grupos de pensamento e orientação muito distintos, encontrando pontos comuns de interesse e de articulação. Esse, assim me parece, o ponto mais importante de toda esta conjuntura.

14. Refrão

Na pauta dos valores, o que temos aqui é justamente essa capacidade de agregação, e uma atitude que projeta o ego não como plataforma de si mesmo, e sim como plataforma de algo mais. Mas, bem sabemos, essa capacidade de agregação não é algo solto que se estabelece por si mesma — responde a valores maiores ainda, o respeito à liberdade de pensamento, e sen-do assim, a ética como fio narrativo que tece tanto o cotidiano como a longa duração.

15. Sétimo Episódio: filosofia e escritura, o cerne da questão

Estamos aqui reunidos em torno da ideia do nosso funda-dor Arlindo Fragoso— ‘o encontro das literaturas’. Ora, quem quiser estudar e abordar de perto esse encontro entre filosofia e escritura, que é um dos grandes temas que perpassam a obra de João Carlos Salles deve ler com todo cuidado o ensaio “Ubi-rajara Rebouças (1937-2001)”, incluído em sua coletânea Secos e molhados (2009). É que ali, esse emaranhado de relações, esse conglomerado de atrações e repulsas (na medida em que filoso-fia e cultura não formam um amálgama, como nos diz o próprio João), portanto, essa plataforma de comércio e estranhamento entre filosofia e escritura ganha um contorno muito especial, pois tingida pelo valor da memória que pretende exaltar, pela

Page 449: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 447

amizade, pela gratidão e pelo dever, afinal é um filósofo que homenageia outro. João traça com linhas de vai e vem o perfil de seu querido mestre:

Militante e analista sensato; coerente e constante em sua paixão marxista, mas leitor fiel de Aristóteles e de toda fi-losofia; idealista, malgrado eventuais fracassos; administra-dor, quando preferiria talvez o recolhimento da leitura (...)

Misto de combatente e de apaixonado, de ser forte e frágil, a Ubirajara nenhuma imagem parcial calharia por comple-to, despertando-lhe antes o riso. Sabia-se difícil, quando todos nós também o sabíamos fácil, gregário, acolhedor (...)

Ubirajara foi militante. Sobrepunha à sua trajetória pessoal seu compromisso com a causa, quer do socialismo, quer da Universidade.

João enfrenta o desafio de dizer o que é uma pessoa! O que descrevo, um tanto aligeiradamente como ‘vai e vem’, é essa técnica de construir um painel de imagens e de referências, de organizar um turbilhão de experiências dinâmicas (estados de coisas?!) como polifonia linear no discurso.

Filosofia e escritura, eis assim, o nome dessa avenida de interlocução, e ao mesmo tempo essa interface de criação que abre um sem número de temas que habitam a obra em tela, e que mesmo os poucos exemplos absorvidos por este discur-so já fazem pesar o suficiente. Mais instigante ainda: no lado filosofia do binômio, é de filosofia da linguagem que estamos tratando. Se alguém é reconhecido como tendo produzido a mais completa e minuciosa abordagem de certos escritos do grande filósofo da linguagem dos nossos tempos, o que dizer dos critérios que passa a abrigar em sua própria escritura? Eis a questão.

Page 450: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

448 ◄◄

João Carlos Salles já publicou 27 artigos em revistas aca-dêmicas, tendo iniciado em 1989. Também publicou seis livros: O claro e o obscuro (1989), a Filosofia de Durkheim (1998), A gramáti-ca das cores (2002), O retrato do vermelho e outros ensaios (2006), Secos e molhados (2009), O cético e o enxadrista (2012), além do estabele-cimento de texto, tradução e notas das Anotações sobre as cores de Ludwig Wittgenstein (2009). São também 13 livros organizados e 20 capítulos de livros. para arredondar tudo isso, recorremos ao próprio autor, quando diz:

Mesmo quando me aproximo da lógica, mesmo quando me inicio nesse processo pela visão de Wittgenstein, que me ajuda nos trabalhos de lógica, o que tenho é uma apro-ximação marcada por um cuidado intenso com a palavra. Recentemente, soube que meu orientador de doutorado, Arley Moreno, em um colóquio, mencionou esse contato entre poesia e argumentação em meus textos. Esse contato é característico e estranho, e muito contente e grato com a menção de Arley, devo admitir que, para o bem e para o mal, ele tem razão (...) Acho que é isso que me faz agora membro da Academia de Letras da Bahia.

16. sétimo episódio: Chegada e permanência na ALB

Como poderia esta Casa, cuja missão é de representação da cultura, pelo viés do encontro profícuo entre literaturas, al-mejar a abrangência sem a presença da Filosofia? Mesmo sem le-var em conta as qualidades que a produção de João reverbera, há entre nós a necessidade da presença da Filosofia — assim como da História, da Arquitetura, da Religião, das Artes, da Psicanálise e da própria Teoria da Literatura — tudo isso como construção das letras, e também como diálogo com o veio da arte literária.

precisamos renovar a nossa capacidade de responder, do ponto de vista complexo desse encontro de literaturas, o que é, e o que pode ser cultura, o que pode ser cultura na Bahia. Se

Page 451: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 449

tivemos um passado rico de possibilidades, e tivemos também cristalizações de respostas que se transformaram mesmo em plataformas do imaginário da Bahia, afetando a tudo e a todos, o que dizer de hoje, e de amanhã? Que espécie de imaginário devemos ajudar a construir dessa Bahia que herdamos das gera-ções passadas, no momento em que esta Casa se avizinha de seu centenário, em 2017, momento de celebração do passado, mas também, de forma especial, momento de projetar o futuro, de imaginar os próximos cem anos.

Mais ainda comparece quando levamos em conta que também estamos diante do reitor, e que, no que diz respeito aos próximos quatro anos, estamos também lidando com a questão da ligação e diálogo entre Academia e Universidade. Que ave-nidas de diálogo se oferecem como oportunidades de criação nessa interface? Que interessante perspectiva de construção de sinergia, e de realização de altos estudos!

17. oitavo episódio: Conclusão, último refrão.

Pois então, acadêmico João Carlos Salles, sinta-se acolhido por esta Casa que o recebe com o mais alto apreço por aquilo que você produziu e por aquilo que você representa. De to-dos os valores que atravessaram esse discurso, dois deles fica-ram guardados esperando o momento oportuno. para além da coragem, da inteligência, do humor, da persistência, e de todas as coisas aqui mencionadas, há um valor que norteia o seu cami-nho. Falo da utopia e o cito mais uma vez:

O sentimento utópico é, então, simples: biscoito fino para todos!

A utopia lógica da incompletude da própria filosofia, o sonho de uma universidade de excelência e popular, a luta por uma sociedade menos desigual e menos injusta. A utopia que

Page 452: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

450 ◄◄

é também amor da emancipação, do outro e de si mesmo. E, sendo assim, não se trata de um valor isolado, que sonha com coisas impossíveis. Não, é sonho que se sonha junto, é trama para construir novas realidades, e é, sobretudo, uma espécie de alegria que comparece em muitos pontos de sua trajetória, e que foi tão bem expressa em sua recente formulação — “a ale-gria de ser UFBA”, e a partir deste momento, a alegria, nossa e sua, de pertencer a esta Casa quase centenária, de participar do seu destino. Portanto: Viva João Carlos Salles! E viva a Acade-mia de Letras da Bahia!

REFERÊNCIAS

SALLES, J. C. A gramática das cores em Wittgenstein. Campinas, UNI-CAMp, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2002.______ . O retrato do vermelho e outros ensaios. Salvador, Quarteto Edi-tora, 2006.______ . Secos e molhados. Salvador, Quarteto Editora, 2009.______ . O cético e o enxadrista: significação e experiência em Wittgenstein. Salvador, Quarteto Editora, 2012.“Um filósofo quer sacudir a Universidade”, entrevista de João Carlos Salles a Mariluce Moura, BahiaCiência, disponível em http://bahia-ciencia.com.br/2014/10/um-filosofo-quer-sacudir-a-ufba/ , acessado em 17.11.2014.4

Paulo Costa Lima é músico, compositor, pesquisador, escritor e pro-fessor. Foi diretor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, pró-reitor da UFBA e presidente da Fundação Gregório de Mattos. publicou cinco livros e vários artigos e ensaios. É membro da Academia Brasileira de Música e da Academia de Ciências da Bahia. Desde 2009 ocupa a Cadeira número 8 da ALB.

Discurso de recepção ao acadêmico João Carlos Salles, empossado na Cadeira número 32, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 6 de novembro de 2014.

Page 453: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 451

EDIVALDo M. BoAVENTURAoitenta anos do acadêmico

luís Antonio CAJAzeirA rAmos

Meu chanceler.Estamos diante de um incômodo dilema. O que esperar

de um discurso de celebração dos 80 anos de idade de alguém? Creio que todos pediriam ao orador que, de forma criativa e agradável, lembrasse em breves palavras a genealogia da pes-soa festejada, suas raízes socioculturais, sua formação escolar, um pouco de sua vida privada e muito de sua vida pública, as escolhas acadêmicas, os caminhos profissionais, a produção in-telectual, as inserções institucionais, as intervenções sociais, as realizações. Mas nosso homenageado é Edivaldo M. Boaven-tura. Eis aí o problema. Se eu for sumariar, apenas sumariar, listar as realizações do bem-venturoso confrade, inescapavel-mente eu ocuparei ou mesmo ultrapassarei o tempo razoável pelo qual deve estender-se um discurso de qualquer natureza. Como contornar esse problema? Como vencer a encruzilha-da? Sinceramente, não sei. Na dúvida, prefiro afastar-me da via meramente curricular; ignoro o caminho fácil de agradar os ouvintes com eventuais causos pitorescos de sua aventura de vida; preservo-me de seguir a oportunista pista de minha re-lação pessoal com o dileto amigo; e escolho avançar pela bem sinalizada estrada suavemente retilínea de sua rica, proveitosa e admirável biografia. Resumidamente, é claro, superficialmente, em pequenos saltos, até onde o fôlego nos conduza.

Edivaldo Machado Boaventura nasceu em Feira de Santa-na, em 10 de dezembro de 1933. Nasceu, portanto, onde nasce

Page 454: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

452 ◄◄

o sertão. É o mais velho dos quatro filhos do Sr. Osvaldo Abreu Boaventura e da Sra. Edith Machado Boaventura. Seu osval-do foi um bem-sucedido empresário feirense no comércio e na pequena indústria, trazendo no sangue não somente a capaci-dade empreendedora do pai, o negociante e gestor municipal José Alves Boaventura, entusiasmado presidente da Sociedade Filarmônica 25 de Março, como também a tenacidade da mãe, dona Lídia Abreu de oliveira Boaventura, a amada e idolatrada avó Dinda, cuja altivez de notável figura feminina, que se des-tacava na sociedade local, marcou a infância do neto Didi. A mãe de Edivaldo, dona Edith, herdeira de ricas e tradicionais famílias dos municípios de Castro Alves e de São Gonçalo dos Campos, era professora primária e uma dedicada e ilustre cola-boradora de instituições religiosas e sociais de cunho caritativo, estendendo para a ação comunitária a piedade e a fé transmiti-das pela mãe, a austera dona Amélia Barreiros Machado, viúva de João Sampaio Machado.

De início, osvaldo e Edith residiram numa casa simples da praça da Catedral, mudando-se depois para a praça da Re-pública, fixando-se a seguir numa chácara próxima ao estabele-cimento comercial do chefe da família. Na amenidade de uma vida familiar sem sobressaltos, honesta, coesa, amorosa, amis-tosa, participativa, laboriosa e tenaz, formou-se a personalidade de nosso Edivaldo, sob o constante apoio, companheirismo e incentivo do pai e o exemplo especular de uma mãe educadora e amante da leitura, que conciliava a vida familiar e suas ações pedagógicas de cidadania e amor ao próximo.

o universo da primeira metade da infância foi para Didi a casa da Praça da Catedral e suas vizinhanças. No jardim de infância da Escola Normal Rural, esteve sob os cuidados da professora Amelinha Simões, prima de seu pai. Tratando-se de Edivaldo M. Boaventura, o fato mais marcante desses anos não foi outro senão um ato cívico: o plantio de uma muda no dia mundial da árvore, no Horto Froes da Mota, na Rua da Aurora,

Page 455: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 453

naquele 21 de setembro que abria a primavera de seus cinco ou seis anos de idade. A alfabetização, iniciada em casa pela mãe, foi retomada e concluída pela persistente madre alagoa-na Maria Nazaré Andrade na escola primária do Asilo Nossa Senhora de Lourdes, o antigo orfanato do padre ovídio Alves de São Boaventura e sua irmã Teolinda, que fora ocupado em 1903 por freiras sacramentinas francesas e era mantido pela irmandade. Madre Nazaré também iniciou o pupilo no ofício de coroinha, para acompanhar a missa do padre Mário pessoa na capela da instituição.

A infância se completou na residência da praça da Repú-blica, a poucos passos da escola. A Segunda Guerra Mundial acontecia bem ali em frente de casa, com soldados recebendo treinamento militar na praça, o armazém de fumo transmudado em quartel, casas ocupadas pelo exército, a cidade alvoroçada pelas fardas e armas e pela excitação de notícias das terras beli-gerantes e longínquas, no auge ufanista da ditadura Vargas. En-quanto isso, nosso infante seguia o curso primário, tumultuado por problemas hepáticos que o levariam a perder o ano em 1942. Desligou-se da escola sacramentina e passou a estudar na esco-la da professora Helena de Assis Suzart. Em 1946, no último semestre letivo do curso primário, seu pai matriculou-o como interno do Colégio Antônio Vieira, em Salvador. No final do ano, prestou o concurso de admissão ao ginásio, sendo aprova-do, permanecendo na instituição jesuíta.

Desde 1943, no início de sua puberdade, sua família se mudara para a espaçosa, ventilada, arborizada, aprazível e distan-te chácara. A partir de 1946, a adolescência dividia-se entre os estudos em Salvador e as férias escolares em sua querida Feira de Santana. Se nas férias o rapazote renovava os vínculos da amiza-de e da vida social no Feira Tênis Clube, então dirigido por seu genitor, no colégio o estudante despertava definitivamente para o cultivo do binômio que até hoje norteia sua vida: o livro e a leitura. É dessa época, por incentivo do padre Campos, o salto

Page 456: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

454 ◄◄

do prazer das leituras infantis para a admiração por Humberto de Campos, José de Alencar, Ferreira de Castro e o poeta de sua vida inteira: Castro Alves. Por influência do erudito padre Ma-riano pinho, estabeleceu contato com a literatura portuguesa de Camões, Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Guerra Junqueiro e do baiano Rui Barbosa.

As bases intelectuais, morais e religiosas firmadas no am-biente familiar dos Boaventura foram reforçadas no Colégio Antônio Vieira, instituição criada em 1911 por padres jesuítas expulsos de Portugal durante o período em que reinava um ex-plosivo sentimento anticlerical na nascente república lusitana. O jovem Edivaldo recebeu dos padres portugueses uma sólida formação filosófica e científica de matiz humanista, bem como se deixou impregnar pela doutrina católica dos jesuítas, vindo daí, talvez, sua afinidade com o papel de educador como uma verdadeira catequese pedagógica e uma missão de vida. Tam-bém participou ativamente da vida escolar extraclasse. Além de experiências no coral e no teatro, dirigiu o grêmio estudantil, garbosamente denominado Academia Vieirense de Letras, e integrou duas instituições vinculadas à igreja, a Congregação Mariana e a Juventude Estudantil Católica. Desses tempos do Vieira, que vão desde o final do primário à conclusão do curso colegial, de 1946 a 1953, nosso eterno estudante guarda lem-branças imantadas na memória e algumas amizades duradou-ras, como Paulo Ormindo de Azevedo, Ângelo Calmon de Sá e o saudoso compadre Luiz Navarro de Britto. É ainda nessa época que brota o interesse e a admiração pela cultura por-tuguesa, enraizando fundo e projetando frutos do insuspeito amor a portugal.

Nosso disciplinado e prestante cidadão aceitou de bom grado cumprir o serviço militar obrigatório, facilitado pela op-ção de frequentar o Centro de Preparação de Oficiais da Reser-va, a elite dos alistados, por estar cursando o ensino médio. Sem dúvida, a conscrição foi um alento a seu espírito cívico e uma

Page 457: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 455

experiência intensa de aprendizado de valores e práticas úteis à vida cotidiana. por outro lado, porém, as obrigações da caserna foram um transtorno em sua formação escolar. Frequentou o quartel por dois anos, o primeiro deles paralelamente ao ter-ceiro ano colegial. Premido pela jornada estafante, não obteve classificação no vestibular para o curso de direito. Incontinenti, prestou novos exames e cursou um ano de ciências sociais na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da jovem Uni-versidade Federal da Bahia, conjuntamente com a conclusão do CPOR. No ano seguinte, ingressou na tão almejada Faculdade de Direito, centro das tradições liberais republicanas e fórum do caloroso embate de pensamentos e correntes ideológicas da juventude baiana.

Ser aluno da UFBA nos cursos de ciências sociais em 1954 e de direito entre 1955 e 1959, durante o inigualável reitorado de Edgard Santos, foi um dos mais expressivos privilégios de sua trajetória. O magnífico professor-gestor não apenas fundou a universidade, como também ampliou seus horizontes acadê-micos com novos cursos e revolucionou a relação da instituição com os alunos, dando primazia aos cuidados com o corpo dis-cente, a tal ponto que, ironia das ironias, terminou sendo des-tituído do cargo, pressionado pelas organizações estudantis. A Faculdade de Direito era dirigida com não menos brilho pelo professor e vice-reitor Orlando Gomes, que conduziu com firmeza ímpar a federalização da tradicional escola jurídica, a construção da nova sede no bairro do Canela, a organização da biblioteca com ampliação do acervo, a modernização do curso e a criação do doutorado, dentre outras realizações.

Em recente e ainda inédita entrevista ao jornalista Sér-gio Mattos, nosso bacharel revela que o curso de direito lhe foi uma incomensurável alegria, um verdadeiro deslumbramento. Esse relato encantado inicia-se pela citação nominal dos mes-tres. Logo no primeiro ano, Nelson Sampaio, Josaphat Mari-nho, Adalício Nogueira, Aloysio de Carvalho Filho, Aderbal da

Page 458: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

456 ◄◄

Cunha Gonçalves e Augusto Alexandre Machado, aos quais se seguiram, a cada ano, até a formatura, outros venerandos cate-dráticos, como pedro Manso Cabral, Carlos Fraga, Antônio Ma-tos, Elson Gottschalk, Lafayette Pondé, Gilberto Valente, La-fayette Spínola, Luiz de pinho pedreira da Silva, Albérico Fraga, Adhemar Raimundo da Silva, Auto José de Castro e o médico Estácio de Lima.

O pensamento, o comportamento e a vocação de Edi-valdo M. Boaventura ganharam feições definitivas na renovada Faculdade de Direito da Bahia. Não se furtou a participar da União dos Estudantes da Bahia e da União Nacional dos Es-tudantes, constituindo um grupo de nacionalistas com Nailton Santos, Antônio Cabral de Andrade, Raimundo Bonfim, rela-cionando-se com as lideranças estudantis de todas as vertentes ideológicas da época, cujo palco era o Centro Acadêmico Rui Barbosa. De um lado, Gabino Kruschewsky, Jorge Medauar, Nemésio Sales e, de outro, Eliel Martins, Mário Albiani, Remy de Souza. Nada, porém, o afastava da independência e da no-ção da justa medida que até hoje orientam seus passos. Trouxe para o ambiente acadêmico a militância religiosa do movimen-to Ação Católica, juntamente com os colegas Margarida Silva Costa, Edna Saback Cohim, Carlos Brandão da Silva e estu-dantes de vários cursos, como Leão Gomes de ciências econô-micas, Elza Figueiredo e Moema Parente de filosofia, Haroldo Lima de engenharia, o seminarista José Hamilton Barros e tan-tos outros, chegando a ser um dos coordenadores da Juven-tude Universitária Católica até a formatura. Depois de diplo-mado, afastou-se da Ação Católica, de cujo seio se alimentaria a Ação Popular, movimento político de ativa participação na resistência ao regime militar.

A vida de estudante de direito foi pontuada por diversos envolvimentos acadêmicos. Frequentador assíduo da bibliote-ca, tornou-se amigo da bibliotecária Esmeralda Maria de Ara-gão, a quem credita os fundamentos de seus conhecimentos no

Page 459: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 457

campo da pesquisa e das referências bibliográficas. No penúlti-mo ano do curso inscreveu-se como solicitador acadêmico da ordem dos Advogados do Brasil. Nesse mesmo ano de 1958, foi o orador da entrega da beca de desembargador ao profes-sor Aderbal da Cunha Gonçalves, ofertada pelos estudantes, inaugurando assim sua festejada verve de orador oficial de tan-tas e quantas instituições às quais cumulativamente se vincula. No ano da formatura, estagiou na procuradoria Regional do Trabalho, o que já sinalizava sua futura atividade profissional como juiz do trabalho concursado desde o ano seguinte. Fez um segundo estágio na Comissão de Planejamento Econômi-co, criada por Rômulo Almeida, e o curso de Introdução aos problemas do Brasil, coordenado por Machado Neto para o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, diversificando assim seus interesses acadêmicos e profissionais.

Seu primeiro artigo publicado foi “Cidade e habitação: aspectos teóricos e verificação da problemática habitacional da cidade do Salvador”, incluído na 14ª edição da revista Ângulos, em 1959, ao qual se seguiram colaborações relacionadas ao en-quadramento sindical e outros tópicos de direito do trabalho. A revista Ângulos foi e ainda é uma publicação dos acadêmicos de direito da UFBA. Foi criada para fomentar e divulgar a pro-dução científica, opinativa e literária dos estudantes, revelando nomes como Florisvaldo Mattos, João Ubaldo Ribeiro, Glau-ber Rocha, David Salles, Jair Gramacho, Fred Souza Castro, Jomard de Britto, Geraldo Fidelis Sarno, Navarro de Britto, João Eurico Matta e outros mais que viriam a ser expressivos autores das letras baianas.

A formatura da Turma Clóvis Beviláqua foi em 10 de ou-tubro de 1959, na semana seguinte ao centenário do jurista e filósofo positivista cearense, filho de padre como o conterrâneo José de Alencar e autor do projeto do antigo e longevo Códi-go Civil Brasileiro. Edivaldo Machado Boaventura foi o orador ao paraninfo Aderbal da Cunha Gonçalves. Naquela cerimônia

Page 460: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

458 ◄◄

inesquecível, em que o orador honrava a escolha da turma pelo querido e admirado professor de direito civil, seus olhos mareja-dos de emoção buscavam apoio na incontida felicidade dos cole-gas Gabino Kruschewsky, Eliel Martins, Sônia de Aguiar Nunes, João Américo Bulcão Fróes, Remy de Souza, Maria José de Oli-veira, Lúcia oliveira Angeiras, Wenceslau Unapetinga, Nemésio Sales, Thomas Bacelar, Rômulo Galvão, José Osório Reis, Ade-mar Martins Bento Gomes, Frederico Augusto Lassère, Rogério Rego, Joaquim Artur Pedreira Franco, Raimundo Medrado Pri-mo, Eurípedes Brito Cunha, Juracy Magalhães Júnior.

Em 1960, imediatamente após o encerramento da gra-duação, começou a advogar, abraçou a docência na Escola de Serviço Social da Bahia, que logo seria incorporada à Univer-sidade Católica de Salvador, iniciou o doutorado pela livre-do-cência da UFBA, foi aprovado no concurso para juiz do tra-balho, passou a escrever com frequência no Jornal da Bahia, associou-se ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, e chegamos, meu chanceler, às inúmeras bifurcações da estrada biográfica que escolhi sobrevoar com este monomotor de li-mitada autonomia de voo que conduz minha pena. Resta-me pousar no meio da encruzilhada e externar minha perplexida-de. Ecce homo. por onde vou? Que senda trilhar? Como tecer num único cordel tamanha vida?

Minha primeira e óbvia escolha é pôr os pés no chão, pegar um veículo terrestre qualquer e dirigir-me à continua-ção de seus estudos, ora vertidos à pesquisa e à publicação de textos e livros. A confreira Edith Mendes da Gama e Abreu, no discurso de saudação quando da posse de Edivaldo M. Boa-ventura na Cadeira 39 deste sodalício, não conteve a admiração pelo precoce talento culto e pela gloriosa exceção de seus ina-creditáveis mais de cinquenta trabalhos e títulos já publicados nos escassos 37 anos de idade. Hoje sua obra são volumes e volumes de uma enciclopédia de humanidades, com estudos das ciências do direito, da economia, da filosofia, da política,

Page 461: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 459

da sociologia, da administração, da pedagogia, da educação, da literatura, da memória, dos relatos de viagens, do universo da cultura de um entusiástico cosmopolita.

Volto ao entroncamento para pegar a bifurcação da via dos estudos, que avançaram em novas titulações acadêmicas. O doutorado na UFBA com a tese “Incentivos ao desenvolvimen-to regional”, os cursos na Universidade de paris e no Instituto da América Latina, a participação na Escola de Verão de Harvard, iniciando o relacionamento com universidades dos Estados Uni-dos e do Canadá, o estágio no Instituto Internacional de plane-jamento da Educação, vinculado à Unesco, a realização do mes-trado e do doutorado em educação pela Universidade Estadual da Pensilvânia, respectivamente com a dissertação “A estrutura legal da educação brasileira” e a tese de PhD “Um estudo das funções e das responsabilidades do Conselho Estadual de Edu-cação da Bahia, Brasil, de 1963 a 1975”, e o pós-doutorado na Universidade de Quebec.

Um desvio paralelo à pista principal revela outras titula-ções de natureza associativa e honorífica. É membro de quase todas as academias e agremiações culturais do estado, como a Academia de Letras, a Academia de Letras Jurídicas, a Academia de Educação, a Academia de Ciências, o Instituto Genealógico e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. É membro do Ins-tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia Brasileira de Educação, da Academia Portuguesa da História, da Ordem do Santo Sepulcro e da Confraria da Barraida de portugal. É doutor honoris causa da Universidade Estadual da Bahia e foi dis-tinguido com incontáveis prêmios, troféus, comendas e meda-lhas, como a Machado de Assis, a Maria Quitéria, a do patriarca e a da Cruz de Malta, além de títulos de cidadão honorário de vários municípios da Bahia.

Inevitavelmente, perco-me no intricado de suas ativida-des profissionais. Desisto de entender o fluxo desse trânsito e enfrento resignado o congestionamento de trabalhos sucessivos,

Page 462: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

460 ◄◄

superpostos, aparentemente díspares, porém integrados, com re-sultados eficazes e duradouros. Acho uma brecha, disparo em ve-locidade e avanço todos os sinais: foi advogado, juiz do trabalho, técnico de desenvolvimento econômico da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, professor de direito adminis-trativo, de direito constitucional, de ciência política, de ciência das finanças, de economia política, de direito social, de estru-tura e funcionamento do ensino, de metodologia da pesquisa, na Escola de Serviço Social da Bahia, na Escola de Administra-ção, na Faculdade de Direito, na Faculdade de Educação, im-plantou a assessoria de planejamento da reforma universitária no reitorado de Roberto Santos, ajudou a fundar a Faculdade de Educação, foi membro e presidente do Conselho Estadual de Educação, foi secretário de educação e cultura no governo de Luiz Viana Filho, iniciou as escolas polivalentes, implantou as faculdades de formação de professores, concluiu os centros integrados de educação, participou da criação da Universidade Estadual de Feira de Santana, criou o Parque Histórico Castro Alves, integrou e coordenou o programa de mestrado em edu-cação da UFBA, participou da criação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, trabalhou com sistemas e estruturas de ensino, planejamento, metodologia da pesquisa e história da educação, foi membro do Conselho de Coordenação da UFBA, compôs e presidiu a Câmara de Ensi-no de Pós-Graduação e Pesquisa, voltou a dirigir a Secretaria de Educação no governo de João Durval Carneiro, promoveu a interiorização da educação superior estadual, criou e dirigiu a Universidade do Estado da Bahia, impulsionou a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, apoiou a criação da Universi-dade Estadual de Santa Cruz, aumentou consideravelmente o número de escolas e expandiu a educação básica, implantou os estudos africanos na escola baiana, criou o Parque Estadual de Canudos, coordenou a criação do doutorado em educação da UFBA, foi diretor-geral do jornal A Tarde, onde assinou

Page 463: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 461

por muitos anos a coluna Educação, ensina e orienta pesquisa no programa de mestrado e doutorado em desenvolvimento regional e urbano da Universidade Salvador e no mestrado in-terdisciplinar da Fundação Visconde de Cairu. Com mais de 50 anos de magistério, continua ensinando e orientando teses e dissertações.

Freio bruscamente para não cair no imponderável abismo do futuro. Olho para trás e vejo um país de realizações. Invade-me um misto de tristeza e saudade, alegria e júbilo, conforto e gratidão. Neste momento, rememoro passagens do discurso de posse de nosso camarada na cátedra de Francisco de Castro e de Clementino Fraga neste silogeu, ao dirigir a juventude de sua palavra ao presidente José Calasans. Logo na abertura, re-vela os dois primeiros impulsos fortes, ardentes e irresistíveis experimentados pela consciência: ser universitário e tornar-se acadêmico. Tomo a liberdade de afirmar inarredavelmente que a Academia de Letras da Bahia é o segundo lar de Edivaldo M. Boaventura. Membro efetivo, atual vice-decano, membro ben-feitor, ex-presidente, ele é a expressão viva e mais evidente do binômio de valores que devem orientar o mandato vitalício de um membro desta casa: memória e convivência.

Livro e leitura, universidade e academia, memória e con-vivência fazem dele um ícone do binômio que melhor se lhe ajusta: educador e cidadão do mundo. A Bahia e o mundo, terras lusófonas e culturas estrangeiras. Edivaldo M. Boaventura traz a cidade dos homens no espírito e o sertão no coração.

Num último apelo, tentando fazer-me levitar na invisibi-lidade, pisando em pétalas de rosas sem feri-las, invado timi-damente, respeitosamente, a trilha conjugal de nosso amoroso confrade. Testemunho a beleza da jovem estudante de letras Solange sendo cortejada pelo fascinado acadêmico de direito, ouço o pedido oficial de noivado dirigido ao Sr. Pedro Tenório de Albuquerque, sento-me ao lado do casal no sofá do futuro sogro, faço coro aos hinos litúrgicos e aos cantos corais na

Page 464: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

462 ◄◄

missa matrimonial celebrada por Dom Jerônimo de Sá Caval-cante no Mosteiro de São Bento, brindo aos recém-casados e... paro por aqui. Mais de 50 anos depois, o amor se reafirma diu-turnamente e renasce a cada manhã. Minha chanceler Solange do Rego Boaventura é a companheira que confirma a máxi-ma do grande homem. Da filha mais velha, a administradora e educadora Lídia, assim batizada pela saudade da avó Dinda, sou amigo há pouco tempo. Do filho do meio, o publicitário, ator e cantor Daniel, sou um de seus inumeráveis fãs. Não conheci o mais novo, o veterinário Pedro, filho amado, brutal-mente apartado desta vida, uma chaga aberta no coração dos pais e dos irmãos. E por enquanto são quatro netas, que lhe garantem a mais nobre das virtudes ensinadas pelo mestre dos mestres: a esperança.

Só eu me vejo desesperançado e prostro-me impotente diante da impossível tarefa a que me propus. A vaidade e a es-tultice fizeram-me acreditar que em rápidas palavras eu seria ca-paz de esboçar a vida assombrosamente plena dos oitenta anos vertiginosos de nosso homenageado. Meu consolo é que falhei onde qualquer um falharia. Num ímpeto, eu ensaio um acanha-do pedido de desculpas a meu chanceler, aos doutos ouvintes, a tantos amigos aqui presentes, mas as palavras morrem sem coragem antes de ser pronunciadas. Volto-me suplicante para o improvável outro e peço ajuda. Logo eu, um impenitente ateu. Finjo-me de místico e aposto na cordial tolerância do bona-chão Edivaldo, para com minha imaginação despachar um ebó no olho dessa engrisilha, que abrisse os caminhos e revelasse o mistério de sua interdisciplinaridade. Um galo velho que ainda canta, uma farofa de maturi, uma garrafa do melhor tinto. Mas a verdade é que eu me sinto pobre no uso do artifício retórico de divisar um caminho cheio de bifurcações, numa desajeitada alegoria por sobre a tão batida metáfora da estrada da vida e que tão, tão somente disfarça minhas limitações e a claudicante didática de minha explanação.

Page 465: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 463

E logo ali, diante de nós, serenamente, sabiamente, per-manece Edivaldo M. Boaventura, com o olhar modulador com que se doa, desvendando o sorriso da vida, na integridade una e indivisível de seu caminho, seu único caminho, desde cedo iluminado pelo Espírito Santo.

O que haveria de mais brilhante?Muito obrigado.1

Luís Antonio Cajazeira Ramos é poeta, analista do Banco Central do Brasil e advogado. publicou cinco livros de poesia: Tudo muito pouco (1983), Fiat breu (1996), Como se (1999), Temporal temporal (2002) e Mais que sempre (2007). participa de diversas antologias de poesia publicadas no Brasil, em portugal e na França, inclusive com poemas traduzidos para o espanhol, o inglês, o francês e o alemão. Colabora com poe-mas, resenhas e outros artigos em revistas literárias e jornais. Recebeu menção honrosa no Prêmio Nacional Cruz e Sousa da Fundação Ca-tarinense de Cultura em 1998. Foi o vencedor do prêmio Nacional Gregório de Mattos da Academia de Letras da Bahia em 2000. É sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sócio fundador da As-sociação Amigos do Teatro Castro Alves. Desde 2012 ocupa a Cadeira número 35 da Academia de Letras da Bahia.

Discurso em homenagem ao octogésimo aniversário do acadêmico Edivaldo M. Boaventura, proferido no Salão Nobre, em sessão espe-cial da Academia de Letras da Bahia no dia 25 de março de 2014.

Page 466: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 467: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

DIVERSoS

Page 468: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 469: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 467

efemérides 2014

Janeiro

22 — Luto oficial pela morte da acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento, ocupante da Cadeira número 3. Diante do corpo, falou, em nome da Academia de Letras da Bahia, o presidente Aramis Ribeiro Costa.

Março

05— Luto oficial pela morte do acadêmico Gerson Pereira dos Santos, ocupante da Cadeira número 32. Diante do corpo, falou, em nome da Academia de Letras da Bahia, o presidente Aramis Ribeiro Costa.20— 18hs. —Sessão especial de abertura do novo ano acadêmi-co, com a presença do secretário de cultura do Estado da Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim, compreendendo a solenida-de: 1) palavras iniciais do presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa. 2) Inauguração, no Auditório Ma-galhães Neto, Salão Nobre da instituição, da Placa dos Fundado-res da Academia de Letras da Bahia, sendo orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. 3) Registro do centenário, em vida, de nascimento do acadêmico Clóvis Álvares Lima (11-03-1914/11-03-2014), ocupante da Cadeira número 22, sendo orador o aca-dêmico Aleilton Fonseca. 4) Lançamento do Anuário da Acade-mia de Letras da Bahia, 02/2014.25 — 17hs. — Sessão especial em homenagem aos 80 anos de vida do acadêmico Edivaldo M. Boaventura, sendo orador o aca-dêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos. Após a sessão, ocorreu o

Page 470: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

468 ◄◄

lançamento do livro Portugal, um denso país, pela Quarteto Editora, de autoria do acadêmico homenageado.26 — 16hs. — Lançamento do Selo Editorial João Ubaldo Ri-beiro, no Auditório Magalhães Neto, pela Fundação Gregório de Mattos, órgão vinculado à Secretaria de Desenvolvimento, Turismo e Cultura da prefeitura de Salvador. Foram oradores o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o presidente da Fundação Gregório da Mattos, Fernando Guerreiro, o secretário de Desenvolvimento, Turismo e Cultura de Salvador, Guilherme Bellintanni, senhora Emília Ribeiro, fi-lha do escritor e acadêmico homenageado, João Ubaldo Ribeiro, representando o pai, ausente do país, e o prefeito da Cidade do Salvador, Antônio Carlos Peixoto de Magalhães Neto. Compôs ainda a mesa a vice-prefeita, Célia Sacramento.27 — 17hs. — Sessão ordinária regimental a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Luís Antonio Cajazeira Ramos, Fernando da Rocha Peres, Edivaldo M. Bo-aventura, Aleilton Fonseca, paulo Costa Lima, Myriam Fraga, João Eurico Matta e Joaci Góes. Pauta: depoimentos informais em homenagem póstuma aos acadêmicos James Amado, Anna Amélia Vieira Nascimento e Gerson Pereira dos Santos.27 — 18hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadê-micos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Luís Antonio Cajazei-ra Ramos, Fernando da Rocha peres, Edivaldo M. Boaventura, Aleilton Fonseca, Paulo Costa Lima, Myriam Fraga, João Eurico Matta e Joaci Góes. Pauta: conversas informais sobre futuros candidatos às vagas existentes para membro efetivo.

Abril

03 — 17hs. — Sessão especial de homenagem póstuma ao aca-dêmico James Amado (1922-2013), sendo oradora a acadêmica Myriam Fraga. Representou a família do homenageado o so-brinho João Jorge Amado. O presidente Aramis Ribeiro Costa,

Page 471: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 469

cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira número 27, cujo patrono é Francisco Rodrigues da Silva e cujo último ocu-pante foi o acadêmico James Amado.10 — 17hs. — Sessão especial de homenagem póstuma à acadê-mica Anna Amélia Vieira Nascimento (1930-2014), sendo ora-dor o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. Após a fala do orador oficial da sessão, foi concedida a palavra à diretora do Arquivo público da Bahia, Maria Tereza Navarro de Britto Matos, para o seu depoimento. Em nome da família, agradeceu a filha da homenageada, Anna Guiomar Vieira Nascimento. O presidente Aramis Ribeiro Costa, cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira número 3, cujo patrono é Manuel Botelho de Oliveira e cujo último ocupante foi a acadêmica Anna Amélia Vieira Nas-cimento.24 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadê-micos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Hélio Pólvora, Gláu-cia Lemos, Samuel Celestino, Consuelo pondé de Sena, Waldir Freitas Oliveira, Evelina Hoisel, Roberto Santos, Joaci Góes, Cleise Mendes, Ruy Espinheira Filho, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Maria Stella de Azevedo Santos, Florisvaldo Mattos, Fernando da Rocha peres, Francisco Senna, José Carlos Capi-nan, Myriam Fraga, Edivaldo M. Boaventura, Aleilton Fonseca, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Paulo Costa Lima, João Eurico Matta e Carlos Ribeiro, para indicação de candidatos à vaga na Cadeira número 40, de que foi a última ocupante a acadêmica Consuelo Novais Sampaio, tendo sido eleita, por obter 24 votos, Urania Tourinho Peres. A eleita compareceu à sede da Academia e declarou aceitar a eleição.

Maio

08 — 18hs. — Lançamento da Revista da Academia de Letras da Bahia nº52, com a presença do secretário de cultura do Estado da Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim. Na ocasião, discursaram o

Page 472: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

470 ◄◄

presidente da Academia, Aramis Ribeiro Costa, o secretário Albi-no Rubim, o acadêmico Florisvaldo Mattos, diretor da Revista, o acadêmico Aleilton Fonseca, produtor, o acadêmico Luís Anto-nio Cajazeira Ramos, revisor editorial, e o acadêmico Edivaldo M. Boaventura, ex-presidente.15 — 17hs. —Sessão especial de homenagem póstuma ao aca-dêmico Gerson Pereira dos Santos (1932-2014), sendo orador o acadêmico João Eurico Matta. Após a fala do orador oficial da sessão, foi concedida a palavra ao ex-governador da Bahia, acadêmico Roberto Santos, ao desembargador Luiz Fernando Lima, representante do Tribunal de Justiça da Bahia, e ao ad-vogado Antônio Luiz Calmon Teixeira, presidente do Institu-to dos Advogados da Bahia. Sentou-se à mesa representando a família, o filho do homenageado, Gerson Luís Marinho Perei-ra. Agradeceu em nome da família o advogado Luiz Humberto Maron Agle. o presidente Aramis Ribeiro Costa, cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira número 32, cujo patrono é André Rebouças e cujo último ocupante foi o acadêmico Ger-son pereira dos Santos.22 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os aca-dêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Samuel Celestino, Consuelo pondé de Sena, Florisvaldo Mattos, Carlos Ribeiro, Evelina Hoisel, Ruy Espinheira Filho, Fernando da Rocha pe-res, Roberto Santos, Gláucia Lemos, Cleise Mendes, Aleilton Fonseca, Joaci Góes, Luís Antonio Cajazeira Ramos, José Carlos Capinan, Edivaldo M. Boaventura, Myriam Fraga, paulo Costa Lima, João Eurico Matta, Francisco Senna e Hélio Pólvora, para indicação de candidatos à vaga na Cadeira número 27, de que foi o último ocupante o acadêmico James Amado, tendo sido eleito, com aprovação da assembleia, por obter o número de votos ne-cessário, o candidato único Ordep Serra. O eleito compareceu à sede da Academia e declarou aceitar a eleição.27 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os aca-dêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Roberto Santos,

Page 473: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 471

Consuelo Pondé de Sena, Dom Emanuel d’Able do Amaral, paulo ormindo de Azevedo, Evelina Hoisel, Luís Antonio Cajazeira Ramos, João Eurico Matta, Joaci Góes, Paulo Cos-ta Lima, Aleilton Fonseca, Florisvaldo Mattos, Gláucia Lemos e Carlos Ribeiro, para eleição de membros correspondentes. Lidos e discutidos as pareceres das comissões sobre candida-tos já anteriormente apresentados, foram eleitos os seguintes membros correspondentes: o escritor franco-paraguaio Alain Saint-Saëns, a escritora argentina Maria pugliese e o escritor baiano paulo Fernando de Moraes Farias, residente há décadas na Inglaterra.29 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadê-micos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Francisco Sena, Gláu-cia Lemos, Aleilton Fonseca e Luís Antonio Cajazeira Ramos, tendo como convidados especiais os professores Maria Lígia Lordello de Magalhães, Carmem Maria Mettig Rocha e Marcelo Augusto Rocha, para palestra do acadêmico Francisco Sena, em homenagem aos centenários de nascimento da educadora olga Pereira Mettig e do arquiteto Diógenes Rebouças.

Junho

05 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os aca-dêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Samuel Celestino, Evelina Hoisel, Carlos Ribeiro, Cleise Men-des, Gláucia Lemos, Armando Avena, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Paulo Furtado, Geraldo Machado, João Carlos Teixeira Gomes, Roberto Santos, Francisco Senna, João Eurico Matta, Yeda Pessoa de Castro, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Joaci Góes, Maria Stella de Azevedo Santos, Consuelo Pondé de Sena, Fernando da Rocha peres, Myriam Fraga, paulo Costa Lima, Edivaldo M. Boaventura, para indicação de candidatos à vaga na Cadeira número 3, de que foi a última ocupante a acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento, tendo sido eleito, por obter 23

Page 474: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

472 ◄◄

votos, Guilherme Radel. O eleito compareceu à sede da Acade-mia e declarou aceitar a eleição.Registro histórico: a ALB teve sua programação interrompida no restante do mês de junho, em decorrência das paralisações e impedimentos por Copa do Mundo no Brasil, festejos juninos, e feriado de Corpus Cristi.

Julho

03 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os aca-dêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Samuel Celestino, Gláucia Lemos, Roberto Santos, Evelina Hoisel, Ruy Espinhei-ra Filho, Florisvaldo Mattos, Edivaldo M. Boaventura, Cleise Mendes, Myriam Fraga, Paulo Furtado, João Carlos Teixeira Gomes, Joaci Góes, Aleilton Fonseca, João Eurico Matta, Car-los Ribeiro, Dom Emanuel d’Able do Amaral, José Carlos Ca-pinam, Francisco Senna, Consuelo pondé de Sena, paulo Costa Lima, Geraldo Machado, Armando Avena, Luís Antonio Caja-zeira Ramos e Paulo Ormindo de Azevedo, para indicação de candidatos à vaga na Cadeira número 32, de que foi o último ocupante o acadêmico Gerson Pereira dos Santos, tendo sido eleito, por obter 25 votos, João Carlos Salles Pires da Silva. O eleito compareceu à sede da Academia e declarou aceitar a eleição.10 — 17hs. — Sessão especial em homenagem ao bicentenário de nascimento do patrono da Cadeira número 17, Antônio Fer-rão Moniz de Aragão (1813-2013), sendo orador o acadêmico João Eurico Matta.17 — 17hs. — Reunião de diretoria com participação dos de-mais acadêmicos. Pauta: a) prestação de contas, financeira e ad-ministrativa; b) segurança da sede da Academia; c) pintura exter-na da sede; d) o que ocorrer.18 – Luto oficial pela morte do acadêmico João Ubaldo Ribeiro, ocupante da Cadeira número 9, ocorrida no Rio de Janeiro.

Page 475: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 473

24 — 17hs. — Sessão ordinária regimental a que comparece-ram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Gláucia Lemos, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Ruy Espinheira Filho, João Eurico Matta, Ge-raldo Machado, Joaci Góes, Myriam Fraga, Carlos Ribeiro, Flo-risvaldo Mattos e o membro correspondente Cyro de Mattos. pauta: depoimentos informais em homenagem póstuma ao aca-dêmico João Ubaldo Ribeiro.29 — 19hs. — Sessão especial aberta ao público e aos meios de comunicação, transmitida ao vivo pela TV Educativa da Bahia e pelo portal da internet do IRDEB, aberta pelo acadêmico Ara-mis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, coordenada e mediada pelo acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos, com a participação de personalidades de todos os seg-mentos da cultura baiana, para o encontro com os candidatos ao governo do Estado da Bahia, com o tema Uma política Cultural para o Estado da Bahia. participaram os candidatos paulo Sou-to (DEM), Rui Costa (pT), Lídice da Mata (pSB), Renata Mal-let (pSTU), Marcos Mendes (pSoL) e Rogério da Luz (pRTB). Além dos acadêmicos, de escritores e artistas, da imprensa, do numeroso público, estiveram presentes o secretário de Cultura da Bahia, Albino Rubim, o secretário de Desenvolvimento, Tu-rismo e Cultura municipal de Salvador, Guilherme Bellintanni, o presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fernando Guer-reiro, os deputados federais Antônio Imbassahy e Jutahy Maga-lhães Júnior, o ex-governador Waldir Pires, e os candidatos ao senado e a vice-governador da Bahia.31 — 17hs. — Sessão ordinária a que estiveram presentes os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Ruy Espinheira Filho, Myriam Fraga, Fernando da Rocha Peres, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, o membro correspon-dente Cyro de Mattos e a acadêmica eleita Urania Tourinho peres, além de convidados, para fala dos acadêmicos Ruy Espi-nheira Filho e Luís Antonio Cajazeira Ramos, em homenagem

Page 476: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

474 ◄◄

póstuma ao poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras, Ivan Junqueira.

Agosto

11 — 17hs. — Reunião do presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, com a comissão julgadora do prêmio Nacional de Literatura Academia de Letras da Bahia — poesia 2013, patrocinado pela petrobras e pela Braskem, for-mada pelos acadêmicos Ruy Espinheira Filho, Myriam Fraga e Fernando da Rocha Peres. Em meio a quatrocentos e trinta e sete concorrentes de todo o país, a comissão julgadora concluiu por conceder o prêmio ao original “Na Pata do Cavalo Há Sete Abismos”, assinado pelo pseudônimo Ulisses Filho. Aberto, pelo presidente Aramis Ribeiro Costa, o envelope lacrado, iden-tificou-se como vencedora Clarisse Moreira de Macedo, sendo a mesma comunicada imediatamente desse resultado, por tele-fone, pelo presidente. Houve igualmente imediata comunicação para os patrocinadores do concurso e a imprensa, tendo sido o resultado anunciado com destaque no mesmo dia no site da Academia.14 — 17hs. — Sessão Ordinária a que estiveram presentes os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Gláucia Lemos, Florisvaldo Mattos, Evelina Hoisel, Myriam Fraga, João Euri-co Matta, Edivaldo M. Boaventura, Fernando da Rocha peres, a acadêmica eleita Urania Tourinho peres e convidados, para a palestra do acadêmico Fernando da Rocha peres, tendo como tema “De Avião na Terceira Idade”.26 — 17hs. — Abertura oficial do Curso Jorge Amado 2014 — IV Colóquio Internacional de Literatura Brasileira, curso anual da programação da Academia de Letras da Bahia em parceria com a Fundação Casa de Jorge Amado, com a coordenação geral da acadêmica Myriam Fraga, neste ano trazendo o títu-lo geral “Literatura e Política”. Palavras iniciais do presidente

Page 477: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 475

da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa. Con-ferência do professor Eduardo Assis Duarte (UFMG): “Jor-ge Amado na era dos extremos”. Lançamento do livro: Jorge Amado — Cacau: a volta ao mundo em 80 anos, organizado pelos acadêmicos Myriam Fraga, Aleilton Fonseca e Evelina Hoisel.27 — Curso Jorge Amado 2014 — IV Colóquio Internacional de Literatura Brasileira. 14h30 Sessões de comunicações, 1 e 2. 17hs. Mesa redonda, coordenada pela acadêmica Evelina Hoisel: Márcia Rios (UNEB), “Os Subterrâneos da liberdade: lembrar para não esquecer”; Paulo Silva (UNEB), “O romancista como his-toriador: Jorge amado e a história”; Sayonara Amaral (UNEB), “Jorge Amado, autor de prefácios”.28 — Curso Jorge Amado 2014 — IV Colóquio Internacional de Literatura Brasileira. 14h30 Sessões de comunicações 3 e 4. 17h40. Mesa redonda, coordenada pelo acadêmico Aleilton Fonseca: Mar-cos Silva (USP), “Jorge Amado e a crítica da denominação Os sub-terrâneos da liberdade e Tenda dos milagres”; Gustavo Ribeiro (UFBA), “Sob o signo da exceção: Jorge Amado, Graciliano Ramos e além”; Ana Rosa Ramos (UFBA), “Revolução e liberdade”. Lançamento do livro: Visitações à obra literária de Judith Grossmann, organizado por Lígia Telles e Evelina Hoisel, editado pela EDUFBA.29 — Curso Jorge Amado 2014 — IV Colóquio Internacional de Literatura Brasileira. Encerramento, sob o título “A amizade é o sal da vida”, dito de Jorge Amado. Depoimento de paloma Amado em homenagem póstuma a João Ubaldo Ribeiro. Apre-sentação musical.

setembro

02 — 18hs — Lançamento do romance Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos, Editora Letra Selvagem. palavras iniciais do presidente Aramis Ribeiro Costa, fala de apresentação do acadê-mico vice-presidente João Eurico Matta, fala do editor Nicode-mos Sena e palavras finais do autor Cyro de Mattos.

Page 478: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

476 ◄◄

04 — 20hs — Sessão solene de posse do escritor Ordep Serra na Cadeira número 27, de que foi o último ocupante o acadêmico James Amado e que tem como patrono Francisco Rodrigues da Silva, sendo saudado pelo acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ra-mos. Estiveram presentes à solenidade, compondo a mesa alta ao lado do presidente da Academia, o secretário de Cultura do Estado da Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim, o ex-governa-dor da Bahia, Waldir pires, o reitor da Universidade Federal da Bahia, João Carlos Salles e a presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Consuelo pondé de Sena.09 — 17hs — Sessão especial de homenagem póstuma ao aca-dêmico João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), sendo orador o aca-dêmico Joaci Góes. Esteve presente a filha do acadêmico ho-menageado, Emília Ribeiro. o presidente Aramis Ribeiro Costa, cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira número 9, que tem como patrono Antonio Ferreira França, e teve como último ocupante João Ubaldo Ribeiro.11 — 17hs — Sessão ordinária a que compareceram os acadê-micos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Carlos Ribeiro, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Ordep Serra, Edivaldo M. Boaven-tura e João Eurico Matta, além de convidados, para as palestras dos freis Walter Schreiber, OFM, teólogo e guardião do Con-vento São Francisco do Salvador, e Marcos Almeida, professor e pesquisador de história da instituição, com o tema: “O acervo bibliográfico do Convento São Francisco: raridade ameaçada de extinção”.18 — 17hs — Sessão especial para inauguração de placa do Au-ditório Magalhães Netto, em homenagem aos Patronos da Aca-demia de Letras da Bahia, sendo orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. A placa foi descerrada pelos acadêmicos presentes: Aramis Ribeiro Costa (presidente), Roberto Santos, Fernando da Rocha peres, Edivaldo M. Boaventura, Carlos Ribeiro, Myriam Fraga, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Glaucia Lemos, Ordep Ser-ra, Florisvaldo Mattos, João Eurico Matta e Evelina Hoisel.

Page 479: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 477

22 — 19hs — Solenidade de abertura do V Seminário Interna-cional Acolhendo as Línguas Africanas — Línguas e Culturas Negro-africanas e Novas tecnologias, da Universidade Estadual da Bahia, coordenado pela professora e acadêmica Yeda pessoa de Castro.23 — 17hs — Sessão especial de posse do membro correspon-dente Alain Saint-Saëns, sendo saudado pelo acadêmico Aleilton Fonseca.24 — 20hs — Sessão solene de posse da escritora Urania Maria Tourinho Peres na Cadeira número 40, de que foi o último ocu-pante a acadêmica Consuelo Novais Sampaio e que tem como patrono Francisco Cavalcanti Mangabeira, sendo saudada pelo acadêmico Aramis Ribeiro Costa. Compuseram a mesa, ao lado do presidente da Academia, o secretário de Cultura do Estado da Bahia, Albino Rubim, o reitor da Universidade Federal da Bahia, João Carlos Salles, o ex-governador da Bahia e acadêmi-co, Roberto Santos, e o arquiabade do mosteiro de São Bento e acadêmico, Dom Emanuel d’Able do Amaral.

outubro

02 — 17hs — Sessão ordinária a que estiveram presentes os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Yeda pessoa de Castro, João Eurico Matta, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Evelina Hoisel, Cleise Mendes, ordep Serra, Myriam Fraga, paulo ormindo de Azevedo, Edivaldo M. Boaventura, Fernando da Rocha peres e Urania Tourinho peres, além de convidados, para a fala dos acadêmicos Urania Tourinho peres e Fernando da Rocha peres em homenagem ao centenário de nascimento do bibliófilo, membro da Academia Brasileira de Letras e membro correspondente da Academia de Letras da Bahia, José Mindlin (1914-2014).09 — 20hs — Sessão solene de posse do escritor Guilherme Re-quião Radel na Cadeira número 3, de que foi o último ocupante

Page 480: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

478 ◄◄

a acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento e que tem como patrono Manuel Botelho de oliveira, sendo saudado pelo aca-dêmico Joaci Góes. Esteve presente à solenidade, compondo a mesa alta, o secretário de Cultura do Estado da Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim.14 — 18hs. — Lançamento dos volumes 5, 6 e 7 da Coleção Mestres da Literatura Baiana, parceria editorial da Assembleia Legislativa da Bahia com a Academia de Letras da Bahia: Os cabras do coronel, O reduto e Remanso da valentia, de Wilson Lins. Na ocasião, discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o presidente da Assembleia Legis-lativa da Bahia, Marcelo Nilo, e a neta de Wilson Lins, Verônica Lins de Albuquerque.16 — 17hs. — Sessão especial em comemoração ao centenário de nascimento do acadêmico Nelson de Souza Sampaio (1914-2014), sendo orador o acadêmico Joaci Góes.21 — Abertura oficial do Curso Castro Alves 2014 — IX Coló-quio de Literatura Baiana, evento anual da Academia de Letras da Bahia, coordenado pelo acadêmico Aleilton Fonseca, inte-grando o Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários — ProgEL/UEFS. 14h30 às 16h30 — Sessões de comunica-ções sobre temas, autores e obras da literatura baiana. 16h30 — palavra do presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa. 16h45 — Homenagem ao centenário de nasci-mento da poeta baiana Jacinta passos (1914–2014), com con-ferência da filha da autora homenageada, professora e ensaísta Janaína Amado: “Jacinta Passos, cem anos de poesia”. 17h45 — Mesa Redonda coordenada pelo poeta e acadêmico Luís Anto-nio Cajazeira Ramos, intitulada “A poesia na Bahia: experiências, vivências e escritas”, com depoimento dos poetas e acadêmicos Myriam Fraga e José Carlos Capinan.22 — Curso Castro Alves 2014 — IX Colóquio de Literatura Baiana. 14h30 às 16h30 — Sessões de comunicações sobre te-mas, autores e obras da literatura baiana. 16h30 — Mesa redonda

Page 481: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 479

coordenada pela professora e ensaísta Rosana Ribeiro patrício, in-titulada “O conto na Bahia: experiências, vivências e escritas”, com depoimento dos escritores e acadêmicos Gláucia Lemos e ordep Serra.23 — Curso Castro Alves 2014 — IX Colóquio de Literatu-ra Baiana. 14h30 às 16h30 — Sessões de Comunicações sobre temas, autores e obras da literatura baiana. 16h30 — Mesa re-donda coordenada pela professora Antônia Torreão Herrera, intitulada “O romance na Bahia: experiências, vivências e escri-tas”, com depoimentos do escritor e acadêmico Carlos Ribeiro e da escritora Adelice Souza. 17h30 — Conferência de encerra-mento do curso, presidida pelo acadêmico Aleilton Fonseca, da professora, ensaísta e acadêmica Evelina de Carvalho Sá Hoisel, com o tema “Castro Alves: entrelaçando cenas de amor”. 18h00 — Apresentação musical: lançamento do CD Tupynanjazz, com Sérgio de Ramos (voz e violão) e Victtor Marx Carinhanha (per-cussão). Palavras finais do coordenador do curso, acadêmico Aleilton Fonseca, e do presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa.28 — 18hs — Entrega do prêmio Nacional Academia de Le-tras da Bahia de Literatura — poesia 2013, patrocinado pela petrobras e pela Braskem, com troféu, prêmio em dinheiro no valor de vinte mil reais, e obra editada pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro, à poeta Clarissa Moreira de Macedo, seguida do lançamento do livro Na pata do cavalo há sete abismos, ganhador do prêmio. Na ocasião, discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, a gerente de Aten-dimento e Articulação Regional/Nordeste, Aurecy Costa Leite, representando a patrocinadora petrobras, a gerente de Relações Institucionais/Desenvolvimento Sustentável, Flávia Veiga, re-presentando a patrocinadora Braskem, e a autora premiada, Cla-rissa Macedo.30 — 17hs — Sessão ordinária a que compareceram os aca-dêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Samuel Celestino,

Page 482: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

480 ◄◄

Evelina Hoisel, Gláucia Lemos, João Carlos Teixeira Gomes, Edivaldo M. Boaventura, Ruy Espinheira Filho, Guilherme Ra-del, Cleise Mendes, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Roberto Santos, Paulo Ormindo de Azevedo, Carlos Ribeiro, Joaci Góes, Aleilton Fonseca, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Paulo Cos-ta Lima, Florisvaldo Mattos, Ordep Serra, João Eurico Matta, Armando Avena, Geraldo Machado, Myriam Fraga, Urania Tou-rinho Peres e Fernando da Rocha Peres, para indicação de candi-datos à vaga na Cadeira número 9, de que foi o último ocupante o acadêmico João Ubaldo Ribeiro, tendo sido eleito, por obter 25 votos, Antônio Torres. O eleito, que mora no Rio de Janei-ro, foi imediatamente comunicado de sua eleição, pelo telefone, pelo presidente Aramis Ribeiro Costa, havendo, também pelo telefone, no sistema de viva-voz, para ser ouvido pelos demais acadêmicos, declarado aceitar com muito gosto a eleição.

novembro

06 — 20hs. — Sessão solene de posse do escritor João Carlos Salles na Cadeira número 32, de que foi o último ocupante o acadêmico Gerson Pereira dos Santos e que tem como patrono André pinto Rebouças, sendo saudado pelo acadêmico paulo Costa Lima.11 — 18hs. — Lançamento do volume 8 da Coleção Mestres da Literatura Baiana, parceira editorial da Assembleia Legislativa da Bahia com a Academia de Letras da Bahia: Histórias da gente baia-na, de Vasconcelos Maia. Na ocasião, discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o asses-sor para assuntos de cultura da Assembleia Legislativa da Bahia, Délio pinheiro, representando o presidente da Assembleia, Mar-celo Nilo, e o filho de Vasconcelos Maia, Cláudio Maia.13 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os aca-dêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), João Eurico Matta, Gláucia Lemos, Evelina Hoisel, Luís Antonio Cajazeira Ramos,

Page 483: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 481

Florisvaldo Mattos, paulo ormindo de Azevedo, e mais os se-nhores José Ailton de Lira, diretor de Relações Institucionais oi Bahia/Sergipe, Maria Auxiliadora Caino, analista de Relações Institucionais oi Bahia, Luciano Simões de Souza, diretor do Núcleo de Gestão da CIPÓ — Comunicação Interativa, Isabel Gouvêa, coordenadora da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecno-logia de Salvador / Cipó-Comunicação Interativa, e Vagner Brás, fotógrafo do Núcleo de Comunicação da Oi Kabum! Salvador, além de convidados, com a seguinte pauta: 1) Exposição sobre o programa oi Futuro, seu uso da antiga sede da Academia de Letras da Bahia no Terreiro de Jesus, da qual é inquilino, e seus projetos culturais. 2) Fala dos acadêmicos sobre seus arquivos pessoais. 3) O arquivo da Academia de Letras da Bahia e os ar-quivos pessoais dos acadêmicos.18 — 17hs. — Sessão especial compreendendo a seguinte so-lenidade: 1) Inauguração de placa, no Salão Nobre Magalhães Neto, em homenagem à Academia Brasílica dos Esquecidos, primeira academia de letras do Brasil, fundada na Cidade do Sal-vador em 1724, havendo discursado o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, e descerrado a placa o secretário de Cultura do Estado da Bahia, Antonio Albino Ca-nelas Rubim. 2) Prestação de contas da gestão do secretário de Cultura do Estado da Bahia, Antonio Albino Canelas Rubim.20 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadê-micos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Evelina Hoisel, Urania Tourinho Peres, Myriam Fraga, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Carlos Ribeiro e Fernando da Rocha peres, além de convida-dos, para palestra do acadêmico Fernando da Rocha peres com o tema “Uma Brasiliana na Bahia”, e fala da acadêmica Urania Tourinho Peres, com o tema “Palavras Escritas”.27 — 17hs. — Assembleia Geral estatutária, à qual comparece-ram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), paulo or-mindo de Azevedo, Guilherme Radel, Geraldo Machado, Carlos Ribeiro, Cleise Mendes, Joaci Góes, Paulo Costa Lima, Myriam

Page 484: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

482 ◄◄

Fraga, Gláucia Lemos, João Eurico Matta, Ruy Espinheira Filho, Aleilton Fonseca, Samuel Celestino, Francisco Senna, Roberto Santos, ordep Serra, Florisvaldo Mattos, Evelina Hoisel, e D. Emanuel d’Able do Amaral, para eleição de diretoria para o bi-ênio 2015/2017, sendo eleita por unanimidade a seguinte cha-pa: presidente, Evelina de Carvalho Sá Hoisel; vice-presidente, Myriam Fraga; 1º secretário, Carlos Ribeiro; 2º secretário, ordep Serra; 1º tesoureiro, D. Emanuel D’Able do Amaral; 2º tesourei-ro, Gláucia Lemos; diretor da Revista, Fernando da Rocha Peres; diretor da Biblioteca, Edivaldo M. Boaventura; diretor do Arqui-vo, paulo ormindo de Azevedo; diretor de Informática, paulo Costa Lima; Conselho Editorial: Aramis Ribeiro Costa, Aleilton Fonseca, Florisvaldo Mattos. Conselho de Contas e patrimônio: João Eurico Matta, Geraldo Machado, Joaci Góes.

Dezembro

11 — 17hs. — Reunião de diretoria — encontro com a diretoria eleita para o biênio 2015-2017, para informações e esclarecimen-tos sobre a ALB. Estiveram presentes os acadêmicos Aramis Ri-beiro Costa (presidente atual e conselheiro editorial eleito), Eve-lina Hoisel (primeira secretária atual e presidente eleita), João Eurico Matta (vice-presidente atual e conselheiro de contas e patrimônio eleito), Myriam Fraga (conselheira editorial atual e vice-presidente eleita), Gláucia Lemos (segunda secretária atu-al e segunda tesoureira eleita), D. Emanuel d’Able do Amaral (diretor da Biblioteca atual e primeiro tesoureiro eleito), Carlos Ribeiro (diretor de Informática atual e primeiro secretário elei-to), Aleilton Fonseca (conselheiro de contas e patrimônio atual e conselheiro editorial eleito) e Geraldo Machado (conselheiro de contas e patrimônio eleito). 16 — 18hs. — Lançamento do volume 9 da Coleção Mestres da Literatura Baiana, parceria editorial da Assembleia Legislativa da Bahia com a Academia de Letras da Bahia: O Telefone dos mortos,

Page 485: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 483

de João Carlos Teixeira Gomes. Na ocasião discursaram o pre-sidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o assessor para assuntos de cultura da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, Délio Pinheiro, e o autor João Carlos Teixeira Gomes.18 — 18hs. — Entrega do Prêmio Conjunto de Obra — Acade-mia de Letras da Bahia/Eletrogóes — 2014 ao historiador João José Reis. Na ocasião discursaram o presidente Aramis Ribeiro Costa, o acadêmico Fernando da Rocha peres e o autor home-nageado, agradecendo a homenagem e doando sua obra em li-vros à Biblioteca da Academia de Letras da Bahia. O presidente registrou doação em louça antiga e preciosa à Academia, pela desembargadora Adélia Marelin. Em seguida, deu por inaugura-da placa no Salão Nobre da ALB, Auditório Magalhães Netto, em homenagem à Academia Brasílica dos Renascidos, segunda academia de letras da Bahia, fundada na Cidade do Salvador em 6 de junho de 1759, quarta e última placa, a compor, com a dos Fundadores da Academia de Letras da Bahia, a dos patronos da Academia de Letras da Bahia, e a em homenagem à Academia Brasílica dos Esquecidos, o tributo da instituição à sua própria história e à história das academias de letras na Bahia e no Bra-sil. Continuando, o presidente relatou, em breves palavras, as atividades da Academia de Letras da Bahia durante o ano de 2014, agradecendo, ao final, a todos, acadêmicos, funcionários e amigos da Academia, o apoio e a confiança recebidos em seus dois mandatos à frente da ALB, pedindo a todos que esse apoio e essa confiança sejam transferidos, em dobro, a partir de março, para a próxima presidente, acadêmica Evelina Hoisel. Seguiu-se a confraternização de Natal e de final de ano entre acadêmicos, funcionários e amigos da Academia.

Page 486: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 487: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 485

Quadro social da ALB1

Cadeira 1Patrono: Frei Vicente de SalvadorFundador: José de oliveira Campos2º Titular: Júlio Afrânio peixoto (Afrânio peixoto), fundador da Cadeira 25, por transferência consentida pela Academia.3º Titular: José Wanderley de Araújo PinhoTitular atual:Luís Henrique Dias tavaresposse em 14.06.1968

Cadeira 2Patrono: Gregório de Mattos e Guerra (Gregório de Mattos)Fundador: Aloysio Lopes pereira de Carvalho (Lulu parola)2º Titular: Luis Viana FilhoTitular atual:Paulo ormindo David de Azevedo(Paulo ormindo de Azevedo)posse em 20.06.1991

Cadeira 3Patrono: Manuel Botelho de OliveiraFundador: Arthur Gonçalves de Salles (Arthur de Salles)2º Titular: Eloywaldo Chagas de oliveira3º Titular: Anna Amélia Vieira Nascimento

1 N. do E.: O quadro dos titulares da Academia de Letras da Bahia foi originalmente elaborado pelo acadêmico Renato Berbert de Castro (1924 – 1999).

Page 488: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

486 ◄◄

Titular atual:guilherme requião radel(guilherme radel)posse em 09.10.2014

Cadeira 4Patrono: Sebastião da Rocha PitaFundador: Braz Hermenegildo do Amaral (Braz do Amaral)2º Titular: João da Costa Pinto Dantas Júnior3º Titular: Jayme de Sá MenezesTitular atual:geraldo Magalhães Machado(geraldo Machado)posse em 31.10.2003

Cadeira 5Patrono: Luís Antônio de Oliveira MendesFundador: Carlos Chiacchio2º Titular: Antônio Luís Cavalcanti Albuquerque de Barros Bar-reto (Barros Barreto)3º Titular: Carlos Benjamin de Viveiros4º Titular: José Silveira5º Titular: Guido José da Costa Guerra (Guido Guerra)Titular atual:Carlos Jesus ribeiro(Carlos ribeiro)posse em 31.05.2007

Cadeira 6Patrono: Alexandre Rodrigues FerreiraFundador: Manoel Augusto Pirajá da Silva (Pirajá da Silva)2º Titular: Thales Olímpio Góes de Azevedo (Thales de Azevedo)3º Titular: Lucas Moreira Neves (Dom Lucas Cardeal Moreira Neves)

Page 489: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 487

Titular atual:Cleise Furtado Mendes(Cleise Mendes)posse em 15.04.2004.

Cadeira 7Patrono: José da Silva Lisboa, Visconde de CayruFundador: Ernesto Carneiro Ribeiro (Carneiro Ribeiro)2º Titular: Francisco Borges de Barros3º Titular: Aloísio de Carvalho Filho. Eleito para a Cadeira 26, permutou esta, obtendo acordo da Academia, pela Cadeira 7, com monsenhor Francisco de Paiva Marques, quando ambos ainda não empossados.4º Titular: Nelson de Souza Sampaio (Nelson Sampaio)5º Titular: pedro Moacir MaiaTitular atual:Joaci Fonseca de góes(Joaci góes)posse em 24.09.2009

Cadeira 8Patrono: Cipriano José Barata de Almeida (Cipriano Barata)Fundador: Luís Anselmo da Fonseca2º Titular: Francisco Peixoto de Magalhães Netto (Magalhães Netto)3º Titular: Adriano de Azevedo pondé (Adriano pondé)4º Titular: Ary GuimarãesTitular atual:Paulo Costa Limaposse em 17.12.2009

Cadeira 9Patrono: Antônio Ferreira FrançaFundador: José Alfredo de Campos França

Page 490: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

488 ◄◄

2º Titular: Edgard Ribeiro Sanches3º Titular: Antônio Luís Machado Neto (Machado Neto)4º Titular: Cláudio de Andrade Veiga (Cláudio Veiga)5º Titular: João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro (João Ubaldo Ribeiro)Titular atual:Antonio torres (ainda não empossado).Eleito em 30.10.2014

Cadeira 10Patrono: José Lino dos Santos CoutinhoFundador: Antônio Moniz Sodré de Aragão2º Titular: Altamirando Alves da Silva Requião (Altamirando Re-quião)Titular atual:gaspar sadoc da natividade(Monsenhor gaspar sadoc)posse em 16.10.1990

Cadeira 11Patrono: Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de JequitinhonhaFundador: Antonio Ferrão Moniz de Aragão (Antonio Moniz)2º Titular: otávio Torres3º Titular: oldegar Franco Vieira Titular atual:Yeda Antonita Pessoa de Castro(Yeda Pessoa de Castro)posse em 10.04.2008

Cadeira 12Patrono: Miguel Calmon du Pin e Almeida, Marquês de AbrantesFundador: Miguel Calmon du pin e Almeida2º Titular: Alberto Francisco de Assis (Alberto de Assis)3º Titular: Affonso Ruy de Sousa (Affonso Ruy)

Page 491: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 489

4º Titular: Itazil Benício dos SantosTitular atual:Aramis de Almada ribeiro Costa(Aramis ribeiro Costa)posse em 25.11.1999

Cadeira 13Patrono: Francisco Moniz BarretoFundador: Egas Moniz Barreto de Aragão (Pethion de Villar)2º Titular: Afonso de Castro Rebelo Filho3º Titular: Walter Raulino da Silveira (Walter da Silveira)4º Titular: odorico Montenegro Tavares da Silva (odorico Ta-vares)5º Titular: Luís Fernando Seixas de Macedo Costa (Luís Fernan-do Macedo Costa)Titular atual:Myriam de Castro Lima Fraga(Myriam Fraga)posse em 30.07.1985

Cadeira 14Patrono: Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São LourençoFundador: Bernardino José de Sousa (Bernardino de Sousa)2º Titular: Alberto Alves Silva (Alberto Silva)3º Titular: Edgard Rego Santos (Edgard Santos)4º Titular: Raul Batista de Almeida5º Titular: Carlos Vasconcelos Maia (Vasconcelos Maia)6º Titular. Epaminondas CostalimaTitular atual:gláucia Maria de Lemos Leal(gláucia Lemos)posse em 21.10.2010

Page 492: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

490 ◄◄

Cadeira 15Patrono: Ângelo Moniz da Silva Ferraz,, Barão de UruguaianaFundador: otaviano Moniz Barreto2º Titular: Hélio Gomes Simões (Hélio Simões)Titular atual:João Carlos oliveira teixeira gomes Fonseca(João Carlos teixeira gomes)posse em 08.06.1989

Cadeira 16Patrono: José Tomáz Nabuco de AraújoFundador: Eduardo Godinho Espínola2º Titular: Orlando Gomes dos Santos (Orlando Gomes)Titular atual:João eurico Mattaposse em 10.05.1989

Cadeira 17Patrono: Antônio Ferrão Moniz de AragãoFundador: Gonçalo Moniz Sodré de Aragão (Gonçalo Moniz)2º Titular: Leopoldo Braga3º Titular: Carlos Eduardo da RochaTitular atual:ruy Alberto d’Assis espinheira Filho(ruy espinheira Filho)posse em 15.09.2000

Cadeira 18Patrono: Zacarias de Góes e VasconcelosFundador: José Joaquim Seabra (J.J. Seabra)2º Titular: Augusto Alexandre Machado3º Titular: Avelar Brandão Vilela (Dom Avelar Brandão Vilela)Titular atual:Waldir Freitas oliveira

Page 493: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 491

posse em 27.10.1987

Cadeira 19Patrono: João Maurício Vanderley, Barão de CotegipeFundador: Severino dos Santos Vieira (Severino Vieira)2º Titular: Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso). Funda-dor da Cadeira 41, criada em caráter provisório, transferiu-se para esta, após a morte de Severino Vieira, ocorrida a 27 de se-tembro de 1917, a fim de que fosse extinta a temporária.3º Titular: Deraldo Dias de Morais4º Titular: Guilherme Antônio Freire de Andrade Filho5º Titular: Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho (Godofredo Filho)Titular atual:Cid José teixeira Cavalcante(Cid teixeira)posse em 25.03.1993

Cadeira 20Patrono: Augusto Teixeira de Freitas (Teixeira de Freitas)Fundador: Carlos Gonçalves Fernandes Ribeiro (Carlos Ribeiro)2º Titular: Epaminondas Berbert de Castro3º Titular: Lafayette Ferreira Spínola (Lafayette Spínola)4º Titular: Ivan Americano da Costa5º Titular: Joaquim Alves da Cruz Rios (Cruz Rios)Titular atual:Aleilton santana da Fonseca(Aleilton Fonseca)posse em 15.04.2005

Cadeira 21Patrono: Francisco Bonifácio de Abreu, Barão da Vila da BarraFundador: Filinto Justiniano Ferreira Barros2º Titular: Estácio Luís Valente de Lima (Estácio de Lima)

Page 494: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

492 ◄◄

3º Titular: Jorge Amado4º titular: Zélia Gattai Amado (Zélia Gattai)Titular atual:Antonio Brasileiro Borges(Antônio Brasileiro)posse em 10.06.2010

Cadeira 22Patrono: José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio BrancoFundador: Ruy Barbosa de oliveira (Ruy Barbosa)2º Titular: Ernesto Carneiro Ribeiro Filho3º Titular: Aloísio Henrique de Barros PortoTitular atual:Clóvis Álvares Lima(Clóvis Lima)posse em 08.05.1980

Cadeira 23Patrono: Antônio Januário de FariaFundador: João Américo Garcez Fróes2º Titular: Jorge Calmon Moniz de Bittencourt (Jorge Calmon)Titular atual:samuel Celestino silva Filho(samuel Celestino)posse em 21.08.2008

Cadeira 24Patrono: Demétrio Ciríaco Tourinho (Demétrio Tourinho)Fundador: Luís pinto de Carvalho (pinto de Carvalho)2º Titular: Luís Menezes Monteiro da Costa (Luís Monteiro)3º Titular: Renato Berbert de CastroTitular atual:Francisco soares senna(Francisco senna)

Page 495: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 493

posse em 27.04.2000

Cadeira 25Patrono: Pedro Eunápio da Silva Deiró (Eunápio Deiró)Fundador: Júlio Afrânio peixoto (Afrânio peixoto). Com o con-sentimento da Academia, transferiu-se para a Cadeira 1 após a morte de seu fundador, José de oliveira Campos.2º Titular: Francisco Hermano Santana (Hermano Santana)3º Titular: Raimundo de Sousa Brito (Raimundo Brito)4º Titular: Luís Augusto Fraga Navarro de Brito (Navarro de Brito)Titular atual:Fernando da rocha Peresposse em 16.06.1988

Cadeira 26Patrono: Antônio de Macedo Costa (Dom Antônio de Macedo Costa)Fundador: José Cupertino de Lacerda (padre José Cupertino de Lacerda)2º Titular: Alberto Moreira Rabelo (Alberto Rabelo), único membro da Academia que faleceu antes de tomar posse, sendo legitimado na Cadeira postumamente, por decisão da diretoria.3º Titular: Monsenhor Francisco de Paiva Marques (Monsenhor Paiva Marques)Eleito para a Cadeira 7, permutou esta pela Cadeira 26, com Alo-ísio de Carvalho Filho, quando ambos ainda não empossados.4º titular: César Augusto de Araújo (César de Araújo)Titular atual:roberto Figueira santos(roberto santos)posse em 10.08.1971

Cadeira 27Patrono: Francisco Rodrigues da Silva

Page 496: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

494 ◄◄

Fundador: Frederico de Castro Rebelo (Frederico Rabelo)2º Titular: Antônio Gonçalves Vianna Júnior (Antônio Vianna)3º Titular: Jayme Tourinho Junqueira Ayres (Jayme Junqueira Ayres)4º Titular: Antônio Loureiro de Souza5º: Titular: James AmadoTitular atual:ordep José trindade serra(ordep serra)posse em 04.09.2014

Cadeira 28Patrono: Luís José Junqueira Freire (Junqueira Freire)Fundador: Francisco Torquato Bahia da Silva Araújo2º Titular: Homero pires de oliveira e Silva3º Titular: José Calasans Brandão da Silva (José Calasans)Titular atual:Consuelo Pondé de senaposse em 14.03.2002

Cadeira 29Patrono: Agrário de Souza Menezes (Agrário Menezes)Fundador: Antônio Alexandre Borges dos Reis (Borges dos Reis)2º Titular: Manços Chastinet Contreiras (Manços Chastinet)3º Titular: Colombo Moreira Spínola (Colombo Spínola)4º Titular: Jorge Faria GóesTitular atual:Hélio Pólvora de Almeida(Hélio Pólvora)posse em 08.03.1994

Cadeira 30Patrono: Joaquim Monteiro Caminhoá

Page 497: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 495

Fundador: Antônio do prado Valadares (prado Valadares). per-mutou a cadeira com Roberto José Correia (Roberto Correia), titular da Cadeira 38.2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia)3º Titular: Alfredo Vieira pimentel4º Titular: Nestor Duarte Guimarães (Nestor Duarte)5º Titular: Josaphat Ramos Marinho (Josaphat Marinho)Titular atual:Paulo roberto Bastos Furtado(Paulo Furtado)posse em 24.04.2003

Cadeira 31Patrono: Belarmino BarretoFundador: Ernesto Simões da Silva Freitas Filho (Simões Filho)2º Titular: José Luís de Carvalho Filho (Carvalho Filho)Titular atual:Florisvaldo Moreira de Mattos(Florisvaldo Mattos)posse em 23.11.1995

Cadeira 32Patrono: André Pinto Rebouças (André Rebouças)Fundador: Teodoro Fernandes Sampaio (Theodoro Sampaio)2º Titular: Isaías Alves de Almeida (Isaías Alves)3º Titular: Zitelmann José Santos de Oliva (Zitelmann de Oliva)4º Titular: Gerson Pereira dos SantosTitular atual:João Carlos salles Pires da silva(João Carlos salles)posse em 06.11.2014

Cadeira 33Patrono: Antônio Frederico de Castro Alves (Castro Alves)

Page 498: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

496 ◄◄

Fundador: Francisco Xavier Ferreira Marques (Xavier Marques)2º Titular: Heitor praguer Fróes. Tomou posse em 15 de no-vembro de 1931, na Cadeira 34, transferindo-se para esta, após a morte de Xavier Marques.3º Titular: Waldemar Magalhães Mattos (Waldemar Mattos)4º Titular: Ubiratan Castro de Araújo (Ubiratan Castro)Titular atual:Maria stella de Azevedo santos(Mãe stella de oxossi)posse em 12.09.2013

Cadeira 34Patrono: Domingos Guedes CabralFundador: José Virgílio da Silva Lemos (Virgílio de Lemos)2º Titular: Heitor pragues Fróes. Transferiu-se para a Cadeira 33, depois do desaparecimento de Xavier Marques3º Titular: Adalício Coelho Nogueira (Adalício Nogueira)4º Titular: Walfrido Moraes de Lima (Walfrido Moraes)Titular atual:evelina de Carvalho sá Hoisel(evelina Hoisel)posse em 27.10.2005

Cadeira 35Patrono: Manoel Vitorino Pereira (Manoel Vitorino)Fundador: Antônio Pacífico Pereira2º Titular: Afonso Costa3º Titular: Rui Santos4º Titular. Rubem Rodrigues Nogueira (Rubem Nogueira)5º Titular: João da Costa Falcão (João Falcão)Titular atual:Luís Antonio Cajazeira ramosposse em 02.08.2012

Page 499: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 497

Cadeira 36Patrono: Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha (Fernandes da Cunha)Fundador: Afonso de Castro Rebelo2º Titular: Monsenhor Manuel de Aquino Barbosa (Padre Ma-nuel Barbosa)3º Titular: Hildegardes Cantolino Vianna (Hildegardes Vianna)Titular atual:José Carlos Capinanposse em 17.08.2006

Cadeira 37Patrono: João Batista de Castro Rebelo JúniorFundador: Almachio Diniz Gonçalves (Almachio Diniz)2º Titular: Edith Mendes da Gama e Abreu3º Titular. Antonio Carlos Peixoto de Magalhães (Antônio Car-los Magalhães)Titular atual:emanuel d’Able do Amaral(Dom emanuel d’Able do Amaral)posse em 28.05.2009

Cadeira 38Patrono: Alfredo Tomé de Brito (Alfredo Brito)Fundador: oscar Freire de Carvalho2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia). permutou sua cadeira com prado Valadares, fundador da Cadeira 30.3º Titular: Antônio do prado Valadares (prado Valadares)4º Titular: Cristiano Alberto Müller (Cristiano Müller)5º Titular: Wilson Mascarenhas Lins de Albuquerque (Wilson Lins)Titular atual:Armando Avena Filho(Armando Avena)

Page 500: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

498 ◄◄

posse em 28.04.2005

Cadeira 39Patrono: Francisco de CastroFundador: Clementino Rocha Fraga Júnior (Clementino Fraga)Titular atual:edivaldo Machado Boaventura(edivaldo M. Boaventura)posse em 06.08.1971

Cadeira 40Patrono: Francisco Cavalcanti Mangabeira (Francisco Mangabeira)Fundador: octavio Cavalcanti Mangabeira (octavio Mangabei-ra)2º Titular: Manoel pinto de Aguiar3º Titular: Consuelo Novais SampaioTitular atual:Urania Maria tourinho Peres(Urania tourinho Peres)posse em 25.09.2014

obs.:Cadeira 41Criada em caráter provisório para que Arlindo Fragoso, ideal-izador e organizador da Academia, não lhe ficasse de fora, de-vendo ser extinta com o falecimento de qualquer um dos 41 fundadores. patrono: Manuel Alves Branco, Visconde de Carave-las (2º). Fundador Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso). Com a morte de Severino Vieira, em 27 de setembro de 1917, para a sua Cadeira, de número 19, foi transferido Arlindo Frago-so, e supressa a cadeira provisória.

Page 501: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

►► 499

endereços dos acadêmicos

Aleilton FonseCA

Rua Rubem Berta, 267-402 — pituba41820-040 — Salvador/BA( (71) 3345-1519 / 8717 [email protected]

Antonio brAsileiro

Rua Alto do paraná, 300 — Bairro Sim44042-000 — Feira de Santana/BA( (75) [email protected]

Antonio torres

Rua Estrada da União Industrial, 12600Condomínio Mirantes do Sol Nascente, C- 37,25750-226, Itaipava - Rio de [email protected]

ArAmis ribeiro CostA

Rua piauí, 439, Cond. Vela Branca, ap. 1103pituba, 41830-280, Salvador - Bahia( 3240 4969 / 9984 [email protected]

Page 502: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

500 ◄◄

ArmAndo AvenA

Rua Waldemar Falcão, 1965Ed. Top Hill, ap. 702 Norte40295-010, Salvador - Bahia( 3272-2960 / [email protected]

CArlos ribeiro

Rua do Timbó, 680Ed. Villa Etruska, ap. 503Caminho das Árvores41820-660, Salvador – Bahia( 3011-7019/ 9153- [email protected]

Cid teixeirA

Rua das Violetas, 85 — pituba41810-080 — Salvador/BA( (71) [email protected]

Cleise mendes

Rua Marechal Floriano, 357Ed. Casa Grande, ap. 302, Canela40110-010, Salvador - Bahia( 3337-0312 / [email protected]

Clóvis limA

Avenida Sete de Setembro, 750Ed. Santo Amaro, ap. 404, Mercês40060-001, Salvador, Bahia( 3329 4178

Page 503: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 501

Consuelo Pondé de senA

Avenida. princesa Leopoldina, 288 Ed. princesa Leopoldina ap. 301, Graça, 40150-080, Salvador - Bahia( 3492-6365 / 8777-5415 [email protected]

dom emAnuel d’Able do AmArAl

Largo São Bento, 01 Centro41205-220, Salvador - Bahia( 2106-5272 /[email protected]

edivAldo m. boAventurA

Rua Dr. José Carlos, 99, Acupe de BrotasCond. Parque das Mangueiras, ap. 801, 40290-040, Salvador - Bahia( 3276 1242 / 8818 [email protected]

evelinA Hoisel

Rua Mons. Gaspar Sadoc, 48, Jardim de Alá41750-200, Salvador -Bahia( 3343 5789 / 9968 [email protected]

FernAndo dA roCHA Peres

Avenida Sete, 2901, Ladeira da Barra,Cond. Solar das Mangueiras, Ala Norte, ap. 202,40130-000 Salvador-Bahia( 3336 3670 / 9956 [email protected]

Page 504: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

502 ◄◄

FlorisvAldo mAttos

Rua Sócrates Guanaes Gomes, 107Ed. paço Real, ap. 801,Cidade Jardim, 40296-720, Salvador - Bahia( 3353 9785 / [email protected]

FrAnCisCo sennA

Rua prof. Milton oliveira, 73Ed. palazzo Anacapri, ap. 202Barra, 40.140-100, Salvador - Bahia( [email protected]

GerAldo mACHAdo Rua Edith Mendes da Gama e Abreu, 300Ed. port Saint James, ap.1403, 41815-010 Itaigara, Salvador - Bahia( 3353-5350 / [email protected]

GláuCiA lemos

Rua Ceará, 853, ap. 203, pituba4l830-450, Salvador-Bahia ( 3240-3688/[email protected]

GuilHerme rAdel

Av. Euclides da Cunha, 12Ed. Carlos Crivelli, ap. 102, Graça40150121 Salvador - Bahia

Page 505: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 503

Hélio PólvorA

Avenida Sete de Setembro, 1862Ed. Portão do Mar, ap. 1202, Corredor da Vitória, 40080-004, Salvador - Bahia( [email protected]

JoACi Góes

Rua Alceu Amoroso Lima, 172Ed. Office & Pool, 8º andar41.820-770, Caminho das Arvores, Salvador - Bahia ( 3444-2308 / [email protected]

João CArlos sAlles

Rua pe. Camilo Torrend, 145, ap. 202Ed. Barra dos Coqueiros, Federação40210-650, Salvador - Bahia( [email protected]

João CArlos teixeirA Gomes

Rua Espírito Santo, 15 Ed. Espírito Santo ap. 802, pituba41830-120, Salvador- Bahia( [email protected]

João euriCo mAttA

Rua Afonso Celso, nº 301Ed. Concórdia, ap. 302, Barra40.140-080 Salvador - Bahia( 3247-0869/[email protected]

Page 506: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

504 ◄◄

José CArlos CAPinAn

Rua Tamoios, 96, Rio Vermelho41940-040, Salvador - Bahia ( 3345-2080 / [email protected]

luís Antonio CAJAzeirA rAmos

Rua Érico Veríssimo, 34Ed. Itapitanga, ap. 401, Itaigara41815-340, Salvador - Bahia( 3345-6969/[email protected] luís Henrique diAs tAvAres

Rua do Ébano, 159 ap. 802,Ed. Henri Matisse, Caminho das Árvores 41820-370, Salvador - Bahia( [email protected]

mãe stellA de oxóssi

Rua Direta de São Gonçalo do Retiro, 557 São Gonçalo do Retiro, 41185-055, Salvador - Bahia( [email protected]

monsenHor GAsPAr sAdoC

Rua Crispo de Aguiar, 10Ed. Hermelinda, ap. 102, Vitória40080-310, Salvador - Bahia( 3336-0346

Page 507: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 505

mYriAm FrAGA

Rua Waldemar Falcão, 761Ed. Parque das Árvores, ap. 301, Brotas40295-001, Salvador - Bahia( 3356-4611 / 8151-1413fundaçã[email protected]

ordeP serrA

Rua Barão de Itapoan, 142Ed. Barravento, ap. 202, Barra40140060, Salvador – Bahia( 8869-1531

PAulo CostA limA

Rua Sabino Silva, 282Ed. Saint Mathieu, ap. 401, Jardim Apipema40155-250, Salvador – Bahia( 8832-1545 /[email protected]

PAulo FurtAdo

Av. Orlando Gomes, Condomínio Parque Costa VerdeQuadra H, Lote 3, 41650-120, Salvador - Bahia( 3367-9481 / [email protected]

PAulo ormindo de Azevedo

Rua João da Silva Campos, 1132, Itaigara41840-060 Salvador - Bahia( 3358-7571 / 8816 [email protected]

Page 508: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

506 ◄◄

roberto sAntos

Rua Basílio Catalá de Castro, Quinta do Candeal Quadra B, lote 19 - 40280-550, Salvador - Bahia( 3276 5759 / 9115 [email protected]

ruY esPinHeirA FilHo

Caixa postal 1033341520-970, Salvador - Bahia( 3287 2225/[email protected]

sAmuel Celestino Rua do Ébano, 159Ed. Henri Matisse, ap.1301, Caminho das Árvores41820-370, Salvador - Bahia( 3341-4485 / [email protected]

urAniA tourinHo Peres

Avenida Sete, 2901, Ladeira da Barra,Cond. Solar das Mangueiras, Ala Norte, ap. 202, 40130-000 Salvador - Bahia( 3336 3670 / 9956 [email protected]

WAldir FreitAs oliveirA

Rua Tiradentes, 52, Abrantes42840-000, Camaçari - Bahia( 3623 1434 / [email protected]

Page 509: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 507

YedA PessoA de CAstro

Rua Antonio da Silva Coelho, 151ap. 705, Jardim Armação41750-040, Salvador - Bahia( 3461-9033 / [email protected]

Membros correspondentes:

AlAin sAint-sAëns

Centro de Investigaciones Académicas,Universidad del Norte,Avenida Artigas y Calle Juan de Salázar,Asunción - [email protected]

AntonellA ritA rosCilli

Via Giacomo Barzelloti, 700136 Roma - Itá[email protected]

Antonio CArlos seCCHin

Av. Atlântica, 2112, aptº801Copacabana 22021001 Rio de Janeiro – RJ( (21) 2236-1112 [email protected]

átiCo FrotA villAs-boAs dA motA

Rua Dr. Manoel Vitorino, 411 – Coité46500-000 – Macaúbas – Bahia( (77) [email protected]

Page 510: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

508 ◄◄

CYro de mAttos

Travessa Rosenaide, 40 / 101 – Zildolândia45600-395 – Itabuna – Bahia( (73) 3211-1902 /(73) [email protected]

dominique stoenesCo

26 bis, allée Guy Mocquet94170 — Le perreux-sur-Marne — France((003133) 1 48 72 16 56 / (003133) 06 08 65 50 [email protected]

FrAnklin W. kniGHt

2902 W. Strathmore AvenueBaltimore, Maryland 21209 — USA

GlóriA kAiser

Dr. Robert Siegerst, 15A 8010 – GrazÁustria – [email protected]

HelenA PArente CunHA

Rua das Laranjeiras, 280/20022240-001 – Rio de Janeiro - [email protected]

isA mAriA CArneiro GonçAlves

Rua Milton Melo, 413 – Santa MônicaFeira de Santana – Bahia 44050-560( (75) [email protected]

Page 511: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Revista da academia de LetRas da Bahia, nº 53, 2015

►► 509

luiz Alberto de viAnnA moniz bAndeirA

Reilinger Strasse, 19, D68789 — Deutschland

JorGe rAul dA silvA Preto

Rua dos Sobreiros, 233 3º, D.tEdifício Vistamar - Costa da Guia2750611 Cascais – portugal( (00351) [email protected]

luiz Alberto viAnnA moniz bAndeirA

Reilinger Strasse, 19, D – 68789Deutschland – Alemanha

mAriA beltrão

Rua prudente de Moraes, 1179, CoB. 01Ipanema – Rio de janeiro – RJ( (21) 2247-4180mcmcbeltrã[email protected]

ritA olivieri-Godet

24, Avenue Sergent Maginot35000 Rennes, France( 02 99 67 35 [email protected]

vAmireH CHACon

Universidade de BrasíliaInstituto de Ciência política70910-900

Page 512: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

A Revista da Academia de Letras da Bahia nº 53Foi publicada em março de 2015

Ano do centenário de nascimento dos acadêmicosoldegar Franco Vieira, Josaphat Marinho, Jorge Calmon

e José CalasansE do escritor e acadêmico Adonias Filho

Page 513: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada

Presidente da ALBAramis Ribeiro Costa

Diretor da revistaFlorisvaldo Mattos

Conselho editorial

Fernando da Rocha peresMyriam Fraga

Ruy Espinheira Filho

Produção editorialAramis Ribeiro Costa

Editoração e arte final

Elimarcos Santana

serviço editorialVia Litterarum Editora

Page 514: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 515: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada
Page 516: REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA · de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada