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Revista FEPAL

Editorial

7 Palavras do editorDr. Leopold Nosek

11 Palavras do presidenteA psicanálise e o mundo de hoje. Mudanças e permanênciasDr. Marcelo N. Viñar

21 Palavras do coordenador científico Dr. Javier Garcia

Mudanças e permanências

1. Metapsicologia

25 Introdução ao artigo de Ignacio Matte-Blanco Ignacio Gerber Artigos clássicos

27 Expressão em lógica simbólica das características do sistema Icc ou a lógicado sistema Icc Ignacio Matte-Blanco

33 Sentido, significação, sonho e linguagem: reflexões sobre as formas deconsciência no processo analítico Isaías H. Melsohn Comentários

44 Metapsicologia de um drama clínico: o começo que insiste no final daanálise Sônia Abadi

49 Comentário ao trabalho de Isaías H. Melsohn Fanny Schkolnik

2. Psicanálise e cultura

Artigos clássicos

53 Considerações psicanalíticas sobre a música e o músico Enrique Racker

67 Humanismo psicanalítico e a guerra Cyro Martins Comentários

83 Da psicanálise problematizadora à psicanálise problematizadaSerapio Marcano

95 A partir de dois ensaios Henrique Honigsztejn

3.Clínica e psicanálise

Artigos clássicos

103 Psicanálise do enquadre psicanalítico José Bleger

114 Processo e não-processo no trabalho analítico Madeleine Baranger, Willy Baranger y Jorge Mom

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Comentários

132 Facilitadores e inibidores do processo analítico Juan Vives Rocabert 148 Para uma psicanálise do processo psicanalítico. Enquadre, processo e

não-processo B. Miguel Leivi

4. Crianças e adolescentes

Artigos clássicos149 O Mundo do adolescente Arminda Aberastury 164 A casa: cena da fantasia Vida Maberino de Prego

Comentários 180 A respeito do trabalho de Arminda Aberastury , "O mundo do adolescente"

Liliana Pualuan de Gomberoff 185 A propósito de "A casa: cena da fantasia"

Liliana Pualuan de Gomberoff 188 Sobre "O mundo do adolescente" de Arminda Aberastury e "A casa: cena

da fantasia" de Vida Maberino de Prego Pablo Cuevas Corona

Artigos premiados da FEPAL

Prêmio Sigmund Freud

193 Interpretação psicanalítica: uma composição dodecafônicaCintia Buschinelli

Prêmio FEPAL

201 Rêverie grupai, uma função possível? Amalia Giorgi, Carlos Curto, Cristina Blanco, Diego Rapela, Dolores Banhos, Lidia Lansky, Teresa Reyna

Prêmio Psicanálise e Literatura Cyro Martins

208 Celebração e dromedários Augusto Escribens

Prêmio Psicanálise Crianças e Adolescentes

217 Considerações teórico-clínicas sobre as patologias severas na adolescência Rodolfo Urribarri

Prêmio Psicanálise e Mitos

231 Mística e religião Andrés Rascovsky, Rosa Petronacci de Hacker

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Palavras do editor

Dr. Leopold Nosek

A equipe editorial da FEPAL traz aos colegas mais um número de sua revista. Após a reforma dos estatutos a diretoria já está em funcionamento pleno, mas sentimos que a política para publicações padece de um certo caráter provisório. O trabalho editorial nos mostrou com clareza que, devido ao caráter das opções de política científica de um programa de publicações, estas necessitam um tempo maior para sua maturação e pleno estabelecimento.

Assim, a Revista FEPAL deveria ter uma certa independência do período de gestão de uma comissão diretiva, inclusive uma certa independência política. Esta é uma clareza que não tínhamos, e na última reunião de delegados da FEPAL ficou acertado que a próxima diretoria criaria uma política específica para publicações.

De qualquer forma, este número pretende ser expressivo do projeto presidido por Marcelo Viñar para este período. Pretendemos rastrear nossa circunstância que gera um pensamento original mesmo que alimentado por ondas migratórias e colonizadoras de grupamentos teóricos. Os modelos da matriz "civilizatória" sofrem uma sensível mutação ao se aclimatar em nossas paisagens. Assim, como exemplo, o que vem da origem de um sistema de cultura protestante, tem que se aclimatar numa conjuntura do pensamento católico, que por sua vez já foi matizado em um sincretismo com a miscigenação índia e negra. Pretender uma pureza teórica dos modelos da matriz seria não levar em consideração a modulação que a sociedade e sua história trazem. O mesmo pode ser dito da importação ao pé da letra, de modelos econômicos que desconsideram o meio em que se aplicam.

Há uma singular dialética entre a universalidade de nossa ciência e a particularidade de sua inserção local, e ainda, entre o limite de sua inevitável aplicação individual e mais radicalmente, a instantaneidade única do aqui/agora de um acontecer analítico. De qualquer maneira, estamos diante da colocação em questão de ideologias que pro-fetizavam que "subdesenvolvidos" seriam entes que, com comportamentos adequados e lições corretas, tornar-se-iam "desenvolvidos", semelhantes às matrizes. Será que é nesta direção que se volta o nosso olhar, e neste anseio que se baseiam nossos projetos? Estamos mesmo restritos à parte belga de nossos Congo-belgas? Não seria o caso de tomarmos como exemplo nossa literatura que produziu um movimento tão próprio como o realismo fantástico? Não seria o caso de olharmos paraVilla Lobos, Ginastera, Borges, Guimarães, García-Marquez e tantos outros? Não seria uma busca interessante decantarmos nossa identidade psicanalítica? Seria ela pobre? Seria ela imitação? Seria ela subdesenvolvida de modo a não termos possibilidade de amor próprio? Seria ela mais um sincretismo de novos mundos? Teria ela a centelha criativa que nasce de instituições mais frágeis? Que seria de nossos autores, se ao invés de escreverem espanhol e português, escrevessem inglês? Inúmeras questões estão diante de nós.

Nosso Congresso, organizado sob a coordenação do colega Javier Garcia, se propôs a centrar seus debates sob a consigna "Mudanças e Permanências". Não podemos deixar de nos interrogar não somente sobre nosso caráter latino-americano, mas tam-

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Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

bém sobre as mudanças que ocorrem no mundo e que fazem com que iniciemos este novo milênio plenos de questionamentos e perplexidades.

Globalização, Neo-Liberalismo, Pós-Modernismo, cultura do narcisismo, fim da história são novos conceitos ou roupagens novas que obscurecem nossa possibilidade de análise como se o mundo tivesse se re-inventado e nada do conceituai que possuíamos nos servissem. Será o mundo tão novo? Não seria o mundo permanentemente novo e sempre previsões e futurologistas falharam? Não seriam os idealismos e os positivismos tropismos permanentes que transformam e descoram as possibilidades de conhecimento, tornando-as religiosas? Não devemos abandonar conceitos por um fracasso conjuntural.

A globalização não estaria já instalada quando a prata das Américas chegou à Espanha causando a inflação que talvez estivesse na raiz da derrota da Grande Armada de Felipe II? Neo-Liberalismo implica mesmo numa novidade conceituai? Não estaríamos mais bem servidos com os velhos conceitos de capital, lucro, mercadoria, etc?

Talvez pudéssemos encarar nossa época como uma radicalização da concentração de capitais, aumento da velocidade comunicativa com conseqüente aceleração de trocas, concentração de eficácia de trabalho com aumento de sua carência. O capital privado tem poder de investimento maior que a imensa maioria dos Estados. Com isto a violência da coisificação do humano só faz crescer. A velocidade de trocas incrementa a valoração da imagem e da aparência. Maquia-se desde pessoas até balanços de empresas. Uns devem emagrecer, outros engordar. A própria individualidade se radicaliza sem o enriquecimento e proteção que a solidariedade social promove.

Para tomarmos um exemplo relativo ao nosso campo de interesses, há um deslocamento de políticas de saúde mental pública para políticas cientifizantes ligadas às neurociências. Laboratórios farmacêuticos, fruto de crescimento e fusões constam atualmente, três deles, entre as dez maiores empresas do mundo. Dois deles são maiores que a multinacional Nestlé. Diagnósticos psiquiátricos são postulados não mais em formas de funcionamento ou psicopatologias, mas em conjuntos sintomáticos. Isto facilita o encaminhamento de condutas terapêuticas medicamentosas de forma que qualquer especialidade médica aventura-se com facilidade nos mistérios anímicos intervindo com indicações psiquiátricas. A política dos laboratórios e o valor dos medicamentos repercutem no valor das ações. Há uma sutil conseqüência de corrupção de conceitos e condutas. Hoje as principais revistas médicas internacionais obrigam a que, uma pesquisa a fim de que seja publicada, explicite antes a origem dos fundos para sua realiza-ção. A radicalização da concentração do capital resulta num expressivo incremento da coisificação humana. Que maior violência do que tornar o homem objeto? Não é esta a matriz de todas as violências? Ao nos preocuparmos em cuidar da alimentação, abrigo e saneamento, não saímos ainda dos cuidados que um vegetal necessita. Quando terão nossas populações assegurados os mesmos direitos básicos de uma plantinha?

O fundamentalismo dos stock markets penetra em todos os campos. Já são clássicos os estudos de Adorno sobre a indústria cultural. Assim é também no campo médico, campo psiquiátrico. Mas, como aprendemos nos clássicos, o capitalismo é o primeiro modo de produção que se revoluciona permanentemente e seus malefícios são correlatos a seus benefícios. Assim como liberta imensas potencialidades criativas, estas são feitas intrinsecamente com ampliações de exclusões e destruições. Movemo-nos permanentemente adiante. De nada nos servirão anseios nostálgicos.

Neste campo move-se também nossa disciplina específica, a psicanálise. É matizada pela sua inserção no mundo e sua prática bem

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como sua teoria dão cores específicas à compreensão e modificação de sua circunstância social. Faz parte das ideologias que são matéria social tanto quanto outras práticas de sobrevida. A psicanálise tem como destino fazer parte das disciplinas críticas.

Neste contexto situa-se nosso Congresso. Com a radicalidade de um mundo onde as antigas utopias feneceram, modificam-se nossas práticas e nossas teorias. Para tomar apenas um ponto como exemplo, a desestruturação aguda de formas usuais de organização social traz como conseqüência na organização do trabalho e da família de modo que a própria estruturação do sujeito se faz de forma peculiar. A velocidade com que evolui cada ciclo novo de transformações, impede a criação de novos costumes, nos colocando diante de novas patologias. Estas tornarão necessárias modificações técnicas e desenvolvimentos da metapsicologia no final de reorganizações institucionais. Não se trata de crise a não ser que concordemos que a psicanálise sempre se alimentou de impasses. Octavio Paz nos fala da crise atual das utopias lembrando que se as respostas falharam, por outro lado as perguntas eram boas e necessárias. As questões permaneceram.

Anorexia, obesidade, pânico, patologias narcísicas, patologias border-line, todos possuem em comum uma pobreza de organização simbólica que talvez coloque em questão uma reflexão acerca da metapsicologia das fronteiras. A ausência de arquitetura e povoamentos psíquicos privilegia a ação sobre a simbolização e nos coloca diante do incremento necessário de coragem clínica com ampliação da interação do par analítico. Este é um longo desenvolvimento, mas temos prenúncios dessa necessidade nos conceitos de barreira de contato, eu-pele, retorno do conceito de sedução primária, etc. Mas este é apenas um editorial, a reflexão mais ampla estará nas páginas da Revista e principalmente no próximo Congresso da FEPAL.

A poesia plasma o passado no presente de suas palavras e como tal aponta para o futuro. Nesta direção, respeitando nosso acervo, publicamos nos eixos do Congresso alguns de nossos clássicos latino-americanos, comentados por autores atuais. Teremos uma análise sensível de Marcelo Viñar sobre as modificações do mundo atual e suas repercussões na prática clínica e teórica de nossa disciplina. Javier Garcia nos apresenta o trabalho do comitê científico, onde tomamos conhecimento da árdua tarefa e da ideologia subjacente à preparação deste Congresso.Teremos na seqüência, seguindo os eixos temáticos (alguns) propostos no Congresso, artigos clássicos da América Latina comentados por autores atuais. Estabelecer uma linha histórica com o nosso desenvolvimento de idéias, respeitando nossas raízes, nos parece fundamental. Nossas grandes linhas teóricas provêm de outros centros. Por outro lado nosso aprendizado ocorreu no convívio pessoal onde o diálogo vivo foi parte fundamental. Os comentadores partindo destas raízes nos mostram nosso presente e apontam para o futuro.

Iniciamos com o eixo Metapsicológico. Idéias críticas como as de Isaías Melsohn nos mostram que talvez um deslocamento de ênfase se torna necessário. Da pesquisa do oculto, da dicotomia do manifesto e latente partimos para uma ampliação da busca e expressão de sentido da vida anímica. Nada mais atual de se refletir. Por outro lado, a lógica do inconsciente em Matte-Blanco possui desenvolvimentos originais que o arti-

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go apresentado nos traz uma amostra. Sônia Abadi e Fanny Schkolnik trazem sua visão pessoal a partir deste desafio.

A violência e a cultura permeiam o eixo seguinte, nos artigos de Cyro Martins e Henrique Racker. São comentadores agudos Serapio Marcano e Henrique Honigsztejn.

Inesquecíveis mestres como Bleger, Baranger, Arminda Aberastury e Vida Maberino de Prego, serão re-visitados por Juan Vives Rocabert, Miguel Leivi, Liliana Pualuan e Pablo Cuevas.

Finalizando, temos os artigos premiados no último Congresso da FEPAL realizado em Porto Alegre. Prêmio justo à produção de membros e candidatos de nossas Sociedades.

Encerro este editorial agradecendo a sorte de participar do comitê de publicações da FEPAL e reconhecendo a enorme dívida que permanecerá em relação aos colegas e amigos que participam da equipe editorial. O desafio que nosso meio nos propõe é um desafio a nossa criatividade e um privilégio de, diante de um mundo social e psicanalítico latino-americano por construir, participar do desafio deste empreendimento.

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Palavras do presidente

A psicanálise e o mundo de hoje. Mudanças e permanências.

Dr. Marcelo N. Viñar

A propósito de histórias e filiações, não há, "infelizmente", uma origem primitiva da qual podemos reconstruir a verdade.Verdade e origem não andam, necessariamente, juntas. Não há uma única história das filia-ções ou das genealogias do Outro, há muitas. Ainda não se fez um mapa histórico das diferentes filiações que, tanto de dentro como de fora da América Latina foram elaboradas pelos múltiplos e heterogêneos sujeitos envol-vidos na história desta parte do mundo. As filiações, como toda história das origens, são campos de batalha onde os diferentes sujeitos lutam pela memória. Arquivo, genealogia, filiação são formas de memória. E a memória, como é sabido, não é uma nem única.

O Outro, o Outro canibal ou bárbaro, o Outro objeto de um discurso, o Outro necessário para que o ego se constitua como sujeito, aparece e reaparece na construção das filiações, ou o que é o mesmo que a memória, seja individual, coletiva, pública, histórica ou oficial. Situar e filiar o Outro possibilita estabelecer o posicionamento de quem fala, possibilita desenhar ou inventar memórias, possibilita construir passados ou apagar histórias....

Hugo Achúgar1

Que permanências (que tradições, constâncias) e que mudanças com respeito ao que em épocas passadas se chamou de a natureza humana, procurando discernir as variáveis e invariantes que podiam defini-las. Ou, mais tarde, condição humana, porque natureza grifava demais a invariante, e condição enfatiza o caráter cultural e histórico de cada construção em sua época. A psicanálise freudiana - como método e teoria - se propôs desde sua origem, a estudar a causalidade inconsciente, como contribuição específica à compreensão da subjetividade e do laço social.

Se eu sou o outro, como repetimos desde Freud, se há prioridade do outro, como se radicaliza desde Lacan, então, não basta definir os perfis e contornos do ser, como substância ou entidade; senão submergirmos na história, onde o espaço-tempo de uma cultura, sustentam os pilares de algo que podemos chamar sujeito singular.

Com que noção de Sujeito Psíquico trabalha o psicanalista no alvorecer do século XXI? Além de contribuir com respostas e teorias sempre redutivas, trata-se antes de qualquer coisa, de desenhar a paisagem ou o contexto em que esta pergunta crucial possa se desenvolver.

Lembremos que, etimologicamente, sujeito quer dizer: sujeitado a. Não é suficiente, então, descrever qualidades ou atributos que definam uma essência ou natureza de uma entidade que chamaríamos de sujeito humano. É mister descrever e reconhecer as sujeições que organizam e guiam seu pensar. Este é o grande salto teórico de uma metapsicologia das relações objetais (que apontam a um sujeito consciente de si, na autarquia de seus vínculos) a outra metapsicologia onde a prioridade do outro, subordina o sujeito e o descentra.

A esta contribuição crucial de Lacan e da escola francesa à história da psicanálise, se tenta hoje movê-lo da condição fixa e abstrata da noção estrutural e de confrontá-lo à história social de cada tempo e lugar. Como disse D. R. Dufour, o grande outro dos gregos foi

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Phisis, o deus único para os monoteístas, o rei para a monarquia, o povo para a república; todos, e cada um, dispositivos de crença, ou criação de seres discursivos, que apoiavam a realidade mental do sujeito. Qual é o grande outro de hoje? No que consiste?

O "ser um mesmo" e o "ser com os outros", se apresenta sobre formas sensivelmente diferentes que em épocas anteriores. Com o esgotamento ou desaparecimento dos relatos de legitimação (políticos ou religiosos), se destaca um sujeito autônomo, jurídica, econômica e simbolicamente. Autônomo por sua definição auto-referencial, que desconhece anterioridades ou exterioridades fundadoras e excêntricas à auto-afirmação.

Na modernidade, vários referentes (religiosos, filosóficos, políticos, culturais), competiam ou entravam em conflito gerando a controvérsia e o pensamento crítico. Atualmente, a desertificação de discursos legitimantes cria a tentação de uma autopro-criação. A função coesiva que o discurso unificador do Outro cumpre, foi desfeito ou fragmentado, nesses tempos neoliberais. Ao culto do indivíduo sozinho e livre, a ilusão de autonomia envolve o risco da fragilidade ou o vazio. Desde a onipotência auto-referencial e a destituição subjetiva, surgem as próteses identitárias que suprem a carência do outro, o grupo, ou sua variante sociopática: a patota ou sua variante crente: a seita ou sua variante desumanizada: as condutas aditivas.

Hoje em dia sabemos (ou estamos conscientes com mais certeza e evidência), que se o mundo muda, muda também a mente. Daí os historiadores falarem de mentalidade e sensibilidade , para semiotizar os relevos que caracterizam os perfis de cada época. Fazemos mal, se somente repetimos o catequismo freudiano, sem levar em conta o efeito dessas mudanças. Atualização que configura uma conquista porém nos lança na incerteza.

Globalização e mutação civilizatória são termos abrangentes de realidades múltiplas e complexas que temos necessidade de usar porque formam parte do repertório da realidade política, acadêmica e mediática, que utilizamos por contágio o mimetismo, com mais ou menos trabalho reflexivo, mesmo que ninguém possa definir exata e exaustivamente qual o seu conteúdo.

Sabemos que são termos que aludem à atualidade e ao futuro dos habitantes do pla-neta, onde confluem, desde os efeitos da revolução informática, (que habilita a instantaneidade planetária, tanto na comunicação como nas transações comerciais), e que por sua vez multiplica a expansão científico-tecnológica, e o volume do comércio internacional.

A noção inclui a explosão demográfica da população do planeta, e o aumento significativo da esperança de vida ao nascer (que de 50 anos no século passado chegou a 75-80 atualmente no mundo desenvolvido).

Paradoxo e alarme: os vetores ou fatores que indicam desenvolvimento e progresso, são os mesmos que incidem na degradação ecológica das espécies e sobretudo das reservas de matéria prima, começando pelas mais essenciais como a água, o ar atmosférico e os combustíveis fósseis, criando problemas tanto a níveis locais como a níveis planetários.

Fomento esta lista como uma avalanche que aturde. É o efeito que me provoca e que quero provocar, porque o difícil não é repertoriar os ingredientes mas sim a complexidade e combinação de suas interdependências e interações causais.

Tudo isso sabemos sobre globalização; o suficiente para provocar a surpresa, o desconcerto, o pânico ou a nostalgia, sempre existente, de tempos passados e melhores, que nossa ilusão sempre pode configurar.

Mudança ambiental e mutação societária se agitam numa dança, talvez macabra,

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ou pelo menos estridente, e sua difusão mediática dificilmente nos impele à postura do cidadão ativo e participativo, ou melhor à de espectador passivo e anulado, para quem tudo acontece como um espetáculo, enquanto masca chiclete ou come batata frita crocante, enquanto a resolução é assunto de especialistas ou estadistas. É a delegação de res-ponsabilidade, que compele o cidadão a sua condição de votante ou consumidor.

Neste limite de conjuntura econômica, demográfica e ecológica, é necessário integrar as mudanças societárias que marcam o século XX, que Sérgio Rouanet enumera da seguinte maneira:

O lugar da mulher: a irrupção do movimento feminista em uma cultura de tradição androcêntrica e patrilinear.

O lugar da homossexualidade: gay e lésbica. Entre a homofobia e a luta pelo reco-nhecimento das diferenças, da vergonha ao orgulho e a dificuldade em encontrar critérios ou fundamentos para definir um limite entre a transgressão legítima e a inaceitável.

O racismo e a discriminação étnica, religiosa, cultural, econômica do caboclo e do nordestino. Pela cor da pele e pela pobreza, mais que pela religião e pelos traços étnicos, o que parece ser uma diferença substantiva entre Europa e América Latina dos processos de exclusão.

Nós, psicanalistas, ao vermos o mundo desde o íntimo e privado, deixávamos o macro-social aos políticos, sociólogos, economistas e aos historiadores que acreditávamos possuir o universo conceituai e os instrumentos de observação para compreender o macro, para medir as mudanças e ler sua dinâmica e evolução. Atualmente a determinação é procurar articulações entre o macro e o micro, entre o sujeito público e o da intimidade. É difícil conceber a um sem o outro.

Houve um tempo - em minha juventude - onde os paradigmas científicos da modernidade exigiam como ideal segmentar para compreender e por conseguinte cada disciplina mantinha cuidadosamente os contornos de seu campo, uma proclamada especificidade de sua metodologia e de seu objeto. Os híbridos eram severamente condenados por bastardia. Hoje em dia os fundadores postulados desta ortodoxia estão condenados e o intervalo entre o sujeito público (objeto da sociologia, da história ou da antropologia) e o sujeito da intimidade, dimensão privilegiada da abordagem psicanalítica, já não possuem relações de oposição entre si, incompatibilidade ou exclusão recíproca, senão de complementação parcial; sempre que os recortes e conexões na transversalidade, sejam feitos com prolixidade e rigor de racionalização.

O interdisciplinário não se determina pela somatória e justaposição: um saber acumulativo, totalizante e míope que nos levava a recitar que o homem era uma unidade bio—psico- social. A interdisciplina deve dar lugar a perguntas e problemas precisos e circunscritos, onde a visão de distintas disciplinas possa enriquecer a descoberta local, em um ponto preciso da interrogação abordada.

Que subjetividade propõe este mundo globalizado pela instantaneidade da informação, pela globalização do comércio, pelo poderio da expansão científico-tecnológica, pelo conhecimento instrumental - tanto em seus aspectos civilizatórios, como em seus aspectos mortíferos e criminais - e pela persistência sustentada e crescente da desi-

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gualdade ao acesso à disponibilidade desses bens naturais e culturais?Na geração dos anos 60, um certo otimismo no progresso da civilização e da ciência,

era inquestionável. A congruência de um sistema de pensamento (meta-relatos) e os valores, as ilusões, as utopias a que dava lugar, estavam no coração dos anseios pessoais e coletivos.

Hoje, a mutação civilizatória questiona um dos postulados da modernidade - de inspiração hegeliana - de que a história e o conhecimento seguiriam um espiral de progresso numa teleologia expansiva, de fundamento quase teológico.

A este projeto no espaço citadino, político e social, correspondia um espaço aca-dêmico, onde tanto nas ciências exatas como nas naturais e humanas, se buscava um saber congruente e harmonioso em suas partes, onde, na especificidade do método e do objeto abordado, foram descobertas as leis gerais próprias do paradigma desse campo do saber. Isto se validava pela verificação e pela previsão. Esta ilusão ou utopia da modernidade feneceu nesse final de século. A incerteza venceu tanto no âmbito político como no epistemológico. Assistimos à irrupção do precário, do descontínuo, do fragmentário, do impreciso. De um dispositivo pensante que se empenhava no determinismo e na previsão, procurando categorias e entidades estáveis para pensar o mundo e a nós mesmos, passamos não somente a um mundo imprevisível, porém sobretudo ao fato de que certas categorias que eram pilares e motores para pensar e conceber nossas representações e valores, tornam-se hoje instáveis, quando não estranhas e temíveis.

Quem não tinha idéias claras e definidas sobre família, trabalho, sexualidade ou morte? O sujeito ocidental da modernidade dialogava e se posicionava a partir destas noções buscando fronteiras nítidas do que se considerava desejável, ordenado e o que era alteração, transgressão, perversão. Posicionava-se na obediência ou na transgressão, porém sua opinião era clara, sem ambigüidade.

Em meio século, a mudança de mentalidade é ostensiva. Passamos de uma nor-malidade branca, cristã, masculina, burguesa e mercantil a um desconcerto onde os critérios hegemônicos que eram compartilhados, ou ao menos detectáveis e nos posicionava seja na legitimação e na obediência, seja no protesto e na rebelião. Essa firmeza de critérios, hoje, terminou.

Hoje, o aumento exponencial do divórcio, com seus efeitos de famílias recompostas ou monoparentais, desde o tempo em que os homossexuais eram condenados como delinqüentes, até aprovar os casamentos de gays e lésbicas, de conceber a expansão tecnológica e produtiva, como valor positivo e esperança libertadora, até valorizá-la com terror ou, pelo menos, preocupação, diante da alarmante deterioração ambiental e ao esgotamento de matérias primas tão básicas como a água e as fontes energéticas; o crescimento demográfico com a crescente desigualdade econômica que atinge níveis escandalosos, tanto nos extremos de miséria como nos de consumismo.

Portanto, estamos aprendendo - não sem penúrias nem sem combate - que o conjunto desses fatos não são alheios ao funcionamento do psiquismo. A psicanálise havia inventado um sujeito da realidade psíquica (alimentado por seu caldeirão pulsional e identificatório) claramente discernível do cidadão comum. A Realidade psíquica de certo freudismo e o kleinismo, se entendiam como termos antinômicos, ao sujeito da consciência. Hoje tentamos pensá-los na complementaridade e interação, como verso e reverso de uma realidade à qual somente consentimos de modo parcial e fragmentário.

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Palavras do presidente A psicanálise e o mundo de hoje. Mudanças e permanências. Dr. Marcelo N. Viñar 15

Concebíamos o infante, na pré-maturidade de seus começos, como um ego frágil que engordava ou amadurecia por aposição estratigráfica, nutrido da bondade, do terror da pulsão e do acréscimo da experiência. Nesta ontogenia que amadurece e se desenvolve, a presença da linguagem e da cultura ocuparam um lugar secundário, ou não tinham lugar. A este movimento centrífugo, desde o sincretismo e a simbiose do começo, à individualidade e singularidade ao final do caminho, era-lhe atribuído um dos objetivos do final da análise: parir a um sujeito psíquico.

O tempo vivido mudou em nossos novos tempos - o que hoje está sendo chamado de discurso sessentista - a subjetividade se organizava numa percepção de si mesmo como um conjunto de anseios e projetos, de expectativas e ilusões; um presente que se nutria do passado e se abria a um futuro que acreditávamos previsível e domesticável pela vontade e pelo empenho pessoal e/ou coletivo. Ninguém se assustava quando se batia no peito e gritava "o voto que a alma pronuncia"2 , surgiam ingredientes de auto-afirmação, onde o capital de nossa história pessoal e comunitária se investia a um prazo de 30 anos. Hoje ninguém predica por mais de 90 dias, ou - com risco - um ano. A história e o espaço político eram um potro a ser domado, assim diziam não só os discursos esquerdistas, revolucionários, mas também os tradicionais do desenvolvimentismo da CEPAL.

A imagem de Chaplin em O Garoto, The Kid, andando de mão dada com o menino pelos trilhos que se estendiam até o infinito, com um sorriso doido, porém esperançoso, é a figura que minha memória indica como o mais apropriado para definir o tempo interior ou vivido pregnante nesta época. Construção ilusória mas imaginária que cristalizava o ser e o devir num estado de ânimo. O futuro introduzia suas raízes em profundidades mais ou menos obscuras de lealdades e rupturas. Um tempo interior historiável, um presente que se reconhecia como conjunção de lembranças, de possíveis anseios e projetos, onde, na junção de aspirações pessoais e movimentos coletivos, podíamos tender a uma certa cota de protagonismo no parto de uma ilusão de singularidade. Sabíamos que remando chegaríamos a um destino.

Hoje, a subjetivação do tempo vivido é de outra categoria que não é fácil descrever nem semiotizar. O super aquecimento do presente e da memória imediata, sustenta Pierre Nora, precariedade ou imprevisibilidade do futuro. Viver cada dia é o objetivo. A geração que advém hoje ao cenário da história, o faz com outra angústia. Os diplomas e os títulos que eram o início de um caminho de autonomia, são hoje um capital incerto para alcançar um lugar próprio na sociedade. Podem dizer (e é certo) que essa é uma visão de classe média intelectual, mas era em outros tempos uma imagem contagiosa que não somente se alimentava, mas também servia de referência à meta de mobilidade social, de compartilhar ideais, vínculos solidários e igualdade de oportunidades ao atual salve-se quem puder: somente os melhores sobreviverão. Obscuras derivações darwinianas ou maltusianas, somente se salvarão os mais aptos, de uma seleção que ninguém se preocupa em discernir quando é natural e quando é depredadora, desde o hippie, o roqueiro, ou o adicto. Alguém que se destaque e seja visível na massa anônima e amorfa.

O tempo humano interiorizado, subjetivado, que nós, psicanalistas, exploramos, tempo de estagnação para desenvolver um relato, uma história sobre nós mesmos, estão hoje profundamente alterados e modificam a experiência humana. Os ritmos do trabalho e do ócio estão profundamente mudados no mundo atual. O tempo que usávamos para nos ver e conversar está fragmentado ou substituído pelo computador ou pela televisão. O

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que as avós ou tias contavam com ternura ou picardia, hoje é um espetáculo na tela da tele-visão. O tédio e o fastio, que não sem penúria podia ou devia tornar-se um vazio produtivo, de criação ou invenção, nos devora para a posição passiva do telespectador por sua vez vazio e superestimulado. Um espetáculo visual sempre disponível, cujo atual extremo são os reality shows: Viver emprestado já que não há vida própria. Viver na extensão plana de uma imagem sem espessura. Também se vive emprestado na novela, como postula Tomás de Mattos, porém a relação com o texto e o autor que lemos, nos obriga a uma ocupação pensante, interpretante, ou teorizante, que a estupidez televisiva achata ou suprime.

A abundância de estímulos a processar num tempo vertiginoso parece ser uma aresta relevante dos tempos atuais. Não é fácil perguntar-se como isto incide em nosso foro interior (essa "entidade" que Freud denominou de aparelho psíquico).

A mente em moda em nossa atualidade é que se nega ao tempo, diz Manoel Castells. Quase tudo é instantâneo e efêmero, é a cultura do descartável nos objetos, talvez também nas palavras e nos encontros. Negação de um decurso temporal, que como o rio da consciência, de W James, antes rio de planície, hoje se torna de montanha, cheio de cachoeiras e corredeiras. Quem não está alerta, se afoga.

Estar tão em dia, agitados e apressados, a bout de soufflé, que muda a relação com a finitude. Antes houve um ser para a morte, um trânsito a tramitar. Hoje somos seres imortais, onde sem luto nem perda, um dia como por acidente, cessamos de existir. Quase ninguém morre em sua casa com os seus, entre o hospital e a casa de velório o problema se resolve de forma mais limpa e eficiente.

Talvez a escuta do analista, a disposição em escutar, seja um núcleo de resistência, uma alternativa a este perfil da civilização atual em sua expressão cotidiana. Tanto Lênin como Henry Ford, por meio do taylorismo e do stajanovismo. calculavam o tempo no rendimento, na linha de montagem que Chaplin ironiza em Tempos Modernos. Algo deste maquinismo industrial se entranhou em nossas mentes e propõe-nos a funcionar a sua imagem e semelhança. Qualquer um de nós é Carlitos quando temos na mão o controle remoto da televisão.

A crise do relato, (da qual nos fala Walter Benjamin em O Narrador), manifesta os efeitos daninhos desse acontecer fragmentado e epilético, e a palavra em análise, como espaço de ócio e remanso, é uma ferramenta a preservar com mais empenho que nunca, restituindo rituais, seqüências e gerando um espaço reflexivo, de remoer ou amassar a experiência anterior.

Julia Kristeva3 e Juan Cabane4 estabelecem pontes compreensivas entre esses ritmos convulsivos do acontecer cotidiano e os câmbios nos perfis sintomáticos e psicopatológicos que chegam a nossos consultórios. Sempre há nexos, mais ou menos estáveis, entre cultura e psicopatologia.

Pensar em cada época.

Diz-se que o homem possui a palavra por natureza.O ensino tradicional postula que o homem é, diferente da planta o do animal, o

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ser vivo capaz da palavra. Esta afirmação não significa que, junto a outras faculdades, o homem possua também a da fala. A afirmação quer dizer que é somente a palavra que torna o homem apto a ser o ser vivo que é, enquanto homem. O homem é tal enquanto ele é aquele que fala. Heidegger5

Esse tempo escandido por exigências múltiplas e diversas, modifica nossa relação com os outros e com nós mesmos. O assunto é pensar como inventar meios de observação e reflexão. Há muito tempo trabalhamos a idéia (nem nova nem original) de que nossa mente trabalha sucessiva e alternativamente em dois níveis discerníveis como distintos: um nível transitivo, operatório, deglutindo estímulos e acontecimentos ainda sem digerir, e somente numa segunda estância - como aprendemos da digestão bovina — gera-se um tempo reflexivo de assimilação, onde os acontecimentos se reordenam significativamente. A retroação e o après-coup, como circularidade entre o fluir sempre presente da consciência, e o tempo elaborativo do acontecer, como algo que se pode historiar, para criar um foro interior. Em outro texto arriscamos a fórmula de que "O homem que olha e vê, não é o mesmo que o que pensa". E seguimos o modelo do pesadelo, com seu impacto onírico e sua elaboração narrativa ulterior, como protótipo ou paradigma extremo ou excelso, da antinomia entre o dizer evacuativo ou explosivo, e o trabalho da Durcharbeiten.

O discurso modernista, sessentista, trazia uma marca ou um selo de origem: falava-se desde um vértice de crenças, (religioso, filosófico, profissional ou político) que posicionava o sujeito que enunciava e qualificava seu campo ou perspectiva. Este vértice se constituía em organizador e fundamento do relato.

Nós psicanalistas tínhamos os tópicos freudianos ou as teorias das pulsões, os marxistas, as leis do materialismo dialético e os crentes a deus que está no céu. Que valha, brevemente, este esquema simplificador.

Esses fundadores postulados provinham a plataforma ou atalaia, o alfa a partir de onde se percebia a paisagem do mundo e da existência: seus pontos próximos, focais, essenciais, suas zonas distantes e secundárias. Podia-se ser dogmático ou tolerante, porém a unidade e a coerência do desenvolvimento, definiam o perímetro do método e o objeto da ocupação. Cada campo científico se jactava de definir com precisão a área e os limites do objeto que tratava, sua unidade e congruência interna. Penso que o trânsito ou troca das causalidades determinísticas à incerteza e às causalidades caóticas, combinado à conjuntura sócio-política, dão lugar a mudanças no funcionamento de nossa mente.

Uma grande mudança da contemporaneidade é o fato de que os referentes que eram organizadores do relato estão desconcertando-o ou nem sequer sabemos nitidamente quais são.

Coordenadas e valores estáveis como os de família, trabalho, tempo, relato, cau-salidade, determinismo, educação, são convulsivamente questionados, tanto a nível político quanto epistemológico. A psicanálise que se propôs, desde seu início, trabalhar na junção entre biologia e a cultura, tem um trabalho árduo para atualizar suas coordenadas e abrir novas perguntas.

De que maneira e com que finalidade pode ou deve um psicanalista ser cronis-

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ta de seu tempo, e testemunha ativa, envolvido na história contemporânea e na cultura onde vive? Isto concerne ou não ao processo psicanalítico?

Sustenta T.Todorow: "O ponto de partida do Cientificismo envolve uma hipótese sobre a estrutura do mundo: este é inteiramente coerente e pode ser conhecido -sem restos - pela razão humana. O mundo seria transparente, e seu conhecimento integral é, então, possível. A tarefa seria confiada à prática científica. Uma conseqüência desse primeiro postulado é que se podemos apreender os segredos da natureza, as seqüências que esclarecem os fatos, também podemos modificá-las na direção que desejamos. Da ciência, atividade do conhecer, passamos à técnica, atitude de transformar. Desde a descoberta do fogo, domesticamos o calor e modificamos o clima natural, o mesmo ocorrendo com a seleção de espécies e grãos mais aptos a nosso consumo (seleção artificial). Há concordância e funcionalidade entre a transformação e o domínio da natureza e a vontade técnico-científica que a guia.

Mas esta transparência e manipulação da natureza pode querer ser transferida ao mundo humano. A utopia da transformação e do progresso levou ao sonho do Homem novo,que foi meta dos totalitarismos do século XX. Renán dizia que a grande obra se cumpriria pela ciência e não pela democracia, um campo polêmico de total atualidade.

O cientificismo se baseia na ciência, porém extravasa-a, excede-a, crendo que um conhecimento integral, é possível ou desejável. Hoje mais do que nunca é imprescindível discernir e manter o intervalo entre progresso científico-tecnológico e interrogação humanística; entre linguagem técnica e língua de tradição. Ninguém duvida que o avanço do saber médico aumenta a qualidade e a duração da vida. Todos celebramos e desfrutamos desse progresso, o que não obstante, é - em seus limites - a mesma sabedoria que serve para negar a morte e prolongar agonias. Que o genoma nos dê tais chaves do segredo da vida, que nos poupe outras interrogações do destino humano. Quero agora assinalar, somente, que o saber instrumental resolve muitas questões, mais outras, não pode fazer outra coisa senão deixá-las pendentes, a outra categoria de interrogações.

Na vertigem desta mutação civilizatória, não há lugar para a nostalgia nem para uto-pias restauradoras de um passado perdido. O mundo se tornou imprevisível, porém é o que vivemos e que ao partir deixaremos a nossos filhos. Não se trata, portanto, de formular um discurso queixoso sobre a catástrofe ou o Apocalipse; senão de reconhecer a crise de nossos modos permanentes e tradicionais de pensar e reconhecer a irrupção de novidade no estado atual de nossos referentes habituais (família, trabalho, sexualidade ou relação à morte).

As condições de homem e de cidadão, habitante de novas conjunturas voltadas ao presente e ao futuro da história são inventar, construir a nível pessoal e coletivo. No que nos é pessoal consideramos extinta e caduca uma definição do sujeito humano como indivíduo autárquico fechado em si mesmo, em seu mundo pulsional e identificatório, confinado a uma causalidade inconsciente. Este perfil, talvez considerado outrora como o mais relevante para a profissão psicanalítica, privilegiando a emergência de "relações objetais primitivas", considerava o primeiro ano de vida como o definidor do limite e fundamento da organização e da personalidade. E se a infância - a vivida e a sonhada -, é o horizonte fundador onde tudo começa, e a sexualidade infantil continua sendo o refe-

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Palavras do presidente A psicanálise e o mundo de hoje. Mudanças e permanências. Dr. Marcelo N. Viñar 19

rente essencial da psicanálise, a re-significação do mundo interno prossegue por toda a vida e não tem fim, e criam, com a cultura, uma causalidade multifatorial e complexa. Ou - em todo caso - nos parece inadequado partir desta prioridade a priori e axiomática, como vetor exclusivo da escuta multivetorial, onde o eixo pulsional sem dúvida se fará escutar, porém outros registros podem transitoriamente existir e exigir prioridade.

A prática psicanalítica se constrói no contexto da época que a determina. A desmesura tumultuosa de nossa época nos obriga a incluir na palavra de análise este contexto cultural e sócio-político acelerado, explosivo e mutante.

E.

Ser analista é ter disposição (ou vocação) para estar disponível a escutar as penúrias de um sujeito, arriscar-se a sentir como ressoam em nós próprios, e após chacoalhar o que é próprio e o que é alheio podemos pontuar re-significações ao que foi ali pautado como sofrimento, como dor psíquica, como impasse nos projetos, paralisia nos anseios, morte ou agonia dessa agitação ou torvelinho que chamamos vida.

Freud nos fala do ego, como o clown de uma submissão tripla: o caldeirão pulsional, o mandato moral e a realidade exterior. Deixemos os dois primeiros em suspenso, por terem sido mais explorados em nossa tarefa.

Por acaso a realidade exterior é exterior ao psiquismo? O caráter intimista do cenário analítico impele às vezes a considerá-lo desse modo. Em períodos de relativa calma histórico-cultural, o cenário sócio-político é menos intrusivo no processo analítico, e este não se empobrece tanto ao deixá-la clivada. Temos a impressão, surgida de nossa experiência clínica, (pessoal e compartilhada), de que no tumulto dos tempos atuais a presença dos determinantes sociais no cenário analítico são importantes, não são tempos nem lugares onde os conflitos internos possam ser dissecados de maneira limpa.

"0 neoliberalismo, diz Dufour, nos obriga a uma reflexão muito ampla. Não nos impõe somente a crí-tica de um sistema econômico iníquo, ou a compreensão de mecanismos de destruição de instâncias coletivas e de "ser com os outros", mas também uma reflexão renovada sobre o indivíduo, o "ser ele mesmo". A condição subjetiva surgida da modernidade está ameaçada. Podemos deixar volatilizar-se em uma ou duas gerações o espa-ço crítico, tão arduamente construído no decorrer dos séculos precedentes?6

A disjuntiva do neoliberalismo com sua bifurcação entre o êxito, o naufrágio e a exclusão promove marcas no laço (vínculo social) com um desdém pela solidariedade e uma recompensa ao individualismo.

São esses avatares para explorar e descobrir quais os desafios do sujeito humano neste começo de milênio, que constituem um tema pendente e em curso, à reflexão psicanalítica. Hoje o processo analítico está colado à pele da história coletiva de um mundo convulsionado em suas categorias sócio-políticas e epistêmicas. Há poucas décadas cada prática-teórica podia - em ciências humanas - recortar um perímetro de problemas e buscar a maneira de tratá-lo no interior de seu próprio paradigma, em complemento ou contradição com outras práticas. A precisão e contorno do objeto e o método eram sagrados. Hoje, para pensar o tema do sujeito, nenhum campo disciplinário não pode nem quer considerar-se exclusivo ou exaustivo. São os tempos da multi ou interdisciplina, mesmo que ainda não saibamos bem o

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que queremos dizer com isso. Quer dizer que não somente evoluíram e mudaram as respostas, mas que há uma mudança radical de perspectiva no modo de abordá-lo.

Montevidéu, novembro, 2001.

Notas

1. Achugar, H. - Em: Pensar América Latina. Boletim FEPAL. São Paulo, 2001. 2. Estrofe do Hino Nacional. 3. Kristeva, J. - (-Para qué el Psicoanálisis en un tiempo del zozobra (dátese) que se auto ignora? 4. Cabana, J. A. - Paradise Now. In: Interpretar, Conocer, Crear... Col. ImPertinencias/ImPertenencias. Fundacion Colônia dei Sacramento. Ed.Trilce, 1994, pág. 242. 5. Heidegger, próximo ao final de sua vida, dirigindo-se aos engenheiros, colegas de seu filho, em uma conferência: Lenguaje técnico y lengua de tradición, onde tematiza os dois registros do pensar, que desejo manifestar. 6. Dufour, D. R, - Los desconciertos dei Indivíduo - Sujeto.

Bibliografia

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Palavras do coordenador científico

Dr. Javier Garcia

A tarefa de preparar o XXIV Congresso com companheiros de trabalho e muito próximo de muitos cole-gas de diferentes partes de nossa região, me permite transmitir-lhes o entusiasmo existente pela Psicanálise, mesmo nas condições difíceis em que vivemos. Mais de quatrocentos textos falam ao menos do interesse de pen-sar, produzir e participar. Destes, ao redor de setenta são Casos Clínicos que nos reunirão durante as tardes para compartilhar e confrontar as dificuldades de nossa prática. Os trabalhos que servirão de referência aos grupos de discussão matinais, de uma maior estirpe teórico-conceitual, recorrem a um grande leque de interesses. Porém, sem dúvida, os desafios enfrentados pelo impacto violento de nossas realidades sociais e culturais, em nossa região e no mundo, pelas apresentações clínicas atuais, sobretudo vinculadas aos déficits de simbolização, e pelas difíceis fronteiras de intercâmbio, confronto e prática com outras disciplinas, constituem-se em grandes eixos que atra-vessam boa parte dessas produções.

Como impacta a realidade cultural de nossa época na condição humana, em nosso pensamento e teorias, em nossa prática analítica e nas apresentações clínicas? Quais os efeitos do contexto social, econômico e político Latino Americano, na mente e no trabalho clínico? Como processar psicanaliticamente essas mudanças para aprofundar a efetividade de nossas práticas?

As diversas texturas que a humanidade foi elaborando através da história, testemunhos da criatividade e de seus limites, do passar do tempo, da espera, da participação de diferentes gerações e culturas, parecem estar perdendo sua espessura e seu sumo. A "virtualidade" pode ser um exemplo dos problemas gerados pelo predomínio perceptivo, especialmente pela distância entre o objeto virtual e o real, até sua desconexão, e pela situação do homem como um usuário. A partir da Psicanálise podemos sustentar que a recuperação contribui com a marca, o pensamento e a lembrança na capacidade de construir relatos subjetivos e historização. A própria percepção não possui prova de uma realidade possível. Somente ela não tem antecedente histórico, nem pensamento, nem ligação com a vida pulsional através de seus representantes. O predomínio das imagens percebidas sobre as cadeias representativas, deixam a pulsão com um escasso destino de circuitos elaborativos, que armam a trama e a espessura psíquica, e dão aos pensamentos e às vivências uma ancoragem subjetiva. Aparecem, então, os pensamentos levianos, as palavras desencarnadas, e a falta de peso específico das vivências pela perda da ligação pulsional. A existência como se, as vivências de vazio interior, a indiferença a respeito das idéias próprias e às idéias dos outros, o predomínio da contradição, as clivagens e as passagens ao ato, parecem vinculados a este predomínio perceptivo.

Por outro lado, os fenômenos de violência social, guerra e terrorismo parecem agir no mesmo sentido.

Somos abalados na América Latina por uma crise social crônica, numa região que padece da pior distribuição de suas riquezas, das maiores desigualdades e exclusões étnicas, bem como de uma história sucessivamente recortada e ignorada. Uma região que parece haver vivido e viver dando as costas aos seus valores

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humanos e culturais mais preciosos, que viu desmantelar sua já precária capacidade produtiva, e com isto aumentou escandalosamente a desintegração social e a emigração. Com uma violência menos estridente que a da guerra e do terrorismo, mas talvez mais decisiva no desprezo da condição humana.

Violência social e capacidade de pensar-elaborar andam em direções opostas.A Psicanálise e a prática psicanalítica em seus diferentes campos, não são alheias a

essas realidades. Pelo contrário, nossas experiências permanecem questionadas pelo contexto onde se realizam.

Hoje podemos dizer que a ênfase em uma noção endógena do psiquismo, e uma teoria que trata somente disto resultaram insuficientes. A isto se pode vincular certo desentendimento pessimista da Psicanálise freudiana com a violência social, a exclusão, a perseguição e a guerra. Embora reconheço que é uma realidade tão opressora, que é difícil não ser cético.

A consideração do "outro", sempre além do objeto fantasiado, como sujeito de desejos e da cultura, torna relativa e questiona a velha noção de interioridade e exterioridade. O mundo tão familiar e alheio ao mesmo tempo, tem um impacto complexo sobre o psiquismo, e este, por sua vez, participa na criação do mundo. Mesmo que não possamos definir com exatidão essa relação, podemos dizer que nem o mundo é somente uma tela para a projeção de fantasias internas, nem o sujeito é a cópia das imagens e idéias que prevalecem no mundo.

Essa complexidade que não fecha harmonicamente, evita, felizmente, a uni-versalização homogeneizante da imagem, que é o que dispomos dos fatos, de forma direta (perceptiva) ou gráfica. Quer dizer que, mesmo que se repita mil vezes a imagem da destruição das torres gêmeas, ou de edifícios e casas no Iraque, Bósnia, Afeganistão, Chechena, Israel, Palestina, etc, ou a destruição de fábricas e qualquer lugar de trabalho que apóia a relação produtiva e vital do homem com o grupo e consigo mesmo, as imagens solicitarão de cada sujeito uma narrativa.

Desde a academia de ginástica até o "boliche", desde o ato público de massas até a intimidade do cenário familiar, pedimos a todos os espaços humanos possíveis para fazerem narrativas que, desarmando os impactos traumáticos e as imagens prevalecentes, engrenem marcas da experiência histórica e da vivência singular, para poder ser pensados-elaborados.

Quando isso não é possível em alguém, o "diva" é uma opção legítima para abrir, tanto quanto possível, as dificuldades de conflitos inconscientes que o determinam. Mas quando o obstáculo se localiza nas condições sócio-culturais, os espaços sociais do pensamento e da elaboração fazem-se necessários.

Desde a intimidade do consultório e do âmbito social, necessitamos de mais perguntas que façam sentido entre o singular e o diverso, o íntimo e o público. Espetadas que nos permitam armar uma trama esperançosa de trabalho.

Se a simbolização e a elaboração estão ameaçadas coletiva e singularmente, a Psicanálise também está. É um desafio maior para nosso "ofício", uma exigência maior de criatividade na proposta de novas estratégias que resultem efetivas com as apresentações atuais.

A clínica e as teorias dos "transtornos de simbolização" nos situam numa zona ampla e heterogênea, da psicopatologia e da metapsicologia, mas também de fenôme-

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Palavras do coordenador científico Dr. Javier Garcia 23

nos e disciplinas sociais e culturais. Trazer para discussão todos os elementos em jogo, num enfrentamento "complexo" constitui num enriquecimento dos últimos tempos. Isto nos exigiu flexibilizar disponibilidades teóricas, mover-nos com teorias mais "suaves". Os riscos de superficialidade e ecletismo parecem ser inevitáveis, mas não intrabalháveis. O reconhecimento de uma tendência fácil de nos iluminarmos com os grandes titulares exitosos de outras disciplinas, evitando o trabalho profundo e a especificidade correspondente, não deveria nos conduzir, tampouco, ao abandono dessas zonas fronteiriças que nos desafiam à produção de um novo conhecimento. Somente podemos fazê-lo a partir do núcleo sólido de nossa especificidade. Renunciar ao instrumento teórico-metapsicológico porque surgiu de práticas em outros momentos culturais, não é o mesmo que encará-lo num sentido "desconstrutivo" para abrir possibilidades atuais de recriação. A incredulidade nas teorias e em teorizar, a labilidade que leva à decomposição da relação teoria-prática, as generalizações e perdas de especificidades são, provavelmente, um momento inevitável. Um momento do movimento da desilusão ao que virá, não um estado. Ainda que os tempos culturais tornem difícil que os percebamos como momentos. Quando a idéia perde o seu peso específico - sua forte engrenagem com a experiência na passagem de um contexto de época a outro - a ilusão perceptiva adquire uma força maior. É um fenômeno cultural oprimido que sem dúvida também nos afeta em nossa posição como analistas e mantém semelhanças íntimas com as apresentações clínicas atuais, como não poderia deixar de ser. É um desafio situar as zonas da estruturação psíquica envolvida na construção da efetividade simbólica de representações, palavras e idéias, investigadas a partir das diferentes estruturas psicopatológicas como por desenvolvimentos metapsicológicos. Devemos supor que as tendências de época referidas anteriormente exercerão influência nessa consubstanciação que conhecemos entre a cultura e o desejo dos progenitores na estruturação psíquica da criança. Certamente, um efeito referido não somente à criança.

Esta dificuldade onde se constitui a efetividade-afetividade das palavras, nos conduz não somente ao amplo problema das apresentações clínicas atuais mas também ao da efetividade de todo tratamento psicanalítico. Não parece haver possibilidade de encontrá-la aferrando-nos em aplicar certos esquemas, nem no traslado de metodologias de outras disciplinas. Uma vez mais a força parece depender do reconhecimento dos obstáculos próprios da análise. Novos obstáculos que nos abrem a novas perspectivas.

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Câmbios e permanências

1. Metapsicologia

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Introdução ao artigo "Expressão em lógica simbólica das características do sistema inconsciente ou a lógica do sistema inconsciente" de Ignacio Matte-Blanco

Ignacio Gerber

O nome de Ignacio Matte-Blanco, que até recentemente era conhecido apenas por um restrito círculo de psicanalistas fascinados por suas idéias inovadoras, vem sendo citado com freqüência crescente nas bibliografias de textos nas revistas especializadas bem como através de vários livros de outros autores falando de sua obra e criando desdobramentos.

Mas afinal, o que propõe Matte-Blanco com sua "Bi-lógica" que constitui o eixo do texto que se segue? Em poucas palavras: Ele propõe uma nova visão sobre o inconsciente freudiano que nos ajuda a compreender seu funcionamento lógico e suas relações com a lógica consciente. Produto imediato dessa nova visão é a sensibilização de nossa escuta no campo da clínica.

Matte-Blanco nasceu no Chile onde formou-se em medicina. Foi professor de fisiologia e psiquiatria mas logo seu interesse voltou-se para a psicanálise. Fez sua formação nos anos 30 em Londres. Em 1940 mudou-se para Nova York onde acendeu-se seu interesse pela lógica matemática ao assistir por vários anos aos seminários de Courant, grande filósofo matemático. Retornou ao Chile para assumir a cadeira de psiquiatria na Universidade de Santiago e fundar a Sociedade Psicanalítica Chilena. Nos anos 60 mudou-se para a Roma onde desenvolveu sua obra psicanalítica até sua morte em 1994.

A linguagem do esquizofrênico foi o ponto de partida para a questão básica que ele procurou compreender ao longo de todos seus escritos. Tentaremos resumi-la: Admitindo que existe uma predominância de elementos emanados de processos inconscientes, tanto na comunicação do esquizofrênico quanto nos sonhos, atos falhos e reações emocionais diversas; lembrando ainda que Freud postulou as características fenomênicas, os efeitos dessa lógica inconsciente com sendo: Deslocamento, Condensação, Realidade interna X externa, Ausência de temporalidade e Não validade do princípio de não contradição, pergunta-se então Matte-Blanco: Quais serão as leis estruturantes dessa outra lógica, tão estranha ao nosso senso comum consciente organizado pela lógica clássica aristotélica cujo fundamento é o Princípio de não contradição: "Não é o caso de A igual a B e A diferente de B simultaneamente".

Ou seja, a partir de seus efeitos apreensíveis, Matte-Blanco vai em busca das causas, das leis estruturantes dessa lógica inconsciente, leis que produzem as características freudianas citadas como sua conseqüência lógica.

Para tanto ele utiliza sua estreita colaboração intelectual e afetiva com renomados filósofos, matemáticos, lingüistas, lógicos, etc. Apesar disso sua linguagem é cuidadosamente clara e didática - não se assustem os colegas que ainda se arrepiam ao lembrar a matemática do vestibular. As idéias são expostas com simplicidade e profundidade (qua-

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lidades que funcionam bem quando associadas).Se tivéssemos que situar Matte-Blanco numa genealogia filosófica eu arriscaria algo

como: Lao-Tse, Pitágoras, Parmênides, Platão, Jesus, Spinoza, Kant, Hegel, Shopenhauer, Nietzche, Frege, Russel ... Freud! Se algum dia se cunhar a expressão pós-Bioniano, talvez Matte-Blanco se encaixe. Como exemplo esta citação de seu artigo "Reflections with Bion" do livro "Do I dare disturb the Universe — a memorial to Wilfred R. Bion" (1981): "Imagino o que Kant pensaria se ouvisse Bion, que meditou anos a fio sobre o noumenon incognoscível, falar hoje de maneira que lembra a sabedoria budista, fazendo-nos suspeitar que o incognoscível é incognoscível porque é impensável".

O texto a seguir é possivelmente o primeiro onde suas idéias já alcançaram orga-nização e direcionamento. Elas vão amadurecer gradativamente até a publicação de seus dois livros principais: "The Unconscious as Infinites Sets" (1975) and "Thinking, Feeling and Being" (1988). (O Inconsciente como Conjuntos Infinitos e Pensar, Sentir e Ser)

Nestes livros seu conceito de Bi-Lógica conforme exposto neste texto de 1956 amplia-se para uma Bi-Modalidade, dois diferentes Modos de Ser. O ser humano, seu aparelho psíquico e seu mundo constituídos por um contínuo com diferentes proporções dessas duas lógicas irreconciliáveis (simétrica e assimétrica) ou desses dois modos de ser (homogêneo indivisível e heterogêneo divisor). Um contínuo de vivências possíveis, contidas entre um pólo virtual totalmente consciente e outro pólo virtual totalmente inconsciente.

É um possível refinamento lógico do aparelho psíquico proposto por Freud. A partir de seu próprio modelo Matte-Blanco se debruça sobre a possível infinitude das emoções e das artes; sobre a multi-dimensionalidade do inconsciente; sobre a multiplicidade sincrônica do encontro humano; sobre Pensar, Sentir e Ser.

Ele nos convida para uma viagem fascinante - alucinante em alguns momentos -ao País do Espelho, ao País das Maravilhas, ao País do Infinito.

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Artigos clássicos

Expressão em lógica simbólica das características do sistema Icc ou a lógica do sistema Icc

Ignacio Matte-Blanco

Introdução e formulação do problema

O descobrimento das características do sistema Icc é o mais criativo e fundamental dos descobrimentos de Freud, porque é sobre esta característica que estão baseadas suas maiores contribuições para a psicologia, especialmente todas aquelas relativas aos sonhos. Temos evidência indireta de que ele as valorizava particularmente. Em seu prólogo à terceira edição em inglês de 1931 de A Interpretação dos Sonhos (1900), menciona que "contém, ainda de acordo com meu parecer atual, o mais valioso de todos os descobrimentos que tive a sorte de fazer. Um insight como este nos acontece, se tivermos sorte, somente uma vez na vida".

Por outro lado, sabemos por Jones (19S6) que havia, dos escritos de Freud, três coisas das quais ele se sentia orgulhoso: uma era o último capítulo deste livro, outras seu ensaio sobre "O Inconsciente". Agora, ambos se baseiam, por assim dizer, nos alicerces dados pelas características do sistema Icc, e em ambos o estudo destas características ocupa um lugar proeminente. Para finalizar, em suas "Novas conferências de introdução à psicanálise" (1932) comenta: "Continuo tendo a impressão de que não tiramos suficiente vantagem para a nossa teoria analítica deste fato, comprovado fora de qualquer dúvida, de que o tempo não altera o que foi reprimido. E, na verdade, parece abrir-nos ali um acesso às intelecções mais profundas. Por desgraça, eu também não tenho avançado muito nesta direção". Esta referência a uma das características está colocada de tal maneira que não deixa nenhuma dúvida de sua estimativa acerca de sua importância. É obvio que o que diz respeito a esta em particular poderia ser aplicada a todas. Contudo, investigações analíticas recentes estão, em geral, tristemente desinteressadas sobre este tema fundamental.

É necessário observar que a terminologia usada sobre este tema parece ter mudado através dos anos. Em A Interpretação dos Sonhos Freud distingue entre o processo primário e o secundário; e em seu trabalho "O Inconsciente" (1915) incluiu o primeiro como uma das propriedades particulares do sistema Icc, enquanto que anteriormente parece ter usado o termo primário para designá-las a todas.

Estas características, como sabemos, são:a) Ausência de contradição mútua entre as representações dos diversos impulsos.

"Quando são ativadas ao mesmo tempo duas moções de desejo cujas metas não pode-

* Gostaria de expressar minha gratidão ao professor Gerold Stahl, Ph. D., cuja ajuda permitiu-me purificar minhas primeiras formulações de certas imperfeições de lógica para chegar assim a uma formulação mais rigorosa. ** Matte-Blanco, Ignacio. Expresión en lógica simbólica de Ias características dei sistema Icc o Ia lógica dei sistema Icc: 1956. Rev. Latinoamericana Psicoanal., v. 1, n. I, p.131-5, 1994.

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riam parecer-nos menos que inconciliáveis, elas não tiram nada umas das outras, nem se cancelam reciprocamente." (1915). Uma conseqüência disto é o que ele chamou de ausência de negação.

b) Deslocamento. c) Condensação. Estas duas constituem os traços distintivos do processo primário.d) Ausência de tempo, numa breve "relação alguma com ele" (1915), que compreende

falta de ordenação temporal e falta de alteração devida ao passar do tempo. Parece-me muito provável que a segunda seja necessariamente conseqüência da primeira.

e) Substituição da realidade externa pela realidade psíquica. Na psiquiatria, espe-cialmente em relação à esquizofrenia, esta característica é às vezes designada como interpretação literal da metáfora.

Estas características poderiam ser consideradas como as leis pelas quais é regido o sistema Icc. Sua inspeção revela prontamente que qualquer processo de pensamento que se ajusta a elas difere amplamente, por esta mesma razão, da lógica habitual do pensamento científico, a qual, de forma um pouco vaga e em ocasiões ainda inexata, é denominada pelo nome de lógica aristotélica. Porém, não se pode dizer que os processos no sistema Icc acontecem sem ajustar-se a nenhuma regra lógica, porque neste caso seríamos apenas testemunhas de um caos; e se houvesse um caos não poderia haver nada previsível, portanto Freud não poderia ter descrito as características mencionadas. Deve haver, então, implícito nestas características, um ou mais princípios lógicos diferentes daqueles pelos quais é regido o pensamento científico. As leis do sistema Icc existem, e se não se ajustam aos princípios da lógica científica, devem ajustar-se a algum sistema lógico que pelo menos, em alguma proporção, é diferente da lógica científica. As leis do sistema Icc poderiam então ser conseqüência deste sistema lógico; em todo caso se ajustariam a ele.

Formação de dois princípios.

Devo mencionar que eu pessoalmente me propus este problema ao estudar o pensamento esquizofrênico, no qual pude encontrar uma conformidade a certos princípios. Ao examinar esta matéria mais atentamente, me dei conta de que tais princípios se referiam essencialmente às características do sistema Icc e que o pensamento esquizofrênico era apenas uma aplicação deles.'

Para entrar diretamente na matéria, o estudo do pensamento esquizofrênico mostra que este se adapta a dois princípios preciosos. O primeiro é representativo da normalidade de consciência ou, em outras palavras, de um tipo de pensamento idêntico ao pensamento científico: não é algo diferente de nenhum dos dois. A operação simultânea do primeiro e segundo princípio pode ser vista freqüentemente no mesmo produto mental. Por outro lado, a consideração destes princípios, especialmente o segundo, revela que eles constituem aquele aspecto ou parte do pensamento esquizofrênico que corresponde ao pensamento do sistema Icc.2 Por este motivo os descreveremos nos termos deste último.

1) O pensamento do sistema Icc trata uma coisa individual (pessoa, objeto, conceito) como se esta fosse um membro ou elemento de uma classe que contém outros membros; trata esta classe como uma subclasse de uma classe mais geral, e esta classe

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Expressão em lógica simbólica das características do sistema ICC ou a lógica do Sistema ICC Ignacio Matte-Blanco 29

mais geral como uma subclasse ainda mais geral, e assim sucessivamente.Parece que a noção de classe pode ser compreendida lendo ou escutando este

princípio, e o ilustrarei com um só exemplo. João é um elemento da classe homens, Teresa da classe mulheres. A classe de homens (varões) é uma subclasse da classe de animais racionais, e a classe de mulheres é outra subclasse da mesma classe. A classe de animais racionais é uma subclasse da classe de animais, e esta mesma é uma subclasse da dos seres vivos.

O segundo princípio é formulado assim:2) O sistema Icc trata o inverso de qualquer relação como idêntico à relação. Em

outras palavras, trata as relações como se fossem simétricas.Este princípio representa o mais formidável desvio da lógica sobre a qual todo o

pensamento científico e filosófico do homem foi baseado.Para citar um exemplo, se João é o irmão de Pedro, o inverso é: Pedro é o irmão de

João. A relação que existe entre eles é simétrica, porque o inverso é idêntico à relação direta. Mas se João é o pai de Pedro, o inverso é: Pedro é o filho de João. Neste caso a relação e seu inverso não são idênticos. Este tipo de relação que é sempre diferente de seu inverso se chama assimétrica. No exemplo dado: se João é o pai de Pedro, então Pedro é o pai de João. Na lógica aristotélica isto é absurdo; na lógica do sistema Icc isto é uma regra, como veremos a seguir.

Um exame cuidadoso da maneira em que este princípio é formulado revelará que de acordo a ele na lógica do sistema Icc está permitido, mas não é obrigatório, tratar como simétricas as relações que na lógica científica não são assim consideradas; em outros casos (tal como o caso do tempo, que será considerado a seguir) pode-se afirmar que o sistema Icc não conhece certas relações assimétricas que são familiares na lógica científica. Não encontrei nenhuma lei que nos permita saber ou prever quando as relações se tratam como simétricas e quando não. O máximo que posso dizer é que o sistema Icc assemelha-se a uma criança que está aprendendo a falar e que às vezes se adapta às leis da gramática e outras vezes às deixa de lado.

Aplicação destes princípios às características do sistema Icc.

Pode-se afirmar que as características do sistema Icc descritas por Freud são a expressão seja do segundo princípio ou da operação de ambos conjuntamente. A respeito da falta de contradição e condensação, é possível que possa existir, ainda, outro princípio implícito nelas, mesmo que isto não seja totalmente claro para mim.

Consideremos estas características uma a uma, começando com a mais obvia.1) Ausência de tempo. Disse que o fato de que os processos do sistema Icc não sejam

alterados pelo passar do tempo me parece uma conseqüência do fato de que não estejam ordenados no tempo: se não há tempo, não pode haver nenhuma alteração pelo passar do tempo. Agora, a ausência do processo temporal é uma conseqüência inevitável do segundo princípio, porque a existência de uma sucessão de momentos requer uma ordenação serial; e se as reações assimétricas estão excluídas, de acordo com a lógica simbólica não pode haver tal ordenação. Em outras palavras, a sucessão desaparece. E esta é precisamente a característica descrita por Freud. Esta característica é, então, simplesmente uma conseqüência do segundo princípio.

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2) Deslocamento. Esta característica ou modo de funcionamento do inconsciente é fundamental. Pode-se dizer brevemente que é a base da projeção, sublimação, transferência, o retorno do reprimido, e a divisão de objetos.Todos estes mecanismos são de certa maneira exemplos de deslocamento, e em grande medida diferem entre eles apenas no que diz respeito à circunstância em que acontece o deslocamento. Este é um tema interessante de elaborar, porém o deixaremos de lado por ora. No deslocamento somos testemunhas de dois processos diferentes que trataremos de explicar com exemplos. Quando um indivíduo desloca, trata o objeto primitivo e o objeto para o qual se desloca como elementos de uma classe que possui certas características específicas, uma característica que talvez não seja impressionante no seu pensamento consciente, porém a é para seu inconsciente. Por exemplo, se sente que o seu chefe é um pai perigoso é porque considera que ambos têm a mesma característica, periculosidade. Se expressarmos isto em termos de lógica simbólica, poderemos dizer que em seu inconsciente trata a ambos como elementos de uma classe; também pode acontecer que trate a um como elemento de uma classe e ao outro como elemento de outra classe, mas neste caso ambas as classes são sempre subclasses de uma classe mais geral. Por exemplo, uma mãe que alimenta pertence, digamos, à classe de mulheres que alimentam materialmente; um professor que ensina pertence à classe dos homens que alimentam mentalmente. Quando, por causa de um processo de deslocamento, um indivíduo sente o professor como uma mãe que alimenta, está antes de qualquer coisa, tratando ambas as classes como uma subclasse de uma classe mais geral, aquela dos que alimentam, seja material ou mentalmente. Pode-se observar o mesmo em qualquer exemplo de deslocamento.

Este é o primeiro processo visível no deslocamento; é fácil captar que não se trata de outra coisa senão da operação de nosso primeiro princípio. Porém este princípio por si só não seria suficiente para o entendimento do deslocamento. Há ainda outro aspecto. Ao deslocar (por exemplo, do professor à mãe) o inconsciente, não trata a ambos como possuidores de algo em comum, mas os trata, de fato, como idênticos. Isto é muito estranho, mas com a ajuda do segundo princípio se torna compreensível. Para que possamos chegar a entender isto, devemos primeiro considerar uma conseqüência deste princípio. Consideremos a relação:

y é uma parte de xSe os inversos desta relação são idênticos a ela, quer dizer, se a relação é simétrica,

podemos dizer que:x é uma parte de y = y é uma parte de xPor exemplo, "o braço é parte do corpo" é idêntico a "o corpo é parte do braço". Em

outras palavras, a parte é idêntica ao todo, de onde deriva logicamente que é também idêntico a qualquer outra parte. Em conseqüência, uma subclasse pode ser idêntica a qualquer outra subclasse da mesma classe. Todas estas afirmações parecem absurdas, mas de acordo ao que podemos chamar de "a lógica do pensamento simétrico", são perfeitamente legítimas.

Uma reflexão cuidadosa sobre estes dois processos nos revela que a aplicação de ambos conjuntamente é suficiente para explicar completamente o deslocamento. Em outras palavras, o deslocamento é o resultado da operação conjunta daquele aspecto da lógica aristotélica que descrevemos como o princípio 1 e uma conseqüência lógica do princípio 2.

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Expressão em lógica simbólica das características do sistema ICC ou a lógica do Sistema ICC Ignacio Matte-Blanco 3 1

3) Substituição da realidade externa pela psíquica. Parece que na formulação rigorosa esta característica não tem direito de independência, mas sim que, pelo contrário, deve ser considerada como uma variedade, ou melhor, como um exemplo particular de deslocamento. Isto é fácil de compreender. Consideremos como exemplos a identidade estabelecida pelo inconsciente entre canibalismo mental e canibalismo real, entre desejo agressivo e logro agressivo, entre a emoção descrita como rebentar-se de raiva e rebentar real, etc. É obvio que em cada um destes exemplos o processo essencial que trabalha pode ser descrito como segue: primeiro, o inconsciente trata a ambos como elementos da mesma classe ou como elementos de diferentes classes que são eles mesmos subclasses de uma classe mais geral; depois trata a ambos como se fossem idên- ticos. Estes são precisamente os dois processos em questão no deslocamento, e isto prova nossa afirmação.

4) Ausência de contradição mútua e condensação. Mesmo que pareça ser certo que estas duas características são diferentes, não é menos certo que haja uma relação especialmente íntima entre elas, porque a segunda não é concebível sem a primeira. Não consegui vê-las com a mesma claridade simples que acredito ter conseguido ao considerar as anteriores, e suspeito que, somado aos princípios que mencionei, somos testemunhas aqui da operação de outro princípio lógico. Mas consideremos primeiro a relação entre nossos princípios e estes mecanismos.

A falta de contradição entre dois impulsos que parecem incompatíveis em lógica aristotélica e sua união numa expressão, a qual se consegue na condensação, sugere que ambos são tratados seja como indo na mesma direção (enquanto que na lógica aristotélicapodem ser opostos ou, em todo caso, diferentes), ou como sendo partes de um todo mais geral, partes que não seriam mutuamente excludentes.

Tudo isto sugere a) a formação de classes mais inclusivas; b) tratar as subclasses de cada uma destas classes como idênticas; e c) até tratar como idênticos vários elementos diferentes que, na lógica científica, são mutuamente excludentes. Em outras palavras, a operação dos princípios 1 e 2. Na condensação observamos que um dado elemento pode expressar mais de um significado ou representar mais de uma pessoa. Tudo isto se pode compreender melhor com a ajuda de uma representação gráfica do princípio 2. Como em qualquer representação gráfica, esta reproduz com a ajuda de elementos espaciais as relações que existem na coisa que se representa de acordo a uma convenção previamente estabelecida. A representação do princípio 2, com a ajuda do conceito de um espaço de mais de três dimensões, nos permite observar que se um todo é concebido como tendo mais de três dimensões e as partes se consideram tridimensionais, então é possível que várias partes ocupem o mesmo espaço.Se lembrarmos que o inconsciente substitui a realidade externa pela psíquica, torna-se compreensível que dois impulsos simbolizados por dois objetos materiais (por ex. espaciais) (para usar as palavras já citadas de Freud) "não se tiram nada, nem se cancelam reciprocamente". E isto é precisamente o que acontece na ausência de contradição mútua e na condensação; tudo isto seria incompreensível numa representação tridimensional.

Posso acrescentar que durante anos tenho me ocupado da representação gráfica de fenômenos mentais em termos de espaço multidimensional, e em outra publicação (1954) tratei extensamente deste tema, mas apenas recentemente tive êxito em alcançar a formulação mais geral do princípio de simetria, e cheguei a compreender que esta

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representação gráfica em termos de espaço multidimensional, é apenas uma expressão particular deste princípio.

Por fim, não estou muito seguro de que o único princípio em jogo na ausência de contradição e na condensação, seja o princípio de simetria. Recentemente pareceu-me possível que a ausência de negação, a qual Freud formulou em relação a estas características, pode ser um princípio da lógica do sistema Icc. Mas não me atreveria a afirmar isto.

Resumindo, podemos concluir que as características do sistema Icc descrito por Freud revelam a operação de uma lógica peculiar a este sistema, cuja marca de distinção fundamental é tratar como simétricas as relações que não se consideram assim na lógica científica.

Re-Publicado no International Journal of Psychoanalysis, 1959.

Notas

1. A matéria é, de fato, mais complexa e é estudada em detalhe em outro trabalho. 2. Disto se pode ver que estou afirmando que o pensamento do sistema Icc é, em parte, idêntico ao pensamento científico.

Bibliografia

Freud, S.- (1900). La interpretación de los sueños. AE., 4-5 / (1915). El inconsciente. AE., 14/ (1932). Nuevas conferências de introducción al psicoanálisis. AE., 22.Jones, E. - (1956). The inception of "Totem and taboo". Int. J. Psycho-Anal., 37. Matte-Blanco, I. - (1954). Lo psíquico y la naturaleza humana. Santiago, Editorial Universitária. Stahl, G. - (1956). Introducción a La lógica simbólica. Santiago, Editorial Universitária. Whitehead, A. N.; Russel.B. - (1950). Principia mathematica. Vol. I. London, Cambridge University Press.

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Artigos clássicos

Sentido, significação, sonho e linguagem: reflexões sobre as formas de consciência no processo analítico*

Isaías H. Melsohn**

Na Interpretação dos Sonhos, Freud distingue o conteúdo manifesto e o conteúdo latente do sonho. Conteúdo manifesto é a fachada, é o que se manifesta diretamente à consciência onírica no estado de sono; conteúdo latente é o pensamento do sonho, é aquilo que o sonho significa claramente, suas idéias latentes, evidenciaveis após o processo de interpretação. Este conteúdo latente, plenamente inteligível, obedece às regras do discurso de vigília, àquelas que constroem significações segundo as modalidades do discurso "normal".15

"O conteúdo manifesto se nos apresenta como uma versão das idéias latentes a uma distinta forma expressiva, cujos signos e regras de construção temos de aprender pela comparação do original com a tradução".

Justamente por isso, ensina Freud, a essência do sonho não reside na significação dos pensamentos latentes, mas na produção plástico-figurativa que o caracteriza. Em nota acrescida à edição de 1909, Freud insiste:

"Muitos analistas são culpáveis de uma confusão que se obstinam em manter. Buscam a essência do sonho no conteúdo latente e negligenciam, desta forma, a diferença entre pensamentos latentes do sonho e trabalho do sonho. O sonho é uma forma particular de nossos pensamentos que as condições do estado de sonho tornam possíveis. É o trabalho do sonho que fabrica essa forma e é ele, exclusivamente, o essencial quanto ao sonho, a explicação de sua particularidade".

Esse trabalho é uma transformação; entre ele e o pensamento latente do sonho existe "uma diferença qualitativamente total" que torna impossível compará-los.

Na produção do trabalho do sonho na "elaboração onírica" como a denomina Freud, intervém, essencialmente, quatro operações: a condensação, o deslocamento, e a consideração pela figurabilidade e a elaboração secundária. Elas atuam, segundo Freud, sobre o conteúdo latente de pensamentos do sonho e produzem a forma peculiar de figuração plástico-dramática que é o conteúdo manifesto; a essência, a "matéria-prima" do sonho, residem nessas operações. A interpretação do sonho percorre, ao contrário, caminho inverso ao da sua elaboração. Esta, como vimos, atua sobre os pensamentos latentes; a interpretação, a partir do conteúdo manifesto, visa ao conteúdo latente.

A técnica da interpretação consiste em separar e considerar, isoladamente, os vários elementos - figurativos ou verbais - do sonho. Citemos o sonho de Alexandre Magno ao sitiar a cidade de Tiro, nas costas da Ásia Menor, sonhava que um sátiro bailava sobre seu escudo. Aristandro interpreta-lhe o sonho: Sátiro significa Sa Tiro, Tua é

* Melsohn, Isaias. Sentido, significação, sonho e linguagem: reflexões sobre as formas de consciência no processo analítico. Rev. Brás.Psicanál., v.23, n.3, p.55-69, 1989.** Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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Tiro (Sa, em grego, é "tua"). Freud visa a exemplificar, aqui, o peculiar jogo a que ficam sujeitos palavras e objetos no processo onírico.

Ella F. Sharpe relata o sonho de uma paciente em análise; sonhara esta com o número 180 26. A analista interpreta: 1 (um) é "I" (eu); 8 (oito), eight, é homófono de ate (pretérito perfeito do verbo eat, comer); 0, "zero", é nothing (nada). Sentido do sonho: eu não comi nada. Assistimos aqui a uma espécie de leitura de conexões verticais como a de uma partitura musical.

Embora, na maioria das vezes, as conexões significativas não sejam evidenciáveis de imediato, nem espetaculares como nos exemplos mencionados, cabe insistir no princípio fundamental que orienta a interpretação. É esse mesmo princípio que norteia a escuta e atenção do analista no trato da sessão psicanalítica: atenção flutuante, segundo expressão de Freud. É desta forma que podem ser privilegiadas conexões não sintáxicas, verdadeiras cadeias paratáxicas, reveladoras das formas de articulação e constituição de sentido decorrentes da dinâmica característica dos processos considerados por Freud inconscientes, os mesmos que presidem à elaboração onírica: condensação, deslocamento e elaboração secundária.

Ao meu ver, porém, tais formas de constituição de sentido - que denominaríamos não discursivas - são, a todo título, formas de consciência. A construção dos símbolos discursivos19 é correlata de formas de representação lógico-gramaticais, sintáxicas; por isso, eles implicam um saber; um conteúdo discursivo significa, ou seja, representa um saber; ele remete, necessariamente, a outros conteúdos não presentes, dos quais ele é a representação simbólica2, A mesa que tenho diante de mim ou que imagino, representa em números outros conteúdos, não presentes como tais, porém co-presentes no horizonte do saber da mesa: função, matéria, madeira, bosque, técnica, etc. Além disto, o discurso representa seus objetos, refere-se a eles21; não os possui, eles lhe são exteriores. A tais conceitos corresponde, em Freud, o sistema pré-consciente-consciência; a linguagem o funda e constitui.

As formas não discursivas da consciência, nos estratos primordiais de sua constituição (expressividade)3 são, ao contrário, não representativas; elas não significam4,5 porque não exprimem outros conteúdos mentais correlativos de um saber implícito. Elas são, no entanto, manifestação direta de relações com o mundo, relações de imantação e posse; elas são presenças, elas são - seja permitido o neologismo — presentificadoras19,24 de concepções emocionais do mundo. Articuladas e plenas de sentido (não de significação), nelas não há separação entre conteúdo de signo e conteúdo de significação. A seu turno, elas também se apropriam da linguagem constituída e conduzem, assim, a formas representativas (formas primordiais de consciência mítica evoluindo para mito e religião6; expressividade na poesia e literatura, em geral; pintura22,23, nas quais, contudo, se apreende o nível fundamental de expressividade não discursiva.

O que Melanie Klein denomina experiência esquizo-paranóide corresponde, sob certos aspectos, ao que, aqui, descrevo como expressividade. A percepção de caracteres expressivos marca a instauração e abertura de formas primordiais de consciência; elas são constitutivas de apreensões de alteridades cujo sentido se exaure totalmente na presença de "algo"; de "algo" que cativa e preenche totalmente a consciência.

Assim, por exemplo, o caráter de agourento ou maléfico, de sedutor ou encantador, de estático ou ameaçador, é apreendido como tal. O sentido da aparição se esgota no

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Sentido, significação, sonho e linguagem: reflexões sobre as formas de consciência no processo analítico Isaías H. Melsohn 35

caráter expressivo. Em outras palavras, o conteúdo da consciência não é associado ou vin-culado a outros e, por isso mesmo, ele não pode assumir função "representativa"3.

Trata-se, como vemos, de formas pré-reflexivas de consciência, acessíveis à descrição fenomenológica, o que permite recuperar, reflexivamente, a constituição e estrutura dos seus componentes noéticos e correlativos conteúdos noemáticos.

A percepção expressiva se estrutura como síntese perceptiva originária e específica. Formas superiores de consciência dela se irradiam constituindo o domínio das formas simbólicas discursivas e não discursivas.

Quando, porém, a psicologia trata de aplicar os seus recursos para a explicação dessas formas ela parte, necessariamente, dos seus pressupostos sem analisar a validez das hipóteses básicas que são suas premissas. Ela é conduzida, por esta forma, a explicar a gênese das diferentes formas simbólicas pelas leis gerais de associação e reprodução que, segundo aqueles pressupostos, presidem a produção das representações.

Mas os problemas da gênese não podem ser resolvidos independentemente de sua correlação com problemas de estrutura de significação.

As representações não se explicam pela simples recepção e associação de impressões sensoriais. A análise mais minuciosa demonstra que mesmo aquilo que é considerado "dado" é previamente submetido a atos de síntese formadora. Somente aquilo que é formado nestes atos é, adquire existência no mundo objetivo. Atos formadores de natureza distinta conduzem a formas simbólicas distintas; eles criam imagens do mundo que não refletem algo empiricamente dado, mas produzem-nas. Não são modos diferentes nos quais uma realidade independente se manifesta, mas caminhos diversos de criação de mundos reais.

Por exemplo, a unidade espacial que construímos na visão estética, na pintura, escultura e arquitetura, pertence a uma ordem inteiramente diferente da unidade espacial representada na geometria. Numa, o espaço é concebido como um todo orgânico cujos fatores são dinamicamente inter-relacionados; no outro, como um sistema de relações puramente quantitativas de um espaço homogêneo. E a consciência de espaço pode assumir, ainda, outras formas: o espaço mítico, qualitativo, "animado"; o espaço da senso-percepção comum, no qual não há homogeneidade de posição e direção.

No domínio da psicopatologia encontramos, igualmente, os reflexos dessa diversidade. O espaço e os objetos que habitam o mundo do psicótico, por exemplo, revelam específicas tonalidades qualitativo-emocionais, expressivas, que fazem deles objetos "animados", num mundo cheio de intenções.

Diante do exposto, não é lícito considerar um conteúdo mental não discursivo, mas consciente (imagem do sonho, sintoma, etc), simplesmente derivado da elaboração de processos inconscientes. Cabe ter em conta que os fundamentos da estrutura noética do sistema da linguagem são igualmente alheios à consciência. Neste sentido os processos subjacentes à linguagem e à construção de significações escapam, à semelhança do que ocorre com os símbolos não discursivos, à apreensão consciente. É indubitável, por outro lado, que a forma de articulação noética de consciência é essencialmente diversa numa forma simbólica e na outra. Não cabe, nos limites desta breve exposição, estender-me no estudo das considerações e particularidades de constituição da função expressiva e dos símbolos não discursivos. Limitei-me a descrever alguns poucos traços de sua fenomenologia. Detive-me em outros trabalhos, sobre o tema

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("Crítica do conceito de inconsciente", novembro de 1973, publicação interna da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; "Contribuição da fenomenologia para a crítica da metapsicologia", 1974, curso na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, apostilado; Pensée symbolique, comunicação oral ao Congresso Confrontation, Paris, fevereiro de 1981, publicada, segundo gravação da tradução feita por colega durante a comunicação, texto não revisto, em Confrontation, número Géopsychanalyse, rencontre franco-latino-américaine, fevereiro de 1981, edição de René Major).

O termo consciência tem, não obstante, a seu crédito, um longo passado; etimologicamente cum scientia, "saber com", comunhão com o objeto e saber do objeto. Efetivamente, como foi assinalado, a consciência discursiva é um saber. Como, porém, qualificar o sentido da experiência de fruição estética da música20 ou de uma obra pictórica, que não se configuram como saber? Não é este sentido consciente? Ele o é, plenamente. Mais que isto, ele não pode ser traduzido ao discurso, ele não pode ser significado; sua especificidade desaparece com a pretensa transposição ao discurso porque seu sentido é vinculado através do universo simbolico-expressivo que lhe é inerente. Por isto mesmo, imprescindível acentuá-lo, o símbolo não discursivo (imagem onírica, sintoma, mito, obra artística) não somente é intraduzível ao discurso, na específica plenitude de seu sentido expressivo, como não esconde, atrás de si, e já é hora de dizê-lo, nenhum conteúdo latente de significação, nenhum pensamento do tipo enunciativo. Quando objeto do saber, da significação, há referência a ele, não mais manifestação. A linguagem pode, é claro, reconduzir à vivência expressiva, ao clima do sentido, mas o faz por intermédio de recursos expressivos mais uma vez, entremeados e articulados no contexto da própria mensagem de comunicação, nos estratos de expressividade que podem vir a habitá-la. É o que ocorre de resto, nas artes literárias.

Cuidemos, porém, ainda que brevemente, da prática psicanalítica, no que toca aos tópicos aqui levantados. A atmosfera de magia transcende a condição do sonho e permeia toda a vida humana. Sem dúvida, também a sessão analítica. Sensível ao clima único que imanta o encontro de dois seres humanos, o analista pode se aperceber que o sentido de uma sessão analítica se constitui como o de um mito ou como a criação de sentido no universo da arte. Os tipos de fala, entonação, linha rítmica, modalidades de construção, estrutura fonológica, os movimentos expressivos do corpo, a ordem de atos quase ritualísticos, tudo, enfim, se ordena em torno de pontos nodais de organização-desorganização. Manifestam-se aí ansiedades e momentos de caos virtuais reordenados por formas simbólicas de expressão de intenções, de impulsos, de concepção de ritmos, de tempo e de espaço, que mal começamos a problematizar e configurar teoricamente. Importante, porém, ter em mente que não se trata de um campo de observação; os dois participantes são envolvidos pela trama de intenções e reações emocionais recíprocas.

Antes de uns poucos exemplos, um preâmbulo sobre aspectos de comunicação na arte e na produção imaginária e perceptiva.

A lingüística moderna tem dado atenção às estruturas semióticas na função poética — em seu lato — e aduzido importante contribuição ao conhecimento de construções fonológicas que desempenham papel de relevo na experiência de fruição da mensagem poética. Consideremos alguns exemplos:

"Infame turba de nocturnas aves",

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verso de Góngora, poeta clássico espanhol, analisado por Dámaso Alonso em Poesia espanhola1. Diz o crítico:

"Veremos como as duas sílabas "tur" (turba e nocturnas) evocam em nós singulares sensações de escureza fonética que nossa psique logo transporta ao campo visual. Essas sílabas (...) despertam em nós uma resposta, um significado especial, superposto ao de "turba" e "nocturna", e exterior, todavia, ao significado conceituai destas palavras, porque essa sensação de escureza se propaga a todo o verso. Uma observação mais atenta nos faz ver que sobre as duas sílabas "tur" caem os acentos rítmicos (de 41 e 8a sílabas) do hendecassílabo; e esses acentos realçam o valor de sugestão de ambas: logo, um ritmo pode também ser um significante. Finalmente, observamos que essas duas sílabas, em duas palavras separadas, se influem, multiplica uma delas, diríamos, o valor significante da outra", criando sentido novo, para além do valor conceituai das palavras.

"I like Ike",slogan político na campanha eleitoral de Eisenhower. A frase consiste de três

monossílabos e contém três ditongos (ai). I like e Ike rimam entre si, o que reforça o efeito de ambas; Ike está incluído em like, imagem paranomásica de um sentimento que envolve completamente seu objeto. Além disto I está contido em Ike, reflexo sonoro do sujeito envolvido pelo objeto querido.

A breve análise feita por Roman Jakobson nos revela como a "função poética" desempenha sua eficácia na fórmula eleitoral.'7

Os primeiros versos da estrofe final do Corvo de Edgar Poe, além de recorrerem à rima em eco, contêm fonemas vizinhos que se assemelham e exercem função paranomásica:

"And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sittingOn the pallid bust of Pallas just above my chamber door;And his eyes have ail the seeming of a demon s that is dreaming, >.jAnd the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;And my soul from out that shadow that lies floating on the floorShall be lifted,- nevermore."

Note-se Raven, contíguo a never, imagem especular deste "jamais"; ele acentua o desespero eterno ante a presença insólita e infinda do sinistro hóspede e o consuma pelo decreto inexorável do nevermore que encerra o poema. Atente-se, também, para a sonoridade pallid-Pallas, fundindo num todo orgânico a estátua-pouso contaminada pelo corvo terrível que impregna, agourento, o busto pálido e mortiço da deusa.'

Eis, portanto, no campo da poesia, vivências articuladas por configurações sonoras veiculadas pelos elementos verbais, mas independentes do conteúdo de significação destes componentes verbais - seja no seu aspecto denotativo quanto no aspecto conotativo. Idêntica significação pode ser construída com outras configurações verbais; não, porém, o sentido, instaurado por meio da integração da constelação sonora nos componentes de significação.

Vamos deter-nos, agora, no estudo de Freud, clássico em psicanálise, da estátua de Moisés de Michelangelo. Propõe-se Freud a "compreender" por que certas obras de arte lhe produzem impressões tão profundas. E acrescenta:

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"onde não consigo alcançar tal compreensão, como, por exemplo, na música, sou quase incapaz de gozo algum".16

Freud faz magnífica análise do "Moisés", desvelando com agudeza a síntese das tensões e intencionalidades manifestadas na expressividade sensível da dimensão escultórica. Ao fazê-lo, porém, transpõe ao nível da análise através da linguagem, do discurso de significação, desfigurando-a, uma estrutura expressiva, única na sua concretude sensível, plenamente apreendida como tal por via não verbal. Como símbolo não discursivo, ela articula uma concepção emocional, ou seja, articula uma experiência subjetiva concebida sem palavras, uma estrutura de intenções não realizadas, de sensações corpóreas concebidas na visão estética da obra.

Será útil, no contexto desta rápida exposição, relatar algumas experiências levadas a efeito por Charles Fisher, de Nova York, a partir de 194313. Retoma a problemática da simbologia onírica tal como Schroetter o fizera, em 1911. Como é sabido, Schroetter25

submete pessoas à hipnose, relata-lhes uma história e sugere que sonhem. A uma senhora, em hipnose, sugere que terá relações sexuais com outra mulher. A examinada relata no dia seguinte ter sonhado que andava com uma pequena valise, sobra a qual estava escrito: "somente para mulheres". Outro examinado, à sugestão de sonhar que estava sendo castrado, sonhou que lhe arrancavam um dente na cadeira do dentista. Confirmavam-se, assim, as idéias de Freud sobre censura e transposição simbólica de conteúdos sexuais. Fisher, porém, realiza as experiências em sentido inverso. O paciente é hipnotizado; a história relatada é que está na cadeira do dentista para extrair um dente; sonha que lhe "arrancam o membro viril".

Mas as diabruras de Fisher prosseguem com maior refinamento, em 19S414. Expõe a um público universitário certas figuras, letras, palavras, em velocidade de 1/100 segundo. Destaco uma das experiências: no quadro exposto figuram o número 2 e as palavras star e exit. A pessoa em questão é, a seguir, convidada a desenhar livremente. Desenhou uma figura de um 2 alongado, porém em sentido invertido segundo um eixo vertical de rotação; um dois em imagem especular, portanto. Além disto, a porção inferior, que corresponderia à haste horizontal do algarismo, estava obliquamente inclinada para baixo. Interrogado sobre o significado do desenho responde: "É um cometa que se afasta rapidamente da terra".

Numa tentativa de compreender a conexão entre os estímulos subliminares e a síntese perceptiva realizada (entre o que, a uma análise superficial, se conceberia como "realidade" e produção imaginária correspondente), ocorre-nos a possível apreensão expressivo-fisiognômica das figuras das palavras star e exit determinando a emergência, dos cor-relativos campos semânticos, dos conceitos "cometa" e "afastamento", este último com apreensão cinestéstica concomitante. Como se deu, porém, a inversão de direção na imagem suscitada pelo 2? Por que surgiu uma figura não concebida como número? Ao que tudo indica, a orientação e noção de direção, que se constituem a partir de núcleos de ordenação do próprio corpo e de sua relação com o mundo, na apreensão habitual do sentido espacial - esquerda, direita, superior, inferior, anterior, posterior -, se organizam aqui de forma distinta. Cabe acentuar que os "estímulos" e correspondentes "sensações" são os mesmos nas duas formas de concepção; elas se sintetizam, porém, segundo esquemas e valências distintos, configurando sínteses de consciências diferentes, seja quanto à significação do objeto produzido, seja quanto à qualidade fenomenológica da vivência.

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Sentido, significação, sonho e linguagem: reflexões sobre as formas de consciência no processo analítico Isaías H. Melsohn 39

Não ocorre aqui, nos estratos profundos, constitutivos, da percepção e da criação imaginária, algo semelhante ao que se passa na produção e na apreensão das inversões anagramáticas, literais e fonológicas em nível verbal?

Vamos resumir. A "realidade" resulta de formas de configuração especificamente diversas de apreensões sensoriais 8. Certas formas se objetivam no que percebemos ser o mundo fenomenal de "coisas" e "atributos" 9: um mundo organizado pelas estruturas sintáxicas da linguagem, a ordem de espaço e tempo quantitativos10, a apreensão subjetiva do eu e da personalidade correlativas. Outras, conduzem a objetivação de natureza e qualidade distintas, seja como concepção do mundo, seja da própria subjetividade11,12 (mito, religião, arte, sonho). A primeira corresponde a possibilidade de ação técnica sobre a natureza; à outra, a da ordem moral e subjetiva nas relações com o mundo humano e cósmico. Intimamente relacionadas, influenciando-se reciprocamente, são, no entanto, destinos diversos de um mesmo estrato primordial da experiência corpo-mundo, depositada nas articulações básicas subjacentes às ações ordenadas e intenções do corpo (fonemas expressivos, inclusive); constituem estas os fundamentos de inscrição da experiência vivida, de que arrancam todas as configurações ulteriores, clivadas a seu turno, segundo as modalidades discursivas e não discursivas.

Vejamos, em dois exemplos da prática psicanalítica, os problemas aqui propostos.Destaco, de uma sessão sob minha supervisão, os marcos seguintes, não me sendo

lícito descrever mais pormenorizadamente o conteúdo:

Comentário do analistaNão dito durante a sessão:"desconcertado"Dito durante a sessão:"encontrar"Falas do paciente"concerto","concentrar","acidente"

As falas assinaladas não têm entre si conexão direta; surgiram em momentos dife-rentes. A referência ao "acidente" sugeria dano e alude ao "conserto". A parte outros aspectos, extremamente importantes, dos quais o analista veio a ser informado posteriormente, profundamente elucidativos de um "acidente" sem "conserto", desejo dar relevo tão somente à insólita série de palavras e sílabas, em relações anagramáticas:

"desconcertado" "conserto" "concentrar" "conserto", acidente "encontrar"

Em tempos diferentes, analista e paciente dizem palavras que permitem divisar singular harmonia vertical, polifônica; tecem uma partitura musical com sons e pala-

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vras que ultrapassam o significado prosaico; vibram, transmitindo um ao outro, ressonâncias mútuas.

Trago, por fim, o início de uma sessão psicanalítica apresentada perante o 8o

Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em 1980 no Rio de Janeiro.A sessão é de 2a feira. O paciente, que vem de uma cidade próxima, diz:P — Faz mais ou menos um tempo bom, cheguei tarde pela névoa e o caminho muito

molhado, bom, lembrando-me que você me tinha oferecido atrasar uma hora, não sei se seria possível fazê-lo agora. Vamos ver se é possível começar uma hora mais tarde, assim evito...

A - Uma hora só não me será possível.P - Não?A -Talvez duas horas mais tarde, sim, mas por enquanto teremos de continuar com o

mesmo horário.P -Você me disse primeiro às 8, creio, e depois às 9 (pausa). Ih..., bom então lem-

brando-me da última sessão, então no sábado... ih bom, na qual me imaginava de novo uma imagem anterior que era a de um barco enorme... que estava situado aqui na rua Alsina, ih bom, você me havia perguntado se podia ser, digamos, a casa, isso o que... (pausa).

A — Como? Que casa?P — Bom, a pergunta a casa, e aqui interrompeu a sessão, então bom... fiquei pen-

sando, bom, justamente isso, que casa, que podia ser esta casa, que podia ser minha casa, bom, pode ser uma casa qualquer... e me imaginava algo assim como o fato de pensá-lo como um barco situado numa rua, como, digamos, algo como um meio de transporte que se encontra anormalmente em um lugar, isto é, normal da situação... ou como... ih digamos assim... isto, levado pela imaginação como um barco encalhado que não tem líquido suficiente para que possa utilizar, este, seu sistema próprio para avançar ou para mover-se. E o peixe que tinha imaginado que estava na borda do barco possivelmente como uma idéia... (pausa).

A — Então o barco encalhado, sem líquido para poder avançar pode representar o seu pensamento etc.

Note-se o clima de ansiedade revelado na primeira fala do paciente e do alheio-mento do analista, cujo pronunciamento resvala para o nível referencial da comunicação do paciente, negando a este, por tal forma, qualquer acolhimento e elaboração adequada da angústia vivida.

A fala seguinte, mormente a referência ao barco encalhado, despertou a intervenção de vários analistas. Houve quem sugerisse, com base nos ensinamentos de Chomsky, que caberia talvez inquirir o paciente sobre o sentido do barco, aguardando associações sugeridas pelo termo.

Entendo, porém, que a lingüística pode ser de valia ao psicanalista para o apri-moramento de formulações teóricas, para guiá-lo na educação da sensibilidade ao lhe desvendar formas de articulação semiótica, teoricamente descritíveis; já o trato concreto dessa forma única de experiência que é a sessão psicanalítica subentende essa sensibilidade concretamente vivida. A imersão no clima de pânico, de terror, de sedução ou de êxtase em que se distende uma sessão psicanalítica é compartilhada pelos dois protagonistas e a possibilidade e aceitação dessa invasão emocional da parte do analista, seu

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relativo distanciamento por recuperação reflexiva dessa invasão, sua "audição poética" e sensibilidade aos ritmos vivenciais, são os instrumentos fundamentais da profunda comunicação requerida pela situação.

Ouçamos, pois, com ouvido poético a fala do paciente:Vim pelo caminho da névoa, úmido...

Barco encalhado, aqui, na rua, na casa, nesta rua Alsina...Talvez se possa ouvir, então, que a angústia nevoenta, úmida, escorregadia e "aquosa"

do primeiro verso culmina, ante a incompreensão violenta, no barco encalhado. A água, elo implícito nas conexões aniquiladas da estrutura simbólica inicial, indica, em negativo agora, o ponto de inserção da alteração do conteúdo temático: a transmutação do caminho angustiante e escorregadio no prosseguimento impossível do "barco"-vida. E, se dúvida houvesse, ela se dissipa diante de Alsina, anagrama de Anális (e).

A fala do analista, vivida como irrupção violenta, produz o encalhe do frágil contato do paciente, agora sufocado como "o peixe na borda do barco", esvaindo-se paralisado.

Não que o analista devesse responder ao problema da hora, mas a ele cabe ser continente adequado para a ansiedade expressa na primeira fala do paciente; cabe-lhe, sobre tudo, aceitar viver a situação e refletir em palavras o clima de encontro-desencontro violento, expressiva e intensamente manifestado.

Assistimos, aqui também, à emergência, nesta consciência despedaçada, de imagens prenhes de sentido: ato criador de uma consciência — produtora, embora, de linguagem de referência, objetiva — que se crispa no pólo da subjetividade e que transforma o caos de uma invasão angustiante em produção mítico-poética.

Retomemos a questão proposta no título deste trabalho. A expressão "linguagem do sonho" é licença metafórica indevida. A linguagem é um sistema de oposições regradas, constitutivas de significações, as quais resultam do valor recíproco dos termos que remetem uns aos outros.

O sonho não é uma forma de linguagem. Por isto mesmo, a interpretação de um sonho não é tradução de um texto de uma língua desconhecida para a linguagem de comunicação habitual. Ao contrário, o sonho é uma forma expressiva que se transfigura quando transporta para um meio alheio que é o da comunicação de significação. E, no entanto, força é reconhecê-lo, nos fundamentos expressivos da linguagem de significação reside o poder de comunicação que estabelece o vínculo psicanalítico e a possibilidade de transformação da experiência vivida.

Resumo

Cabe reexaminar criticamente a noção de Freud relativa a conteúdo ideativo latente subjacente ao conteúdo manifesto. Ela tem como pressuposto implícito que as sínteses perceptivas e ideativas são construídas originariamente a partir de cópias de uma realidade "dada" já formada em si.

Não obstante as intuições geniais de Freud, ele é tributário do racionalismo da ilustração e do empirismo.

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Cumpre reconhecer, já desde Kant e, neste século, como decorrência da análise fenomenológica de Husserl e da obra de Cassirer, que há modalidades distintas de cons-tituição da percepção, de sentido e de significação. Ciência, mito, arte, fenômeno onírico, psicose, não são manifestações diferentes, derivadas de um estrato perceptivo único em sua natureza. Ao contrário, decorrem de formas qualitativamente diversas de constituição da própria percepção.

A questão, portanto, não é compreender como uma realidade única é refletida de formas diferentes pela consciência, mas de compreender que formas simbólicas funcio-nalmente e estruturalmente diferentes são os órgãos de constituição e de produção de mundos objetivos diversos.

É imperioso assimilar concretamente tais concepções no campo específico da psi-canálise.

A partir da percepção de caracteres expressivos, estruturas superiores de consciência se abrem, diversificadas em formas simbólicas discursivas e não discursivas.

A expressividade (identificação projetiva de Melanie Klein), núcleo profundo da comunicação da experiência vivida, é o fundamento da relação e da técnica psicanalíticas.

Este trabalho foi extraído do Boletim de Psiquiatria, SP.Vol. XIV n° 2:45-100 -JUNHO/1981.

Notas

*** A consciência, na acepção de "consciência de", implica a noção de intencionalidade. Em todo ato de consciência distinguem-se dois componentes: a chamada noética (a vivência), com seus elementos sensoriais intencionais estruturados numa forma e o noema (o objeto intencional). A escola Kleiniana denomina-los-á "objeto interno" e "objeto externo".A intentio mentis (intenção psíquica) dos escolásticos é retomada por Brentano, de quem Husserl foi discípulo. É reconhecida a influência do pensamento de Brentano sobre Freud, em sua concepção de impulso psíquico como impulso dirigido a um objeto.

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16.Freud,S. - (1914). The Moses of Michelangelo. Standard Edition, London, Hogarth Press, vol. 13, p. 211-236, 1962.17. Jakobson, R. - (1960). Linguistique et poétique. In: Essasi de linguistique générale. Paris, Les Èditions de Minuit, p. 219, 1963. 18. Ibid. p. 239-240. 19. Langer, S. K. - Philosophy in a new key. New York, The New American Library of World Literature, Mentor Books, p. 63-116, 1942. 20. Ibid. p. 165-199. 21. Lyotard,J.F. - Discours, figure. Paris, Èditions Klincksieck, p. 10-23, 1978. 22. Ibid. p. 168-172; planche 1. 23. Panofsky, E. - Significado nas artes visuais. São Paulo, Editora Perspectiva, p. 47-87, 1976. 24. SartreJ.P. L'imaginaire. Paris, Gallinard, p. 137, 1940. 25. Schroetter, K. - (1911). Experimental dreams. In: Organization and pathology of thought. Selected sources. New York and London, Columbia University Press, p. 234-248, 1965. 26. Sharpe,E. F. - (1937). Dream analysis. London, The Hogarth Press, p. 92, 1949.

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Comentários

Metapsicologia de um drama clínico: o começo que insiste no final da análise

Dra Sonia Abadi

A metapsicologia tem sido, desde sempre, interpelada pela clínica. Hoje mais ainda, a partir dos novos enfoques teóricos e desafios clínicos complexos.

Na encruzilhada entre as patologias atuais, o aprofundamento da obra de Freud e os desenvolvimentos dos autores pós-freudianos, nós analistas podemo-nos perguntar onde estamos situados no que diz respeito a certos postulados teóricos e se as mesmas articulações continuam vigentes para nós com a mesma convicção com a qual foram propostas por Freud. Por sua vez, repensar sua coerência com as descobertas clínicas.

Entre a metapsicologia e a psicopatologia, é à técnica que se verá finalmente interrogada. Zona de conflito e interseção, terá que oferecer alternativas para uma possível cura. Quero

referir-me aos conceitos de pulsão de morte e masoquismo primário desde a metapsicologia, trauma e narcisismo em sua expressão clínica, o final da análise e algumas

questões técnicas.É possível que hoje em dia já não saibamos com tanta certeza o que é a pulsão de morte,

e que ainda não estejamos muito seguros de como é um final de análise. Não temos dúvida da vigência do masoquismo em qualquer de suas formas, tal como o vemos na clínica e na vida cotidiana, inclusive na nossa.

A pulsão de morte é imposta a Freud a partir de dois imperativos diferentes: a preo-cupação por explicar certas descobertas clínicas e a necessidade de coerência dentro da teoria metapsicológica.

No campo da clínica, o conceito de pulsão de morte foi esgrimido para explicar a compulsão de repetição mais além do princípio do prazer, as condutas autodestrutivas e o masoquismo moral.

No da metapsicologia pela exigência dualista da teoria que, ao unificar no narcisismo as pulsões sexuais e as do ego, urgiu a criar-lhe um oposto.

Por outro lado pareceria que Freud, ao postular um narcisismo primário com toda a libido no ego, precisou também de um masoquismo primário como a cara obscura do narcisismo.

Continua sendo polêmica a proposta sobre este masoquismo primário, tributário da pulsão de morte, prévio à etapa em que a agressão se dirige ao objeto exterior, anterior ao sadismo primitivo. Anterior também a esse masoquismo que aparecerá como secundário ao sadismo do superego: o masoquismo moral. Porém, além disso, ligado à compulsão de repetição e complicando o final da análise.

No entanto, diante da opressão da realidade clínica, resulta desafiante explorar algumas vertentes que foram retomadas por autores contemporâneos.

* Membro efetivo da Associação Psicanalítica Argentina.

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Metapsicologia de um drama clínico: o começo que insiste no final da análise Dra Sonia Abadi 45

E aqui surgem duas linhas fortes. Por um lado, a atualização do masoquismo primário com o masoquismo moral e a articulação deste com o narcisismo (Green). Por outro, a evidente conexão entre a compulsão de repetição e a violência de origem externa, o trauma (Winnicott).

O ponto de vista de alguns autores pós-freudianos

Ferenczi sustentava que em pacientes com menor integração e fortaleza egóicas, se deveria levar mais em consideração a atualização da experiência traumática que as lembranças reprimidas. Sua hipótese era que a reativação dos traumas infantis na situação analítica permanecia incurável, se o analista não era capaz de modificar sua atitude contratransferencial ao ativar-se a compulsão de repetição. Porém, afirmava Ferenczi, assim como na história infantil os adultos não tinham podido encarregar-se de sua responsabilidade na dor causada à criança, o analista insensível, protegido pela regra de abstinência, se omitia de sua participação na dor atual do paciente, repetindo a história anterior e impedindo a elaboração do trauma.

Melanie Klein abre outra dimensão à compreensão da fusão pulsional e à integração do ego e dos objetos. Propõe um quantum constitucional de pulsão de morte em cada indivíduo que atentasse contra a consecução da posição depressiva, dando como resultado a persistência da ambivalência e a difusão da pulsão de morte, que agiria assim de maneira autônoma.

Por sua parte Winnicott nega a necessidade de postular uma pulsão de morte. Para ele, o fator traumático é essencial e está representado pelo fracasso do contexto anterior, que desencadeia as angústias inconcebíveis e a ameaça de desintegração. O trauma permanece fora da possibilidade de ligação e elaboração, sem acesso à lembrança nem à palavra, numa época em que o ego é imaturo demais para acolher o fenômeno traumático.

Numa perspectiva original Winnicott sustenta que o trauma originário não só aparece em forma de repetição, mas também como ameaça projetada no futuro. Afirma que somente através do apoio egóico oferecido pelo analista (e não por efeito das interpretações), a experiência pode ser revivida, significada e transformada, assim, em passado.

André Green, integrador de vários esquemas referenciais, se apóia nos desenvol-vimentos de Bion, Lacan e Winnicott para postular um narcisismo negativo como aspiração do ego em direção ao processo desobjetalizante e não só em direção ao desinvestimento do objeto.

Articula a pulsão de morte, o masoquismo primário e a compulsão de repetição, e nos mostra o masoquismo moral como herdeiro do masoquismo originário.

Alguns interrogantes

Freud em "Análise terminável e interminável" referiu-se ao prognóstico do tratamento em relação ao jogo de forças entre três eixos: as alterações do ego, o quantum pulsional e a origem traumática da enfermidade.

Temos visto que a partir das diferentes teorias coloca-se a ênfase na capacidade de representar e simbolizar, ou na fragilidade da estrutura do ego. Por outro lado, cada autor dará um peso diferente ao comportamento do objeto real externo.

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Conhecemos como diferentes autores atribuem ao objeto primário funções estruturantes: o holding em Winnicott, a capacidade de rêverie em Bion, a violência primária em Piera Aulagnier, para nomear só alguns modelos teóricos.

Um dos interrogantes é em que medida e de que modo o papel do objeto primário agiria na possibilidade de aquisição ou preservação do que Green chamou função objetai.

Em outras palavras, que elementos atuam na estruturação do psiquismo de maneira a favorecer um funcionamento regido por Eros, promovendo os mecanismos de simbolização, e que outros orientariam o psiquismo em direção aos processos negativos regidos por Tánatos?

Se adotarmos esta vertente, o masoquismo primário e a compulsão de repetição seriam a marca de traumas anteriores. Esta é a linha de Ferenczi e Winnicott, e de muitos pensadores psicanalíticos atuais, que assumem-na quando explicam os fenômenos clínicos, aderindo a uma origem traumática da compulsão de repetição.

A outra alternativa é a que considera um masoquismo primário de origem endógena e tributária da pulsão de morte.

Dialogando com colegas que refletiram sobre estes temas, grande parte deles integrantes de vários esquemas referenciais, surgem coincidências marcantes na perspectiva clínica. Particularmente, e mais além de seus referentes teóricos, uma tomada de posição clínica a favor da teoria traumática na origem do masoquismo primário e na compulsão de repetição. Se, mediante a instauração do superego, instala-se o masoquismo moral com o sentimento inconsciente de culpa e a necessidade de castigo, pareceria que a noção de pulsão de morte ficaria vazia de grande parte de seus conteúdos.

Permanece a pulsão de morte somente como um referente constitucional, inabordável e impossível de avaliar, quer dizer, fora da análise? Ou deve-se lhe atribuir outras características ou funções além do masoquismo e da compulsão de repetição?

Numa tentativa de aproximar-me à dimensão humana desta problemática, isto é, ao sofrimento de nossos pacientes, gostaria de desenvolver alguns aspectos relacionados à clínica do masoquismo e às dificuldades para consentir com o final da análise.

Masoquismo moral e narcisismo: a figura do sacrifício

Na encruzilhada entre a reativação do masoquismo primário e do sadismo do superego aparece o masoquismo moral, revestido, apoiado e legitimado pelo narcisismo.

Este fenômeno, que pode responder a um quadro clínico estruturado ou ativar-se em determinados momentos da análise, caracteriza-se pela vivência do orgulho originada na capacidade de renúncia à satisfação instintiva, e à tolerância ao sofrimento. Nestes pacientes aparece, em forma manifesta ou encoberta, a idealização da vocação de sacrifício, o estoicismo como baluarte, a resistência desmesurada à dor tanto psíquica como física, a devoção incondicional como valor supremo, a submissão sem matizes a ideais exigentes e cruéis.

O beneficio é evidentemente a sensação de superioridade moral que se obtém pela capacidade de suportar o sadismo do objeto. A arrogância e a onipotência são freqüentemente os acompanhantes desta posição, na qual o paciente se lamenta da carga

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Metapsicologia de um drama clínico: o começo que insiste no final da análise Dra Sonia Abadi 47

de responsabilidade não compartilhada e exige compreensão e consolo, porém não aceita a ajuda, situação essa que se manifesta também com o analista, resistindo assim a melhorar, a abandonar seu sofrimento que sustenta como um troféu.

Aqui se torna evidente a funcionalidade defensiva do narcisismo hipertrófico que denuncia a magnitude do trauma que tenta negar.

Narcisismo exacerbado que pode ser cogitado como a tentativa absurda de proteger-se contra o que já aconteceu.

Talvez a necessidade de apoiar estas posições é o que faz com que uma análise seja interminável. Interminável como o trauma do qual se originou, leito de pedras investido narcisicamente e transformado em fortaleza.

Parecia que esta coalizão masoquismo-narcisismo apoiada desde a reativação do masoquismo primário e alimentada pelo risco da submissão transferenciai, foi a maior resistência à análise.

Aqui o masoquismo estaria apoiado pela necessidade de sofrimento e pelo sentimento de superioridade, mais do que pelo sentimento de culpa e pela necessidade de castigo.

Se o sulco narcisista se opõe à possibilidade de desenvolver uma transferência na cura analítica é porque se deixar curar implica em aceitar a dependência, outorgar a confiança. Curar-se é também renunciar à exigência de justiça, de algum modo dar a conta por encerrada.

A auto-suficiência é a maneira pela qual estes pacientes decidiram curar-se por si mesmos numa cruzada heróica para apropriar-se do inevitável: o sofrimento. Fazer, ati-vamente, o sofrido passivamente, é um modo de fazer da necessidade, virtude.

O leito traumático, a pedra narcisista

"A pérola é o monumento à dor da ostra", disse um poeta. Que dor? O trauma, o grão de areia, a intrusão de um corpo estranho na sua própria carne, que a leva a segregar essa capa protetora que ao cristalizar-se se transformará em couraça defensiva, às vezes de singular beleza e valor.

Sofrimento e monumento formam, assim, uma estrutura inexpugnável que resiste frente à ameaça de cura, buscando preservar o único vestígio do irrepresentável, o único testemunho do traumático, escondido em seu mausoléu. O que poderia fazer a análise, para desarticular a defesa narcisista e aceder ao trauma, encontrando novas formas de tramitá-lo?

Aqui se trava a batalha que leva diretamente ao leito de pedras freudiano, o desejo do pênis na mulher e a não-aceitação da posição passiva no homem.

Ela exige a parte que lhe devem. Ele nega-se a se permitir fazer, a entregar-se. Entretanto, na clínica encontraremos ambos aspectos em cada um. Há também homens que exigem a parte que lhes falta e mulheres que não se entregam.

Em ambos casos é fácil vislumbrar o estigma narcisista, a negativa em precisar do outro. Green dirá que, tanto o homem como a mulher, rejeitam o feminino porque ele representa a mãe e o risco de sua função passivizante. Winnicott mostrará a necessidade de negar a extrema dependência com o objeto primário.

A que resiste o narcisismo? Ao amor de objeto, a colocar a libido num investimento de risco, a assumir a dívida de gratidão que deixou a dependência precoce e con-

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trair uma nova dívida na transferência. Daí a necessidade de fazer o outro fracassar em sua função terapêutica.

No final da analise o trauma reaparece com insistência no analisado por causa das resis-tências do narcisismo, mas também devido às limitações do analista e às da própria análise.

Por acaso, pode-se elaborar o trauma somente através de interpretações, como se faz com o reprimido? Então, no final da análise, o leito de pedras: trauma, masoquismo primário, compulsão de repetição. O narcisismo e suas formas de resistência, a rejeição da dependência e das relações objetais, a transferência resistencial. Pelo lado do analista: o reconhecimento do trauma, a empatia, o trabalho com o enquadre.

Talvez seja necessário outro tipo de trabalho sobre a cisão e os mecanismos de defesa primitivos, uma revisão sobre as características do enquadre e a regressão, outros modos de trabalhar a transferência e a contratransferência. Assumir também que as defesas e resistências narcisistas, além de serem aparentemente invioláveis, devem ser objeto privilegiado da análise já que não somente afetam a possibilidade de concluir um tratamento, mas tendem a se desmoronar de forma espontânea levando à deterioração da personalidade.

E entretanto, paradoxalmente, haverá que se levar em consideração, que cada sujeito precisa preservar essa criação pessoal defensiva que é parte essencial de si mesmo, e na qual está em jogo a própria vivência de ser único. Talvez se possa pensar no paradoxo não em termos de conteúdos patológicos, mas do investimento libidinal ou tanático que os sustenta.

Como disse Christian Bobin num belíssimo texto:"Creio que um artista é alguém que (como conseqüência de traumas precoces), tem seu

corpo e sua alma divididos, e tenta preencher esse espaço jogando nele pintura, tinta, ou até silêncios. Nesse sentido somos todos artistas, exercendo a mesma arte de viver, com mais ou menos talento. Ou, para ser mais preciso, deveria dizer: com mais ou menos amor."

Bibliografia

Abadi, S. e col. - Desarrollos Postfreudianos: Escudas y Autores. Ed. Univ. de Belgrano, Bs.As, 1997.Aulagnier, P. Condenado a invertir, em: Rev. de Psicoanálise, XLI, 2/3, 1984.Bion,W. - Aprendiendo de la experiencia, Paidós, México, 1991,Bobin, C. - L' épuisement, em: Le temps qu'il fait, França, 1994Ferenczi, S. - Teoria y técnica del psicoanálise, Paidós, Bs. As., 1967 Diário Clínico, Ed. Conjetural, Buenos Aires, 1988Freud S. - (1914) Introducción del narcisismo; (1915) Las pulsiones y sus destinos; (1923) El Yo y Ello; (1926) Inhibición,sintoma y angustia; (1937) Análisis terminable e interminable - A.E., XXIII.Green, A. - Narcisismo de vida, narcisismo de muerte, Amorrortu, Buenos Aires, 1993.; El trabajo de Io negativo, Ed. Amorrortu,Buenos Aires, 1995.Kaes, Anzieu e outros - Crisis, ruptura y superación, Ed. Cinco, 1979Kohut, H. - Análisis del self, Amorrortu, Buenos Aires, 1989.; La restauración del si mismo, Paidós, Buenos Aires, 1980.Pontalis, J. B. - (1981): Non, deux fois non. Tentative de définition et de demantelement de Ia reaction thérapeutique négative, em:Nouvelle Revue de Psychanalyse, Nro. 24. (Rev. de Psicoanálise XXXIX, 4, 1982.)Winnicott, D. - El proceso de maduración en el niño, Ed. Laia, Barcelona. 1975; Escritos de pediatría y psicoanálisis, Ed. Laia,Barcelona, 1979; Exploraciones psicoanalíticas I e II, Ed. Paidós, Bs.As., 1991; Realidad y juego, Ed. Gedisa, Barcelona, 1992.

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Comentário

Sobre o trabalho de Isaías H. Melsohn, "Sentido, significação, sonho e linguagem: reflexões sobre as formas de consciência no processo analítico"

Fanny Schkolnik

O trabalho de Melsohn nos traz, sem dúvida, uma perspectiva pessoal sobre o processo analítico e seus vínculos com a linguagem do sonho, a poesia, a música e outras formas de expressão nem sempre, e nem necessariamente verbais. Acredito que o que eu possa dizer vai mais além de coincidências ou discrepâncias com seu ponto de vista. Penso que é muito mais importante e de acordo com os objetivos que estão implícitos no trabalho, expressar alguns dos efeitos que a leitura do texto causou em mim. E, atrevo-me a dizer, trata-se de uma proposta que tampouco pode deixar indiferentes outros analistas, dado que necessariamente obriga a pensar e interrogar as próprias concepções sobre o que sustentamos, tanto no que diz respeito aos fundamentos teóricos de nossa tarefa como no que toca mais diretamente a nossa prática. É neste sentido que gostaria de encarar o comentário do trabalho, expondo o que me levou a pensar sobre meu posicionamento a respeito das noções metapsicológicas que constituem, de alguma maneira, o fundamento da escuta e do trabalho de análise.

Levando em consideração algumas das propostas freudianas de "A Interpretação dos Sonhos", o autor destaca o caráter de produção plástico-figurativa que tem o sonho, como expressão não verbal, fruto das quatro operações próprias da elaboração onírica (condensação, deslocamento, consideração pela figurabilidade e elaboração secundária). Ao privilegiar esta forma de expressão do sonho, considerando que nela radica precisamente sua essência, o que verdadeiramente o caracteriza, desestimando a significação dos pensamentos latentes, Melsohn encontra um ponto de apoio para postular que "0 mesmo princípio que orienta a interpretação do sonho é o que orienta a escuta e a atenção flutuante do analista na sessão. Podem-se privilegiar conexões não sintáticas, verdadeiras cadeias para paratóxicas, reveladoras de formas de articulação e constituição de sentido próprias da dinâmica característica dos processos considerados por Freud inconscientes... . Essas formas de constituição de sentido , que denominaríamos não discursivas, são a todo título, formas de consciência.... É a brincadeira à qual estão sujeitas as palavras no sonho. E uma leitura de conexões que se assemelha à de uma partitura musical."

Esta proposta questiona a tendência a fazer uso de um conceito de inconsciente ontologizado, com o caráter de conteúdos a levar à superfície, que utilizam muitos analistas e que por momentos também está presente em Freud, como se depreende da noção de idéias latentes que subjazem ao conteúdo manifesto do sonho, ou de uma concepção da cura que se sustenta na proposta freudiana de 'tornar consciente o inconsciente'. Com este critério, a interpretação visaria desvendar o profundo, latente, oculto, que se esconde no manifesto. Uma concepção certamente muito discutível,

* Membro Titular da Associação Psicanalítica do Uruguai.

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como sugere o autor, a partir de uma perspectiva que abre a possibilidade de pensar de outra forma nas complexidades que encerram a relação consciente-inconsciente. ". Daí Melsohn vir a fazer uma forte afirmação neste sentido: "0 símbolo não discursivo(imagem onírica, sintoma, mito, obra artística) não somente é intraduzível ao discurso, na específica plenitude de seu sentido expressivo, como não esconde atrás de si, e já é hora de dizê-lo, nenhum conteúdo latente de significação".

Mesmo assim, gostaria de deter-me para refletir e interrogar o que o autor agrega, mais adiante no mesmo texto, no sentido de que estas formas de constituição de sentido, às que caracteriza como formas pré-reflexivas de consciência, não discursivas, não representativas, plenas de sentido e não de significação, constituem una manifestação direta das relações com o mundo; relações que têm o caráter de "relações de imantação, presentificadoras de concepções emocionais do mundo".

Por que atribuir exclusivamente à consciência estas expressões não verbais, ou que se caracterizam por conexões não sintáticas, homofonias, ou associações superficiais, como diria Freud? Tanto o conteúdo plástico-figurativo do sonho como a associação livre do paciente ou a atenção flutuante do analista, respondem a um processo dinâmico complexo no qual o inconsciente está sempre presente de alguma maneira por seus efeitos na consciência, tanto ao nível de imagens como de palavras e das relações que se estabelecem entre elas. A escuta analítica nos faz enfrentar um discurso do paciente que muitas vezes se aproxima ao da poesia e requer - como diz Melsohn - a possibilidade de uma "audição poética" por parte do analista, mas não posso deixar de pensar que isto também responde indubitavelmente ao determinismo inconsciente.

Melsohn nos propõe o exemplo de um verso de Góngora analisado por Dámaso Alonso, que me parece sumamente ilustrativo nesse sentido, à medida que pode ser entendido melhor com as contribuições da lingüística.

"Infame turba de nocturnas aves"

"As duas sílabas tur evocam em nós singulares sensações de obscuridade fonética que nossa psique trans-porta imediatamente ao campo visual. Estas sílabas(...)despertam em nós uma resposta, um significado espe-cial, superposto ao de turba e nocturnas, exterior todavia ao significado conceituai destas palavras, porque essa sensação de obscuridade se propaga à todo o verso. Uma observação mais atenta nos mostra que sobre as duas sílabas tur caem os acentos rítmicos (de 4a e 8a sílabas) do hendecassílabo. E estes acentos realçam o valor de sugestão de ambas: um ritmo pode também ser um significante. Finalmente observamos que essas duas sílabas, em duas palavras separadas influenciam-se, cada uma delas multiplica o valor significante da outra, criando um sentido novo, para além do valor conceituai das palavras."

Melsohn sublinha as vivências que resultam de "configurações sonoras articuladas por ele-mentos verbais independentes do conteúdo de significação". E mesmo reafirmando aqui a crítica que faz ao longo de seu trabalho a respeito da idéia de algo latente escondido a desvendar, creio que também há uma suposição subjacente no que diz respeito a uma separação radical da consciência com respeito ao inconsciente, sem levar em consideração, suficientemente, a meu modo de ver, o papel do pré-consciente e o determinismo do inconsciente e o processo primário, fragmentando e deslocando o texto manifesto, no registro do consciente - pré-consciente. O próprio Freud expressou que a separação entre instâncias e a proposta tópica de um aparelho psíquico que evoca a idéia de lugares diferentes, cujo caráter virtual não devemos esquecer, não pode pensar-se sem levar em consideração o

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Sobre o trabalho de Isaías H. Melsohn Fanny Schkolnik 51

dinamismo da relação entre estes distintos lugares, vinculado precisamente à importância da noção de conflito como pilar básico da concepção psicanalítica do sujeito, que se estrutura precisamente ao redor da divisão consciente-inconsciente mencionada.

No que diz respeito à proposta sobre formas de relações presentificadoras, concepções emocionais do mundo nas quais ocorre algo do tipo da imantação, penso que talvez poderíamos vincular-lo ao que Freud conceitualizou como narcisismo oceânico. Neste sentido, poderíamos pensar que algo disto, que aponta essencialmente à dualidade, ao fusional, talvez seja imprescindível ao vínculo transferenciai para que, tanto o paciente como o analista possam entrar em contato com os efeitos do inconsciente em ambos. Estas formas de comunicação que se estabelecem entre analista e paciente, mais além do significado que tenham as palavras em si mesmas, abrem o caminho para o trabalho analítico com o cindido e negado que pertence ao âmbito do narcisismo arcaico, presente em maior ou menor grau em cada um de nós e cuja incidência não podemos desconhecer na análise. Neste sentido, Melsohn nos diz que "A atmosfera de magia transcende ao sonho e incide em toda a vida humana. Sem dúvida, também na sessão analítica. Sensível ao clima único que imanta o encontro entre dois seres humanos, o analista pode se dar conta que o sentido de uma sessão de análise se constitui como um mito ou como uma criação de sentido no universo da arte. A maneira de falar, a entonação, linha rítmica, modalidades de construção, estruturas fonológicas, movimentos expressivos do corpo, tudo se ordena em torno de pontos nodais de organização-desorganização. Não se trata de um campo de observação. Os dois participantes estão envolvidos pela trama de intenções e emoções recíprocas(...) AnaIista e paciente dizem palavras que permitem divisar uma singular harmonia vertical, polifónica, em consonâncias mútuas que se transmitem um ao outro."

Porém, creio que também temos que nos manter sempre alertas, para evitar o encerramento neste tipo de vínculo dual, que tende ao fusional, e que não habilita à necessária inclusão de um terceiro, mediatizado pela palavra e pela emergência do sentido. Essa atmosfera de magia que envolve a ambos participantes, tal como penso, tem a ver com um clima particular que instaura a transferência, "cruz e alavanca" da análise, precisamente por sua vinculação com o narcisismo. As marcas das primeiríssimas formas de comunicação com o outro, ligadas a ritmos, sons e efeitos sensoriais e emocionais diversos, atualizam-se e voltam a assumir significado no vínculo transferenciai.

E, para terminar, gostaria de dizer que o trabalho de Melsohn me pareceu ser uma contribuição, no que diz respeito à valorização que faz da lingüística para a psicanálise, assim como a tentativa de aproximação da leitura que fazemos do que ocorre na sessão de análise, à linguagem que caracteriza a música, a poesia, a literatura e as distintas manifestações da cultura em geral. Ao entrar em contato com estas diversas formas de expressão artística, também conseguimos ampliar e desdobrar nosso mundo fantasmático, aproximando-nos mais do inconsciente. Na formação do analista é importante assinalar que, junto à análise pessoal, com todo o peso que tem a transferência para facilitar o acesso à essa experiência vivencial na qual se produz uma aproximação a algo que provém do inconsciente, também incidem estas outras vivências que procedem do encontro com as mais diversas manifestações da cultura. É a partir destas distintas vertentes que poderão ocorrer as mudanças estruturais que resultam de uma modificação nas relações que se estabelecem entre o registro consciente e o inconsciente, a partir da atualização transferencial.

Junho, 2002

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Mudanças e permanências

2. Psicanálise e cultura

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Artigos clássicos

Considerações psicanalíticas sobre a música e o músico

Heinrich Racker*

Desde seus primórdios, a psicanálise teve o ônus de um destino difícil quando aceitou a tarefa de trazer à luz os aspectos ocultos, obscuros e noturnos do ser humano. Orgulhoso de sua natureza superior, tanto espiritual como moral, embora ao mesmo tempo um pouco inseguro dela, o homem não quis saber muito sobre seus instintos animais, sua sexualidade e sua agressividade, e condenou a psicanálise a preservar suas ilusões sobre si mesmo. Isto ocorreu com relação à psicanálise em geral, e ao mais alto nível onde a "psicologia-profunda" penetrava na altura espiritual do homem, mostrando como até mesmo nas esferas onde ele se achava próximo de Deus - em arte, filosofia, religião, e assim por diante, ele continuava tendo suas raízes nos aspectos animais, arcaicos, e infantis, fontes das quais recebe - ao menos em parte — os impulsos e energias para suas criações sublimes.

Se eu o recordo desse fato na história da psicanálise, não é (ou pelo menos não somente) para atrair sua simpatia, em geral tão bem predisposta com relação àqueles seres e coisas que sofreram devido à ignorância ou injustiça humanas, mas porque aquele passado da história externa da psicanálise pode ainda estar presente, até certo ponto, dentro de nós. Mesmo hoje em dia, pode haver um certo grau de rejeição ou de antipatia com relação a qualquer tentativa de relacionar o alto ao baixo, de relacionar "Deus" ao "diabo", e pode existir não somente em outros, mas também em nós, que nos declaramos "amigos da psicanálise"l.

Esta antipatia pode disfarçar-se de maneiras distintas: por exemplo, como dúvidas com relação ao valor ou utilidade das investigações psicanalíticas quanto às criações do espírito. A psicanálise normalmente não participa da discussão de tais "racionalizações", mas se limita a indicar a sua origem emocional. Nesse caso, porém, eu gostaria de responder a essas dúvidas de maneira breve, dada a freqüência com que aparecem.

Primeiramente, como sabem, a ciência não está basicamente preocupada com a praticidade de suas investigações; está interessada nos fatos em si. A questão da origem da música certamente não é um problema de "necessidade básica". Entretanto, para penetrar a limitação imposta pelo interesse com o urgente, pelo que libera o homem do sofrimento instintivo ou satisfaz seus desejos vitais, e para ser aberto ao não urgente, pelo que ao mero instinto parece ser supérfluo, ou seja, estar aberto ao espiritual é, precisamente, um dos atributos especificamente humanos e até representa a dignidade hierárquica do homem.

Além disso, sendo uma das expressões do espírito, a música está relacionada à vida espiritual do homem em geral. Portanto, a investigação sobre as origens da atividade musical, que também leva à compreensão de suas perturbações, contribui de uma

* Racker, Heinrich. Psychoanalytic considerations on music and the musician. Psychoanal. Rev., v.52, p.405-24, 1965. Lo: SE598.

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só vez à compreensão de atividades espirituais em geral, e de distúrbios da capacidade de criar e aprender, de desempenhar e receber as artes e ciências. Evidentemente, isso nos coloca no centro do que é urgente.

Em realidade, a prática analítica em si sugere lidar com a psicanálise da música. Há vários anos, eu analisei uma jovem em cuja vida a música tinha adquirido um papel muito importante. Eu expus o que esta análise me ensinou em dois trabalhos anteriores2. Hoje gostaria de começar abordando nosso tema de um outro lado. Meu plano é mais ou menos semelhante a aquele seguido na construção de túneis, onde se começa dos dois lados até que as duas escavações se encontram. Aqui eu gostaria de começar não com o músico mas com a música, com a análise de seus elementos, processos e formas, sua lógica e gramática - embora por necessidade de maneira muito limitada - e depois passar a falar sobre minha análise musical e, mostrando os resultados a que cheguei e o que me levou a eles. Eu creio que os dois caminhos se encontrarão em algum momento o que me parece interessante.

I.

De acordo com a definição mais recente, música é a arte de combinar sons. Isto não quer dizer muito, mas dirige nossa atenção ao que é na realidade um de seus elementos fundamentais: o som. Harmonia, contraponto, e até mesmo ritmo, se aceitamos esta definição, não são elementos indispensáveis na música.

O homem cria sons musicais com sua voz e com instrumentos. Não sabemos com certeza qual destas formas de expressão emergiu primeiro, mas podemos deduzi-lo com uma certa probabilidade de verdade, através de analogia. No século passado, um estudioso alemão, Ernst Kapp, mostrou que, em geral, os instrumentos que o homem usa são normalmente projeções de órgãos humanos3. De acordo com Kapp, o martelo por exemplo é uma projeção do antebraço com o punho fechado; pinças são uma projeção da mão que agarra; tesoura, dos dentes; a máquina fotográfica, do olho, etc. Assim sendo, o mundo que criamos com nossos instrumentos é o nosso próprio mundo bio-psicológico interno projetado externamente. A partir disto, podemos deduzir, apesar de que apenas hipoteticamente, que instrumentos musicais também são projeções de órgãos; isto é provado, por exemplo, com relação a certos instrumentos de sopro que são a projeção de nosso órgão vocal, ou com relação ao piano, uma projeção do órgão de Corti do ouvido interior. Outrossim, podemos admitir que os sons que o homem produz através de instrumentos musicais são projeções dos sons musicais que ele pro-duz com sua voz, ou seja, do canto. Supomos, assim, que a primeira música seja o canto.

Portanto, a questão de quando o som cantado se originou se apresenta. A observação da criança pequena sugere que o precursor da canção é o murmúrio infantil ou, finalmente, o grito. O musicólogo vienense O. Adler foi, creio, o primeiro a indicar de maneira convincente que o som cantado tem sua raiz filogenética no grito; é um grito transformado. A observação psicanalítica confirma isso, como veremos mais adiante. Do ponto de vista da física4, o grito é um ruído, já que consiste de vibrações irregulares, enquanto que as vibrações de um tom musical são regulares. O tom obedece a uma ordem, um retorno à mesma coisa em tempos iguais, um ritmo íntimo que o grito não tem. Assim sendo, o ritmo é inerente à natureza do próprio tom. Psicologicamente, o

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Considerações psicanalíticas sobre a música e o músico Hdnrich Rader ss

grito aparenta ser, acima de tudo, uma expressão de dor ou de ansiedade, e de agressão. Subseqüentemente, é também uma expressão de triunfo, especialmente do prazer causado pela realização de agressão, ou de superação de perigo. Em contraste, o tom parece ser uma expressão de maior equilíbrio, satisfação e amor. Grito e tom são dirigidos a alguém, mas o grito de uma maneira mais agressiva ou exigente, o tom e a canção de maneira mais suplicante ou convidativa.

Entretanto, isto é apenas parcialmente verdadeiro, já que sabemos também da canção sedutora que tende a "envolver" e a causar dano, como o famoso canto da sereia. Entretanto, a asserção que na canção de amor predomina, resiste e é até confirmada por esta aparente contradição, já que sedução consiste precisamente do uso de boas maneiras para maus fms, de enganar a vítima com a aparência de bondade que esconde a má essência.

Por outro lado, o grito de alegria também existe, mesmo onde a alegria é uma expressão de amor. Este fato, entretanto, não contradiz mas reafirma de maneira equâ-nime o que foi apontado com relação à diferença entre grito e canção, porque o grito de alegria é normalmente uma manifestação de um triunfo sobre o destino malvado, como por exemplo no encontro renovado ou da nova união com a pessoa amada de quem se foi separado.

Nascemos gritando e o primeiro grito é o sinal de que começamos nossa "própria vida", que demos nosso primeiro passo na longa e difícil rota do que chamamos normalmente de nossa "independência", de que estamos respirando por nossa própria conta, comunicando-nos através de nossos próprios meios com o mundo externo. Como já havia dito, o grito aparece primeiro como uma expressão de dor e ansiedade que busca alívio, sua "descarga", no grito, o ego tentando voltar-se contra a agressão que sofreu. Esse protesto contra o ataque experimentado - pois assim é que o trauma-parto parece ser sentido — logo adquire um segundo significado (apesar da possibilidade de que tenha tido esse significado desde o princípio não pode ser rejeitada sumariamente) : estou me referindo ao significado de um pedido de ajuda contra (para neutralizar) o mal e o perigo, a chamada para re-união com o "bem" perdido. De qualquer modo, o grito é o sinal para a mãe (ou sua substituta) para notar que a criança precisa de algo; ela vem ajudá-la e então a criança o usa para chamá-la. Seja então devido a uma associação de idéias (ou seja, devido à aprendizagem), ou devido a uma "hereditariedade arcaica", no primeiro estágio da vida, o grito constitui o meio principal da criança de protesto e demanda; de rejeição e pedido de algo, de agressão e amor, na face da frustração de ou ameaça às suas necessidades vitais. É também, caso queira, a primeira expressão "religiosa" do ser humano, visto que através do grito a criança tende a "re-ligar-se"s

ao ser de quem foi separado, com o "objeto perdido."A transformação do grito em tom é o passo revolucionário e decisivo, ao nível

acústico, que o ser humano dá em sua evolução do animal ao humano, uma vez que somente o homem sabe como produzir tons. Estamos acostumados a dizer que pássaros cantam, mas a verdade é - a musicologia tem enfatizado isso - que apenas o homem realmente canta.

O que então emergiu no homem que transformou o grito em tom? Creio que acima de tudo, é o seu desejo e sua capacidade de dominar e dirigir suas expressões instintivas, uma vez que o tom é um grito dominado, que obedece a uma ordem do espí-

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rito do homem. Esta ordem, ritmo ou simetria, se revela na curva sinusóide que o tom constitui matematicamente. Em termos de nossa linguagem conceptual, a curva sinu sóide consiste de uma certa conexão entre unidade e polaridade. Considerando a ori gem histórica do tom no grito e a natureza física do grito, pode se dizer que tom é ordem ou organização do caos, conversão de multiplicidade confusa em unidade.Talvez se lembre desde seus anos escolares do experimento das figuras sonoras de Chladni: o que acabo de dizer-lhe em termos abstratos é trazido à sua demonstração visual mais bela no experimento de Chladni. Uma folha de metal (que como logo viríamos a saber- era levada a um certo tom musical), era coberta de maneira irregular com limalha de ferro. Ao "tocar" a folha de metal com um arco, o tom soava e ao mesmo tempo as lima- lhas de ferro começavam a mover-se, arrumando-se de acordo com o tom em desenhos simétricos muito variados e bonitos.

Essa unidade dentro da multiplicidade que representa a essência do tom e que é, por sua vez, o elemento básico na experiência do belo ao nível acústico, entra assim em uma relação significativa quanto à essência do belo em si. Esse princípio matemático ao qual o grito é sujeito e pelo qual é transformado ou "sublimado" em tom, mostra-se um princípio emocional e espiritual ao mesmo tempo; através da organização da multiplicidade e da união de polaridades, sua simultaneidade dá origem a uma experiência emocional eminentemente nova dentro de nós.

Já nesse estágio, uma série de associações se impõem sobre a mente do analista, ema-nando de seu trabalho e sua teoria. E isso sobretudo se ele já sabe que o princípio em questão não apenas rege a natureza do tom, mas também os outros elementos e toda forma de música, e não somente de música. Unir o que é separado, integrar o desintegrado, unir o desassociado e especialmente harmonizar as desarmonias entre o ego e os instintos, entre a parte espiritual, superior do homem e a sua parte animal, inferior, é também o princípio do trabalho analítico. Associações referentes a outra polaridade podem também emergir no consciente do analista, ou seja, a polaridade da sexualidade universal na qual a união de dois pólos produz igualmente a experiência do belo. Entretanto, por agora, é prematuro e possivelmente pareceria forçado estabelecer relações entre uma e outra; portanto colocamos de lado estas associações, para voltar a elas num momento mais oportuno.

Qualquer composição musical consiste na combinação de tons selecionados. Sua sucessão em ordem de sua "altura" forma as diferentes "escalas". Limitando-nos à música ocidental, como e de acordo com que princípio foi realizada essa seleção? Mais uma vez foi de acordo com um princípio físico-matemático, o princípio das relações numéricas mais simples, ou seja, da grande unidade dentro da variedade. A escala dia-tônica é constituída pelos assim chamados sons harmônicos do tom; assim chamados por serem aqueles que mais se harmonizam com o tom; as sub-vibrações de que são formados. A relação numérica entre o tom e seus sons harmônicos é de 1 a 2 a 3 a 4 a 5, etc. Portanto, as relações entre estes números simples e inteiros, são aquelas que se expressam nos tons da escala diatônica e servem como a fundação para experimentar o belo. (Eu deveria mencionar de passagem que nesse ponto, o mundo da música tem um modelo no mundo da matéria: uma das leis de química diz que átomos sempre se combinam em relações de números simples e inteiros).

Vamos agora observar as formas musicais. A mais pequena "Gestalt" de um tema musical (ou de uma melodia) é chamada de motif. Consiste da combinação de dois ou

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mais tons, e constitui a protocélula do organismo musical que se desenvolve "organi-camente" dela. Começando com esse motif, como se forma uma melodia? Através de repetição e variação do mesmo motif. Isto já atrai a atenção do analista outra vez, uma vez que ele reconhece nesses dois princípios as duas forças universais do Tánatos, que tende ao estático e rege o impulso à repetição, e de Eros, que tende ao novo, impelindo a assinar o diferente e o externo, a transformar dois em um, e a originar uma terceira entidade diferente - algo novo - dessas ligações.

De que consistem essas variações? Quais são os seus processos e mecanismos?Há várias, e gostaria de referir-me brevemente às mais importantes. Em primeiro lugar,

o deslocamento do motif, consiste de sua repetição em outro tom. Em termos psicodinâmicos, deslocamento é conhecido na psicanálise como um mecanismo de defesa do ego face aos impulsos instintuais temidos e sua percepção consciente; deslocamento é também conhecido como um mecanismo de conquista do ego - se é que se pode assim descrevê-lo - em sua relação com o mundo exterior. O menino, por exemplo, não pode receber o amor total de sua mãe e portanto desloca seus sentimentos eróticos a uma mulher fora da família. Este deslocamento é executado como uma defesa contra os perigos com os quais, em sua fantasia, o pai o ameaça, caso ele persista nas suas tendências edipianas; mas ao mesmo tempo, ele assim conquista outros objetos pertencentes ao mundo ao seu redor que correspondem mais adequadamente às suas necessidades e desejos.

Na música, encontramos deslocamento como um mecanismo técnico ou meio de criação, ao formar vida musical. Parece uma manifestação de um impulso em direção ao crescimento, em direção à formação de um organismo multicelular, e ao mesmo tempo, uma manifestação de uma tendência de evitar repetição, para evitar uma vida estreita, para evitar a morte. Aqui também, no aspecto espiritual, deslocamento aparece como uma expressão da busca do novo, da ruptura com o estreitamente familiar, do "incestuoso", do "autismo familiar". Ao mesmo tempo é uma rejeição do perigo de unicelularismo, de solidão, de tédio na repetição da mesma coisa, da morte emocional. De fato, a música mais primitiva (bem como a poesia e ornamentação mais primitivas) mostra uma repetição contínua da mesma coisa. Por outro lado, deslocamento é onerado também pelo velho, o já expressado, já que apesar de variado, é também uma repetição. Assim, deslocamento representa uma transação entre velho e novo, Tánatos e Eros, unicidade e multiplicidade.

A cisão ou divisão do motif é outro mecanismo principal de criação musical. Uma parte do motif é selecionada e "trabalhada" (i.e., repetida e diversificada), contribuindo dessa maneira à formação do tema musical. Cisão também é conhecida na psicanálise como um mecanismo mental do inconsciente, acima de tudo defensiva; por exemplo, onde a coexistência de sentimentos opostos com relação a uma pessoa, e a coexistência de imagens opostas dessa pessoa, provoca ansiedade no indivíduo. Ao dividir essas imagens e esses sentimentos, ele se protege da ansiedade. Embora como os outros mecanismos de defesa, a cisão não somente contém a rejeição do perigo, uma vez que ao mesmo tempo envolve uma defesa da vida. O menino pequeno cuja ambivalência o leva a ver seu pai como bom e perigosamente mau ao mesmo tempo, mantém sua boa relação com seu pai dividindo sua imagem e deslocando a parte má e temida a um cavalo ou a um cão. Além disso — assim como vimos em deslocamento — o mecanismo de divisão também

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está a serviço da vida de outra maneira; é ao mesmo tempo um mecanismo de conquista da vida, de crescimento e de enriquecimento psicológico. Uma que qualquer diferenciação é primeiramente, divisão. A etimologia da palavra indica isso: através da divisão vemos as partes da unidade, nós a diferenciamos. Diferenciação (ou análise), junto com integração (ou síntese), formam os dois processos básicos de nosso pensamento e conhecimento. Seleção, preferência por certos conteúdos e a rejeição de outros também é baseada na divisão, análoga ao processo de metalismo na vida orgânica.

Na música encontramos divisão - semelhante ao deslocamento — como um mecanismo contribuindo à formação do organismo musical; como uma transação entre Tánatos que separa e Eros que une, e como um instrumento para realizar o princípio de unidade dentro da multiplicidade. (Uma vez mais, eu indicaria a analogia biológica: a divisão da célula também se refere aos seus próprios processos vitais básicos).

Com respeito aos mecanismos musicais restantes, posso ser mais breve, já que eles têm muito em comum com aqueles já mencionados. A inversão do motif consiste em seus próprios intervalos seguindo uns aos outros em sentido oposto ao seu curso original, ou seja, de trás para frente. A psicanálise conhece esse mecanismo, especialmente com relação à formação de sonhos.

O mecanismo de representação através do oposto, que Freud indicou na análise de sonhos e em outros fenômenos psíquicos, está igualmente fundado em técnica musical, ou seja, na inversão vertical dos intervalos do motif, i.e., na inversão de baixo para cima e vice versa.

A condensação de imagens que tem um papel preponderante na formação de sonhos, também tem um papel importante na música, na representação condensada de um tema (por exemplo, na ligação entre o seu começo e seu fim com a omissão da parte central), bem como no entrelaçamento condensado de dois temas diferentes. Ao mesmo tempo, isso significa que a condensação é mais freqüentemente encontrada nas formas musicais mais complexas que nas mais simples.

Além dos mecanismos de variação específicos com os quais temos lidado, - os modos mais gerais - talvez mais livres - de diversificar um motif devem ser também mencionados. Uma parte considerável desses modos pode ser resumida como alargamento e abreviação do motif.

Em resumo, como um princípio comum a todos esses mecanismos musicais, temos variação na repetição, unidade na multiplicidade. A psicanálise os conhece como mecanismos do "processo primário", ou seja, do pensamento inconsciente; os conhece especialmente pelos devaneios e fantasias oníricas, da atividade criativa dos poetas, e assim por diante. Os mecanismos que na música agem sobre o material acústico-mate-mático são os mesmos que nessas expressões psicológicas agem sobre o material predominantemente visual de objetos concretos; em ambos os níveis, processos emocionais e espirituais são expressos. Quanto a isso, podemos dizer que a música é também uma formação onírica, que participa do mundo de ilusão, embora ao mesmo tempo expressa também - como em todas as outras formas de arte - outros conteúdos, de uma natureza mais elevada, menos ilusória, mais real. O sonho nasce da necessidade, da dor, ou da ansiedade (é, como diz Freud, uma tentativa de satisfazer desejos insatisfeitos), e assim também nasce a obra de arte, como afirmam vários artistas. Os instrumentos de defesa são transformados em instrumentos de criação. (Uma vez mais, isso relembra a

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Considerações psicanalíticas sobre a música e o músico Heinrich Racker 59

vida biológica: a célula também se divide e procria para evitar a morte).Até aqui, ao explorar os mecanismos musicais, eu me limitei à formação da "Gestalt"

musical básica, que é atualmente chamada de tema, ou, na linguagem musi-cológica, a "frase" (Satz); estudamos - para usar outro símile - a composição da molécula musical, apontando a natureza de seus átomos, que são o "motif", suas repetições, e suas variações. As formas mais complexas obedecem aos mesmos processos. O "período" musical (a forma mais simples depois da "frase") consiste de duas "frases" ligadas, a "frase anterior" e a "frase posterior", sendo que esta última é uma repetição variada da anterior. A forma de "Lied em duas partes" e o "Lied em três partes" que são os organismos musicais geralmente seguidos pelo "período" em complexidade - é regulada por princípios idênticos, e o mesmo se mantém válido para toda a estrutura subseqüente até as mais desenvolvidas, como por exemplo, a "forma da sinfonia." A diferença reside na maneira de aplicar os princípios e não nessa última em si. Voltarei a este ponto mais adiante.

Devemos agora dirigir nossa atenção aos outros componentes da música ocidental; ritmo, harmonia, e contraponto. Ritmo é definido de várias maneiras, mas sua essência é o retorno (ou repetição) de um fenômeno em tempos iguais (o que constitui um proto-ritmo, o ritmo mais primitivo), ou em tempos cuja proporção é regida por números simples. De fato, na música ocidental, os números 1, 2, e 3 e seus múltiplos, regem a totalidade dos fenômenos rítmicos6. Assim nos encontramos novamente diante do princípio de unidade dentro da multiplicidade, de equalidade dentro da variedade. O ritmo, enquanto participa na formação de temas musicais, também obedece aos mesmos processos que vimos atuando sobre o material sonoro como tal. Assim como existe um "motif" de som, um "motif" rítmico também existe, e este é igualmente repetido e variado. Nesse caso, variações também são deslocamento, cisão, condensação, alargamento, abreviação, inversão, etc. Outrossim, diferenças também existem, e seu estudo poderia ter interesse, mas lamento que razões de espaço não permitam que me aprofunde nesse aspecto.

Harmonia e contraponto são fenômenos mais tardios na música. Eles são aquisições decisivas na sua evolução, assinalando novas eras, mas a música, como tal, existe sem eles também. Dessa maneira, compreendemos que eles representam desenvolvimento e progresso ao longo da linha dos princípios básicos que já conhecemos. Na evolução da arte musical (diferentemente do folclore, cujo princípio histórico é praticamente desconhecido), contraponto precede a emergência dos acordes harmônicos que se seguem; sua origem data de 1.000 anos atrás. Contraponto é a técnica da polifonia; ou seja, a técnica de inventar duas ou mais melodias ou "vozes" de tal maneira que elas podem ser cantadas ou tocadas ao mesmo tempo, embora cada voz mantenha de certo modo seu próprio curso e sentido independente. Por exemplo, você conhece a forma musical da "fuga", que constitui a culminação da arte do contraponto. Nela o princípio de unidade dentro da multiplicidade rege mais uma vez. Mas a música polifônica é caracterizada por uma certa nova aplicação desse princípio: a simultaneidade de vozes múltiplas que preservam sua individualidade, formando assim mesmo uma comunidade unida.

A música que emerge durante o Renascimento contrasta em grau com a polifonia, que se desenvolveu na Idade Média; naquela uma melodia é originalmente acompanhada por acordes harmônicos. Como a palavra "acorde" já indica, é um acordo de tons apesar de sua

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diversidade; ou seja, é uma vez mais o mesmo princípio fundamental que já conhecemos7.Mas aqui, correspondendo ao Renascimento individualístico - é uma melodia com acompa-nhamento harmônico. O enriquecimento sentido pela aplicação do princípio de "unidade dentro da multiplicidade" consiste portanto desses acordes de acompanhamento.

Em todos os seus aspectos (ex.: tom, ritmo, contraponto, e harmonia), a evolução da música mostra uma direção inequívoca: a repetição produz mais e mais enquanto que a variação é sempre mais arrojada, incluindo mais e mais o removido e o estranho. Tánatos dá passagem a Eros. Uma multiplicidade ainda mais rica é transformada em unidade. A música atual, "música dodecafônica" não apenas abandonou a tonalidade (ou escala) de sete tons, (e por isso é também chamada de atonal ou, mais adequadamente, de música pantonal), mas também um de seus princípios consiste em que nenhum dos doze tons da escala cromática (que emprega) seja repetido antes que os onze restantes tenham aparecido. Esta nova música pode ser amada ou não, mas não há dúvida de que seu princípio, que reduz repetição ao seu máximo e estimula a variação ao seu grau mais elevado, segue a linha da evolução; na verdade, somente estabelece teoricamente o que o desenvolvimento espontâneo da música tendia na prática, a música já estando próxima a isso quando essa teoria emergiu. Uma certa analogia com a evolução de organismos no ser humano é mais uma vez visível.

2.

Embora eu tenha até aqui lidado quase que exclusivamente com os aspectos formais da música, deixando os aspectos espirituais de lado, vou agora interromper a investigação da música em si para me aproximar do nosso tema pelo outro lado do túnel, ou seja, através da observação analítica do músico8. Como deve ter notado, eu não gosto de repetição, mas na prática, não posso evitá-la. Assim sendo, devo agora resumir o que já descrevi detalhadamente nos trabalhos mencionados previamente.

A paciente de quem quero falar não era uma música por profissão. Mas Ingrid -como a chamo — amava a música e seu talento era grande, tanto que a música e sua atividade musical — ela estudava canto - eram um tema freqüente em suas sessões analíticas. Quanto à vida de Ingrid, devo limitar-me à informação indispensável à compreensão do material relacionado ao nosso tema. nesse ponto que ela era uma jovem de 20 anos, estudante de química, e procurou análise por razões terapêuticas depois de um surto esquizofrênico do qual ela se recuperou através de choques de insulina. Ela vem de uma família européia de alto nível cultural e é a filha mais velha. Ela tem apenas um irmão, quatro anos mais jovem que ela. Pouco depois de seu surto, Ingrid começou a ter relações sexuais com seu noivo, um jovem por quem ela estava muito apaixonada.

O primeiro acesso à compreensão do significado inconsciente de sua atividade musical foi oferecida através de um sonho no qual Ingrid era perseguida por um gnomo, que ameaçava esvaziá-la de todo seu conteúdo e força vitais atacando-lhe os seios. Nesta situação da maior ansiedade e medo de morte, Ingrid começa a cantar, e isto a salva do perigo.

Aqui então, a atividade musical aparece como defesa contra uma ansiedade per-secutória ou "paranóica". O problema surge da relação entre uma e outra, ou seja, de onde a atividade musical adquire a propriedade de defender contra um perigo que

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diversidade; ou seja, é uma vez mais o mesmo princípio fundamental que já conhecemos7.Mas aqui, correspondendo ao Renascimento individualístico - é uma melodia com acompa-nhamento harmônico. O enriquecimento sentido pela aplicação do princípio de "unidade dentro da multiplicidade" consiste portanto desses acordes de acompanhamento.

Em todos os seus aspectos (ex.: tom, ritmo, contraponto, e harmonia), a evolução da música mostra uma direção inequívoca: a repetição produz mais e mais enquanto que a variação é sempre mais arrojada, incluindo mais e mais o removido e o estranho. Tánatos dá passagem a Eros. Uma multiplicidade ainda mais rica é transformada em unidade. A música atual, "música dodecafônica" não apenas abandonou a tonalidade (ou escala) de sete tons, (e por isso é também chamada de atonal ou, mais adequadamente, de música pantonal), mas também um de seus princípios consiste em que nenhum dos doze tons da escala cromática (que emprega) seja repetido antes que os onze restantes tenham aparecido. Esta nova música pode ser amada ou não, mas não há dúvida de que seu princípio, que reduz repetição ao seu máximo e estimula a variação ao seu grau mais elevado, segue a linha da evolução; na verdade, somente estabelece teoricamente o que o desenvolvimento espontâneo da música tendia na prática, a música já estando próxima a isso quando essa teoria emergiu. Uma certa analogia com a evolução de organismos no ser humano é mais uma vez visível.

2.

Embora eu tenha até aqui lidado quase que exclusivamente com os aspectos formais da música, deixando os aspectos espirituais de lado, vou agora interromper a investigação da música em si para me aproximar do nosso tema pelo outro lado do túnel, ou seja, através da observação analítica do músico8. Como deve ter notado, eu não gosto de repetição, mas na prática, não posso evitá-la. Assim sendo, devo agora resumir o que já descrevi detalhadamente nos trabalhos mencionados previamente.

A paciente de quem quero falar não era uma música por profissão. Mas Ingrid -como a chamo — amava a música e seu talento era grande, tanto que a música e sua atividade musical — ela estudava canto - eram um tema freqüente em suas sessões analíticas. Quanto à vida de Ingrid, devo limitar-me à informação indispensável à compreensão do material relacionado ao nosso tema. nesse ponto que ela era uma jovem de 20 anos, estudante de química, e procurou análise por razões terapêuticas depois de um surto esquizofrênico do qual ela se recuperou através de choques de insulina. Ela vem de uma família européia de alto nível cultural e é a filha mais velha. Ela tem apenas um irmão, quatro anos mais jovem que ela. Pouco depois de seu surto, Ingrid começou a ter relações sexuais com seu noivo, um jovem por quem ela estava muito apaixonada.

O primeiro acesso à compreensão do significado inconsciente de sua atividade musical foi oferecida através de um sonho no qual Ingrid era perseguida por um gnomo, que ameaçava esvaziá-la de todo seu conteúdo e força vitais atacando-lhe os seios. Nesta situação da maior ansiedade e medo de morte, Ingrid começa a cantar, e isto a salva do perigo.

Aqui então, a atividade musical aparece como defesa contra uma ansiedade per-secutória ou "paranóica". O problema surge da relação entre uma e outra, ou seja, de onde a atividade musical adquire a propriedade de defender contra um perigo que

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Considerações psicanalíticas sobre a música e o músico Hdnrich Racker 61

ameaça o ego.Para esclarecer este problema, precisamos primeiramente dirigir nossa atenção às

ansiedades persecutórias. Elas têm origem múltipla. Em um nível relativamente superficial, elas nascem dos sentimentos inconscientes de culpa, sendo a expressão de medo de punição por vingança ("retaliação"). A análise do sonho de Ingrid também mostrou isso. No dia anterior ela tinha estado extremamente preocupada com uma possível gravidez, já que sua menstruação não descia há tempo. O gnomo representava a criança, meio desejada, meio temida. Um dos pensamentos latentes do sonho era: se eu tiver uma criança, ela vai tirar vantagem de mim, vai me esvaziar da mesma maneira como eu esvaziei minha mãe.

Entretanto, ansiedades persecutórias têm uma origem ainda mais profunda. Elas surgem de qualquer frustração libidinosa prolongada, ou - em outras palavras - de qualquer ação da parte do "instinto de morte". A fome que "consume" e ameaça "devorar" a nós mesmos serve como um exemplo. Neste sentido, Ingrid por exemplo, vê um perseguidor em qualquer pessoa que a atraia intensamente, devido à possibilidade de ser frustrada; a experiência de frustração é intimamente relacionada com o "instinto de morte", (à quantidade de agressão dirigida contra o ego).

Deveríamos agora estudar a relação entre isso e a atividade musical, mas devo pedir-lhe um pouco mais de paciência, porque primeiro devo falar um pouco mais sobre o material de minha paciente. Aqui apenas posso indicar que existe uma relação entre o que acabamos de ver (as ansiedades persecutórias), e algo observado na Parte 1, onde já encontramos o fator de "perigo" quando falamos dos mecanismos de defesa contra instintos perigosos, o instinto de morte evidentemente sendo o instinto perigoso por excelência. Indicamos que o mecanismo de defesa foi transformado em mecanismos de criação, e ademais, tivemos a impressão de que o organismo musical multi-celular (tal como o organismo biológico) está sob um impulso de evitar a morte. Por sua vez, Ingrid canta para evitar a morte, e vimos que no último exemplo, este perigo surge do instinto de morte. Assim de ambos pontos de vista, a música representa a vida dirigida contra a morte, a defesa da vida contra o perigo da destruição.

Um dia, Ingrid traz à sua sessão um desenho que ela tinha feito; sua análise contribui à resposta da questão sobre a relação entre sua atividade musical e suas ansiedades inconscientes, especialmente as ansiedades paranóicas. O desenho representa um jovem flautista que conjura duas serpentes com sua música. "Quando o flautista pára de tocar" diz Ingrid em suas associações, "as serpentes atacam". Novamente, a música aparece como uma defesa em face a um "perseguidor". "A serpente é sedução," diz Ingrid mais tarde, e assim ela aproxima da origem do perigo: seus instintos. Ingrid chama o flautista de "gnomo", ou seja, ela lhe dá o mesmo nome que tinha dado ao pequeno homem de seu sonho. Assim uma certa identidade aparece entre o perseguidor e o encantador de serpentes. Essa identidade é confirmada quando Ingrid atribui alguns traços de tigre ao flautista, o tigre sendo um perseguidor antigo nos sonhos de Ingrid. O encantador de serpentes também tem o mesmo poder hipnótico que Ingrid normalmente atribui às serpentes. Se compreendermos a origem dessas semelhanças, também saberemos algo mais sobre o significado inconsciente da atividade musical de Ingrid.

A resposta a esta questão é dada por muito do material de Ingrid: tal identidade é devida a uma identificação, a identificação com o perseguidor, que constitui um mecanismo

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de defesa freqüente diante da perseguição. Assim entendemos que a atividade musical de Ingrid, enquanto contendo essa identificação, é capaz de defendê-la contra perseguição.

Outrossim, o flautista e a serpente não são idênticos; diferenças importantes existem. Por exemplo, ambos atuam com a boca, mas a serpente morde e destrói, enquanto que o músico sopra e "encanta". Ele não sopra de qualquer maneira, mas de maneira especial, ordenada e bela. Assim sendo, estamos lidando com uma identificação transformada, ou - em termos analíticos, "sublimada".

Portanto, novamente encontramos algo que já havíamos visto na Parte 1: o grito - a matéria prima da canção - que parecia uma resposta a um ataque (semelhante ao ataque contra o flautista), era também transformado ou "sublimado", ordem e simetria foram impostos sobre a expressão indomável do instinto.

Nós resumiremos brevemente o que observamos até aqui através da nossa apro-ximação com relação às raízes da atividade musical. A ansiedade em face à destruição do ego existe no fundo. Esta ansiedade é causada pela percepção (inconsciente) da atuação do instinto de morte, ou de frustração. A agressão dirigida contra o ego é voltada para fora como defesa. No aspecto que estamos considerando, isto acontece especialmente através do grito. Psicologicamente, a volta para o exterior da agressão é realizada - pelo menos às vezes — através de uma "identificação com o perseguidor". Esta agressão freqüentemente experimenta uma transformação mais tarde; no nosso caso, é a transformação de grito em canção. Vamos lidar com esse ponto em seguida.

Aqui vou acrescentar que o meu uso do termo "agressão" apenas reflete o aspecto predominante da minha experiência. Na realidade, é uma agressão libidinosa, uma mistura de Eros e Tánatos. Por exemplo, o pequeno homem do sonho que ameaça destruir Ingrid, de certa maneira também a ama, evidentemente apreciando as boas coisas que ela contém. Isto é análogo ao que vimos no capítulo anterior com relação ao grito, também uma expressão predominantemente agressiva, mas que é simultaneamente um pedido de ajuda, uma manifestação de ódio e amor. Além disso, em outro nível, vimos que os mecanismos do "processo primário" também têm duas faces: são ao mesmo tempo mecanismos de rejeição (ou seja, de agressão), e de criação.

Declaramos que face à frustração ou ao medo de destruição, Ingrid dirige sua agressão para fora. A frustração é causada pelos objetos que ela ama, primeiramente pela mãe e pai, e assim sua agressão é predominantemente dirigida contra eles também. Em suas fantasias, Ingrid fere e destrói as pessoas que ela ama; é por isso que ela às vezes é atormentada por sentimentos de culpa, preocupação com essas pessoas, e sensações de solidão; quando essas fantasias são atualizadas, ela se torna desesperada e profundamente deprimida. Ademais, desde que essas pessoas amadas e atacadas são experimentadas como parte de sua própria vida e ego, ela mesma também se sente ferida ou destruída.

O seguinte episódio da vida de Ingrid, por exemplo, é interessante nesse sentido. Um dia ela vem à sua sessão com a notícia de que seu noivo, a quem ela é muito agarrada vai viajar naquela mesma noite, e vai estar ausente de Buenos Aires por várias semanas. Ingrid está muito ansiosa com esse abandono. Ela teme que seu noivo, estando longe dela, tenha relações com outra mulher; ela então tem a fantasia que ele vai sofrer um acidente e ser destruído por um trem. O material associativo claramente mostra que esta fantasia se origina do ódio de Ingrid por seu amado porque ele a abandona; ela própria o mata com sua fúria como uma resposta à aniquilação-ansiedade que

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o abandono causa nela. No dia seguinte, Ingrid vem à sessão num estado profundamente deprimido. O noivo se foi. "Sinto-me como se estivesse em muitos pedaços", diz Ingrid. E então ela acrescenta: "Vou cantar hoje à noite. É a única coisa que vai me fazer bem."

No dia anterior, na sua fantasia do trem, Ingrid tinha rasgado o seu noivo em pedaços. Hoje, ela está em pedaços também, já que ele é parte dela. Somente a música, como ela diz, pode unir seus próprios pedaços, ao mesmo tempo em que une os pedaços de seu noivo9".

Assim sendo, a música e a atividade musical mostram-se como algo que tem o poder de unir o fragmentado e o desunido e a reparar o destruído. Mas onde a música obtém esse poder e qual de suas propriedades dá esse poder à música?

A resposta está dada pelas considerações colocadas acima na Parte 1. Vimos que a propriedade essencial da música é a sub-dualidade dos instintos, a organização do caos, a unificação da multiplicidade. Vimos também que quanto mais desenvolvida é a música, mais ela representa a supremacia de Eros sobre Tánatos. Hoje à noite, quando Ingrid cantar, ela vai submergir-se nesse "mundo melhor", ela vai unir-se a essa "unidade dentro da multiplicidade", e ela vai tornar-se integrada ao participar da integração, na conexão orgânica de cada parte que caracteriza as criações musicais. E mais, ela vai esforçar-se a fim de reproduzir as canções tão perfeitamente quanto possível, ou seja, ela vai colaborar na recriação de um objeto - a canção - e de um ego - cantar - de maneira tão perfeita, bela e unida como possível. Uma vida latente é assim trazida à realidade, uma vida na qual todos os pedaços formam uma unidade, e na qual Tánatos é controlado e dirigido por Eros. Na canção e através da canção, Ingrid não apenas subjuga os "espíritos maus" — a serpente, dentro e fora dela mesma que ataca e mata - mas também restaura o objeto e o ego danificados. Conseqüentemente, Ingrid, que se considera feia, suja e má porque ela se sente destrutiva e destruída, sente que ela está se tornando bela, pura e boa, na medida que seu canto é belo e puro. Assim compreendemos porque, para Ingrid, a atividade musical constitui o meio principal para superar suas profundas depressões, a base sendo seus sentimentos de culpa devido à sua agressividade. Fazer música é reparar o que é destruído, criar vida, tornar-se boa, e receber perdão.

Que a música pode defender uma pessoa em face da depressão foi determinado ainda mais pelo fato de que, como Ingrid diz, a música sempre está aí. Ela diz isto, enfatizando a diferença com os outros objetos de amor que nem sempre estão presentes, que a abandonam. Música é o objeto ideal, sempre fiel. "Ninguém pode tirar a música de mim, não importa o que aconteça, diz Ingrid em outra ocasião, enfatizando o caráter estável desta relação. Em seguida ela compara esta estabilidade da música com o ambiente psicologicamente estável e harmonioso que reinavam em sua cidade natal, e na sua casa da infância de sua mãe, onde Ingrid também tinha vivido parte de sua primeira infância. A nostalgia pela música "estável" aparece aqui como uma nostalgia por recuperar a mãe e nunca perdê-la novamente.

3.

Você já ouviu sobre o quão doloridos eram os sentimentos de culpa e as depressões de Ingrid; estes eram causados pelo seu desespero por conta de todo o mau que ela havia causado na sua fantasia à suas pessoas, a quem embora ela amasse, ela sentia

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que tinha que ser má. Confrontada com esses estados dolorosos, Ingrid lançava mão da cisão como uma defesa, mantendo afastada a boa imagem da má, colocando estes pontos em objetos diferentes. Seus sentimentos ambivalentes também foram divididos e ela experimentou ódio com relação ao mau objeto e amor pelo bom. Este último, por ser sentido como sendo unicamente bom, tornou-se idealizado, tornando-se portanto a contra-imagem do objeto unicamente mau, o "perseguidor". Com relação a este objeto, Ingrid se sentiria ou subjugada e perseguida por ele, ou o identificaria com uma defesa. O mesmo aconteceu com seu objeto idealizado; ela ou se rendeu a ele porque estava apaixonada, ou se identificou com objeto.

Estas quatro situações, ou seja, a sujeição a uma identificação com cada uma dessas duas imagens, são também expressas ao nível acústico e musical. Os fenômenos acústicos e musicais aparecem parcialmente como perseguidores e parcialmente como objetos ideais, e enquanto Ingrid se identifica com esses objetos, ela se transforma em uma perseguidora, ou então, em um sujeito ideal. Estes opostos se expressam, por exemplo, na oposição dos barulhos maus e bons, grito e canção, respiração má e boa, voz má e boa, música má e nobre. Ingrid as sente passivamente ou as realiza ativamente, e de maneira correspondente, uma ou outra das quatro situações mencionadas é alcançada.

Observemos as mesmas mais claramente; barulhos, por exemplo. Um grande número de barulhos torna Ingrid muito ansiosa. Portanto, ela freqüentemente dorme com os ouvidos tapados. Ela me pede que a trate numa sala na qual os barulhos da sala ao lado não penetrem, uma vez que estes barulhos a lembram que eu tenho uma mulher e filhos que a deixam com inveja. Um sonho mostra que em última instância estes barulhos maus, persecutórios representam a vida sexual de seus pais. Em outro sonho, os barulhos são uma expressão de sua própria vida sexual, e assim Ingrid sente que está se transformando em uma perseguidora e destruidora de seus próprios filhos (futuros) que ouvem estes barulhos.

Mas os barulhos não eram apenas perseguidores. As vezes, Ingrid escapava de situações ansiosas durante as sessões ouvindo os barulhos da rua, e, por exemplo, ficava entu-siasmada pela beleza do trotar de um cavalo. O caráter exaltado desse entusiasmo mostrava a idealização de tais fenômenos acústicos.

A relação de Ingrid com a voz era muito significativa, especialmente na transferência de seus sentimentos ao analista. Por um lado, minha voz era algo muito bom e querido por ela. Também me era exigido "espantar" a sua desconfiança em mim; ou seja, minha voz era um objeto idealizado que ela requeria para acalmar suas ansiedades persecutórias igualmente relacionadas a mim. Além disso - de acordo com ela própria - ela tem minha voz "guardada" dentro dela, e quando estava sozinha, em momentos de depressão e ansiedade, ela encontra refúgio em minha voz. Em espanhol, a palavra "guardada" liga voz com comida, neste caso, com leite, seio, e a boa mãe . Ter "uma boa voz e cantar bem" significava ser uma boa mãe, e significava dar e não esvaziar ou estar vazia.

Devido ao fato de que Ingrid não tinha minha voz sempre que queria, seu amor pela minha voz foi transformado em uma dependência que ela rejeitava devido à sua frustração e a perigos inerentes. Desta maneira, minha voz transformou-se em um sedutor que atraía e frustrava, e portanto em um perseguidor. Ingrid se defendia identificando-se com o sedutor, tentando atrair-me com sua voz; às vezes ela se tornava uma

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Considerações psicanalíticas sobre a música e o músico Heinrich Racker 65

"sereia" na maneira como falava.Este exemplo mostra como, através de frustração, o objeto amado é dividido em dois:

o sedutor ou perseguidor de um lado, e do outro, o objeto ideal, a música "que está sempre lá."

De acordo com os estados psicológicos diferentes de Ingrid, seu canto ou parecia com uma negação de situações depressivas ou paranóicas, como um estado de autarquia, um banquete de liberação e independência, ou como a superação de ansiedades depressivas e paranóicas, como expressão da restauração feliz do objeto perdido, banquete de reconciliação e união.

Deste modo, o que sabemos através de Ingrid lembra alguns pontos que consideramos no princípio. O grito como uma expressão de protesto contra a separação, e do desejo de reunião, volta na canção, transformada numa expressão seja de triunfo sobre os perigos, ou a reunião alcançada com a pessoa amada. No aspecto que acabamos de discutir, onde a cisão e os dois extremos de bom e mau regem, a música aparece como o objeto que concede tudo, que protege de tudo, e que é totalmente possuído. Não há frustração, nem agressão, nem culpa; tudo é negado. A música é o bem absoluto; é apenas espírito, sem matéria, além do instinto e carne. O "diabo" é negado, está no outro extremo, como indicamos no começo quando falamos daqueles que separariam o alto do baixo, e Deus do diabo. Assim, a música está às vezes envolvida numa tentativa de resolver o conflito não resolvido da coexistência de amor e ódio através de sua separação e da idealização do "objeto bom."

Não obstante, a verdade é que a música participa de ambos aspectos, Eros e Tánatos, espírito e instinto. Na realidade, a música é uma transação, ou melhor, uma expressão da luta entre o superior e o inferior, e é uma expressão de elevação, o enobrecimento ou "sublimação" do inferior pelo superior.

Síntese

Nós abordamos o assunto a considerar, inicialmente, o assunto da música: sons, e então dirigimos nossa atenção às suas formas. Vimos a origem do tom no grito, que constitui uma rejeição e uma defesa em face à dor e à ansiedade da qual nasceu, e o ego levando a agressão que sofreu para fora e pedindo ajuda ao mesmo tempo. Em Ingrid, vimos de maneira semelhante o grito e depois a canção como defesas em face do perigo de sofrer uma agressão mortal. De maneira análoga, sua atividade musical era uma agressão voltada para fora, nesse caso, através da identificação com o perseguidor. Ingrid afugentou o diabo através de Belzebu, transformando-se nele.

Seguindo com a consideração do tom musical, vimos que é um grito transformado, o homem tendo imposto sobre ele a ordem e simetria que o tornam belo. Similarmente, a análise das formas musicais mostrou que o princípio que rege toda composição musical é o da unidade dentro da multiplicidade, da integração de todas as partes. Além disso, o desenvolvimento do organismo musical apareceu como uma expressão de integração contínua entre a defesa contra a morte e a criação da vida.

Em Ingrid, vimos também que a agressão voltada para fora, e a identificação com o perseguidor que deviam defendê-la contra a morte e que encontraram expressão no grito, sofreram uma transformação. Ademais, antes que estes impulsos agressivos fos-

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sem transformados, eles constituíam a causa de seus sentimentos de culpa e depressões, já que destruíam aqueles a quem ela amava. Eles tinham que ser transformados para que não causassem danos outra vez, e sua transformação significou ao mesmo tempo, a reforma do ego e de sua redenção da culpa, assim como a reparação e recuperação de objetos amados. Também compreendemos porque a atividade musical podia ter esse significado. Fazer música era criar vida e unir com vida, o que é, em sua essência, Eros em uma constante superação deTánatos. Já que a música é acima de tudo unidade dentro da multiplicidade, ela implica que a união e "harmonização" (Eros) do que está desunido e dispersado, o que é de Tánatos; e implica na superação da solidão, isolamento e repetição (Tánatos), unindo o "um" com o múltiplo e variado, que é de Eros.

Unidade, se ligada com multiplicidade ("riqueza"), é considerada um valor supremo com relação à forma de uma obra musical. Do mesmo modo, e com relação ao conteúdo ou espírito de uma obra musical, sua "nobreza", sua "beleza", ou o "amor" contido nela, são considerados de supremo valor. Em todos esses conceitos, mais uma vez Eros predomina, aqui em oposição e transformação daquilo que causa ansiedade e é feio, que é o belo, e em oposição e transformação do ódio, que é o amor.

Notas

1. Uma palestra até agora não publicada, enviada aos "Amigos da Associação Psicanalítica Argentina", em 1957.2. Contribution to the Psychoanalysis of Music, American Imago, vol.7, 1951 e On Music, The Yearbook of Psychoanalysis, vol.9, 1953. No primeiro trabalho, há um capítulo dedicado a trabalhos psicanalíticos anteriores sobre música, especialmente os deT. Reik, S. Pfeiffer e R. Sterba. 3. Ernst Kapp. Grundlinian einer Philosophie der Technik. (Out of print. 4. Oskar Adler. La crítica da Ia música pura, (1912), Editora Kier, Buenos Aires, 1958. 5. Nota do Tradutor: O jogo de palavras "religioso" e "religar" que em espanhol é derivado do latim religa-re, e que foram traduzidos respectivamente como "religioso" e "re-ligar" são menos claros na versão em inglês. 6. Há exceções, mas podem ser deixadas de lado, em primeiro lugar devido à sua raridade, e em Segundo lugar, porque elas normalmente constituem irrupções e dissoluções da estrutura rítmica. 7. Nota do Tradutor: No original em espanhol o jogo de palavras "acorde" - "acorde" e "acordo" - acordo ou acordo é mais claro que os equivalentes em inglês. 8. Algumas notas nos aspectos espirituais da música podem ser encontrados no meu trabalho: Sobre a Posição de Freud sobre Religião, American ímage, Vòl. 13, 1956. 9. Para mais detalhes veja o meu trabalho: Sobre Música, The Yearbook of Psychoanalysis, Vòl. 9, 1953. 10. Guardado (stored) - almacenado; almacén significa armazém.

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Artigos clássicos

Humanismo psicanalítico e a guerra

Cyro Martins*

Numa manhã nublada, a manhã de 22 de setembro de 1939, eu subia a ladeira da rua principal da minha cidade, a Rua da Praia, com um jornal na mão, o Correio do Povo, atento às notícias da guerra, da flamante guerra de três semanas apenas, quando, inesperadamente, num canto da segunda página, embaixo, à esquerda, deparei com um telegrama de Londres, que me soou insólito naquele momento histórico, consagrado aos manes bélicos. Noticiava-se o falecimento, ocorrido na véspera, de Sigmund Freud, o criador da psicanálise, como dizia o jornal.

Experimentei um impacto de singular riqueza, pela complexidade de seus estímulos. Não obstante tratar-se da morte de alguém cuja projeção no seio da comunidade humana eu já reconhecia como de extrema importância, aquela notícia caiu no meu espírito, angustiado pelos acontecimentos, como um jorro de luz, súbito. Senão, vejamos. Eu sabia que Freud estava velho e enfermo, pois acompanhara, através da imprensa diária, mais especialmente pela revista francesa Conférence, sua estadia em Paris, procedente de Viena, exilado pelos nazistas, e viajando com destino a Londres. Contemplara comovidamente a fotografia do sábio ancião saindo do aeroporto, entre o embaixador americano na França e a sua amiga e discípula princesa Marie Bonaparte. Sua aparência era a de uma pessoa combalida, pelos anos, pela doença e pelas apreensões dolorosas da hora. Entretanto, o brilho do seu olhar inquieto, de humanidade ferida, que se surpreende transpassando a vidraça do automóvel e as lentes do óculo, num instantâneo flagrado ao desembarcar em Londres, bem evidenciava sua lucidez e a força de penetração de sua visão mental das ansiedades e conflitos que ligam, nivelam e separam os homens.

O que pretendo salientar, com esta evocação, é o sentimento de triunfo - de duração fugaz, é verdade — contra a barbárie, recomeçando a investir sobre o mundo, que me empolgou ao ler aquele telegrama obscuro, meio perdido entre as manchetes gritando guerra, guerra, guerra por toda parte. Me arrebatei ao sentir que, apesar de tudo, apesar do mar de monstruosidades e mentiras que inundava já um pedaço imenso da terra, abalando a tranqüilidade dos mais longínquos recantos, sobrara espaço ainda para noticiar o desaparecimento do pensador. Isto significava que a cultura, a civilização, a esperança, ao menos no espírito de alguns, todavia subsistiam como normas de conduta, como roteiros de pensamento.

Jovem psiquiatra, em busca ansiosa de novos horizontes, dobrei o jornal e me detive a pensar na grandeza daquele homem, cuja mensagem poderia, no futuro, na paz propícia a opções racionais, contribuir para melhorar a condição humana, tanto mais

* Texto original de conferência proferida na Faculdade de Direito de Pelotas (RS). 22/10/71.** Martins, Cyro,(1983). Humanismo Psicanalítico e a Guerra. In: O mundo em que vivemos. Porto Alegre: Ed.Movimento, 1998,p. 13-37.

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que eu lera um ano antes, numa conferência de Gaston Rogeot: "Freud é um romântico rindo das profundidades do instinto". E para ilustrar esta afirmativa do ensaísta francês, citarei uma passagem de uma carta de Freud a Romain Rolland, de 1926: "Dadas as nossas disposições instintivas e o nosso meio circundante, o amor ao próximo deve ser considerado tão indispensável à sobrevivência da humanidade quanto a tecnologia".

Em contraste, faz alguns meses, li na imprensa diária que o advogado de defesa do Tenente Calley, responsabilizado pela matança de My Lai, perorou proclamando que o seu constituinte e os demais soldados da companhia Charlie, que participaram da mesma operação, "são todos bons rapazes norte-americanos que foram treinados para matar, enviados à Indochina para matar e receberam ordens para matar" e que, portanto, "acreditavam que sua missão era essa". Esta notícia, um horror a mais entre os horrores genocidas de rotina, não provocou escândalo. Apenas um ou outro assumiu talvez a atitude de torcedor desportivo, na expectativa de como os americanos se sairiam dessa. Por minha vez, vi nesse episódio e nessa defesa mais uma evidência da verdade incontestável do conceito de Bouthoul, o sociólogo francês que se tornou proeminente, embora não tanto quanto mereceria, pelos seus estudos sobre As guerras, enfocadas de ângulos novos. Com efeito, Bouthoul afirma tranqüilamente que "a guerra é o homicídio organizado que se tornou lícito". Este conceito, de valor inestimável, formulado sem altissonância, constitui o ponto central da perspectiva de enfoque do sociólogo, que se originou do esforço do pensamento científico para apreender e discriminar a realidade do homem como ser social. Essa concepção de Bouthoul é de alcance global, pois não somente abrange a fenomenologia manifesta da guerra, como incita também investigar sua gênese e o evolver de seus dinamismos latentes.

No ginásio, quando meninos, ao lermos nos compêndios de história que entre os povos primitivos a guerra era a ocupação principal, experimentamos ingenuamente uma certa sensação de vitória sobre os bárbaros. Mas, à medida que crescemos e a madureza vem chegando, esse sentimento se esvai. Na verdade, se tomarmos, não os séculos egípcios, gregos ou romanos, nem mesmo o século XIX, mas o nosso ultracientífico e tecnocrático século XX, o que verificamos de mais saliente no panorama das nações é a recorrência do fenômeno guerra e o empenho a fundo de seus orçamentos para adquirir armas com que enfrentar a guerra em vigência ou a que é sempre possível sobrevir.

Durante séculos, a palavra Pátria, vocábulo prenhe de magia, dispensou argumentos para justificar as guerras. Bastava proclamar que a Mãe -Pátria estava em perigo ou fora ofendida, para que seus filhos se levantassem unidos, ao som dos clarins, para defendê-la, lavando a sangue a honra manchada.

Esses dois períodos refletem o caráter idealista e mítico das guerras, baseado na negação da verdade, um dos mecanismos de que se vale freqüentemente o homem, individual ou coletivamente, para se aliviar, em parte ao menos, da angústia. Quanto ao episódio da companhia Charlie, esse traduz a desumanização da conduta, permitindo, quase como um prêmio pelas privações passadas, a vazão impiedosa dos impulsos destrutivos.

No referente ao processo de fanatização, comum nas convulsões coletivas de toda ordem, temos na história do Brasil um exemplo assombroso na guerra de Canudos, magistralmente registrado por Euclides da Cunha no seu famoso Os sertões. Com efeito,

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o reduto onde se arrinconaram cinco mil sertanejos do nordeste brasileiro, fanatizados pela figura de Antônio Conselheiro, profeta bronco, foi cenário de todas as crueldades até então conhecidas nas guerras pobres. Quando completava um ano de estúpida guerra sertaneja, aniquilados os combatentes do Conselheiro pelos canhões da legalidade, as tropas regulares tomaram de assalto o coração do reduto, a 6 de outubro de 1897, encontrando trezentos e tantos pobres diabos famintos e apavorados - mulheres, velhos e crianças. Euclides da Cunha, numa captação genial do sentido psicótico das guerras, fecha o seu livro com duas linhas pungentes, sem comentários: "É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...".

Na verdade, se considerarmos que Os sertões apareceu em 1902, houve demora para que os expertos na loucura se resolvessem a enfocar, com os instrumentos mentais modernos, o fenômeno guerra, evidenciando seus aspectos alienados, através da compreensão de suas causas profundas. Agora, porém, cinqüenta anos depois da primeira confrontação de Freud com o tema, surgiram muitos Maudsley atualizados, tremendamente capacitados para um diagnóstico fenomenológico exato da guerra. E mais do que isto, preparados para uma concepção psicanalítica da guerra, o que vale dizer aptos para estudá-la de acordo com o sentido de suas motivações inconscientes.

Essa concepção abarcará a totalidade do fenômeno ou tão-somente um aspecto parcial da verdade? Penso que os enfoques psicanalíticos, de diversos autores, que configuram um conjunto doutrinário impressionantemente convincente, captaram o essencial de todo o potencial destrutivo das funções psicóticas da guerra. E se faço referência específica a funções psicóticas é porque se admite a existência de funções realistas. Estas, em geral, servem para mascarar as primeiras, que se originam do instinto de morte e se expressam nos sentimentos negativos que caracterizam a inveja, a rivalidade desleal, os ciúmes mórbidos, a competição odiosa e em numerosos pequenos e grandes atos compulsivos. Todos esses são fatores desencadeadores da ação destrutiva. Mais adiante tentaremos ver de que mecanismos psíquicos se utiliza a agressão para disfarçar-se.

Seguindo um caminho bem mais longo do que aquele que temos na mente, desde a infância e a adolescência, delimitado pela rotina clássica do ensino escolar, contemplemos, panoramicamente, sem no entanto simplificar em demasia a realidade, alguns dos relevos dos conhecimentos humanísticos básicos da cultura contemporânea. Nestas especulações, quase sempre o preciosismo vocabular confunde as respostas. E os aspectos da realidade, que deveriam ser enquadrados numa fórmula objetiva, atendendo às necessidades pragmáticas, se extraviam, com freqüência, na enfatização adverbial. Porque não há dúvida que vivemos numa época de explosões. Uma delas, e das perniciosas para a boa comunicação entre os homens, é a explosão verbal, que transformou meios positivos de civilização e cultura em fatores desumanizantes. Pela automatização a que procuram restringir a mente humana, vê-se que a sua meta tecnocrática é a de rebaixá-la a um nível regressivo ótimo para a influência da máquina publicitária, a serviço da sociedade de consumo. Os poderosos meios de informação atuais - jornais, rádio, televisão — aturdem pelo ressoar retórico e constante, exercendo uma pressão despersonalizante sobre o ouvinte ou leitor. As notícias cada vez mais se distanciam de seu primitivo fim informativo para se transformarem em promoções, obedecendo ao caráter tendenciosos de suas fontes de origem. Com essa técnica de distorção, às vezes tão sutil que parece traduzir realidades concretas, contamina-se de inverdades a imagem

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cotidiana da experiência humana, tornando progressivamente mais confusa a visão transitória da contingência histórica. Ao leitor de jornais, ao rádio-ouvinte ou ao espectador do vídeo ou do cinema, sempre estão vendendo algo, na base subliminar do menor esforço, do alfinete à bomba atômica, do Nirvana psicodélico à guerra nuclear.

Em boa parte, graças à visualidade psicanalítica do inconsciente humano, a conotação sinistra da palavra guerra está agora submetida a outras concepções que não as tradicionais, tendentes para o apoteótico. Dessa forma, a decantada grandiosidade, o brilho, o romantismo heróico das lutas dos povos, tudo aquilo que até ontem a escola ensinou como sendo o que havia de mais importante no desfile histórico da humanidade, vai cedendo lugar a uma interpretação em profundidade do fenômeno guerra. Refiro-me às motivações inconscientes, mais poderosas e menos reversíveis do que os fatores conscientes que influem na preparação, na eclosão e na sustentação das matanças coletivas. Já está sobejamente demonstrado o quanto há de falso, de contrário aos autênticos interesses da humanidade e de verdadeiramente reacionário, porque significa uma flagrante dissimulação da realidade, no destacar apenas aspectos políticos e econômicos da guerra, menosprezando as causas de origem abissal do psiquismo. A pesquisa dessas motivações eleva a condição humana, porque situa o homem na posição ambígua do dramático, no qual o cômico e o trágico se intercalam, aguçando a sua faculdade crítica e ajudando-o a elaborar o próprio destino.

Se a guerra significa uma tomada de posição psicótica, ela é a própria anticultura, no sentido rigoroso da palavra. Muitos psicanalistas já se ocuparam desse aspecto, examinando seus mecanismos fundamentais e a interdependência das causas em ação. Aparentemente, nada mais sobraria dos fatores genéticos do fenômeno guerra para fins de estudos psicodinâmicos. No entanto, se adotarmos uma posição humanista, de franca receptividade às sugestões mais essenciais que o dia-a-dia carreia acerca do tumulto do mundo contemporâneo, então talvez nos seja possível descobrir ou redescobrir valores e formular ou reformular leis situando o complexo sóciocultural em categorias de pensamento que se ajustem melhor ao gigantesco empenho de poucos pela genuína emancipação do gênero humano, emancipação, essa, fundamentada no respeito devido à personalidade alheia. Assim, sem acentos carismáticos e apoiados no equilíbrio estrutural com base em diferentes áreas das ciências do homem, será factível, talvez, conduzirmos os problemas de interação do complexo cultura-sociedade com os indivíduos através de uma nova concepção de humanismo - o humanismo psicanalítico, como um ideal de aperfeiçoamento social.

No pensamento ocidental, o termo humanismo anda sempre associado a outro, cultura, que goza, paradoxalmente, de um prestígio quase supersticioso. Em círculos proeminentes da cidade humana, o conceito de cultura aparenta gozar de livre trânsito entre as coordenadas dos chamados conhecimentos gerais e, por épocas, sonhou-se que já não mais naufragaria no mar da morte - a guerra. Essa ilusória liberdade no jogo dos conceitos culturais nos comunica uma vivência de isenção na apreciação dos fenômenos sociológicos, antropológicos e etológicos. Até mesmo os estudos históricos dão, por vezes, a impressão de não comprometidos. E é pacífica a aceitação do qualitativo "científico" que se atribui a esses estudos. Entretanto, surgem dificuldades, o que já deveria pertencer ao passado, ou um acolhimento afetado, quando se intenta usar, como marcos referenciais para generalidades humanísticas, os dados que a psicanálise proporcio-

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na, como se houvesse uma ameaça de evaporação da ciência ao penetrar a cogitação na atmosfera rarefeita das fantasias inconscientes, como se aí já nos achássemos fora do alcance do investigável.

Apenas de passagem e a título de esclarecimento ao leitor não iniciado nestas matérias, lembrarei a concepção kleiniana de fantasia inconsciente, que serve de base à atividade prática na maioria dos analistas. Com efeito, segundo o pensamento de Melanie Klein, na síntese de Hanna Segal, fantasia inconsciente é a expressão mental dos instintos e existe desde o começo da vida. E mais, seguindo Hanna Segal: "As fantasias inconscientes estão sempre presentes e sempre ativas em todo indivíduo". E ainda: a fantasia inconsciente é o veículo de vinculação aos objetos. De mais, quando em psicanálise nos referimos à fantasia não estamos insinuando um sentido de fuga da realidade. Pelo contrário, sem o amparo da fantasia prévia, o ser humano custa mais a elaborar o impacto dos estímulos reais. Por outro lado, não há dúvida que a polissemia da palavra fantasia faz dela um termo sujeito a equívocos, pouco consistente para explicações científicas.

Contempladas do enfoque psicanalítico, as perspectivas humanísticas da sociedade contemporânea referem-se essencialmente àqueles pontos de contato da psicologia profunda com a linha evolutiva da história do homem, que se efetua sob o influxo constante do esforço pela afirmação e preservação de sua individualidade consciente, contra os embates dos diferentes domínios que o têm oprimido: o da natureza, os grupais, o das energias primárias do interior do seu próprio organismo, aquelas energias limítrofes entre o soma e a psique, que se chamam instintos.

Nas últimas décadas vem se acentuando a colaboração da psicanálise no âmbito da civilização e no da cultura. Encarando-se do ângulo da civilização, constata-se que a psicanálise já está influindo e que poderá vir a influir com maior alcance, dentro de alguns anos, através do emprego em escala crescente de suas técnicas no tratamento e na profilaxia mental, abrangendo desde os cuidados psíquicos da gestante até a racionalização das relações interpessoais por meio da psiquiatria dinâmica da comunidade. Sem falar, é claro, na análise propriamente dita e na psicoterapia analítica de grupo.

Culturalmente verifica-se que, através da investigação em profundidade das emoções básicas do homem, a psicanálise trouxe à cultura um acervo de universalidade como nenhuma outra das ciências do espírito alimentadas pelo velho dinamismo greco-romano, que, ao longo dos séculos, se deixou contaminar, em suas agonias e dignidades, de paixões e interesses limitadores. A contribuição da psicanálise para a renovação do humanismo, por meio da integração da sua experiência de mais de oitenta anos, em que se funda, às bases norteadoras das ciências do homem, que primam pela renovação constante, se impor sobre tudo no alijamento da preeminência do divino, em benefício do humanismo científico, postulando verdades que sugerem novos esquemas de trabalho e pesquisa. Esta é a característica por excelência do humanismo psicanalítico, porque, neutralizando o divino como fator predominante, senão único e exclusivo, da casualidade existencial, elimina simultaneamente a crença milenar na fatalidade do destino. Isto significa que, para a psicanálise, cada homem é o artífice da própria sorte. Eis aí um fator básico da nova ética existencial, de valor objetivo imenso.

Agora, estabelecida esta base teórica, encaremos, do ponto de vista dinâmico, o fenômeno guerra. E comecemos por assinalar que, em 1972, transcorreu o quadragési-

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mo aniversário da troca de cartas entre Albert Einstein e Sigmund Freud em torno das causas profundas da guerra. Lembremos que esta troca da opiniões de dois gênios do nosso século ocorreu pouco antes da plena expansão delirante do nazismo. A iniciativa dessa correspondência famosa e ilustre coube a Einstein, sob a égide da Sociedade das Nações. De sua carta, todos os comentaristas destacam a pergunta, incisiva e um tanto aflita, que endereçou a Freud: "Existe um meio de livrar os homens da maldição da guerra?".

Freud respondeu fundamentando-se na sua teoria da dualidade instintiva: de um lado, os instintos de vida, que tendem a conservar, a unir e a criar pela força do amor, face solar do homem, que lhe comunica a alegria de viver; de outro, as tendências hostis, que levam a condutas agressivas contra o próximo ou contra si mesmo. É a face sombria da espécie. Fundidas equilibradamente, essas energias instintivas formam o substrato pulsional da ação adaptada, culminando no amplexo amoroso. Na agressividade instintiva, Freud via a raiz biológica da guerra. Portanto, a justificativa da guerra parece contar com a chancela de tudo aquilo que se considera natural. E o natural soa mais ou menos como indiscutível.

No trecho final da célebre missiva, explode, sem rodeios, a revolta do sábio ante a monstruosidade da guerra. Senão vejamos este tópico: "As atitudes psíquicas que nos foram impostas pelo processo da cultura são negadas pela guerra na mais violenta forma e por isso nos erguemos contra ela: simplesmente não a suportamos mais, e não se trata aqui de uma aversão intelectual e afetiva, senão que em nós, os pacifistas, se agita uma intolerância constitucional, por assim dizê-lo, uma idiossincrasia magnifica-da no máximo". Acentuando suas idéias a respeito de como evitar a guerra, afirma categoricamente: "... tudo que impulsione a evolução cultural, age contra a guerra". Em síntese, para Freud, a guerra, em cujos cenários se esbatem as exigências éticas e estéticas, apuradas ao longo da elaboração progressiva da cultura, é sobre tudo um processo de desumanização súbita do homem.

Franco Fornari, italiano, foi o psicanalista contemporâneo que primeiro se ocupou largamente do problema da guerra. No seu pensamento, "a guerra é compreensível sobretudo como expressão de uma regressão psicótica do Ego, socialmente institucionalizada". A nota enfática de seus trabalhos sobre o tema é o acento tônico nos aspectos psicóticos do fenômeno guerra. Salientando a compulsão repetitiva existente na dinâmica conflitual em foco, Fornari opina que "os mecanismos fundamentais que desde o princípio levaram os homens à guerra permanecem essencialmente os mesmos". Na explanação de sua tese - A guerra e a elaboração paranóica do luto - recorre a argumentos de ordem filo e ontogenética, isto é, baseia-se em dados referentes ao s povos primitivos e em elementos colhidos na observação do desenvolvimento da criança. Finalmente, aplica a pauta explicativa, resultante desses estudos, às condições atuais da sociedade humana.

Mas o que significará esse título, porque é um título, e sugestivo: A guerra e a ela-boração paranóica do luto? O que talvez atrapalhe o leitor comum é o adjetivo paranóica, ape-sar de circular muito nos últimos tempos e de ser um dos insultos mais freqüentes. Penso que um parêntese breve não virá mal. Com efeito, esse adjetivo se refere à doença mental paranóia, que se distingue das demais psicoses pela predominância do mecanismo de projeção, operação mental através da qual o indivíduo expulsa de si e locali-

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za fora, em pessoas, acontecimentos ou lugares, ou sentimentos, os desejos experimentados em relação a outrem, que ele rechaça de si com ansiedade e com raiva, porque sua consciência moral os julga inaceitáveis. Naturalmente, trata-se de um processo inconsciente. Como ilustração de paranóia coletiva, recordarei que, para a maioria das tribos primitivas, a morte não é um fato inerente às vicissitudes biológicas do indivíduo, mas é causada pela tribo inimiga. "De tal modo, a perda de um companheiro, interpretada projetivamente como proveniente da ação da tribo vizinha, poderá provocar uma série de guerras recíprocas." Guerras de vingança.

Por outro lado, a atitude dos primitivos em relação aos seus antepassados mortos estava dominada por intensos sentimentos de culpa, de tonalidade predominantemente persecutória. Para aliviar a angústia que tais sentimentos provocam, o primitivo projetava, isto é, atribuía à tribo inimiga os seus próprios impulsos hostis em relação ao seu morto. Portanto, quando Franco Fornari fala de elaboração paranóica do luto, não está usando uma metáfora.

Mas - impõe-se a questão - terão algo que ver com o civilizadíssimo, cultíssimo e complexíssimo mundo eletrônico de hoje as paixões que arrojavam umas tribos sobre as outras? "Poderemos pensar - como sublinha Fornari, ironicamente - que as guerras modernas são guerras racionais." Portanto, escapariam deste enfoque. Se partimos, porém, da referência básica que são os impulsos destrutivos inatos do homem e que Freud sintetizou na concepção teórica designada instinto de morte, expressão que abrange um impulso mais a fantasia inconsciente de ação que lhe corresponde, e se apreciarmos a fenomenologia da guerra sob este prisma, nos renderemos à evidência de que os mecanismos psicológicos profundos que em todos os tempos arremessaram uns povos contra outros, não obstante as variações manifestas de contexto histórico, essencialmente continuam idênticos. Isto significa que, no âmago da estrutura operativa do fenômeno guerra, domina um fator invariável de irracionalidade, que objetiva sua dinâmica na deflexão, para fora, do instinto de morte. Como ilustração, valha o exemplo que nos dá Fornari ao evocar, a título de argumento para sua tese, o caso de um herói primitivo que arrastou sua tribo à guerra como vingança de sangue pela morte da mãe que ele mesmo havia matado.

Focalizando a tensão persecutória e a tensão depressiva, melancólica, dos povos, sob o imperativo absoluto do instinto de morte, Fornari argumentou com a retrospecção filogenética, a da guerra entre os povos primitivos, e a ontogenética, ou seja, a da angústia do bebê diante de estranhos. Nesses dois aspectos psicológicos, baseou sua teoria da elaboração paranóica do luto como motivação inconsciente da guerra. Na sua concepção, só secundariamente a guerra serve para atacar ou para defender-se de um inimigo externo. A função primária da guerra seria defender-se de um inimigo interno - isto é, de aflições autodestrutivas. O advento da era nuclear, entretanto, deixou em crise essas funções da guerra, que evoluiu definitivamente para a modalidade pantoclástica, de sorte que o ganhar ou perder das guerras antigas perdeu seu sentido de realidade.

Mas em que consistirá esse inimigo ou perigo interno que constitui o conteúdo específico da determinação inconsciente da guerra? Já antes que a psicanálise começasse a se preocupar mais a fundo com este tema, o notável sociólogo Gaston Bouthoul, considerado criador da Polemologia, ou seja, a ciência que estuda as guerras, deu a primeira resposta de largo alcance a essa inquietante pergunta. De acordo com sua tese

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principal, as guerras teriam origem num impulso belicoso da coletividade, "que por sua vez estaria em relação com um excesso de varões jovens num determinado grupo". Complicando-se essas causas demográficas com as econômicas, pois os recursos econômicos disponíveis são sempre balanceados conforme o número de seus usufrutuários, Bouthoul pensa que a guerra é fundamentalmente um infanticídio diferido e a sua função primária seria, portanto, a de exterminar o excesso de varões jovens.

Esse, o acento dramático da perspectiva sociológica. Retomemos agora a perspectiva psicanalítica.

Arnaldo Rascovsky, trabalhando, não no plano sociológico, mas no psicanalítico, aprofundou a tese de Bouthoul, assinalando, no seu ensaio La matanza de los hijos, que a guerra é o mais poderoso instrumento de realização dos impulsos filiadas da humanidade. Rascovsky considera a rebelião dos jovens, que sacudiu tantos países na década de sessenta, como, além de suas conotações antigerontocráticas, dirigindo-se principalmente contra a guerra. Ressalta o fato desse movimento ter envolvido maior número de jovens e assumido maior exaltação nos países culturalmente mais desenvolvidos, tais como os Estados Unidos, a França, a Inglaterra, o Japão. Também registra "a submissão desesperada e a resignação total" e se oculta nas manifestações dessas rebeliões ostensivas e que se evidenciam no uso de drogas e na atitude regressiva com que se abandonam à psicose, sob uma forma mais ou menos socializada. E quem quiser constatar essa afirmação, basta passar por certos logradouros de qualquer cidade grande para aí defrontar-se com um dos mais degradantes impactos da realidade contemporânea, que os transeuntes olham de refilão e se afastam numa atitude que parece significar - isto não é da minha competência!

Na sua página A guerra como sistema, Rascovsky evoca a mensagem mais patética da inconformidade da juventude atual contra essa civilização que não cessa de guerrear, mensagem, essa, segundo ele, "resumida num letreiro irônico, freqüente nos Estados Unidos: A guerra é um bom negócio, invista seu filho".

Baseando-se nos dados da investigação psicanalítica aplicados à compreensão em profundidade do tema que nos ocupa, Arnaldo Rascovsky assevera, convictamente, "que a motivação inconsciente fundamental da guerra está constituída pela compulsão ancestral a manter, mediante a matança dos filhos, as bases do sacrifício humano originárias do processo sócio-cultural. Desta forma, o campo de batalha constituiria a pira primitiva dos sacrifícios onde são imolados os equivalentes atuais dos primogênitos ancestrais".

Um outro autor, Leon Grinberg, de relevo na literatura psicanalítica atual, abordando esse tema sob o título Culpa y guerra, ancora a idéia nuclear de seu estudo na sua teoria sobre a culpa persecutória inconsciente, capaz de levar a condutas extremas, tanto na esfera da submissão masoquista quanto na da violência descontrolada.

Já em 1930, Freud assinalava um tanto melancolicamente o magno obstáculo com que tropeça a evolução cultural humana: "a tendência constitucional dos homens a agredirem-se mutuamente". Por certo, desse famoso ensaio de Freud, O mal-estar na cultura, muitos outros conceitos poderíamos aproveitar aqui, mas o escolhido me parece desses que nasceram da pena do autor destinados a figurar como epígrafes.

As aspirações sócio-culturais do humanismo psicanalítico deverão ser, além de contribuir para a elevação do indivíduo à condição de cidadão do mundo, ideal cada vez mais distante, também as de libertar o homem da destinação do aniquilamento

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nuclear, ameaça real que paira, terrível, neste fim de século, contrastando com a mentalidade despreocupada daquele outro fin de siècle refinado e sorridente, que atingiu seu apogeu em 1890. O presente, sem demasiada mistificação e sem ironia, pode-se dizer que era festivo. O futuro atraía, sem problemas aparentes, embora um espírito agudo como Eça de Queirós se confessasse curioso acerca do porvir de um certo príncipe, o Kaiser. O passado representava um repertório rico de modelos de soluções para as questões que porventura surgissem na esfera da política, dos intercâmbios sociais, do pensamento. "Mas hoje", já enfatizava Ortega y Gasset há quarenta anos, "vivemos para um futuro que acusa, em forma talvez mais extremada que nunca na história do Ocidente, seu adusto e dramático perfil de radical problematismo."

Projetada na tela da história, a conceituação de humanismo vem sofrendo variações e se ampliando, desde a terna visão budista da criatura humana, do civismo confucionista, da riqueza poética e ideológica greco-latina, do humanismo medieval que entesourou o helenismo e transmitiu aos humanistas da Renascença o sentimento de generosa humanidade e revalorização da vida que viria a constituir-se no movimento renascentista contra as servidões feudais e a favor da renovação do pensamento. Esses ventos criadores vieram soprando ao longo das centúrias, como asas da grandeza humana. Fecundaram muitas teorias. Todas ajudaram. Nenhuma resolveu. Sempre havia chance para mais um visionário. E daí, que importavam os desmentidos da realidade? Entretanto, agora, o suspense imposto pela era nuclear obriga a humanidade a uma tomada de posição sem precendentes.

Escolas filosóficas e correntes político-sociais diversas têm se empenhado na procura da formulação perfeita que, incluindo lições do passado, expresse a prospecção de ideais novos, capazes de orientar um homem em meio à conturbação dos três últimos séculos. Assim, mo século XVIII o materialismo mecanicista apontou rumos; na segunda metade do século passado, coube ao positivismo das as cartas; e, em fins do século XIX e começos do XX, o cientificismo onipotente, esplendidamente engastado na moldura da belle époque, oferecia a chave para a solução de todos os problemas inerentes à condição humana, inclusive a angústia ante o porvir. No Ocidente contemporâneo, alinham-se, cada qual propugnando como exclusiva e definitiva a sua reforma socio-cultural, o humanismo pragmático, o humanismo cristão e o humanismo socialista. O pragmático e o cristão pretendem uma reformulação da dramática humana, o primeiro visando equilibrar as inter-relações sociais através do existir cotidiano, ligado á realidade do imediato, ao caminho da ação. O segundo, tentando em vão repor o ser humano em face da transcendência divina, numa ingênua negação da vertigem da época. Já o socialista é radical, atento ás contingências utilitárias da experiência social, advogando uma inversão das normas vigentes, em proveito das necessidades pragmáticas da coletividade. Na ação, o socialismo tem procurado transformar hipóteses em experiências, de efeitos práticos no estilo de vida das populações. No decurso da história, porém, nem sempre os espíritos revolucionários foram buscar os vínculos de inte-gração social no estudo dos fatos que caracterizam o presente e de certa forma antecipam o futuro. Assim sucedeu com os eruditos revolucionários da Idade Média quando, enfrentando barreiras opostas pela sociedade feudal, procuram alargar o campo de seus conhecimentos, numa atitude, à primeira vista, paradoxal, como se o futuro não contasse. Num movimento de retrocesso, de insatisfação nostálgica. Com efeito, voltaram-

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se para a antigüidade clássica em busca da universalidade do saber, idealizaram-na e a tomaram como padrão da lucidez e da independência do espírito. Seja como for, porém, enfocado de acordo com os preceitos do helenismo, ou com o entusiasmo do devir renascentista, ou com o humor tranqüilo do classicismo, ou com a penetração científica do século XX, a base ideológica de todos os humanismos continua sendo o aforismo do sofista Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas".

As disciplinas humanistas, da gramática à filosofia, caracterizam-se pelo seu esforço para compreender o espírito humano e fazer dos homens criaturas mais comunicativas. Na tentativa de compreender o semelhante vai implícito um intuito projetivo de impregná-lo de sabedoria de vida, aquele estado de espírito sutil, elástico e envolvente que aproxima as criaturas pela simpatia. Pairando acima das ideologias preconceituais, essa sabedoria deverá ensinar os homens a contornar o destino. Para tanto, necessita o homem, primordialmente, do conhecimento de si mesmo, para não passar a existência inteira repetindo os mesmos erros que, de cada vez, lhe fecham as portas de êxito. Nem recaindo nas desgraças de sempre, sem nenhum poder de previsão, escravo de crenças, paixões, instituições e costumes regressivos. E como essas repetições de destino se sucedem com uma freqüência assombrosa, atingindo meio mundo, generalizou-se a crença, sob a forma manifesta de sabedoria popular, de que o destino é inelutável e que não nos resta outra atitude senão a de aceitá-lo com resignação. Essa é a conduta obscurantista de entrega, sob a égide de Tánatos. Essa maneira de pensar, inspirada na fatalidade das tragédias gregas, contaminou as correntes humanistas de uma tendência ao pessimismo, de cuja angustia o homem intentou defender-se através do romantismo.

Mas o destino será tão inelutável assim? Esta pergunta parece ter alguma relação com a vertigem do nada. Isto acontece sempre que enveredamos rumo à vertente abissal da vida, como quando nos psicanalisamos. Mas a psicanálise tem uma posição definida em relação ao destino. O destino é nosso, inteiramente, desde as raízes, isto é, desde o substrato pulsional que desencadeia a ação, para o bem ou para o mal. É nosso o nosso destino. Nós o fazemos. Esta é uma idéia própria da psicanálise, que foge do pensar comum, sempre inclinado, nas suas concepções do mundo e da vida, a desfazer a clivagem existente entre o ideal e a realidade, em especial quando se ocupa do futuro.

Não obstante a rica constelação de idéias culturais do passado, as normas superiores de pensamento que chegaram até nós através dos sucessivos momentos reveladores de todos os humanismos, predominantemente do greco-latino e cristão, os povos continuam a viver, hoje, numa exaustiva instabilidade, atormentados pelas guerras, revoluções e inúmeras outras formas, manifestas ou mascaradas, de matanças publicas. Contra esta compulsão a repetir arcaicos clichês da historia, agravados pelas atualizações da tecnocracia triunfante, o que configura uma realidade social espantosa, ergue-se, incorporado a outros, o humanismo psicanalítico, aplicação dos conhecimentos em profundidade que a psicanálise colheu no indivíduo, aos dramas coletivos que mais nos afligem, destacando-se entre todos o fenômeno guerra, cujas causas subjacentes urge desvendar. O humanismo psicanalítico é um saber intermediário entre a medicina e as ciências do espírito. Com efeito, quando no exercício estrito de seu método terapêutico, a psicanálise é medicina pura. Mas num outro extremo expande-se numa ramagem de amplos contatos com a cultura, fecundando a ideologia dos que se empenham pela melhora das relações inter-humanas. Por isso Enrique Racker, abordando temas dessa

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magnitude, afirmou, categórico: "Uma ciência que descobriu as origens dos fenômenos anímicos está chamada, evidentemente, a mostrá-los sempre onde a psique se manifeste".

Crenças, instituições, costumes, dúvidas, confiança na ciência, imagens cambiantes da arte, esperança na política, enfim, todas as idéias que operam nas gentes hoje em dia não se formulam mais conforme o modelo do humanismo aristocrático, mas, consciente ou inconscientemente, de acordo com a experiência viva, com a experiência suja que a psicologia profunda revelou, com o toque significativo de seus critérios específicos. Da evolução dessa atitude cultural moderna tem-se o direito de esperar que se originem condutas mais flexíveis, menos subordinadas às técnicas desumanizantes, tais como a mobilização da comunidade humana para o diálogo e a motivação para o exame dos dois pólos da questão que sempre existem. O que nos interessa sobretudo, a nós, criaturas deste mundo e donos de uma vida só, é achar urgentemente o meio de ajudar o homem a reavivar seu interesse pela vida, a começar por um esforço de libertação desses flagelos periódicos, arrasadores, que são as guerras modernas.

Nestes tempos de produção em massa e de massas famintas, bia fradas, de milhões de refugiados, de predomínio progressivo da automação, retomar a palavra humanismo como bandeira de paz poderá parecer apenas mais uma dissertação especulativa, entre tantas. Mas se lhe enxertarmos os conceitos revigorantes da psicanálise, a ciência por excelência do homem, creio que será viável continuar usando o sutil, versátil e sensível fio condutor de idéias que o toque quase mágico dessa palavra - humanismo - vem fazendo vibrar desde tempos imemoriais. Neste transe histórico de crise maior, será talvez improfícuo fantasiar com um novo humanismo que não conte com a ética psicanalítica, fundamentada no respeito à personalidade alheia, a começar por um autêntico interesse no crescimento do bebê. No panorama cultural dos próximos trinta anos, é bem possível que o que hoje principiamos a chamar de humanismo psicanalítico venha a se converter no fulcro em torno do qual se travará a polêmica pelos direitos do homem a livrar-se da fatalidade do destino, através da progressiva concretização de sua natureza.

Estabelecendo agora uma correlação entre os últimos parágrafos e o título deste ensaio, concluiremos sem dificuldade que a psicanálise é a grande via humanista contemporânea das ciências do homem. E por quê? Porque, com a introdução do conceito de inconsciente dinâmico na psicologia, ampliou a outrora visão estreita do psiquismo confinado à consciência, dotando-o, para fins culturais, de uma surpreendente gama de significantes da profundidade humana, impregnados de vivências originárias de fontes perdidas no tempo. Representa igualmente um princípio a mais a se opor ao preconceito da fatalidade histórica.

Todos sabemos, nesta era sem deuses, que a providência está no próprio homem. Mas se não adotarmos soluções básicas, a luta interespecífica prosseguirá indefinidamente na sanha predatória.

Por se tratar de um depoimento de máxima atualidade, com as características de apelo patético e intimamente vinculado pelo seu conteúdo ideológico à idéia matriz deste ensaio, citarei um trecho dos mais expressivos da conferência do Dr. Guilhermo Teruel Tossas, ao inaugurar o IX Congresso Latino-Americano de Psicanálise, realizado em Caracas, em 1972, na qualidade de Presidente do Comitê Organizador:

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"Todas as religiões do mundo enfatizaram o pólo do amor em suas doutrinas, especialmente a religião cristã. Com isso não se livrou o ser humano desse instinto agressivo inato que o converte no ser mais destrutivo sobre a terra, porque mata e agride por prazer. Lorenz escreve que é preciso conhecer esse instinto agressivo para poder desviá-lo ou inibi-lo como fazem os animais com a ritualização na mesma espécie, uma maneira de evadir a agressão convertendo-a em algo simbólico. As esperanças de Robert Ardrey são de que, se a espécie humana logrou através dos séculos e de uma série de medidas e tabus preventivos evitar o incesto, também poderia evitar a violência. A psicanálise descobriu recursos tais como a reparação (Melanie Klein) e a sublimação (Sigmund Freud) que necessitariam da presença de um Ego bastante forte e bem integrado. A estas alturas da nossa civilização é necessário fazer uma integração com a biologia, a ecologia, a antropologia, a sociologia, a economia e a psicanálise, para enfrentarmos e chegar ao desarmamento universal da agressão destrutiva, como única salvação que tem o mundo antes de ser totalmente aniquilado pela agressão inata do ser humano."

Este chamamento dramático de um dos mais eminentes psicanalistas da América Latina, proferido numa oportunidade sumamente significativa, além de situar oficialmente a psicanálise como fator de cultura, no contexto da realidade histórica que o mundo está vivendo, demonstra como, de todos os setores do saber, até mesmo dos mais arredios a esse tipo de manifestações, começam a surgir reações de ordem ética que, aos poucos, se vão sobrepondo àquele sentimento negativo de submissão às chefias que conduzem exércitos para a morte. Esta atitude representa um protesto de ordem cultural ante a orgia delituosa da guerra, com a sua perspectiva crepuscular dos pelotões de jovens que se extinguem, sucessivamente, para maior glória da morte e de seus disfarces coloridos.

Os caminhos que nos oferece o humanismo psicanalítico abrem-se em múltiplos sentidos: para a medicina, a sociologia, a educação, a política, a antropologia, a ecologia, as artes, os mitos, as religiões. Proporcionam uma visão integral do indivíduo, dos grupos, da sociedade em geral e das nações, como nenhuma outra teoria da conduta humana, sem desprezar, no entanto, em nenhum momento, o aporte das demais ciências do homem. Infiltrando-se entre as fronteiras das ciências do espírito, bem assim como as das especialidades médicas, teoricamente arbitrárias muitas vezes, porém necessárias na prática, a psicanálise levou para a clínica e para o campo cultural o interesse pelas reações humanas globais, ressaltando os fenômenos da intercomunicação entre os indivíduos e as coletividades. E ainda será talvez conveniente enfatizar a nossa convicção de que a psicanálise nutriu de humanismo realista não só a postura médica, como também enobreceu e alargou o pensamento dos que têm como ofício refletir sobre os valores humanos de sentido universal e a criatividade.

Da síntese crítica desse processo dialético, elaborador de contradições, imaginamos que se possam originar condutas mais flexíveis, menos subordinadas à rigidez das técnicas desumanizantes. Concomitantemente, assim como se mantém atenta às formas culturais que empolgam o momento, a psicanálise, fiel ao imperativo de ciência do espírito, se esforça por atualizar sua contribuição humanística ante o espetáculo da degradação e da miséria que as guerras agravam. Mas seu passo é metódico, avançando cheia de interrogações, por vezes de perplexidades. Seu intuito é proporcionar o empre-

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go dos conhecimentos que possui do homem, em toda a riqueza de seus aspectos, como complemento do instrumental construtivo que se propõe reparar os males do mundo. Mas tudo isto em termos de realidade, sem ilusões de sábios, convicta de que, neste terreno, os avanços são difíceis e modestos. Haja vista aquela inquietadora interrogação de Spencer, faz quase um século, como quem pára no caminho e se dirige ao vento: "E o progresso moral?".

Entretanto, embora as nacionalidades exibam um cenário horrível de dilacera-mento pelas agressões destrutivas contínuas, percebe-se, através de alguns questionamentos culturais, o psicanalítico entre eles, que a nossa época, apesar desses fatores tremendamente negativos, vai elaborando aos poucos certas diretrizes inspiradas em Eros, tendentes a unir os indivíduos e os povos. A grande contribuição da psicanálise, para que alcancemos um nível de relações inter-humanas sensatas, conforme vimos apontando ao longo deste ensaio, consiste na compreensão em profundidade de certas causas determinantes das diversas expressões psicopatológicas, individuais e coletivas. Desses conhecimentos, extraíram-se princípios animadores da esperança de que um dia cheguemos a uma sociedade mais humana, de decisões mais livres. Do painel do mundo em transformação que contemplamos atualmente, ressai a competição desigual da tecnocracia com o humanismo. Mas vemos sinais de melhoras no horizonte cultural. A propósito, citarei uma passagem importante do notável discurso proferido por Leo Rangell, presidente da Associação Psicanalítica Internacional, na sessão inaugural do XXVII Congresso Psicanalítico Internacional, em Viena, a 26 de julho de 1971:

"Embora o tema mais debatido - ser a agressão instintiva ou reativa - provavelmente não possa ser respondido com convicção metodológica baseada em descobertas empíricas, sua ubiqüidade e natureza peremptória são, segundo os critérios de Pappaport (1960), de grau suficiente para serem tratadas como instintivas nas explanações psíquicas. Desde as ações diretas, passando pelas perversões sexuais sádicas, até chegar ao genocídio e aos fenômenos da guerra, a agressão faz parte do ambiente humano interno e externo - médio e esperável. Tampouco constitui argumento válido contra a sua derivação de uma fonte instintiva o fato de que, com fundamento nisso, reduzisse ela a prognose do homem e fosse inacessível à influência externa. A psicanálise e, na verdade, toda evolução incluem o controle e a canalização dos impulsos instintivos".

Esta última frase encerra um esquema diretor da prática e da pesquisa das ciências do homem, que será tanto mais fecundo quanto maior for a sua infiltração no espírito das novas gerações dirigentes. Ainda tão-somente uns poucos estão aptos para tirar dessa imagem-bússola toda a riqueza que ela poderá dar.

Quando, a partir do Renascimento, a Filosofia e a Ciência começaram a coordenar mais apuradamente os princípios necessário para chegarem ao conhecimento íntimo dos segredos da natureza, entrou em declínio definitivo a imagem do homem inocente, do homem paradisíaco. Foi, esse, um dos passos mais relevantes na evolução da cultura. Agora, entretanto, que a nossa vida se orienta mais por uma antevisão do futuro do que pelas tradições, urge comover a comodidade humana, em extensão e profundidade, para o espírito de diálogo. Mas só o amor leva ao diálogo construtivo.

Na esfera das disciplinas básicas, sobressai, em escala mundial, a operosidade do proletariado intelectual da pesquisa, graças à posse de um método norteador e ao domí-

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nio de uma técnica operacional. Na atividade profissional propriamente dita, valemo-nos de marcos teóricos referenciais. Partindo de observações empíricas, as teorias foram trabalhadas pela experiência, submetidas ao método, polidas nas suas asperezas, até cristalizarem na sobriedade de um esquema conceituai. E desse modo, parecia pacífico, faz umas poucas décadas, que o poder inventivo do homem solucionaria todos os problemas que surgissem daí por diante. E o mito moderno do homem-técnico onipotente se contrapôs ao fundo mítico originário do homem genuinamente bom, espreguiçando-se, ao amanhecer do mundo, nas portas do paraíso. Mas sobrevieram surpresas. Diante do problema gigantesco da explosão populacional, excedendo a todas as previsões, a julgar pelo alarme generalizado, que orientação nos servirá de bússola? Serão suficientes respostas técnicas? Respostas políticas? A humanidade, que já vinha assustada por todas as ameaças características da era nuclear, começa agora, paradoxalmente, a entrar em pânico em face do relativo baixo índice de mortalidade e do excessivo número dos que nascem e sobrevivem, e dos longevos. Certamente não deveremos cruzar os braços, numa atitude resignada de reconhecimento da nossa impotência. As descrições dos fenômenos manifestos dessa problemática sócio-cultural, baseadas predominantemente nos números que a estatística fornece, são em geral atraentes e o leitor as devora com avidez. As considerações finais costumam ser objetivas e precisas. E quem as lê chega à conclusão de que, na complexidade técnico-científica atual, a estatística é o máximo, o computador é o máximo, nesta e noutras matérias. E ditará, acertadamente as medidas curativas e preventivas do mal. Entretanto, se nos dispusermos corajosamente à pesquisa e se formos, com o auxílio da técnica analítica, de fora para dentro, à medida que nos afastamos da realidade tangível e transpomos os limites da interioridade, penetramos na esfera subjetiva das vivências íntimas e logo constatamos, assombrados e meio perdidos, que, no reino das fantasias inconscientes, onde impera a flutuação constante das emoções e dos impulsos instintivos, a pluralidade das dimensões simbólicas e alusivas é a nota dominante. E sobre essas sutilezas deverá incidir a investigação do destino humano.

Os órgãos responsáveis pelos rumos das nações convocaram a medicina para defrontar-se com esta esfinge moderna: o controle da natalidade. A soberba desta é igual à da esfinge grega: decifra-me ou devoro-te!

Por certo a solução desse problema descomunal requererá, em cada país, a cooperação de todas as instituições e classes. Simultaneamente ao preparo emocional das populações para entrar em cheio na era dos anovulatórios, outros sistemas sócio-culturais deverão surgir, a fim de adaptar a espécie a condições hígidas que lhe permitam continuar existindo. Assim, pois, todo o nosso empenho deverá ser no sentido de extrair vida do intercâmbio dialético das contradições em conflito no presente.

Pensava-se até há pouco que a cogitação dessas novas formas familiares e sociais de bem-viver seria tarefa para as próximas gerações, a principiar talvez aí pelo ano 2000. Mas o fato é que já estamos dentro desse processo histórico, somos a sua substância viva e palpitante de angústia. Por isso a medicina contemporânea, convocada, não podia omitir-se da abordagem técnica e da consideração cultural destes fenômenos biopsicossociais que estão a assinalar o fim de uma época e o começo de outra.

Sem intuito de grandiloqüências tem-se o direito de temer a eclosão de uma vivência apocalíptica de fim de mundo, à medida que as massas, de escassas defesas

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intelectuais e afetivas, viverem mais imediatamente sob o impacto da ameaça nuclear e da explosão populacional. Essas duas vivências de calamidade universal exacerbam tanto o sentimento de culpa persecutoria, quanto o pressentimento do abandono e a ameaça da fome. Com efeito, a humanidade vive no limiar de uma era de trágico desespero em que a culpa, forçosamente, se relacionará mais com o futuro do que com o passado, com os que não nascerão do que com os mortos, invertendo a formula de Augusto Comte. A primeira vista esta hipótese poderá afigurar-se a uma pura fantasia, sem nenhum sentido lógico. No entanto, vejamos se este raciocínio não se articula à realidade nascente. Assim, tomando inconscientemente essa vivência angustiosa dos nossos dias como uma humilhação instintiva, a humanidade fará - quem sabe? - uma identificação projetiva em massa, através da qual todos colocarão nos espectros dos não concebidos o seu próprio temor de aniquilamento. Estarão todos a um passo da perplexidade que poderá desencadear uma conduta regressiva, de caráter irreversível, motivada pela reativação das ansiedades persecutórias mais primitivas e desordenadas, arrasando todas as ideologias de vida que nos vêm servindo de base e acarretando o risco do apelo à defesa psicótica da monstruosa atuação nuclear.

Um fenômeno recente veio comprovar a complexidade profunda do problema da superpopulação. Refiro-me ao mar de batinhas e barriguinhas plásticas que, no ano de 1972, cobriu dois continentes, a Europa e a América, atestando que não será fácil o controle da natalidade, pelo menos em proporções úteis como para manter equilibrados os índices populacionais. As batinhas, para as púberes e adolescentes, servirão de bandeira de protesto antipílula. Simbolizam o instinto de maternidade rebelando-se contra o controle, por mais racional que este nos pareça.

Atribuir-se inquietações humanísticas à psicanálise não tem nada de novo, pois ela sempre andou, paralelamente ao seu dia-a-dia assistencial, pelos altos cimos do espírito, ocupando-se da educação, da história, da antropologia, da criatividade. "A psicanálise se distingue de outras aproximações ao estudo dos seres humanos - afirma Use Hellman - pelo fato de enfocar o estudo da conduta humana de três ângulos - o genético, o histórico e o dinâmico - e pelo propósito de achar conexões causais entre os mesmos". Penso, no entanto, que a transcendência da sua importância assenta no estudo da dualidade instintiva fundamental do homem. E foi somente porque se reportou a essa base que o seu esforço compreensivo pôde trazer à tona as valiosas contribuições já referidas para o esclarecimento do fenômeno guerra.

O que há de novo mesmo, nesta encruzilhada histórica, se contemplarmos com isenção a linha evolutiva do pensamento analítico, é a sua tomada de posição em face da agressividade. O modus faciendi no campo social disponível para a psicanálise ultrapasse os limites deste ensaio. Mas, sem dúvida, para cumprir esses desígnios superiores, ao lado de outras correntes culturais de largo alcance e fecundas, terá que assumir o encargo das medidas tendentes a desfazer os obstáculos procedentes do íntimo do indivíduo, porque esse é o seu terreno específico, o das causas inconscientes que interferem no desenvolvimento da atividade mental. Em certos casos lhe competirá pressentir o erro e apontá-lo, para que outras disciplinas humanísticas se encarreguem das medidas corretoras, como é o caso da educação, para a qual a psicanálise contribui com as suas concepções dos efeitos da dependência parental prolongada do ser humano e, conseqüentemente, das acidentadas experiências infantis.

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A compreensão psicanalítica não cessa de aprofundar o conhecimento acerca do papel do homem na face do planeta. A importância desse conhecimento é evidente e já hoje imprescindível para uma progressiva adaptação às condições de vida em qualquer país. Espera-se que o futuro próximo nos alente nesse sentido, enquanto houver tempo de evitar a hecatombe temida. No panorama cultural dos próximos trinta anos, é provável que o humanismo psicanalítico venha a ter chance de se transformar no fulcro entorno do qual se travará a luta para livrar-se o homem da sombria fatalidade do destino, adquirindo uma progressiva conscientização do seu direito à alegria de viver.

A intuição poética de uns e o saber científico de outros, aliados, poderão, talvez, derivar a agressividade humana de seus rumos destrutivos e lhe proporcionar outro prazer, o de reparar, o de sublimar, o de construir, enfim, oferecendo aos povos uma pista comum de entendimento para que a imagem do mundo que amanhecerá no ano 2000 fulgure atraente, sem ser uma miragem.

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Comentários

Da psicanálise problematizadora à psicanálise problematizada

Serapio Marcano

1

O título do XXIV Congresso Latino-Americano de Psicanálise: "Mudanças e Permanências na Experiência Psicanalítica", nos propõe o objetivo de examinar nossos modelos teóricos e clínicos, decantados através das experiências que desenvolvemos em nossa prática. Tais reflexões formarão uma prática, que se pode desenvolver em três níveis: 1) aquele onde a teorização surge diretamente da prática, sendo formulada em termos muito próximos da fala; 2) quando a teoria se afasta da prática e se conceitua - liza com o propósito de comunicar as experiências aos indivíduos das Instituições científicas particulares, criando um código lingüístico que permite o intercâmbio entre os membros da comunidade psicanalítica e 3) quando a teoria, nascida em um princípio da prática individual, se distancia dela e se aproxima da prática social ao conceitualizar numa linguagem mais universal, ou quando se universalizam as linguagens científicas particulares, estabelecendo-se leis gerais sobre os seres humanos. A partir deste nível se deve regressar novamente ao nível um e reciclar o processo.

A Psicanálise aparece no panorama científico-cultural ao final do século XIX como um novo paradigma que irá subverter as concepções do homem tidas por certas até aquele momento. Problematiza os sujeitos que detêm o saber nos diferentes campos onde o mesmo se desenvolve, e ao fazer-lo encontrará resistências para se estabelecer. Porém, a força da verdade que contém é tal, que não poderá ser anulado e permanecerá infiltrando-se, com sua lógica, em todos os campos do saber dentro da cultura. Seu efeito problematizador se estende desde o campo específico de um dos dois ramos da ciência, que é o da Psicologia, com sua vertente pura, problematizada a partir de então em sua lógica clássica positivista, cientificista, mais próxima ao modelo neurofisiológico, ao ser assinalada a existência do inconsciente; até sua outra vertente, a Sociologia, que trata da conduta dos homens na sociedade e que Freud (1932) chamou Psicologia Aplicada. O outro ramo da ciência, a ciência natural, também será tocada em sua essência pelas descobertas freudianas, ao assinalar que, nenhuma investigação científica é puramente objetiva enquanto exista a subjetividade dos cientistas que a praticam.

A partir de sua emergência, a psicanálise, se insere na cultura e a problematiza, influenciando os marcos sociais e científicos. Como diz Mirta Goldstein de Vainstoc em seu ensaio: "Novos paradigmas e Lógicas: sua inserção na Cultura, na Ciência e na Psicanálise": "a psicanálise transpassa a linha divisória que tinha com o pensamento, gerando um movimento de atração e repulsão que provoca sua inserção privilegiada e

* Sociedade Psicanalítica de Caracas.

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problemática na cultura. Privilegiada porque... qualquer crítica ou ensaio humanístico contém em seu texto um sub-texto psicanalítico. A inserção problemática parece rela- cionar-se com o traslado das rupturas discursivas de uma disciplina à outra .................".

Esta inserção da Psicanálise na cultura envolve, implicitamente, uma cosmovisão, mas a cosmovisão à qual se adere a psicanálise, desde Freud (1932), não é uma cosmo visão particular, senão a cosmovisão científica. "Mas esta, dizia Freud, não contempla tudo, é incompleta demais, não pretende absolutismo nenhum nem formar um siste- ma ....... Uma cosmovisão edificada sobre a ciência possui, essencialmente traços nega- tivos, como os de ater-se à verdade, desautorizar as ilusões." "A verdade, dizia também Freud, não pode ser tolerante, não admite compromissos nem restrições; a investigação considera como próprios todos os campos da atividade humana....".

Penso que toda cosmovisão contém uma ideologia, entendendo como tal um conjunto de idéias sobre o mundo e a sociedade, que responde a interesses, aspirações e ideais de uma certa classe social e que guia e justifica o comportamento dos homens de acordo a esses interesses, aspirações e ideais. (Sánchez Vásquez, A. 1976)

Estas ideologias ou cosmovisões podem considerar o sujeito humano como uma unidade indivisível, e serem propostas como "uma construção intelectual que soluciona de maneira unitária todos os problemas de nossa existência a partir de uma hipótese suprema; dentro dela, portanto, nenhuma questão permanece aberta e tudo o que nosso interesse insiste em obter, encontra um lugar certo". Este era o conceito de cosmovisão que Freud rejeitava. Minha opinião é que ele o rejeitava porque são ideologias geradoras de falsas consciências, isto é, são inconscientizadoras. Formam parte dos desejos ideais dos homens. Esses lugares certos que tudo explicam, enclausuram, e são, portanto, totalizadores, envolvem o risco de voltar-se ao serviço de atitudes totalitárias em qualquer âmbito onde se desenvolva a conduta humana. Freud alertou acerca desse fato quando, tomando como exemplo o ocorrido com o Marxismo teórico no bolchevismo russo, assinalou que "sendo em sua origem um fragmento de ciência, edificado sobre a ciência e a técnica para sua realização, criou, no entanto, uma proibição de pensar tão intransigente, como foi em sua época aquela decretada pela religião".

As posições ideológicas são também posições políticas se considerarmos que os paradigmas que circulam entre as diferentes manifestações das ciências do homem passam de uma fronteira a outra, quer dizer, se interpenetram. A ciência da Psicologia se interpenetra com a Sociologia, e, portanto, com as posições filosóficas. O paradigma do pensamento político para pensar o sujeito humano, será por acaso, como diz Mirta Goldstein de Vainstoc (op. cit.), o novo paradigma onde possamos encontrar (olhando para o futuro) locais de vazio e desnudamento de verdades? Façamos algumas reflexões a respeito.

Propusemos em outros momentos (Marcano.S., 1980; 2000; 2002), seguindo a síntese que realizou Bleger (1972), que as posições políticas e ideológicas podem se referir às duas posições básicas propostas pela filosofia: o Idealismo e o Materialismo.

O Idealismo está ligado e é o produto de todas as forças que tendem a manter um status quo social, econômico e político. O Materialismo é a ideologia de todas as forças inovadoras, de tudo o que incrementa e possibilita o poder do homem sobre a natureza e sobre a própria organização social.

Ambos podem ser metafísicos ou dialéticos. Se forem metafísicos, estudam os

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fenômenos de forma isolada, os objetos são fixos e invariáveis; o movimento é admitido como translação no espaço e não admite contradição.

Se forem dialéticos estudam os fenômenos em sua interdependência permanente e ação recíproca; tudo está em mudança e movimento; o movimento é interno e transformador e a contradição é o núcleo de tudo o que existe.

O método dialético contém o metafísico e o supera. O método metafísico dentro do dialético estuda e considera somente momentos do' processo, mas sua limitação consiste em considerar esses momentos como a totalidade.

O materialismo é a ideologia das forças renovadoras somente quando é dialético. É então que é criador dando lugar às mudanças e a novos níveis de integração. É uma luta permanente de contrários dentro da unidade; situa o indivíduo como ser social e integra natureza e cultura. Passa a ser Materialismo Histórico quando aplica a dialética aos fenômenos histórico-sociais. Os homens estruturam a sociedade dentro de determinadas condições econômicas e políticas. A estrutura social adquire certa autonomia com leis próprias e regula e estrutura as reações, entre e dentro dos próprios seres humanos.

No Idealismo e Materialismo metafísicos, as posições ideológicas políticas são Conservadoras. Tendem a manter invariável o estabelecido. "São a expressão material do inconsciente e do ideológico, como falsa consciência, em certas formas de conhecimento, particularmente quando ela é denegada e ignorada."(J. Abouhamad, 1978 ). Estas posições políticas conservadoras que partem desde o social, constituem por sua vez os sujeitos individuais como tais, e em sua constituição lhes impõem suas leis instauradas dentro do superego, oferecendo-as como modelos narcisísticos do ideal do ego. A compulsão à repetição do estabelecido, a invariância, o aistórico, a normalização através da submissão acrítica e da identificação com os objetos de seus desejos, os quais, por sua vez, lhe impõem não saber de tais desejos, são algumas das características que encontramos nos indivíduos com posições mentais conservadoras. No manifesto buscam a estabilidade a qualquer preço, inclusive às custas do desenvolvimento e da paixão sexual (Meltzer.D., 1974). Suas capacidades de simbolização estão diminuídas o que os torna materialistas, consumistas e confundem papéis sociais com pessoas. Negam a realidade psíquica apoiando-se no tradicional para evitar a confusão de valores. Interessa-lhes o poder enquanto representa o reencontro com o ideal do ego narcisista.

As posições ideológicas políticas são revolucionárias quando o que predomina, nas posições idealistas e materialistas, é o método dialético.

Estas posições são tão subversivas quanto à psicanálise, se apóiam no que Gramsci (1970) denomina uma ideologia historicamente orgânica, quer dizer, aquela que o é na medida em que alguém se encontra em suas contradições ou dissociações. Há uma revelação permanente da falsa consciência, ou pelo menos, se não há, procura-se que tal revelação ocorra.

Do lado do idealismo dialético o conservadorismo adquire características diferentes do metafísico. O que aparece é a consideração aos objetos externos, aos mais velhos por sua experiência, aos iguais por suas opiniões e à geração mais jovem por suas potencialidades. É o que se deve conservar ou preservar dentro da revolução. É o que deve permanecer, porém problematizando-o em busca de novas estruturas de

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organização tanto individuais como sócio-culturais. Nos níveis e posições políticas revolucionárias, as leis ou proibições que regulam as relações humanas, que no fundo remetem à proibição do incesto originário, estão bastante distanciadas das leis que inicialmente o proibiram. O Establishment das instituições sociais permite o surgimento do que Bion (1974) chamou de o místico-gênio, que interage permanentemente com o Establishment institucionalizado. Necessitam-se mutuamente. As leis que os governam se aproximam a um superego mais próximo do ego. Não se impõem os modelos de identificação e se abre um espaço para que surjam os interesses e talentos pessoais. Busca-se exercer o poder mais em função dos interesses coletivos que dos ideais narcisísticos. As capacidades de simbolização dos indivíduos que assumem posições revolucionárias mentais estão incrementadas. Predominam os níveis edípicos sobre os narcisísticos. O Establishment social das posições políticas revolucionárias favorece que se aceda ao conhecimento dos modos de constituição como sujeito e, portanto, sua posição mental revolucionária facilita esse acesso, não se oferecendo numa atitude de submissão acrítica, senão pelo contrário, tornando-se permeável ao conhecimento dos processos inconscientizadores. Isto traz como conseqüência uma compulsão menor à repetição e a um encontro com seus desejos, que gerará instabilidade e angústias persecutórias e depressivas. Produzir-se-á um movimento em direção à individualização e identidade próprias, ao conseguir desfazer os vínculos das identificações que o sujeitavam e ideologizavam, no sentido da falsa consciência, edificando seu ideal do ego.

Estas transformações no âmbito individual conduzirão à posição mental revolucionária de "trabalhar com todos para a felicidade de todos", como dizia Freud em "O Mal Estar na Cultura" (Marcano, S. 1980). A descoberta do espírito revolucionário nos níveis mentais e sociais revolucionários,contém uma violência útil e necessária como instrumento para modificar a superestrutura integrada pelas instituições políticas e jurídicas, artes e letras, assim como pelas normas, ideologias e pelas características psicológicas dos seres humanos.

Estas posições políticas e mentais revolucionárias sofrem o embate, dentro e fora das mesmas, das posições políticas e mentais reacionárias, contra-revolucionárias, conservadoras, idealistas e materialistas metafísicas, ideologizadoras tanto quanto inconscientizadoras e produtoras de falsa consciência.

As tensões que se produzem podem dar lugar a conflitos e enfrentamentos que nem sempre são saídas transformadoras e criativas, mas que podem se transformar em falsas saídas, desenvolvidas em qualquer das três áreas onde se manifesta o comportamento humano: mundo interno, corpo e mundo externo. Assim encontraremos as falsas saídas nas condutas rebeldes ou tirânicas, ou outras não saídas como é o caso da formação de sintomas nos indivíduos onde se busca aceder ao desejo e satisfazer o proibido, sem saber dos mesmos e sem obter uma gratificação oportuna já que deve render culto ao castigo proveniente da instância moral por ter ousado desafiar-la. A violência que se exerce por estes meios é uma violência inútil tanto no social como no intrapsíquico e muitas vezes cruel, como costumam exercer certos representantes da lei quando triunfam sobre os rebeldes.

Agora podemos voltar a Freud (1932) e nos perguntar se estamos em condições de aceitar o desafio que propôs, quando disse: "Se alguém estivesse em condições de

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demonstrar detalhadamente o modo como se comportam, se inibem e se promovem entre si estes diversos fatores, a disposição pulsional comum a todos os homens, suas variações raciais, e seus moldes culturais sob as condições do regime social, da atividade profissional e das possibilidades de ganhar seu sustento; se alguém o conseguisse, o marxismo haveria sido completado até convertê-lo numa ciência real e efetiva da sociedade". Para ir em busca dessa utopia deve-se problematizar a Psicanálise e sustentar assim sua condição subversiva.

2

Tomarei agora, como eixo das reflexões deste ensaio, dois fecundos trabalhos de dois grandes pensadores latino-americanos: Heinrich Racker e Cyro Martins. O primeiro intitulado: "Considerações Psicanalíticas sobre a Música e o Músico" e o segundo chamado "Humanismo Psicanalítico e a Guerra". Tentarei problematizar os principais postulados psicanalíticos neles ressaltados e assinalar o que para minha prática é permanente e o que não é.

Racker começa ressaltando o que assinalamos anteriormente como algo inerente à essência da Psicanálise: o caráter subversivo de seus postulados "quando aceitou a tarefa de revelar os aspectos obscuros, ocultos e noturnos do ser humano". Esta posição psicanalítica, enquanto subversiva, situa-o na posição ideológica política revolucionária, historicamente orgânica (Gramsci, 1.970) ao revelar ao homem suas contradições ou dissociações. Porém, como o próprio autor mostra, desde o começo até o presente, de fora e de dentro da Psicanálise, ou dos Psicanalistas e suas instituições, pode haver uma certa rejeição ou antipatia a este caráter subversivo essencial da Psicanálise.

Partindo de dois vértices diferentes de investigação: as origens da atividade musical e da observação psicanalítica do músico, buscará o caminho da compreensão das atividades espirituais em geral e dos distúrbios na capacidade de criar e aprender, de desempenhar e aceitar as artes e ciências.

Nos propõe, através da observação infantil, que o que num começo é um ruído, consistente em vibrações irregulares, é transformado em som ao obedecer a uma ordem, um retorno à mesma coisa em tempos iguales. Estará falando Racker da Compulsão à Repetição da igualdade, da não variabilidade? O grito, expressão da originária ansiedade, dor e agressão, é transformado em tom musical e com ele se alcança o equilíbrio. Racker diz que grito e tom são dirigidos a alguém, o grito o faz de uma maneira mais agressiva ou exigente, o tom e a canção de uma forma mais suplicante ou convidativa, a qual também pode ser enganosa e encobridora de maldade através de uma aparente bondade sedutora. É aqui que nos perguntamos, a partir de onde lhe são atribuídos os qualificativos de mais agressivo ou exigente, ou mais suplicante ou convidativa, a uma ou outra expressão primigênia dos vínculos humanos? A partir do sujeito ou a partir do objeto? Quem lhe dá o qualificativo de maldade desequilibrante que deve ser transformada em uma forma de expressão equilibrada?

Para Racker o grito pode expressar triunfo e alegria por descarregar a agressão ou superar o perigo causado pela separação da pessoa amada, e por intermédio disso protesta e se volta contra o ataque experimentado, contra a agressão que sofreu ao ser separado inicialmente do ventre materno. É uma expressão de protesto, de rejeição de algo,

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de agressão e também de demanda, pedido de algo, mas também de amor. É uma expressão que busca re-ligar-se com o objeto perdido.

O que Racker está nos propondo é que essa pessoa amada, esse "bem" perdido, esse "objeto perdido", ao decodificar a mensagem do grito e situá-la dentro do código língua, outorgando-lhe um significado na interação vincular, insere-o na ordem sócio-cultural e transforma-o, ordena-o, constituindo-o em sujeito humano. "É um grito dominado que obedece a uma ordem do espírito humano". Sua passagem a tom é um passo revolucionário, segundo palavras de Racker. A ordem se revela na curva senoidal que o tom constitui matematicamente. Essa curva é a conexão entre unidade e polaridade. É a conversão da multiplicidade em unidade. Porém este ordenamento assim proposto, não estará melhor ao lado dessas ideologias e cosmovisões que consideram o sujeito humano como uma unidade indivisa, que soluciona de uma maneira unitária todos os problemas de nossa existência? Não é por acaso ali onde começam a inventar-se no inconsciente, as maneiras de ordenar os sujeitos humanos, de produzi-los como sujeitos ideologizados, como sujeitos unitários, sem contradições, indivisos, normalizados? Esse "dominado" não é por acaso o reflexo do "escravo", como o dominador é do "amo"? Quanto da união do separado, da integração do desintegrado, se realiza, tanto na música quanto no trabalho psicanalítico, para constituir uma estrutura que permita um desenvolvimento onde possam surgir novas contradições e novas sínteses, e quando e quanto se cristalizam como um Establishment que não permite que apare-ça o novo e o criativo?

Para responder aos movimentos integradores, ordenadores e desintegradores, Racker utiliza o modelo das leis da Química para explicar o mundo da música. Está assim transpondo os princípios de combinatória de uma ciência natural, a combina-tória de uma produção do espírito, como é a música, que se, se abstrai ao nível mais puro, matemático, se desumaniza ao desligá-la do que faz dela humana como o é sua determinação histórica. E aqui deixa, a nosso modo de entender, a posição política e revolucionária do pensador que revelava uma prática desde a posição política ideológica e científica do Materialismo Dialético, com sua derivação no Materialismo Histórico, para colocar-se numa posição política e mental conservadora própria do materialismo Metafísico, o qual se reforça, ao apoiar-se para sustentar seus pontos de vista, na teoria dos Instintos Tánatos e Eros, como as forças Universais regedoras do Universo.

Em outro momento propus (Marcano, S. 1.994) que quando Freud postula sua última teoria instintiva em "Mais Além do Princípio do Prazer" (1.920) deixa-nos ver que para ele o definitivo do instinto será seu caráter conservador. (É o caráter conservador do instinto ou é um momento conservador de Freud?). "Um instinto parece, então, ser um esforço irrefreável inerente à vida orgânica, que restaura um estado anterior de coisas, que o ser vivo se viu obrigado a abandonar sob a influência de forças externas perturbadoras: isto é, uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outra maneira, a expressão da inércia inerente à vida orgânica."Que um instinto seja uma tendência à vida orgânica que a impulsiona a voltar a seu estado anterior e que ao mesmo tempo seja a expressão da inércia, são expressões contraditórias, porque uma implica movimento e a outra implica detenção do movimento.

Mais adiante, a partir do caso clínico, ampliaremos nossas reflexões sobre esta

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teoria instintiva em relação à violência e a sua localização dentro das posições políticas e mentais. Por enquanto, diremos que os processos e mecanismos musicais, que Racker compara aos mecanismos de defesa e à formação onírica, postulados pela psicanálise, são expostos como transações entre Tánatos e Eros. Podem localizar-se do lado da defesa ou da conquista, do lado da satisfação alucinatória de desejos, ou do lado da criação. Mas ao propor que sua localização em direção a um lado ou a outro indica estar mais do lado de Eros ou de Tánatos, implica, para nós, desconhecer que a defesa e a conquista são sempre perante ou para algo ou alguém da realidade psíquica e da externa, e que tais mecanismos também envolvem o mandato de apagar ou desconhecer os métodos de constituição do sujeito humano desde o OUTRO da cultura. Entre as leis que regulam essa constituição também se indicam os métodos de aceder ao encontro tanto do desejo como do objeto de desejo, junto às possibili-dades de conhecimento e desconhecimento de tais processos. Dependerá do balanço entre os mecanismos em jogo pertencentes às posições conservadoras e revolucionárias políticas e mentais, que os mesmos se inclinem para o lado da normalização, da produção de sintomas, ou da criatividade; que se mantenham na repetição e na reprodução monótona do estabelecido, ou que se abra harmonicamente o leque das variações.

Os diferentes níveis de integração, equivalentes às diferentes sínteses resultantes dos movimentos contraditórios, podem organizar-se harmonicamente em seus vínculos intra-subjetivos, intersubjetivos e trans-subjetivos, dando lugar à emergência do contraponto. Conservam-se e se integram dialeticamente nas novas estruturas, as anteriores. É a integração das posições mentais e políticas conservadoras dentro das revolucionárias. De acordo a Racker diremos que, neste movimento progressivo, o reduzir da repetição ao máximo e estimular a variação a seu grau mais elevado, como se vê na evolução da música em sua expressão atual dodecafônica, equivale, no vértice psicanalítico que se alcance a máxima variação de estruturas mentais de um indivíduo dentro de um indivíduo e dentro de uma comunidade e que se alternem harmonicamente entre umas e outras estruturas, expressando-se como as vozes polifônicas num contraponto.

3

Quando Racker teoriza através da paciente, estudante de canto que amava a música, nos mostra como ela tentava, através dos mecanismos de defesa, enfrentar as ansiedades persecutórias. De acordo à sua lógica, a enfermidade aparece como conseqüência de uma frustração libidinosa prolongada intimamente, ligada ao instinto de morte. Diz que a fome nos "consome" e "devora" e que qualquer demanda, ou atração em direção a alguém propõe a possibilidade de frustração e com ela o surgimento do instinto de morte. Segundo esta lógica o sujeito é mostrado como causa e conseqüência de si mesmo e o objeto é situado como não interveniente, ou pelo menos não de um modo significativo no que acontece ao sujeito.

A lógica do destino funesto, contida nesta teoria do Tánatos, que se apóia na teoria instintiva desenvolvida por Freud em "Mais Além do Princípio do Prazer" (1.920), é contrastante com outra lógica que aparece no mesmo Freud em "Pulsões e Destinos

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da Pulsão" (1.915), onde assinala que a destrutividade não é originaria nem constitutiva do ser humano, que a violência está a serviço do apoderamento do objeto para satisfazer o desejo apoiando-se na necessidade, porém simultaneamente quer apagar as diferenças que o separam do outro, pois são causa de seu mal-estar. Deseja restituir um estado de satisfação narcisística e o faz apoderando-se do objeto, incorporando-o e fazendo corpo com ele, quer dizer, identificando-se.

Neste mesmo movimento é onde a cultura, através do objeto incorporado, realiza sua própria violência de incorporação devoradora de sujeitos, introduzindo-se dentro dos mesmos, uma vez que os incorpora dentro dela sem que estes o percebam, como foi magistralmente plasmado para a imortalidade na pintura "Saturno Devorando seus filhos" de Goya. É o que entendemos, no dizer de Lacan: "O desejo do homem é o desejo do Outro". É a modelização, desde o Outro da cultura, do desejo do sujeito desejante. O que esse desejo busca é a satisfação plena que consistiria na repetição da satisfação primária, na re-união indiscriminada com a mãe. (Marcano,S.,1997)

Quando Racker propõe que a identidade está baseada na identificação com o perseguidor, a mesma encerra uma identidade imaginária, especular, não discriminada, a qual é logo sublimada ou transformada quando impomos ordem e simetria ao instinto, nos perguntamos se essa ordem que se impõe, não é também, uma submissão à rebelião implícita no sintoma que luta contra o subjugamento que se impõe ao protesto violento, que contém e que é motivada pela frustração de seu desejo. O sintoma não conduz a uma verdadeira saída transformadora, criativa, revolucionária, mas que se sustenta como falsa saída. O mesmo Racker cria uma contradição a sua proposta inicial quando mais adiante assinala que o ódio de Ingrid por seu amado é devido ao fato de que ele a abandona. A violência destrutiva é uma resposta à aniquilação-ansiedade que o abandono causa nela. O objeto destroçado é incorporado e ali se identifica com ele, reconstruindo-o com o amor que contém, com sua capacidade criativa através da música, que também é o recurso que incorporou e identificou dentro dela, proveniente das experiências gratificantes com seus objetos. Eu diria que, ao conservá-las, passam a formar parte do Establishment mental constituindo-se em posições mentais e políticas revolucionárias que permitem e favorecem o surgimento do criativo junto à capacidade de descobrir a dialética entre amor e ódio, entre sujeito e objeto.

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Continuaremos agora estas reflexões, através do ensaio de Cyro Martins (1.971) "Humanismo psicanalítico e a guerra". Desde o começo de seu discurso Cyro nos enfrenta com a barbárie da guerra referindo-se à chegada de Freud a Londres e a notícia sobre o julgamento pela matança de My Lai. Mostra-nos como na Cultura podem coexistir tanto normas de conduta que permitem a aparição do amor ao próximo no pensamento, como o triunfo contra a barbárie que é expressão da violência destrutiva, como também normas que anulam a possibilidade de pensamento sobre tal violência, e de ambos, justificar, racionalizando-os, os atos de violência destrutiva entre seres humanos, dando-lhes um caráter lícito.

O autor começa dizendo-nos que as guerras possuem um caráter idealista, nega-

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dores da verdade, são desumanizantes e evacuadoras das pulsões destrutivas, por causa das privações passadas. Têm um sentido psicótico e devem todo seu potencial destrutivo às funções psicóticas, o qual se origina do instinto de morte. Estas duas leituras da origem da destrutividade humana - as privações e o instinto de morte - criarão um movimento contraditório dentro das posições políticas, teóricas e mentais do autor. Há certa semelhança ao proposto por Racker ao equiparar as privações com o instinto de morte que desencadeia a agressão dentro do sujeito. Colocar o acento da origem da violência no mundo interno do sujeito pode vir a decifrar a conduta violenta somente do lado do indivíduo e não do par dialético indivíduo-cultura, colocando-se numa posição ideológica, política e mental conservadora ao manter uma leitura aistórica acerca da constituição da violência destrutiva que existe nos indivíduos e que pelo mesmo motivo, deve ser regulada e normalizada. Ao mesmo tempo, deixa surgir outra postura ideológica, política e mental mais do lado do revolucionário, quando ressalta o uso pernicioso, desumanizante em que são transformados os meios positivos da civilização e cultura, ao negar acesso ao conhecimento de sua contingência histórica. "Esta simulação da realidade é falsa e verdadeiramente reacionária", nos diz Cyro Martins, tornando-se neste momento verdadeiramente revolucionário. A guerra vista por esse ângulo é uma "tomada de posição psicótica", desde a cultura, o que a converte na própria "anticultura".

A Psicanálise teria que assumir a posição de buscar o ideal do perfeccionismo social - diz - através da descoberta das interações do complexo cultura-sociedade-indivíduos, dos valores envolvidos, para "formular e reformular leis situando o complexo sócio-cultural em categorias de pensamento que se ajustem ao gigantesco empenho de poucos pela genuína emancipação do gênero humano,... baseada no respeito devido à personalidade alheia". Esta reflexão constitui - de acordo a nós - uma síntese dentro do processo dialético do pensamento do autor, é um ponto de retorno e de resolução das contradições das posições políticas e mentais em jogo, implícitas dentro das teorizações que nós psicanalistas fazemos. Problematizou sua postura psicanalítica e se constitui em portadora de uma psicanálise problematizadora. Esta tomada de posição é o que o leva a ressaltar a presença da psicanálise no âmbito da civilização e a propor que sua influência cresça ao aplicar-se ao campo da profilaxia mental que abarca um amplo espectro de ação educativa e preventiva à comunidade.

Revelar, por meio do humanismo psicanalítico, estas interações do complexo indivíduo-cultura-sociedade, é situar a psicanálise e os psicanalistas numa posição ética, ao devolver ao sujeito o conhecimento de sua constituição como tal, e assim poder criar as ferramentas individuais e sociais, dinâmicas e históricas, que lhe permitam se auto-regular dentro de uma regulação coletiva harmônica, onde predomine o amor construtivo sobre o ódio destrutivo.

Cyro nos propõe que as saídas psicóticas socialmente institucionalizadas, fora e dentro dos indivíduos, isto é, nos vínculos intra, Inter e trans-subjetivos, são falsas saídas pois desumanizam ao homem. São expressões de tensões que podem manifestar-se através de conflitos, assumindo a forma de sintomas diversos na área mental, um dos quais a violência psicótica; na área do corpo, a violência destrutiva é desenvolvida dentro do mesmo e na área social se expressa através do que Cyro Martins chama o sentido psicótico das guerras. Com seus mecanismos de splitting, como defesa ante a

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põem em ação quando se especula". Para nós, considerar a agressão humana, individual e coletiva, como algo instintivo e inato, somente, expressa um reducionismo teórico, e é uma simplificação de um fenômeno de alta complexidade. É indubitável que também tem um componente inato, mas vai mais além disso. Basta recordar as Séries Complementarias postuladas por Freud.

Proponho ler nossas preferências a respeito da agressão humana a partir das posições ideológicas e políticas arraigadas em nossa interioridade.

Concordo com Cyro Martins quando diz que: "da síntese desse processo dialéti co, elaborador de contradições, imaginamos que se possam elaborar condutas mais fle xíveis, menos subordinadas à rigidez das técnicas desumanizantes"...." A grande contri buição da Psicanálise, para que alcancemos o nível de reações inter-humanas sensa tas ...... consiste na compreensão profunda de certas causas determinantes das diversasexpressões psicopatológicas, individuais e coletivas" ............ " todo nosso empenho deveráser com a finalidade de extrair vida do intercâmbio dialético das contradições em conflito no presente".

Para finalizar direi que é desejável que, como psicanalistas individuais e insti-tucionalizados, possamos problematizar nossos Establishment mentais, para que possam surgir novas sínteses em qualquer dos três níveis onde se desenvolve nossa prática e assim contribuiremos para que a Psicanálise problematize os demais âmbitos da cultura onde também, então, surgirão novas sínteses. Uma prática psicanalítica levada a cabo desta maneira, bem poderia denominar-se, usando a expressão de Leo Rangell (1974):"psico-análise-síntese-bio-psico-socio-interno-externo" (Marcano,S. 1980).

14 de Julho, 2002

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Comentários

A partir de dois ensaios

Henrique Honigsztejn

O ensaio que busco concretizar parte de dois ensaios: "Considerações psicanalíticas sobre a música e o músico" de Henrich Racker, e "O Mundo em que vivemos" de Cyro Martins, no qual este desenvolve seu conceito de humanismo psicanalítico, que espera "venha a se converter no fulcro em torno do qual se travará a polêmica pelos direitos do homem a livrar-se da fatalidade do destino, através da progressiva concretização de sua natureza"; enquanto o primeiro busca as raízes para as mais sublimes criações do homem.

"O ensaio não apenas compartilha, porém celebra o próprio compartilhamento (segundo um léxico de filosofia- 1972,pg. 746), e "assim se aparenta à tradição das grandes correspondências". Nesse mesmo léxico lemos ao final do verbete:

"O ensaio reside entre a Teoria e a Prática, entre a Filosofia e a Política. Não se deixa reprimir no território da ciência pura, porém encontra-se sempre na posição de intermediador critico. Não é de se espantar, assim, de que a ensaística sempre floresça quando os sistemas filosóficos se afrouxam e a liberdade de expressão é garantida".

O ensaio expressa o encontro de seu autor com realidades que o fazem parar, se interrogar, e sem prender o que nele emerge em algumas fórmulas, deixa fluir o que vivência. Uma homenagem ao mundo que flui e uma esperança que esse fluir origine um outro fluir, e assim não se interrompa um fluxo que vai... É uma expressão de confiança num compartilhamento que favorece um abrir de alma, como numa carta a um íntimo amigo.

O que permite esse estado emocional? O que permite a criação musical? Como o humanismo psicanalítico pode dar ao mundo uma real contribuição? Vou deter-me na primeira questão e ir chegando assim às outras. Para que o fluir aconteça é fundamental a confiança. A confiança que permitiu a Freud conquistar, (ele definia-se como um conquistador), o obscuro território do inconsciente, tão assustador para Breuer que o vislumbrou. Freud escreveu ao final de seu artigo sobre uma recordação infantil de Goethe (1917,pg. 266):

"...Quando se foi o favorito indiscutível da mãe, conserva-se pela vida aquele sentimento de conquistador, aquela segurança de sucesso, a qual não raramente atrai na realidade esse sucesso. E uma observação como: minha força está enraizada na minha relação com minha mãe, poderia Goethe colocar à frente de sua autobiografia". Falando de raízes, vou buscar um autor que a meu ver colocou uma lente de grande aumento focalizada nas nuances da relação de uma mãe com seu bebê: Winnicott. Ele vai nos ajudar a entender o que possibilita essa segurança com a qual um filho amado se reveste: "A mãe no início, por uma adaptação quase perfeita oferece ao bebê a oportunidade para a ilusão que seu peito é parte do bebê. É como se estivesse sob o controle mágico do bebê...Onipotência é quase um fato da experiência. A tarefa final da mãe é geralmen-

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te a de desiludir o bebê, porém ela não terá esperança de sucesso a não ser que inicialmente ela tenha sido capaz de oferecer suficiente oportunidade para ilusão.

Em outra linguagem, o peito é criado pelo bebê repetidamente a partir de sua capacidade para o amor ou (pode-se dizer) a partir da necessidade. Desenvolve-se no bebê um fenômeno subjetivo ao qual chamamos o peito da mãe. (Playing and Reality, 1971a).

E continua em outro capítulo descrevendo o que sua focalização permite observar se a mãe permite a ilusão ser vivenciada (1971b):

"Se a mãe pode participar disso por um longo tempo sem admitir impedimentos (por assim dizer) então o bebê terá alguma experiência de controle mágico...

Confiança na mãe cria aqui uma área de brincar intermediária, da qual se origina a idéia da magia, já que o bebê em certa extensão vivenciou onipotência...Eu chamo a isso de "playground" porque brincar origina-se aqui. Essa área é um espaço potencial entre a mãe e o bebê ou de ligação mãe-bebê".

E logo a seguir, ele expressa o que para mim é uma de suas mais dramáticas e fundamentais conclusões: "os fenômenos transicionais representam os estágios preco ces do uso da ilusão sem a qual não há para o ser humano significado na idéia de rela ção com um objeto que é percebido pelos outros como externo a esse ser".

Chamo essa conclusão dramática e fundamental para atrair para ela o leitor- ela nos leva a pensar sobre a importância fundamental da ilusão. Não é fácil a um psicanalista tão marcado pelo seu ideal de buscar a verdade, defrontar-se com a importância da ilusão. Agora mesmo ao escrever eu o faria se não tivesse a ilusão de ser lido e entendido pelos leitores que espero contatar? Será que eu escreveria se não tivesse a ilusão de estar em correspondência com Racker e Martins e outros afins? Sem a ilusão, como diz Winnicott, eu estaria diante de objetos externos estranhos a mim e vendo-os assim, como então o contacto? Penso como um meio de apaziguar-me: assim como a onipotência primária é algo fundamental a ser experimentado pelo ser humano para que estabeleça em si a confiança que o permite ir sendo, assim seria a ilusão primária componente dessa experiência básica, em contraposição à onipotência secundária, uma reação à impotência, por um relacionamento perturbado na relação fundamental, e seu componente que chamarei de ilusão secundária, reativa à uma desilusão precoce, originando uma personalidade que vai a cada momento buscar como arrumar-se e arrumar o mundo para fugir à ameaça que o mundo representa.

Pensemos na psicanálise: não é incomum pacientes queixarem-se de que afinal a relação vivenciada com o analista é apenas uma ilusão. Então para que? Pouco a pouco experimentam que essa ilusão possibilita uma experiência de encontro nunca antes vivenciada. Será que pode haver efeito terapêutico numa psicanálise sem a vivência da ilusão de dois seres realmente se entenderem a tal ponto que se poderia perguntar: o que é de um, o que é de outro? Pode parecer contraditório: "a vivência de ilusão de dois seres realmente se entenderem..." Aqui insisto: a ilusão unida à onipotência primária (Winnicott) é um componente fundamental para que se possa circular, fluir no mundo. Repito-me, de outro modo sem a ilusão (primária) o objeto será percebido como estranho, com o qual não haveria como se estabelecer contacto, e assim só restaria: fuga ou destruição. Possibilitado pela mãe a ter a ilusão de que o peito é parte dele, o bebê experimenta-se onipotente pois ele é seu autoprovedor. A desilusão gradual feita

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por uma mãe que não necessita proclamar-se dona do peito (pensar no analista) possibilita que o bebê conserve em si esse registro,que o permite circular entre os objetos com a sensação de estar em casa, e assim ter a condição fundamental de comunicar-se e criar, pois, confia que será entendido e acolhido. Esse ser pode fluir no mundo, em contraposição ao que o percorre sobressaltado, a cada momento se interrompendo, pelo medo, pela ameaça de uma fragmentação, sempre pronta a ocorrer. É como se o que estabeleceu em si "um fenômeno subjetivo ao qual chamamos o peito da mãe" fosse constituído por uma estrutura unificada pelo revestimento: ilusão+onipotência (primária), enquanto que aqueles que não têm essa experiência vivenciam-se como : "um amontoado de peças", "um E.T.", e buscam cada um a seu modo um meio de revestimento que de uma maneira ou outra sustente seu self precário. Lembro-me de um paciente frente a mim: "estou chamando meu ódio, pois assim meus músculos ficam duros, e eu sinto que estou forte, não vão me derrubar"; e de uma outra: "tenho que engordar, minhas pernas tem que estar bem gordas, para eu sentir que elas podem me sustentar, com se eu estivesse bem plantada".

Há no que possibilita a constituição do ser confiante, um elemento a mais, só percebido por Winnicott em seus últimos anos: o impulso à integração. Numa carta a J.D. Collinson em 1969, ele escreve: "...a tendência herdada em direção à integração da personalidade pode ser a mais importante coisa herdada pelos seres humanos"...e nessa mesma carta: "...para mim a tendência herdada não pode operar só...no bebê e na criança em desenvolvimento é o ambiente que facilita o crescimento individual".

Esse trecho traz-me à mente Freud (1926, pg.278):"Há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância do que a

impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar. O objeto-mãe psíquico substitui para a criança a situação fetal biológica".

Freud expressa aqui a importância fundamental do objeto como possibilitador da continuidade de um desenvolvimento, a importância do objeto que pouco depois irá exercer "uma nova ação psíquica acrescida ao auto-erotismo levando ao desenvolvimento do narcisismo. Levando à integração. Essa imagem de um desenvolvimento a fluir sob a ação de um impulso à integração é muito sedutora para mim e tenho que cuidar para que esse impulso não se torne uma entidade mística, unificadora dos seres, integradora do caos, e levando ao Paraíso de um desenvolvimento contínuo. Assim como os matemáticos usam o critério da beleza como um importante indício da verdade de uma equação matemática, a beleza da concepção desse impulso pode ser algo indicativo de sua verdade, uma verdade que para não ser perdida exige que eu tenha em mente: é algo que se passa numa relação e não uma entidade supra ou extra a agir por sua conta. A importância desse impulso é reforçada por Melanie Klein":

"Um elemento importante na saúde mental com o qual não lidei o suficiente é a integração..." (1960, pg.274), e : "Do estágio mais precoce em diante existe um anseio pela integração, e uma importante função, basicamente o objetivo principal da análise é ajudar a integração" (1961,pg.243).

Não é de se admirar a concepção desse impulso. É talvez o nome com que cada um batizaria ao que vivência de um modo mais ou menos claro, ou obscuro, em si, de algo que o integra como organismo e ao registro do notável fenômeno que cada um de nós leva em si: de seu próprio desenvolvimento a partir de duas células primordiais.

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Racker em seu estimulante ensaio escreve: "Na música, encontramos deslocamento como um mecanismo técnico ou meio de criação, ao formar vida musical. Parece uma manifestação de um impulso em direção ao crescimento, em direção à formação de um organismo multicelular, e ao mesmo tempo, uma manifestação de uma tendência de evitar repetição, para evitar uma vida estreita,para evitar a morte". Linhas adiante: "Na música encontramos divisão - semelhante ao deslocamento - como um mecanismo contribuindo à formação do organismo musical; como uma transação entre Tánatos que separa e Eros que une, e como um instrumento para realizar o principio de unidade dentro da multiplicidade (Uma vez mais, eu indicaria a analogia biológica: a divisão da célula também se refere aos seus próprios processos vitais básicos)."

Nessas citações creio que Racker impactado pelo processo gerador de um ser humano, imagina-o atuante na criação musical e à própria música como expressão do mais intimo do homem tendo seu processo organizador, seu impulso à integração, levando-a à forma final. Entendo que a música é por ele vista como um meio vislumbrador do mais íntimo fluir de um ser. E volto: o que permite esse fluir?

Winnicott responde quando fala em espaço potencial como o playground do qual se origina o brincar, possibilitado pela mãe que permitiu ao bebê brincar de ser o criador da própria mãe e assim experimentar-se: onipotente e envolvido pela ilusão de ser essa própria mãe, a que passou a ser psiquicamente o que era antes biologicamente, dando continuidade a um desenvolvimento no qual o impulso à integração não perturbado em seu movimento exerce sua ação. Esse bebê se movimenta,se alegra, é envolvido pela alegria dos que o amam e começa a vivenciar uma separação da mãe, e começa a colocar no mundo em volta, algo dessa mãe. Para ele o mundo é familiar, o espaço potencial é usufruído como um campo de brincadeira, um campo de livre exercício do que ele é ou melhor, do que vai experimentando ser. O acesso ao espaço potencial torna o mundo rico, colorido, pois é o encontro com algo que está sempre pronto a surgir, a surpreender. É um espaço que separa e une como uma ponte. Em momentos de angústia, como contatar-se com a realidade da morte, esse ser tem a condição de reunir-se à mãe, não num encarceramento, mas numa condição re-criadora do embalo dos toques,do ritmo vivenciado nessa relação. O re-cria na obra de arte, e é numa obra de arte que encontramos a descrição e a transmissão do que se passa:

"...luego envíaconsonante respuesta,y entre ambos a porfíaSe mezcla una dulcísima armoníaAquí el alma navegaPor un mar de dulzura..."

(Frey Luiz de Léon- "Ode a Francisco Salinas")

Frey Luiz de Léon, pôde-se entregar ao fluir dos sons emergentes do órgão tocado por Salinas e pôde recriar essa experiência a partir de um ritmo nele evocado pelo artista, e nos afetar por essa experiência, que nos mergulha na ilusão - volto a ela talvez para firmar em mim mesmo seu significado e compreende-la mais. E volto trazen-

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do Nietzsche: "Tudo o que é vivo necessita em volta de si uma atmosfera, uma atmosfera plena de mistério; se alguém lhe tira essa camada protetora, se alguém condena uma religião, uma arte, um gênio, a circular como constelação sem atmosfera, não deve se admirar de seu rápido murchar"; e adiante:

"Sim, o homem sente-se triunfante de que agora "a ciência começa a dominar sobre a vida": é possível que o homem alcance isso, porém certamente uma vida dominada assim é algo que não vale a pena, porque é muito pouca vida, e garante muito menos a vida para o futuro do que a vida dominada pelo instinto e pela ilusão" (em "Considerações inatuais"). Nietzsche fala de um mundo totalmente objetivo no qual música, filosofias, arte, religião e a ciência que busca mistérios não teriam lugar. Há uma ciência que afirma: "olhando por baixo da superfície das coisas, encontramos mais e mais beleza... Para nós, também, a beleza das teorias atuais é uma antecipação, uma premonição, da beleza da teoria final" (Steve Weinberg - "Sonhos de uma teoria final"). Esta ciência teria sentido nesse mundo des-iludido?

Freud buscou por baixo da superfície das coisas e encontrou a beleza de um mundo mental que tem sentido, um sentido a que se pode ter acesso e propicia-lo a quem o porta como algo estranho, do qual não se apossou. Talvez seja um sonho, como o da teoria final, ser a verdade um fundamento do ser, mas esses sonhos fazem caminhar, e nesse caminho o que está em potência pode surgir à nossa frente e algo a mais é acrescentado ao mundo. Lessing exemplifica os que brincam em sua busca pela verdade, na expectativa de se deixarem surpreender e viver esse encantamento, essa revelação:

"Se Deus contivesse na mão direita toda a verdade, e na esquerda somente o impulso perenemente ativo de busca da verdade, sob a condição de ter que sempre per manecer errante, eu me voltaria com humildade para sua mão esquerda e diria: Pai, dá- me isso: a pura verdade é somente para Ti". (Anti-Goeze).

Que diferença dos que se intitulam "os donos da verdade", um título que ganha uma dimensão trágica pelo caráter concreto do homem-bomba em ação - os portadores de uma verdade total, absoluta, à qual não se chega - já está assentada em um livro que não permite alterações ou interpretações. Os donos dessa verdade já a determinaram.

Freud escreve ao final de "Por que a Guerra?" (1932 pg. 286): "Tudo que acelera a cultura, trabalha, também contra a guerra". E a expectativa encerrada no ensaio de Cyro Martins também em seu final: "A intuição poética de uns e o saber cientifico de outros, aliados, poderão talvez, derivar a agressividade humana de seus rumos destrutivos e lhes proporcionar outro prazer, o de reparar, o de sublimar, o de construir, enfim, oferecendo aos povos uma pista comum de entendimento para que a imagem do mundo que amanhecerá no ano 2000 fulgure atraente, sem ser uma miragem".

Essa é uma ilusão propiciadora de avanços, assim como é a expressa por Racker também ao seu final:

"Já que a música é acima de tudo unidade dentro da multiplicidade, ela implica a união e harmonização (Eros) do que está desunido e dispersado, o que é de Tánatos: e implica na superação da solidão, isolamento e repetição (Tánatos), unindo o "um" com o múltiplo e variado, que é de Eros. Unidade, se ligada com multiplicidade

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("riqueza") é considerada um valor supremo com relação à forma de uma obra musical. Do mesmo modo, e com relação ao conteúdo ou espírito de uma obra musical, sua "nobreza", sua "beleza" ou o "amor" contidos nela, são considerados de supremo valor. Em todos esses conceitos, mais uma vez Eros predomina, aqui em oposição e transformação daquilo que causa ansiedade e é feio, que é o belo e, em oposição e transformação do ódio, que é o amor".

Essas vias para o desenvolvimento, para a paz, propostas por esses autores, esbarram nos que não querem ser perturbados pela cultura: os que já são donos de uma verdade - a verdade decorrente de ilusão reativa, que se junta à onipotência reativa para estabelecer algo que parece imune a qualquer subversão. Como fazer? Devemos sair de concepções que correm o risco de vagarem numa área de abstrações, como acontece em momentos com Racker ao buscar enquadrar a música num sistema em que ela reproduziria "movimentos mentais inconscientes, acima de tudo defensiva". Creio que a extrema sensibilidade de Racker o levou a se encantar com uma bela e sutil concepção a ser levada em conta e refletida, mas que deixa de lado a revivescencia de ritmos, de fluências existentes numa relação e também deixa de lado a alegria criativa, o anseio de compartilhamento, algo que se estende ao outro. Logo ele, Racker que como poucos soube perceber as intimidades de um relacionamento em seus trabalhos sobre contra-transferência. Como não vagar em abstrações nessa busca de se contrapor a sistemas estabelecidos de destruição?

Freud em "Por que a Guerra"? (pg. 283):"Tudo que origina sentimentos de ligação entre os homens, deve-se contrapor à guerra.

Essas ligações podem ser de dois tipos. Primeiramente relações como as com um objeto amoroso, ainda que sem objetivo sexual".

"A outra espécie de sentimento de ligação é através da identificação. Tudo que origina entre os homens comunidades significativas, conclama tais sentimentos em comum, identificações, sobre eles repousando em grande parte a construção da sociedade humana".

Há uma necessidade de objetos a quem idealizar e com os quais se identificar.Hitler apoderou-se desse anseio e o usou com sucesso: Ein Volk, Ein Reich, Ein

Fuhrer". A conclamação a uma unidade anuladora, a uma prazerosa dissolução na indiferenciação, uma entrega ao comando do Grande Líder e Guia.

Em Hitler encontra-se um ser vivendo uma experiência contraria ao fluir. Rauschning (Hitler speaks) em suas impressões sobre a convivência com ele: "Tudo que se relaciona com ele é espasmo, para usar uma de suas palavras favoritas. Nada do que a ele se refere é natural". Lembrando que Hitler considerava o que escrevera em Mein Kampf como sua palavra final, imutável, já que um líder, nas palavras dele, não pode alterar sua visão, suas concepções, pois isso seria o mesmo que abdicar da condição de líder, percebe-se a necessidade de estabelecer-se na condição de quem já chegou à verdade, à fonte de todos os fenômenos. Um exemplo dramático da onipotência secundária aliada à ilusão secundaria.

A meu ver essa condição leva o sujeito a desesperadamente buscar firmar-se em arranjos precários que como peças mal colocadas sempre ameaçam esparramar-se. Essa precariedade, e a conseqüente necessidade da sobrevivência a qualquer custo, levam a uma impossibilidade de contatar-se com os objetos, ao contrário dos que experimen-

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A partir de dois ensaios Henrique Honigsztejn 101

taram a onipotência criativa, que fluem para os objetos como algo natural à sua condição. Fluem.

Cyro Martins sugere como uma contribuição possível da psicanálise para um novo humanismo... "pressentir o erro e apontá-lo, para que outras disciplinas humanísticas se encarreguem das medidas corretoras"...A meu ver o erro a apontar seria o dos sistemas baseados em concepções formuladas por alguém a partir de um estado mental guiado pela onipotência e ilusão secundárias.

E estar sempre atento a apontar, cada um, em si mesmo, a presença desse erro, ou em sua prática clínica ou em suas produções, e continuar atento, não esperando que isso possa mudar o mundo, mas não desesperando que alguns ensaios a mais se produzam e a via proposta por Lessing continue a ser percorrida.

Bibliografia

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Mudanças e permanências

3. Clínica e psicanálise

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Artigos clássicos

Psicanálise do enquadre psicanalítico

José Bleger

Winnicott define o setting como "a soma de todos os detalhes da técnica". Proponho — por razões que ficarão claras ao longo do desenvolvimento do tema - que adotemos o termo situação psicanalítica para a totalidade dos fenômenos incluídos na relação terapêutica entre analista e paciente. Esta situação compreende fenômenos que constituem um processo, que é o que estudamos, analisamos e interpretamos; porém inclui também um enquadre, istoé, um "não processo", no sentido de que são as invariáveis que formam a moldura dentro da qual se dá o processo1.

Assim, a situação analítica poderia ser estudada a partir do ponto de vista da metodologia que nela está implicada; o enquadre corresponderia às invariáveis de um fenômeno, um método ou uma técnica, e o processo ao conjunto das variáveis. Sem dúvida, aqui deixaremos de lado este aspecto metodológico e somente o citamos para que se compreenda que um processo só pode ser investigado quando são mantidas mesmas invariáveis (enquadre). É assim que dentro do enquadre psicanalítico incluímos o papel do analista, o conjunto de fatores (ambiente) temporais e parte da técnica (na qual se inclui o estabelecimento e a manutenção de horários, honorários, interrupções regulamentadas etc).

Agora me interessa a psicanálise do enquadre psicanalítico e existe uma importante literatura a respeito da necessidade de sua manutenção e das rupturas e distorções que o paciente provoca no mesmo ao longo do curso de qualquer análise (em graus e características variáveis: desde o exagerado cumprimento obsessivo até uma repressão, acting out ou uma desagregação psicótica). O trabalho psicanalítico com psicóticos me ensinou, com certeza, a importância da manutenção e da defesa dos fragmentos ou elementos que puderam ser mantidos do enquadre, o que é possível - às vezes - somente com a internação.

Sem dúvida, também não quero enfocar aqui o problema da "ruptura" ou dos "ataques" ao enquadre. Quero estudar aquilo que envolve a manutenção idealmente normal de um enquadre.

Dito desta forma, pareceria que tal estudo não é possível porque esta análise ideal não existe. Eu estou de acordo com esta opinião. O certo é que, às vezes de forma permanente, outras vezes esporádica, o enquadre se converte de uma Gestalt de fundo em uma de figura, quer dizer em processo. Porém, mesmo nestes casos, não é igual ao processo, em si mesmo, da situação analítica, porque nas "faltas" ao enquadre a nossa interpretação sempre tende amantê-lo ou a restabelece-lo, diferença importante com a nossa atitude na análise do processo em si. Neste sentido, estou interessado em exami-

* Apresentado no Segundo Congresso Psicanalítico Argentino. Buenos Aires, Junho de 1966.** Bleger, José. Psicanálises del encuadre psicoanalítico. In: Bleger, José. Simbiosis y ambigüedad: estúdio psicoanalítico. Buenos Aires:Paidós, 1967. p.237-50.(Biblioteca de Psiquiatria, Psicopatologia y Psicosomática,42). Lo: B615S, 1967,1967.

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nar o significado psicanalítico do enquadre, quando este não é problema, na análise "ideal" (ou nos momentos ou períodos nos quais ela ocorre); quer dizer, a psicanálise do enquadre quando este se mantém e não quando se rompe, quando continua sendo um conjunto de invariáveis e não quando se transforma em variáveis. O problema que quero examinar é o daquelas análises nas quais o enquadre não é um problema. E justamente para mostrar que é problema. Isto irá, necessariamente, ocupar boa parte do tempo que disponho por que não se pode analisar um problema que não se defina ou não se conheça.

Uma relação que se prolonga durante anos, com a manutenção de um conjunto de normas e atitudes, não é outra coisa se não a definição mesma de uma instituição. Oenquadre é então uma instituição dentro da qual, ou em cujo seio, acontecem fenômenos que denominamos comportamentos .

O que é evidente para mim é que cada instituição é uma parte da personalidade do indivíduo. E de tal importância que a identidade - total ou parcialmente - é sempre grupai ou institucional, no sentido de que, sempre pelo menos uma parte da identidade se configura com a pertinência a um grupo, a uma instituição, a uma ideologia, a um partido, etc. Fenichel escreveu: "Fora de qualquer dúvida, as estruturas individuais criadas pelas instituições ajudam a conservar estas mesmas instituições". Porém, mais do que essa interação indivíduos-instituições, as instituições funcionam sempre (em graus variáveis) como os limites do esquema corporal e o núcleo fundamental da identidade.

O enquadre se mantém e tende a ser mantido (ativamente pelo psicanalista) como invariável e, enquanto existe como tal, parece inexistente ou não levado em conta, tanto como as instituições ou as relações das quais somente se toma consciência, justamente, quando elas faltam, ou se obstruem ou deixam de existir. (Não sei quem disse que o amor e a criança, só se sabem que existem quando choram). Porém, qual é o significado do enquadre quando se mantém (quando "não chora")? E, de qualquer forma, o problema da simbiose, que é "muda" e somente se manifesta quando se rompe ou ameaça romper-se. É também o que ocorre com o esquema corporal, cujo estudo começou pela patologia, que foi o que primeiro mostrou a sua existência. Assim como falamos do "membro fantasma", temos que reconhecer que as instituições e o enquadre sempre se constituem em um "mundo fantasma": o da organização mais primitiva e indiferenciada. Aquilo que sempre está, só se percebe quando falta. Poderíamos aplicar ao enquadre a denominação daquilo que Wallon chamou de "ultracoisas", isto é, tudo aquilo que na experiência aparece como vago, indeterminado, sem concepção ou sem conhecimento. Não são somente as relações estáveis com os objetos ou as instituições que organizam o Eu, mas também as frustrações e gratificações posteriores com os mesmos. Não há percepção daquilo que sempre está. A percepção do objeto que falta e daquele que gratifica é posterior - o mais primitivo é a percepção de uma "incompletude". Aquilo que existe para a percepção do sujeito é aquilo cuja experiência mostrou-lhe que pode faltar. Por outro lado, as relações estáveis ou imobilizadas (as não-ausências) são as que organizam e mantém o não-Eu e formam a base para estruturar o Eu em função das experiências frustrantes e gratificadoras. Aquilo que o não-Eu não percebe, não significa que não exista psicologicamente para a organização da personalidade. O conhecimento de algo só se dá na ausência deste algo, até que se organize como objeto interno. Porém, aquilo que não percebemos também existe. E este

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Psicanálise do enquadre psicanalítico José Bleger 105

"mundo fantasma" existe depositado em um enquadre, mesmo que este não tenha se rompido ou precisamente por isso.

Quero fazer outra pequena digressão que espero dê mais elementos para o estudo que me propus. Até muito pouco tempo atrás nos movimentávamos muito confortáveis na ciência, na linguagem, na lógica etc sem nos dar conta de que todos esses fenômenos ou comportamentos (todos eles me interessam enquanto comportamento, isto é, enquanto fenômenos humanos) se dão em um contexto de pressupostos que ignorávamos ou que dávamos por inexistentes ou invariáveis; porém agora sabemos que a comunicação inclui uma metacomunicação, a ciência uma metaciência, a teoria uma metateoria, a linguagem uma metalinguagem, a lógica uma metalógica, etc Variando a meta, varia o conteúdo de maneira radical5. Assim o enquadre, sendo constante, torna-se decisivo para o processo da conduta. Em outros termos, o enquadre é uma metaconduta e dele dependem os fenômenos que vamos reconhecer como conduta. É o implícito do qual, porém, depende o explicito.

A metaconduta funciona como aquilo que M. e W Baranger chamam de "o baluarte": o aspecto que o analisando procura não colocar em jogo, eludindo a regra fundamental. Porém, na metaconduta, o que me interessa analisar se cumpre através da regra fundamental, e o que me importa é justamente o exame deste cumprimento. Concordamos com esses autores em apontar a relação analítica como uma relação sim-biótica, porém nos casos em que se cumpre com o enquadre, o problema reside no fato de que o próprio enquadre é o depositário da simbiose e que esta não está no próprio processo analítico. A simbiose com a mãe ( a imobilização do não-Eu) permite à criança o desenvolvimento de seu Eu; o enquadre tem a mesma função: serve de suporte, de moldura, porém podemos vê-lo - por enquanto - quando muda ou se rompe. O "baluarte" mais persistente, tenaz e inaparente é, portanto, aquele que se deposita no enquadre.

Desejo agora ilustrar essa descrição que fiz do enquadre com o breve exemplo de um paciente de caráter fóbico (A.A.) com intensa dependência encoberta por uma independência reativa, que durante muito tempo vacilava, desejava e temia comprar um apartamento, fato que nunca se realizava. Num certo momento ficou sabendo, acidentalmente, que eu tinha comprado um apartamento que ainda estava em construção e, a partir daí, começou um período de ansiedade e de diferentes atuações.

Num determinado momento falou sobre o que haviam lhe contado e eu interpretei sua atitude: a forma com a qual me disse isso incluía a reprovação pelo fato de eu não tê-lo avisado da minha compra, sabendo que este era um problema fundamental para ele. Ele tentou ignorar ou esquecer o episódio apresentando fortes resistências toda vez que eu (certamente com insistência) relacionava este fato com suas atuações, até que começaram a aparecer fortes sentimentos de ódio, inveja e frustração, com violentos ataques verbais, que foram seguidos por um clima de afastamento e desesperança. Com o prosseguimento da análise dessas situações, foi gradualmente aparecendo o "fundo" da sua experiência infantil, que eu pude reconstruir através do relato de diferentes lembranças: na sua casa seus pais nunca haviam feito nada, absolutamente nada, sem informá-lo e consultá-lo; ele conhecia todos os detalhes do curso da vida familiar.

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Depois do aparecimento e de reiteradas interpretações dessas lembranças (vencendo fortes resistências) começou a acusação de que tudo tinha se quebrado entre nós, que ele já não podia mais confiar em mim, e emergiram freqüentes fantasias de suicídio, desorientação, confusão e sintomas hipocondríacos.6

Para o paciente quebrou-se "algo" que era assim e que deveria ser como sempre foi e que não concebia que pudesse ser de outra forma. Exigia a repetição da vivência de que para ele foi "sempre assim", exigência ou condição que pôde manter ao longo da sua vida, por meio de uma restrição ou limitação de seu Eu na relação social, e através da manutenção constante do manejo das relações, com a exigência de uma forte dependência de seus objetos.

Quero assinalar, neste exemplo, como a "não repetição" em virtude do cumprimento do enquadre revelou uma parte muito importante da sua personalidade: o aspecto mais fixo e estável de sua personalidade, seu "mundo fantasma", a transferência delirante (Little) ou a parte psicótica da sua personalidade; um não-Eu que forma a moldura de seu Eu e de sua identidade. Somente com o "não cumprimento" do seu "mundo fantasma" pude ver que "meu" enquadre não era o mesmo que o dele, que mesmo antes do "não cumprimento" o seu "mundo fantasma" já estava presente. Porém quero frisar que a manutenção do enquadre foi aquilo que permitiu a análise da parte psicótica da personalidade. O que eu quero colocar não é o fato de quantos destes fenômenos aparecem pela frustração ou pelo choque com a realidade (o enquadre) mas sim - o que é mais importante mesmo — quanto disso não aparece e possivelmente nunca pode ser analisado. Não sei responder a essa pergunta. O que me interessa agora é colocar o problema. É semelhante ao que ocorre com o traço de caráter que para ser analisado deve ser transformado em sintoma, quer dizer, deixar de ser egosintônico. E aquilo que fazemos com a análise do caráter, não deveria ser feito também com o enquadre? O problema é diferente e mesmo mais difícil, já que o enquadre não somente não é egosintônico, mas é também a moldura dentro da qual estão construídos o Eu e a identidade do sujeito, e se acha fortemente clivado do processo analítico do Eu que configura a transferência neurótica. Mesmo que se suponha, no caso de A.A., que de uma ou outra forma, este material teria igualmente surgido, já que estava presente, o problema continua existindo, enquanto significado psicanalítico do enquadre.

Sintetizando, poderíamos dizer que o enquadre (assim definido como problema) constitui a mais perfeita compulsão à repetição7 e que na realidade existem dois enquadres: um, proposto e mantido pelo psicanalista, aceito conscientemente pelo paciente, e outro (o do "mundo fantasma"), aquele no qual o paciente projeta8. E este último é uma compulsão à repetição perfeita, já que é a mais completa, a menos conhecida e a mais inadvertida9. Sempre me pareceu espantoso e apaixonante, na análise de psicóticos, o fato de coexistir uma total negação do analista e uma suscetibilidade exagerada à infração de qualquer detalhe do "costumeiro" (do enquadre), e como o paciente pode desorganizar-se ou tornar-se violento, por exemplo, por alguns minutos de diferença no início ou no fim da sessão. Agora entendo isso melhor: desorganiza-se o "meta-Eu" que em grande parte é tudo aquilo que ele tem10.Na transferência psicótica não se transfere afeto mas "uma situação total, a totalidade de um desenvolvimento"

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(Lagache), e que seria melhor dizer a totalidade de um "não desenvolvimento". Para Melanie Klein, a transferência repete as primitivas relações de objeto, porém creio que o mais primitivo ainda (a indiferenciação) se repete no enquadre11.

E. Jaques afirma que a instituição é usada inconscientemente como defesa frente às ansiedades psicóticas, porém eu creio que ela é a depositária da parte psicótica da personalidade, isto é, a parte indiferenciada e não resolvida dos primitivos vínculos simbióticos. As ansiedades psicóticas são jogadas dentro da instituição, e, no caso da situação psicanalítica, dentro daquilo que caracterizamos como o processo (aquilo que "se move" em oposição ao que não: o enquadre)12.

O desenvolvimento do Eu (na análise, na família, em qualquer instituição) depende da imobilização do não-Eu. Esta denominação de "não-Eu" nos leva a pensar nele como algo inexistente, mas que tem uma existência tão real que é o "meta-Eu" do qual depende a possibilidade de formação e manutenção do Eu: a sua própria existência. Então poderíamos dizer que a identidade depende da forma como é mantido ou manejado o não-Eu. Se a meta conduta varia, modifica-se todo o Eu (em graus possivelmente equivalentes entre seu quantum e sua qualidade)13. O não eu é o fundo ou a moldura do Eu organizado, "fundo" e "figura" de uma só Gestalt. Entre Eu e não-Eu (ou entre a parte neurótica e psicótica da personalidade) não se instala uma dissociação mas uma clivagem, assim como eu caracterizei este termo em um trabalho anterior.

Assim acontecia com N.N., uma paciente muito rígida e limitada que sempre viveu com seus pais em hotéis em diferentes países. A única coisa que levava sempre consigo era um pequeno quadro. A relação ruim com seus pais e as contínuas mudanças, faziam deste quadro o seu "ambiente", o seu não-Eu: a sua metaconduta, aquilo que dava a "não mudança" para sua identidade.

Um enquadre "é" a parte mais primitiva da personalidade, é a fusão Eu - corpo - mundo, de cuja imobilidade depende a formação, existência e discriminação (do Eu, do objeto, do esquema corporal, do corpo, da mente, etc). Os pacientes com acting in ou os psicóticos trazem também "o seu próprio enquadre": o que foi instituído de sua relação simbiótica primitiva, mas também a trazem todos os pacientes.

E assim que agora podemos reconhecer melhor a situação catastrófica que, em graus variáveis, sempre pressupõe a "ruptura" do enquadre por parte do analista (-férias, não cumprimento de horário, etc), porque com essas rupturas (as rupturas que fazem parte do enquadre) se produz uma "rachadura" através da qual se introduz a realidade que acaba sendo catastrófica para o paciente: "seu" enquadre, seu "mundo fantasma" fica sem depositário e torna-se evidente que "seu" enquadre não é o enquadre psicanalítico assim como ocorreu com A. A. Porém agora quero dar um exemplo de uma "rachadura" que o paciente tolerou até que teve necessidade de recuperar sua onipotência, "seu" enquadre.

Z., único filho de uma família que durante sua infância foi muito rica, socialmente muito destacada e muito unida; viveu em uma enorme e luxuosa mansão com seus pais e avós entre os quais ele era o centro de cuidados e mimos.

Por razões políticas, eles tiveram muitos bens expropriados, o que produziu uma grande decadência econômica. Toda a família se esforçou, durante certo tempo, para viver as aparências de gente rica, dissimulando o desastre e a pobreza, porém seus pais

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acabaram mudando para um apartamento pequeno e aceitando um emprego (os seus avós haviam morrido nesse ínterim). Quando a família enfrentou e aceitou a mudança, ele continuou vivendo "as aparências": afastou-se de seus pais para viver da sua profissão de arquiteto, porém dissimulando sua grande insegurança e instabilidade econômica; tanto que todos acreditavam que era rico, e ele viveu e fomentou sua fantasia de que "não tinha acontecido nada", com a qual conservou o mundo seguro e idealizado de sua infância (seu "mundo fantasma"). Era também a impressão que me causava no seu tratamento: uma "pessoa bem de vida", de uma classe social e econômica superior que, sem ostentação do "novo rico", conservava um ar de segurança, dignidade e superioridade, de estar fora e acima das "misérias" e "pequenezas" da vida, entre as quais se incluía o dinheiro.

O enquadre se manteve bem, e o paciente pagava regular e pontualmente. Quando foi sendo analisada mais profundamente sua atitude e sua dualidade (a clivagem de sua personalidade), o seu mover-se em dois mundos mantendo uma ficção, começou a me dever dinheiro e a ser impontual assim como a falar (com grande dificuldade) da sua falta de dinheiro, que fazia com que se sentisse muito "humilhado".

A ruptura do enquadre significou aqui um certo desmoronamento da sua organização onipotente, o surgir de uma "brecha" que se transformou no caminho para penetrar "contra" sua onipotência (o mundo estável e seguro da sua infância).

Neste caso, cumprir o enquadre foi onde ele depositou seu mundo onipotente mágico, sua dependência infantil, sua transferência psicótica: sua fantasia mais profunda era a de que a análise lhe consolidaria esta onipotência e lhe devolveria totalmente "seu" "mundo fantasma". A ruptura do enquadre significou a ruptura de uma clivagem e o aparecimento de uma "brecha" de irrupção da realidade.

"Viver" no passado não era sua fantasia inconsciente, era diretamente a organização básica de sua existência. Transcrevo parte de uma sessão de um momento no qual, bruscamente, seus pais sofreram um acidente e estavam muito graves. Na sessão anterior havia me pago parte de sua dívida e começa esta sessão dizendo que me trazia tantos pesos e que de qualquer forma ainda faltavam outros tantos e que esta dívida ele a sentia "como uma brecha, como algo que falta" e logo após uma pausa: "ontem tive relações sexuais com minha mulher e no início eu estava impotente e isto me assustou muito". (É necessário assinalar que este paciente foi impotente no início de seu casamento.)

Interpretei que agora ele estava passando por uma situação difícil por causa do acidente de seus pais, que desejava voltar à segurança que tinha na sua infância, aos pais e avós dentro dele, e que a relação com sua mulher, comigo e com a realidade atual o tornava impotente para isto. Que ele necessitava fechar a brecha pagando-me tudo, para que o dinheiro desaparecesse entre nós dois, para que eu desaparecesse e também tudo aquilo que agora o fazia sofrer.

Respondeu que no dia anterior tinha pensado que necessitava de sua mulher somente para não ficar sozinho, mas que ela era um mero agregado em sua vida.

Interpretei que ele também desejava que eu satisfizesse suas necessidades da realidade para que elas desaparecessem e para poder voltar assim à segurança da sua infância e à sua fantasia de reunião com seus avós, pai e mãe, tal como era na sua infância.

Depois de um silêncio comentou que quando ouviu a palavra fantasia, pareceu-

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Psicanálise do enquadre psicanalítico José Bleger 109

lhe estranho que eu falasse de fantasias e teve medo de ter ficado louco.Interpretei que ele necessitava que eu lhe devolvesse toda segurança da sua infância

que ele tentava reter dentro de si para enfrentar a situação difícil, e que por outro lado ele sentia que eu e a realidade, com suas necessidades e dores, entrávamos por esta brecha que agora o dinheiro deixava, sua dívida, entre nós dois.

O paciente terminou a sessão falando de um travesti; interpretei que ele se sentia travestido: às vezes como filho único e rico, às vezes como pai, às vezes como mãe, às vezes como avô e em cada um deles como pobre e como rico.

Qualquer variação do enquadre põe em crise o não-Eu, "desmente" a fusão, "problematiza" o Eu e obriga à re-introjeção, à re-elaboração do Eu, ou à ativação das defesas para imobilizar ou re-projetar a parte psicótica da personalidade. Este paciente (Z.) pôde admitir a análise de "seu" enquadre até que necessitou recuperá-lo defensivamente. O que é importante frisar é que seu "mundo fantasma" aparece e se problematiza com "faltas" ao enquadre (sua dívida) e que a recuperação de seu "mundo fantasma" se ligou ao fato de "cumprir" com "meu" enquadre, justamente para me ignorar ou anular. O fenômeno da reativação sintomática ao finalizar um tratamento psicanalítico deve-se também à mobilização e regressão do Eu por mobilização do meta-Eu. O fundo da Gestalt se transforma em figura14.

Desta forma, o enquadre pode ser considerado como uma "adição" que, se não é analisada sistematicamente, pode se transformar em uma organização estável, na base da organização da personalidade, e então o sujeito obtém um eu "adaptado" em função de um amoldar-se externo às instituições. É a base - creio — daquilo que Alvarez de Toledo, Grinberg e Langer denominaram o "caráter psicanalítico" e que os existencialistas denominam uma existência "operativa", e que poderíamos reconhecer como um verdadeiro "Eu operativo"15.

Este "Eu operativo" é um "Eu de pertinência": está constituído e é mantido pela inclusão do sujeito numa instituição (que pode ser a relação terapêutica, a Associação Psicanalítica, um grupo de estudo ou qualquer outra instituição): não há um "Eu interiorizado" que dá estabilidade interna ao sujeito. Digamos - de outra forma - que toda sua personalidade é constituída por "personagens", isto é, por papéis, ou - de outra maneira - que toda sua personalidade é uma fachada. Agora estou descrevendo o "caso limite" porém é preciso levar em conta a variação quantitativa porque não há possibilidade que este "Eu operativo" deixe de existir completamente (nem creio que seja necessário).

O "pacto" ou a reação terapêutica negativa constitui a perfeita instalação do não-Eu do paciente no enquadre e seu não reconhecimento e sua aceitação por parte do psicanalista; mais ainda, poderíamos dizer que a reação terapêutica negativa é uma verdadeira perversão da relação transferência-contratransferência. A "aliança terapêutica" é -ao contrário - a aliança com a parte mais sadia do paciente (Greenacre); e isto vale para o processo, mas não para o enquadre. Neste último, a aliança é com a parte psicótica (ou simbiótica) da personalidade do paciente (com a correspondente do analista? De fato não sei)16.

Winnicott diz que "para o neurótico, o diva, o calor e o conforto podem ser sim-bolicamente o amor da mãe; para o psicótico seria mais exato dizer que estas coisas são

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a expressão física do amor do analista. O diva é o colo do analista ou o útero, e o calor do analista é o vivo calor do corpo do analista". No que se refere ao enquadre, esta sempre é a parte regressiva, psicótica, do paciente (para qualquer tipo de paciente).

• O enquadre é o que está presente, igual aos pais para as crianças. Sem eles, não há desenvolvimento do Eu, porém sua manutenção além do necessário, ou a falta de modificação da relação (com o enquadre ou com os pais), pode significar um fator negativo, de paralisação do desenvolvimento17. Em qualquer análise, mesmo com um enquadre idealmente mantido, este enquadre deve se transformar, de qualquer forma, em objeto da análise. O que não significa que na prática isto não se faça, mas eu desejo frisar a interpretação ou o significado daquilo que se faz ou se deixa de fazer, e sua transcendência. A dessimbiotização da relação analista-paciente só se alcança com a análise sistemática do enquadre no momento preciso. E nesse ponto nos encontraremos diante das resistências mais tenazes, porque não é algo reprimido e sim clivado e nunca discriminado; a sua análise comove o Eu e a identidade mais madura alcançada pelo paciente. Não se interpreta o reprimido; cria-se o processo secundário. Não se interpreta em cima de lacunas mnésicas e sim em cima do que nunca fez parte da memória. Também não é uma identificação projetiva; é a manifestação do sincretismo ou a "participação" do paciente.

O enquadre forma parte do esquema corporal do paciente; é o esquema corporal na parte em que ele mesmo não se estruturou e discriminou. Isto quer dizer que é algo diferente do esquema corporal propriamente dito: é a indiferenciação corpo-espaço e corpo-ambiente. Por isso, com freqüência, a interpretação de gestos ou atitudes corporais resulta muito persecutória, por que não "tocamos" o Eu do paciente mas seu "meta-Eu".

Quero agora trazer outro exemplo que também apresenta a particularidade de que justamente não posso descrever a "mudez" do enquadre até o momento em que este se revela, quando deixa de ser mudo. Já o comparei com o esquema corporal, cujo estudo começou precisamente pelas suas perturbações. Mas, neste caso, o próprio enquadre do psicanalista estava viciado.

Em uma supervisão, um colega traz a análise de um paciente ao qual há vários anos interpreta a neurose transferencial, apesar do que se mantém uma cronicização e uma ineficácia terapêutica, razões - essas últimas - pelas quais decide trazê-lo em supervisão. O paciente "respeitava" o enquadre e nesse sentido "não havia problema", o paciente associava bem, não fazia actings e o analista interpretava bem (a parte que trabalhava) . Mas paciente e terapeuta se tratavam por você porque assim havia proposto o paciente no começo da sua análise (e isto foi aceito pelo terapeuta). Levou muitos meses a análise da contratransferência do terapeuta até que este se "animou" a retificar o tratamento por você interpretando ao paciente aquilo que ocorria e aquilo que se escondia nesse tratamento. O abandono do tratamento por você, em virtude da sua análise sistemática, revelou a relação narcisista, o controle onipotente e a anulação da pessoa e do papel do terapeuta, imobilizados em tal tratamento.

No tratamento por você, o paciente impôs seu "próprio enquadre" sobreposto ao do analista, mas, na realidade, anulando este último. O colega se viu confrontado com um trabalho que resultou num esforço muito grande, na sessão com o seu paciente (e na sua contratransferência), o qual levou a uma intensa mudança do processo ana-

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lítico e à ruptura do Eu do paciente que se mantinha em condições precárias e com um "espectro" muito limitado de interesses, com intensas e extensas inibições. A mudança do tratamento de você através da análise mostrou que o caso não era o de um caráter fóbico obsessivo e sim de uma esquizofrenia simples com uma "fachada" caracteriológica fóbico-obsessiva.

Eu não creio que teria sido útil modificar o tratamento por você desde o inicio, já que o próprio candidato não estava em condições técnicas de manejar um paciente com uma forte organização narcísica.

O analista não deve aceitar tratar o paciente por você, ainda que possa aceitar o tratamento por você por parte do paciente e analisá-lo no momento oportuno. O analista deve aceitar o enquadre que o paciente traz (que é o "meta-Eu" do mesmo), porque neste se acha resumida a simbiose primitiva não resolvida, mas temos que afirmar, ao mesmo tempo, que aceitar o meta-Eu (o enquadre) do paciente não significa abandonar o próprio em função do qual é possível analisar o processo e o próprio enquadre transformado em processo. Toda interpretação do enquadre (não alterado) mobiliza a parte psicótica da personalidade. Constitui aquilo que chamei de uma interpretação clivada. Mas a relação analista-paciente fora do enquadre rigoroso (como neste exemplo), tanto quanto as relações "extra analíticas", possibilita o encobrimento da transferência psicótica e permite o "desenvolvimento" do "caráter psicanalítico".

Outra paciente (D.C.) manteve sempre o enquadre, porém, com o avançar de uma gravidez, deixou de me cumprimentar ao entrar e sair (nunca me estendeu a mão, desde o início do tratamento). A inclusão na interpretação do deixar de me cumprimentar criou enorme resistência, porém nela se via a mobilização da relação simbiótica com sua mãe, com características muito persecutórias, que por sua vez foi atualizada pela gravidez.

Subsiste o não me dar a mão ao entrar e ao sair e nisto reside todavia grande parte de "seu enquadre" diferente do meu. Creio que a situação é mais complexa, por que o não me dar a mão não é um detalhe que falta para completar o enquadre; é um indício de que ela tem outro enquadre, outra Gestalt que não é a minha (a do tratamento psicanalítico), na qual mantém clivada sua relação idealizada com a mãe.

Quanto mais tratamos com a parte psicótica da personalidade mais devemos levar em conta que um detalhe não é um detalhe, mas o indício de uma Gestalt, isto é, de toda uma organização ou estrutura particular.

Em síntese, podemos dizer que o enquadre do paciente é sua fusão mais primitiva com o corpo da mãe e que o enquadre do psicanalista deve servir para restabelecer a simbiose original, mas justamente com o objetivo de modificá-la. São problemas técnicos e teóricos, tanto a ruptura do enquadre quanto a sua manutenção ideal ou normal, mas o que modifica fundamentalmente toda a possibilidade de um tratamento profundo é a ruptura que o psicanalista introduz ou admite no enquadre. O enquadre só pode ser analisado dentro do enquadre, ou, em outros termos, a dependência e a organização psíquica mais primitiva do paciente só podem ser analisadas dentro do enquadre do analista, que não deve ser nem ambíguo, nem cambiante, nem alterado.

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Notas

1. Aqui poderíamos comparar esta terminologia com aquela utilizada por D. Liberman e E. Rodrigué. 2. O enquadre corresponde mais a uma estratégia que à técnica. Uma parte do enquadre inclui "o contrato analítico" que "é um acordo entre duas pessoas, no qual existem dois elementos formais de intercâmbio recíproco: tempo e dinheiro" (Liberman e col.) 3. O problema, tal qual o coloco, é semelhante ao que os físicos chamam uma experiência ideal, quer dizer, um problema que não acontece total ou parcialmente da forma como se define ou se propõe, mas que é de enorme utilidade (teórica e prática). Possivelmente refira-se à esta análise o problema ideal ao qual, certa vez, E. Rodrigué se referiu como o histórico do paciente que nada escreveu nem nada poderá escrever. 4. Fui levado a esse estudo, justamente, por ter dado um conjunto de seminários sobre psicologia institucional e pela minha experiência nesse campo (sem dúvida, por ora, escassa). 5. Esta variação da meta...ou variação dos pressupostos fixos ou constantes é a origem da geometria não euclidiana e da lógica booleana (Lieber). Em psicoterapia, cada técnica tem seus pressupostos (seu enquadre) e, portanto, seus próprios conteúdos ou processos. 6. Como disse Little para a transferência delirante, apareceram associações, referidas ao seu corpo, de experiências muito primitivas: sentia-se imobilizado e lembrou que, quando criança, era enfaixado de forma a ficar completamente imóvel. O não-Eu do enquadre inclui o corpo e se o enquadre se rompe, os limites do Eu formado pelo não-Eu têm que ser recuperados ao nível do corpo. 7 Esta compulsão à repetição não é somente "uma forma de recordar" (Freud), mas uma maneira de viver ou a condição para viver.8. Wender escreveu no seu trabalho que existem dois pacientes e dois analistas, ao que agora acrescento que existem também dois enquadres. 9. Rodrigué descreve uma "transferência suspendida" e assinala que "a dificuldade nasce do fato que falamos de um fenômeno que, para existir de forma pura, deveria ser mudo por definição. 10. Creio que seja apressado falar sempre de um "ataque" ao enquadre quando este não é cumprido pelo paciente. O analisando traz "o que lhe vem à mente" e não é sempre um "ataque" e sim sua própria organização (ainda que seja desorganizada). 11. A ambigüidade do "como se" da situação analítica, estudada por W e M. Baranger, não cobre "todos os aspectos do campo analítico" como dizem estes autores, mas somente o processo. O enquadre não admite ambigüidade, nem por parte da técnica do psicanalista, nem por parte do paciente. Cada enquadre é, e não admite ambigüidade. Igualmente o fenômeno da participação (Lévy Brühl) ou do sincretismo, que é admitido para a situação analítica, eu creio que vale somente para o enquadre. 12. Reider descreve diferentes tipos de transferência à instituição em lugar do que ao terapeuta. A psicanálise como instituição parece ser um meio de recuperar a onipotência perdida participando do prestígio de uma grande instituição. Creio que o que é importante aqui é considerar a situação psicanalítica como uma instituição em si mesma, especialmente o enquadre. 13. G. Reinoso disse que se o Eu - como assinala Freud - é corporal, o não-Eu também o é. Poderíamos acrescentar algo a mais: que o não-Eu é um Eu diferente, de qualidade distinta, e, em outra contribuição ao Congresso Pan-Americano proponho chamá-lo Eu sincrético. Este significa também que não há um sentido de realidade e uma falta do mesmo; há distintas estruturas do Eu e do sentido de realidade. 14. Deve ser este fato que levou alguns autores (Christoffel) à ruptura do enquadre como técnica (com o abandono do diva e entrevistas frente a frente), critério do qual não compartilho. 15. Espero ocupar-me mais do "Eu operativo", "Eu sincrético", "Eu corporal" e "Eu interiorizado" em uma contribuição ao próximo Congresso Psicanalítico Latinoamericano. 16. Não creio que esta transferência psicótica clivada e que se deposita no enquadre seja conseqüência da repressão, da amnésia infantil. 17. Em 0 contexto da transferência, E. Rodrigué compara o processo analítico com a evolução. Insistiu-se que o Eu na criança se organiza de acordo com a mobilidade do ambiente que cria e satisfaz suas necessidades. O resto do ambiente, que não promove necessidades, não se discrimina e permanece com tal (como fundo) na estrutura da personalidade, e a isso não se deu o devido valor.

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Artigos clássicos

Processo e não-processo no trabalho analítico

Madeleine Baranger, Willy Baranger e Jorge Mom

A "talking cure", denominada por Anna O. e descoberta por Freud, se expandiu e se diversificou ao extremo durante nosso século. Nosso propósito, nas linhas que se seguem, não pretende sintetizar a vasta literatura existente a respeito, mas sim marcar alguns pontos que nos parecem definir o processo analítico. Pensamos que o progresso que pode se realizar em psicanálise tem que surgir do estudo da experiência clínica em suas fronteiras, em seus obstáculos, em seus fracassos. Por ele centramos nossa busca no não-processo analítico, nos lugares onde o processo tropeça ou se detém. Isso nos levou a propor a introdução de alguns termos : "campo", "baluarte", "segunda olhada". Quando o processo tropeça ou se detém, o analista só pode interrogar-se acerca do obstáculo, englobando em uma segunda olhada a si mesmo e ao seu analisando, à Edipo e à Esfinge, em uma visão conjunta : isso é o campo. O obstáculo involucra a transferência do analisando e a contratransferência do analista, e propõe problemas tremendamente confusos. A detenção do processo nos introduz totalmente no que é seu movimento, isto é, na temporalidade que lhe é circunstancial. Se o processo tem que seguir adiante, qual o nosso recurso para consegui-lo? Em última instância, não pode ser senão um recurso de palavra levando a um insight. Isto, a sua vez, nos conduz à descrição desta dialética particular do processo analítico como alternância de momentos de processo e não-processo, como trabalho de superação de obstáculos, trabalho que determina seu fracasso ou seu sucesso.

1.0 campo analítico e o baluarte

Nada que possa ocorrer num tratamento analítico pode ser considerado de forma independente da situação analítica, que funciona como um fundo de relativa permanência em relação a formas que mudam (em termos gestálticos). Este fundo está constituído por um contrato ou um pacto, explícito em vários aspectos, entre analista e analisando.

O pacto analítico tem aspectos formais - bem conhecidos - aspectos funcionais e aspectos estruturais, ou, se quisermos, podemos falar de aspectos fenomênicos e trans-fenomênicos da situação estabelecida pelo pacto.

A hierarquização dos aspectos formais e de sua inter-relação, propõe diversos problemas, e também sabemos que certos aspectos formais incidem sobre a própria funcionalidade: por exemplo, a duração fixa ou variável das sessões condiciona dois tipos muito distintos de processo analítico.

* Baranger, Madeleine; Baranger, Willy; Mom, Jorge. Proceso y no proceso en el trabajo analítico. Rev. Psicoanal., v.39,n.4, p.527-49, 1982.** Associação Psicanalítica Argentina.

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No funcional, cabe realçar que o pacto estabelece uma assimetria de base: um dos pactuantes será o analista, o outro o analisando, sem que nenhuma inversão de funções possa ter lugar.

No estrutural, enfatizaremos a "regra fundamental" como definitória do processo analítico. Nisto, o conceito lacaniano de "sujeito suposto saber" - como implícito na regra fundamental — parece esclarecedor. A regra fundamental localiza o analista não só num plano imaginário como sabendo de antemão quem é na realidade o paciente e como é seu destino, mas coloca-o também como escuta e intérprete comprometido com a verdade de tudo o que o paciente associará ou vivenciará. Sobretudo, abre de par em par as portas da transferência.

Numa tentativa de diferenciar entre os aspectos fenomênicos circunstanciais da situação analítica e sua estrutura transfenomênica, sentimos em oportunidade anterior a necessidade de incluir em sua descrição a noção de "campo", expressa em várias descrições de Freud ("campo de batalha", "tabuleiro de xadrez").

A estrutura instituída pelo pacto está destinada a permitir um determinado trabalho tendente a um processo: a experiência comprova que, mais além das resistências cujo vencimento constitui precisamente o trabalho analítico, se produzem inevitavelmente situações de obstrução do processo: nessas circunstâncias, é como se nos impusessem as idéias de campo.

Em outras palavras: dentro da estrutura funcional onde tem lugar o processo, se produzem detenções que envolvera em forma distinta a ambos pactuantes e que, se as examinar-mos, evidenciam que foram criadas outras estruturas adventícias que interferem no fun-cionamento da estrutura de base.

A experiência da supervisão com muitos colegas (de principiantes a veteranos) nos mostra que, nestes momentos, se perdia a assimetria básica do pacto analítico e que predominava outra estruturação, muito mais simétrica, na qual o "vínculo" inconsciente do analista com o analisando se convertia em cumplicidade involuntária contra o processo analítico.

Isto nos deu a idéia de transportar a experiência da supervisão aos tratamentos que cada um realiza, quando obstruídos. De fato, todos o fazemos espontaneamente toda vez que se apresenta um obstáculo mais além das resistências acostumadas do analisando. Nestes momentos, damos uma "segunda olhada" que faz surgir ante nossos olhos a situação analítica como campo que nos envolve a nós mesmos, na medida que nos desconhecemos.

Cada um de nós dispõe, caso haja formulado ou não, de uma espécie de dicionário contra-transferencial próprio (vivências corporais, fantasias de movimentos, aparição de determinadas imagens, etc.) que marca os movimentos em que um abandona a atitude de "atenção flutuante" e passa à segunda olhada, perguntando-se sobre o que está ocorrendo na situação analítica como campo.

Estes indicadores contratransferenciais que provocam a segunda olhada, nos levam a dar-nos conta da existência, dentro do campo, de uma estrutura imobilizada que entorpece ou paralisa o processo. Chamamos essa estrutura de "baluarte".

Ela se caracteriza por não aparecer nunca diretamente na consciência de ambos participantes, manifestando-se tão somente por efeitos indiretos: provém de uma cum-plicidade entre ambos protagonistas na inconsciencia e no silêncio para proteger um

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engate que não deve ser desvelado. Isso desemboca numa cristalização parcial do campo, numa neoformação constituída ao redor de uma montagem fantasmática dividida que implica zonas importantes da história pessoal de ambos participantes, e que atribui a cada um, um rol imaginário estereotipado.

Às vezes o baluarte fica como um corpo estranho estático, enquanto o processo segue aparentemente seu curso. Em outras situações, invade completamente o campo e restando toda funcionalidade ao processo, transforma o campo, em sua totalidade, num campo patológico.

Incluiremos alguns breves exemplos para ilustrar o conceito de baluarte:Um paciente perverso manifesto. Se comporta como "um bom paciente", cumpre com

os aspectos formais do pacto, não apresenta resistências manifestas, não progride. As sessões em certo período se apresentam como um agregado de toda a "Psychopathia Sexualis" de Krafft-Ebing. O analista "nunca viu ninguém com tantas perversões juntas". O baluarte se dá aqui entre um analisando exibicionista e um analista fascinado-horrorizado, "voyeur" obrigado complacente do desabrochar perverso.

Um analisando, veterano em uma quantidade de tratamentos analíticos. Aparentemente, cada sessão proporciona o fruto de alguma "descoberta": em realidade, não acontece nada. O analista está embelezado pela sutileza do analisando ao descrever seus estados internos, o que regozija seu próprio talmudismo. Até que se dá conta de que, enquanto estão ambos brincando com suas investigações, o analisando está colocando, cada mês, o total de seus honorários a prazo fixo (especulando com o atraso no pagamento). A análise deste baluarte revela uma montagem fantasmática compartida: uma velha vingança solapada do analisando contra seu pai avarento, e a compulsão culposa do analista que se coloca no lugar do pai enganado.

Exemplo de um baluarte que invadiu o campo. Um paciente psicopata grave. O analista está aterrorizado, temendo a agressão física homicida do analisando, sem poder interromper o tratamento nem continuá-lo. A fantasia nodular do baluarte é a do paciente como torturador num campo de concentração, e a do analista como vítima torturada e impotente. A formulação consciente desta manipulação no analista provoca a desaparição do terror. Ambas histórias individuais convergem na criação deste campo patológico.

Estes exemplos poderiam se multiplicar infinitamente. Mostram, não somente a interação entre a transferência do analisando e a contratransferência do analista, mas também, além disso, a criação de um fenômeno de campo que não poderia produzir-se senão entre este analista e este analisando. Se trata de algo que poderíamos expressar metaforicamente como um "precipitado". Mas deve-se entender previamente sobre a transferência e a contratransferência, e sobre sua relação com a identificação projetiva.

2. Uma selva de problemas: transferência-contratransferência-identificação projetiva

Como é natural, a descoberta da transferência por Freud levou-o a uma série de aprofundamentos e ampliações do conceito que culminou numa representação quase "pan-transferencialista" do processo analítico, como substituição da neurose inicial e

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natural do paciente por uma neurose artificial na transferência que se resolveria neste lugar.Quanto à contratransferência, sabe-se que Freud não lhe dedicou, nem de longe, uma

atenção tão sustentada como à transferência. Inclusive atualmente, muitos autores analíticos consideram a contratransferência como um fenômeno desnecessário, mas bem perturbador, resto indevido da neurose do analista não suficientemente "curada".

Com o trabalho pioneiro de Paula Heimann e de Enrique Racker, quase contem-porâneo do primeiro, a contratransferência apareceu não somente como um fenômeno universal tão constante como a transferência, mas também como um instrumento imprescindível do trabalho analítico.

Com a descoberta por Melanie Klein da identificação projetiva, a teoria da trans-ferência se encontra profundamente modificada. Também se modifica a teoria da con-tratransferência, mesmo que essa última conseqüência não tenha sido buscada pela própria Melanie Klein.

A tendência de M. Klein de ampliar ao extremo a extensão do conceito de iden-tificação projetiva, com o qual a transferência chega a comparar-se no final à uma iden-tificação projetiva continuamente em ação, leva-a a definir o movimento da sessão analítica como uma sucessão de identificações projetiva e introjetivas facilitadas pela atividade interpretativa do analista.

Era grande a tentação de querer chegar a uma teoria unificada da transferência, da contratransferência e da identificação projetiva. Bastaria admitir que o campo criado pela situação analítica é constituído como um campo transferencial-contratransferencial formado sobre a base de identificações projetivas cruzadas e recíprocas do analista e do analisando. Assim, a funcionalidade assimétrica deste campo apontaria em cada momento a desfazer pela interpretação as estruturações simbióticas originadas nas identificações projetivas. De fato, nos demos conta de que uma definição semelhante só poderia aplicar-se, e nem sequer com muita exatidão, a estados extremamente patológicos do campo: um campo caracterizado por uma simbiose insuperável entre ambos participantes, ou pelo parasitismo aniquilante do analista pelo analisando. A simplificação e unificação da teoria desembocava, não numa maior coerência, mas num achata-mento. Atualmente, pelo contrário, nos parece imprescindível diferenciar os fenômenos, já que o tratamento correto que podemos dar-lhes na técnica, depende desta diferenciação.

Por ora, não podemos nos contentar em definir a transferência como o conjunto das vivências e pensamentos do analisando em relação com seu analista, nem a con-tratransferência como o que pensa e sente o analista com respeito a seu paciente, porque tal definição apagaria não somente o que é estruturalmente determinado pelo pacto analítico, senão, além dessa estrutura de base, apagaria também categorias transferenciais ou contratransferenciais que nos indicam as prioridades e modalidades do trato interpretativo.

Por exemplo, certas matizes das manifestações transferenciais de um analisando, em determinado momento, nos indicam um rodeio quase obrigado pela história deste: "Eu sonhei que tinha quatro anos e você era meu pai..." etc, e outras manifestações podem ir por outro curso.

Trata-se aqui de um dos muitos casos em que a coerência teórica funciona contra uma prática coerente.

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Dentro do conjunto de fenômenos que poderiam ser chamados transferenciais na acepção mais ampla da palavra, teremos que diferenciar uma série de categorias básicas:

Tudo o que no analisando responde à posição estrutural do analista e à sua função que não tem a ver essencialmente com projeções do analisando e pode, às vezes ser confundido, por engano, com um processo de idealização de sua parte.

As transferências momentâneas e variantes que correspondem às estruturações sucessivas do campo e não exigem forçosamente interpretação, salvo se a transferência se converte em resistência.

A transferência repetitiva e estruturada, basicamente inconsciente, à qual Freud se referia com o conceito de "neurose artificial" e que constitui sempre um objetivo privilegiado da aclaração interpretativa. Dito de outro modo: a forma específica em que o analisando situa o analista na estrutura de seu complexo de Édipo, ou em que projeta sobre ele as figuras de seus objetos primários de amor, de ódio, de identificação.

As transferências por identificação projetiva (usando este termo de M. Klein no sentido específico que dado por ela quando descobriu esse mecanismo). Este tipo de transferência se distingue dos demais pelas manifestações contratransferenciais muito

definidas que o acompanham, e intervém de forma determinante na constituição da patologia do campo. Exige a interpretação.

As categorias que usamos habitualmente para diferenciar as formas de transferência (transferência positiva - transferência erótica - transferência negativa) são na verdade descritivas e fundamentam-se nos matizes afetivos do amor e do ódio (o amor sem um fim diretamente sexual, que é necessário para o pacto; o amor diretamente erótico encobrindo o ódio, na transferência erótica; o ódio em suas mil formas de transferência negativa). Notar-se-á que a categorização que propomos fundamenta-se não sobre o fenomênico e sim sobre as estruturas envolvidas, retomando a indistinção de Lacan entre transferência simbólica e transferência imaginária, e ao mesmo tempo a transferência repetitiva de Freud e a transferência produto da identificação projetiva de M. Klein. Esta última diferenciação apela a dois esquemas referenciais: o primeiro, de Freud, implica necessariamente à história do sujeito, enquanto o de M. Klein não a situa em primeiro plano, porém não a nega. Não pensamos, entretanto, que se trate de dois conceitos alternativos que expressem o mesmo objeto, mas sim de formas e estruturas distintas da transferência. A simplificação aparente abordada por M. Klein em sua concepção da transferência equiparada à projeção-introjeção ou à identificação projetiva e introjetiva tem por resultado a idéia de um paralelismo entre a transferência positiva e negativa, com uma urgência maior de interpretar (o que para M. Klein equivale a dissolver) as manifestações da transferência negativa na medida em que expressa os núcleos patogênicos. Percebe-se imediatamente a reviravolta de M. Klein a respeito de Freud: para este, o amor de transferência como condição do trabalho analítico, implica determinar um claro privilégio à transferência positiva (não "erótica") sobre a transferência negativa, quer dizer, um não-paralelismo entre as duas formas, implicando a idéia de que não funcionam da mesma maneira e contrapondo-se uma à outra, mas sim de maneira distinta: não se trata de cara e coroa de uma mesma moeda, mas sim de moedas de distinto valor.

Quanto à contra-transferência, os programas nos são apresentados de maneira distinta, mesmo que se faça mais necessária, entretanto, a discriminação. Temos que

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adotar como idéia reitora que a contra-transferência não é o inverso da transferência, não somente porque Freud estudou muito a primeira e pouco a segunda, mas sim por razões estruturais.

Se tomamos como eixo o lugar de onde o analista fala como tal — para instituir e manter o enquadre, para interpretar — quer dizer, em termos lacanianos, o registro simbólico, e este outro lugar (afastando-nos desta vez de Lacan) onde o analista está com sua atenção flutuante e a porta aberta a seu inconsciente com aparelho de ressonância, sentamos um princípio de assimetria que nos parece constitutivo da situação analítica. A contra-transferência aparece aqui como distinta da transferência não somente por sua intensidade menor, por seu caráter mais instrumental, mas sim por responder a uma posição estrutural distinta.

Por função, e desde o início, o analista está comprometido com a verdade e abstinência de toda outra coisa atuada com o analisando. Não se trata no processo analítico de nenhuma operação formalizável mediante um sistema de computação, mas sim de uma situação onde o analista está comprometido em carne, inconsciente e osso. Isto intrinsecamente, e não pela mera contingência de que o analista escuta e reage: implica que vai-se tratar de uma contra-transferência coibida em sua manifestação e condenada a um desabrochar interno nele. Esta posição estrutural do analista define certos limites entre os quais a atenção "flutua" sem fundir-se, e o trabalho do analista se realiza com a primeira olhada, sem que o campo apareça como tal. Seria errôneo a nossos olhos definir esta contra-transferência estrutural em termos de identificação projetiva porque isto apagaria a diferença entre aspectos muito contrastantes e de conseqüências opostas da contra-transferência.

Chegamos nesta via de discriminação a isolar várias formas de contra-transferência:O que provêm da própria estrutura da situação analítica e da posição e da função do

analista no processo.As transferências do analista sobre o paciente que, se não se estereotipam, fazem

normalmente parte do processo (sei que esta analisanda não é minha filha e que devo estar atento à minha propensão de pensar que seja).

As identificações projetivas do analista em relação ao analisando e suas reações às identificações projetivas deste. Estes fenômenos são os que provocam as estruturações patológicas do campo, exigem uma segunda olhada para ele, e um tratamento interpretativo prioritário. Também podem produzir os fenômenos freqüentes que costumamos denominar "microdelírios contra-transferenciais".

Na selva de fenômenos complexos, às vezes mistos e confusos, que constituem a transferência e a contra-transferência, certas idéias nos permitem traçar como avenidas que podem nos orientar. A primeira consiste em opor os aspectos constitutivos e os aspectos constituídos da transferência e da contra-transferência. Esta oposição que marca Lacan quando se refere ao "sujeito suposto saber", não é estranha ao pensamento analítico habitual, pelo menos em alguns de seus aspectos. Está sustentando todas as descrições que Freud nos deixou sobre a técnica que ele mesmo inventou, está implícita em todos os trabalhos que recalcam a oposição entre enquadre e processo, é a base da própria idéia de uma interpretação analítica (se a interpretação não viesse de um lugar diferente do lugar do material associativo, de onde tiraria seu poder?); é o que nós mesmos tentamos expressar com a idéia do marco estrutural e funcional da situa-

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ção analítica. Sua perda momentânea é a que alguns kleinianos descrevem como "reversão da perspectiva".

Nem todos os fenômenos de transferência e nem todos os de contra-transferência correspondem ao mesmo modelo, aos mesmos mecanismos, nem devem ser tratados da mesma forma.

3. O processo analítico e seu tempo

Nas múltiplas metáforas que Freud usou para descrever o processo analítico, algumas têm uma referência direta à história, por exemplo, a história bélica da invasão de um território por um exército inimigo (a neurose),e de sua reconquista pelo treinamento psicanalítico; outra, a metáfora arqueológica da reconstrução, através de escavações, das camadas sobrepostas de restos de distintas cidades edificadas e destruídas num mesmo lugar e em épocas distintas. Outras metáforas não têm relação direta com o tempo nem com a história: a metáfora escultural ("via di porre", "via di levare"), a metáfora telefônica, a metáfora cirúrgica. E, entre as duas séries, está a metáfora enxadrista. É evidente que nenhuma dessas metáforas, tomada isoladamente, esgota o conceito que Freud tinha do processo analítico, e que a escolha de uma ou umas às custas de outras envolve uma simplificação - ou seja, uma diminuição — do conceito original. Tampouco podemos dizer que Freud tenha mudado de opinião quanto ao problema que nos interessa, mas sim que cada uma destas metáforas expressa uma faceta de um problema muito complexo.

De todo jeito, até seus dois grandes últimos escritos técnicos, Construções em Análise e Análise terminável e interminável, a história do sujeito constitui uma dimensão essencial do que tem que desvelar em uma psicanálise.

Isto desprende-se dos primeiros descobrimentos de Freud sobre a memória: a tendência de Freud de definir o inconsciente como o reprimido, a repressão tendo seu efeito básico num esquecimento de situações traumáticas. O recurso do processo analítico define-se então como uma repetição transferenciai cuja interpretação permite uma recordação do reprimido e sua eventual elaboração.

O que ocorre depois de Freud? O sentido da história tende a perder-se em dois caminhos aparentemente opostos.

O primeiro se baseia, em parte, em algumas metáforas de Freud (a telefônica, a cirúrgica, etc); e também na idéia freudiana de que tudo se joga na transferência, quer dizer, no presente; e na afirmação de Freud (mal entendida) de que no inconsciente não rege a categoria da temporalidade. Fora esta base freudiana, esta posição tende a comparar a psicanálise às "ciências da natureza", ou experimentais, nas quais a história não tem lugar. O expoente mais radical desta posição poderia ser Henry Ezriel quando afirma que a psicanálise é uma "ciência a-histórica", mas veríamos a mesma tendência em Bion e outros.

A segunda tendência, sem excluir o recurso à história individual do sujeito, tende a diluí-la nas vicissitudes de um desenvolvimento cujas fases foram descritas pela psicologia evolutiva. Aí se origina uma quantidade de mal entendidos, seja que os analistas tratem de harmonizar o esquema das fases evolutivas da libido descritas por Karl Abraham, enrijecendo as indicações de Freud neste sentido, com as observações expe-

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rimentais da psicologia evolutiva, seja tratando de submeter as hipóteses analíticas ao testemunho de uma observação experimental (R. Spitz versus M. Klein, por exemplo). Em ambos os casos o prejuízo básico está em acreditar que a psicanálise está em continuidade com a psicologia evolutiva e que forçosamente as descrições têm que coincidir se são verdadeiras. Este prejuízo sacrifica o conceito freudiano de história individual e, em particular, o conceito de "Nachtràglichkeit", segundo o qual, ao invés de um acontecimento constituir-se em causa determinante de uma série de acontecimentos ulteriores, este acontecimento inicial não tem sentido se não em virtude dos acontecimentos ulteriores. Se alguém leva a sério esta expressão de Freud ("Nachtrâglich"), a descontinuidade da psicanálise com toda classe de psicologia evolutiva não pode deixar de impor-se como evidente. O que, naturalmente, não implica nenhuma crítica de princípio aos resultados da psicologia evolutiva. Implica, sim, numa crítica ao conceito contraditório de um enfoque "histórico-genético" tal como vemos formulado em certos autores (D. Rapaport, M. Gill e outros).

As discussões de antes e de agora para saber se o processo analítico se desenvolve e deve desenvolver-se no "aqui e agora" da situação transferencial da sessão, ou se tende à recuperação de lembranças, nos parecem passar por alto a dialética propriamente freudiana da temporalidade. Se o trabalho analítico é possível, é porque o sujeito e analista pensam que a exploração do passado permite a abertura do porvir, é porque as séries complementarias não constituem um determinismo mecânico, é porque se pode sair, pela interpretação, do eterno presente atemporal das fantasias inconscientes. O movimento progressivo e o movimento regressivo acontecem de forma conjunta e se condicionam reciprocamente.

Não equipáramos a exploração do passado e a regressão, mesmo que ambos os fenômenos ocorram muitas vezes simultaneamente. Explicar o passado equivale de certo modo a revivê-lo, e isto põe em jogo formas de sentir e níveis de organização psíquica pretéritos. Quase todos os autores estão de acordo em admitir que a regressão é uma dimensão necessária do trabalho analítico. Por isso a regularidade das sessões e sua duração uniforme criam um ato temporal fixo que permite o desabrochar dos fenômenos regressivos Pensamos que uma das funções mais delicadas do analista é regular o nível no qual o trabalho analítico pode realizar-se sem que o analisando se perca na regressão. Sabemos que tal regulagem não é sempre realizável e que se produzem regressões indevidas apesar de nossos esforços, em forma de surtos psicóticos. Entre o escolho da falta de regressão, que tenderia transformar a análise num mero processo intelectual, e o excesso de regressão, no qual o analisando se confundiria em estados psicóticos, está a área da "regressão útil", na qual podemos navegar sem perigo.

Por isso uma justa apreciação da função da regressão no tratamento analítico é tão importante. Existe em certas tendências analíticas a idéia de que a regressão constitui em si o fator terapêutico essencial. Estes autores consideram a situação analítica como destinada a fazer ressurgir, em estado de regressão, fases mais e mais remotas da existência do analisando. Teoricamente, esta atitude equivale a buscar mais e mais atrás na infância do sujeito o fator patogênico determinante, a promover a revivência destas situações mal vividas no passado. O ressurgimento da simbiose inicial com a mãe, do trauma de nascimento, da relação primitiva com o pai, das posições esquizo-paranóide e depressiva da lactação, o afloramento dos "núcleos psicóticos" seria a condição

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imprescindível de um verdadeiro progresso. Daí nasce a ilusão, tantas vezes desmentida pelos feitos, de que basta alcançar, seja por meios farmacológicos, seja favorecendo sistematicamente a regressão analítica, as situações arcaicas patogênicas para produzir um progresso. Mas esquece-se que a revivência de um trauma não serve de nada se não se complementa com uma elaboração, se o trauma não se reintegra no curso de uma história, se não se diferenciam as situações traumáticas iniciais da vida do sujeito e o mito histórico de suas origens. Esta elaboração necessária descarta o afã mágico de poder encurtar mediante um curto-circuito a duração do processo analítico.

A discussão por Freud das idéias de Otto Rank acerca do trauma de nascimento e das conclusões técnicas derivadas por ele sobre esta teoria (o trauma de nascimento como base de toda a patologia ulterior, e sua elaboração no tratamento permitindo "curas rápidas" pela economia do processo analítico) expressa em forma prototípica as críticas que poderíamos fazer a várias tentativas ulteriores na mesma direção que a de Rank.

O tempo da sessão é um parêntesis que suspende o tempo da vida, um tempo sem pressa, que às vezes parece fechar-se num presente atemporal ou em um tempo circular, e às vezes dá lugar a acontecimentos repetidos ou novos. Na realidade é uma experiência privilegiada para observar diretamente a gênese da temporalidade e da história. O processo analítico re-escreve em certa medida a história do sujeito ao mesmo tempo que muda seu sentido. O momento em que podemos observar esta mudança, em que ocorrem simultaneamente a re-assunção de um pedaço de história e a abertura de um porvir, é o momento do insight.

O trabalho analítico se joga no aqui e agora e no passado, como uma dialética entre a temporalidade fechada e repetitiva da neurose e do destino e a temporalidade aberta do insight.

4. O recurso do processo analítico: interpretação e insight

Ninguém levantará nenhuma dúvida: o recurso específico do processo analítico é a interpretação. O analista faz muitas coisas fora interpretar: mantém o domínio, com delicadeza ou sem, o enquadre; elege o ponto que deve ser interpretado; ensaia internamente hipóteses, etc.

Desde o início, Freud descreve o recurso do processo como uma dialética: a interpretação se necessita quando a "livre" associação do analisando tropeça com um obstáculo que expressa o surgimento de uma resistência dentro dele. O modelo destes momentos fecundos do processo seria então: resistência-interpretação-lembrança.

A medida que o procedimento analítico vai desbordando os limites da memória e do esquecimento, o obstáculo vai adquirindo novas formas, e a resolução interpretativa provoca efeitos mais amplos que reunimos baixo a palavra insight.

Dois enigmas nos são apresentados então: qual é este estranho poder da palavra interpretativa ? Em que consiste o insight, seu resultado ?

O primeiro enigma nos é esclarecido de alguma maneira, se diferenciarmos dois aspectos deste poder: o primeiro se refere à palavra em si, ao fato de falar, de interpretar ou de associar; o segundo à palavra como portadora de sentidos, como expressando "o que alguém quer dizer".

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Desde os trabalhos clássicos de Luisa Alvares de Toledo, sabe-se que a palavra, ade-mais de seu valor semântico, adquire, e muito particularmente no trabalho analítico, um valor concreto de ação fantasiada: atirar flechas ou pedras, envenenar, amamentar, acariciar, etc. Isto bastaria para descartar toda equiparação da interpretação analítica com uma tradução, porém com uma tradução simultânea. Inclusive se considerarmos somente seu valor semântico, a interpretação do analista se parece um pouco aos encantamentos de um aprendiz de bruxo, e evoca toda classe de demônios afora os que se quis chamar. Dentro da polissemia das palavras e dos enunciados, muitas vezes resulta problemático saber, entre os sempre múltiplos sentidos do que dizemos, qual foi o sentido eleito, e entendido pelo analisando. Cada um sabe por experiência que, em certos tratamentos, o analisando entende sistematicamente algo distinto - ou inclusive oposto - ao que quisemos dizer, e sabemos também, si voltarmos a pensar em nossas interpretações, que muitas vezes esta foi muito mais significativa do que quisemos conscientemente transmitir, e que algum de seus segundos sentidos é que foi realmente operativo. Assim, alguém fala destas "invenções significantes...que são a única coisa capaz de curar". Pode haver interpretação quando inventamos algo, quando nosso trabalho se aproxima ao do poeta, quando conseguimos passar mais além da linguagem utilitária, meio de comunicação. Nisto o elemento de surpresa resulta indispensável.

Toda interpretação, onde há pronúncia e onde há escuta, é necessariamente polissêmica. Seria um erro crasso (não poucas vezes cometido) pensar que a precisão da inter-pretação, precisão que resulta fundamental em qualquer enunciado científico (porém uma interpretação no processo analítico não é um enunciado científico: sua "verdade" reside em outro lugar), nos permite evitar as confusões implícitas na polissemia dos enunciados.

Pensamos, ao contrário, que a busca da precisão teórica pelo analista na formulação das interpretações, vai diretamente contra o que pedimos ao analisando: associar — na medida do possível - "livremente". Teríamos, então, que distinguir dois momentos do ato da interpretação: os momentos de busca, semelhantes ao que fazem as crianças camponesas para caçar grilos (arranham o solo com uma pá em frente à toca do grilo; este, curioso, sai da toca, momento propício para enjaulá-lo). Em nosso processo, este "enjaular" seria o segundo momento da interpretação: um aspecto do inconsciente sai à luz e é capturado por novos significados; se produz então uma coincidência entre analista e analisando sobre um sentido da interpretação. O primeiro momento joga sobre a ambigüidade e a polissemia; o segundo os reduz momentaneamente.

Que o poder analítico da palavra resulta estranho, é evidente para nós pelo motivo que, na literatura, se descreve de duas maneiras diametralmente opostas. Uns fazem-no em seu vértice de ruptura, referindo-se em última instância à "via di levare" de Freud. Analisar significa, etimologicamente, desligar, desatar, romper algum "falso enlace", "revelar um auto-engano, destruir uma ilusão ou uma mentira: Dora, a "alma bela", se faz de vítima inocente das tramóias familiares, e Freud a revela como cúmplice inconsciente deles. Outros, e Melanie Klein mais que ninguém, concebem-no como um poder de unificação e de integração: reduzir as clivagens, permitir a síntese do objeto, ampliar e enriquecer o Eu. O próprio Freud, desde o modelo inicial (resistência-interpretação-lembrança), concebe o poder da palavra interpretativa como permitindo a recuperação de um pedaço reprimido da história. O "levare" da interpretação permi-

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te um "porre" a partir de outro lugar (do inconsciente do analisando).No movimento do processo analítico, ruptura e integração se dão conjuntamente, sem

que o analista tenha nenhuma necessidade de agregar farinha de seu próprio saco. O estranho poder da interpretação - entre outras coisas - consiste em desligar-nos do poder estranho de certas palavras capturantes em nosso destino. É mérito de Lacan tê-lo enfatizado, mas isto não se detém neste poder: tem maior alcance, tal como Lacan mesmo o reconheceu a partir de 1963, ao introduzir a idéia de um trabalho analítico possível com palavras acerca do objeto "a", quer dizer, de algo indizível, mais além das palavras. Finalmente, se queremos situar em alguma parte o limite (para nós) da contribuição de Lacan, temos que traçá-lo no momento onde a "segunda olhada" é imposta. Concordamos com ele em reconhecer que o trabalho analítico não consiste no esgotamento a todo custo das "flanelas imaginárias" (ou das vivências regressivas que se dão entre duas pessoas sem contato físico) porém não se limita a um poder de rompimento. O recurso está no poder evocador da palavra à medida em que suscita o insight.

Se quisermos ser fiéis à descrição de nossa experiência, não podemos evitar a obrigação de discriminar duas categorias dentro do que chamamos insight.

Naturalmente esta categorização leva a descrever duas formas limites idealmente distintas do insight, quando a realidade nos apresenta mais amiúde formas mistas. A primeira corresponde ao que Freud descreveu como levantamento da repressão e emergência consciente do reprimido. Neste caso relativamente simples, o analista não está implicado na resistência do analisando, mas sim como tela transferência em sua capacidade ou dificuldade em entender e interpretar este momento preciso do processo. O mesmo enfoque unipessoal do insight se pode manter, mesmo com maior dificuldade, em caso de redução de uma clivagem.

A segunda categoria do insight não pode aparecer a não ser quando o analista recorre à "olhada em direção ao campo", quer dizer, quando se produz um impedimento da dinâmica do campo e uma paralisação de seu funcionamento, o que mostra a presença de algum baluarte.

Neste caso, o processo interpretativo é mais complexo; aponta primeiro ao fato que o analisando se dê conta da existência do baluarte através de seus efeitos mais conspícuos: detenção do processo, estereotipia do relato, vivência de que "não acontece nada". Do qual se pode passar à estereotipia dos papéis recíprocos atribuídos pelo analisando a ele mesmo e ao analista e a suas fantasias que contribuem para a estruturação do baluarte, com suas raízes na história pessoal do sujeito. Este esfarelamento do baluarte implica na devolução ao analisando de seus aspectos situados no analista por identificação projetiva, sem que seja necessária nenhuma "confissão contratransferencial". Isto apagaria a assimetria estrutural e funcional do campo, introduziria confusões intermináveis no analisando e deslocaria o analista de sua função específica.

A ruptura do baluarte significa uma redistribuição dos aspectos de ambos participantes envolvidos na estruturação deste baluarte, porém a redistribuição se dá de maneira distinta em cada um deles: uma recuperação consciente e calada no caso do analista; consciente e manifesta no caso do analisando.

Podemos caracterizar o baluarte como um fenômeno simbiótico, à medida em que ambos participantes da situação analítica utilizam transferências e identificações projetivas e praticam de forma recíproca "roques" do sujeito e do objeto. Toda ruptura

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de baluarte se apresenta, portanto, como uma de-simbiotização. A pedra de toque que nos mostra que a ruptura aconteceu reside na mudança de vivências, tanto do analista quanto do analisando, na restituição do movimento no campo, na compreensão do obstáculo no momento de superá-lo, na passagem espontânea do analista da segunda olhada à primeira olhada, que corresponde a um trabalho analítico funcionando sem outra resistência que a do próprio analisando.

A forma extrema do baluarte se manifesta numa patologia do campo e do processo que poderíamos descrever, mais além da simbiose, como parasitismo. Este se revela em seu aspecto contratransferencial: o analista se sente como "habitado" pelo analisando, presa de uma preocupação que desborda as sessões (pode ser pelo medo de uma atuação auto-destrutiva ou delitiva do analisando, a iminência de um "surto" psicótico, ou a outras situações menos dramáticas). Tais situações parasitárias (equivalentes a micro-psicoses no campo analítico) costumam desembocar, seja numa ruptura violenta da situação analítica, seja em sua re-canalização por redução das clivagens e devolução das identificações projetivas do analisando.

Nem todos os campos analíticos chegam a estes extremos patológicos, porém todos tendem a criar baluartes, como está implicado no conceito freudiano de "neurose na transferência".

O recurso do processo analítico aparece, portanto, como constituído pela produção de resistências e baluartes e sua correspondente dissolução interpretativa criadora do insight.

Tal descrição deve muito ao trabalho clássico de James Strachey, "Natureza da ação terapêutica da psicanálise", a sua idéia, enraizada na observação clínica direta, de que o recurso do processo reside em certos momentos de "interpretação mutativa", nos quais toda a situação se une — passado e presente, transferência e realidade, vivência e compreensão - e se desune mediante a interpretação discriminativa produtora da mutação do insight. Alguns detalhes aparte, sobre os quais não podemos coincidir (a idéia, retomada de Rado, da posição do analista como superego auxiliar, e outras), o que, a nossos olhos, faltava à descrição de Strachey era levar em consideração a participação efetiva e afetiva (e não somente interpretativa) do analista neste processo, coisa da qual Michael Balint tinha, ao contrário, uma consciência muito aguda e que expôs em muitas obras ulteriores, sem formulá-la, entretanto, em termos de campo.

Os momentos fecundos da interpretação e do insight marcam o processo analítico que Pichon-Rivière descrevia como "processo em espiral", expressando com esta imagem a dialética do processo na temporalidade. "Aqui, agora, comigo", tende-se dizer, ao qual Pichon-Rivière agrega "Como lá e antes, com outros" e "Como mais adiante em outra parte e em forma distinta". Se trata de uma espiral onde cada volta retoma a volta anterior desde outra perspectiva, e que não tem começo absoluto nem fim determinado. A superposição das curvas da espiral ilustra esta mistura de repetição e não repetição que se observa nos acontecimentos característicos do destino de uma pessoa, este movimento conjunto de aprofundamento dentro do passado e construção do futuro que caracteriza o processo analítico.

5. Dialética do processo e do não-processo

Nem todos os analistas conseguiram se dar conta de que o processo analítico é

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um artifício. Nem as advertências mais claras de Freud (a metáfora militar, na qual explica que o processo de reconquista não se joga nos mesmos lugares onde se livraram as batalhas da invasão; a metáfora enxadrística, onde explica que, aparte das aberturas e dos finais, as jogadas intermediárias são imprevisíveis) podem valer contra a tendência de pensar o processo analítico segundo um modelo "naturalista" (gestação de um feto - crescimento de uma árvore). O não-paralelismo do processo patogênico e do processo analítico é a nós imposto como uma evidência de partida. Se os analistas puderam falar de uma "cura típica", de "variantes da cura típica", de "fases" determinadas da cura, é porque têm uma idéia pré concebida do desenvolvimento de um tratamento, como parte de seu esquema referencial. Esta idéia funciona como um leito de Procusto e determina o curso efetivo de bom número de tratamentos, excetuando-se os casos nos quais o paciente se nega a cumprir com as fases pré estabelecidas.

Não podemos evitar, nem tampouco devemos renunciar à nossa função de "direção da cura": somos parte integrante do processo, e esse processo é, essencialmente, intersubjetivo. Isto não quer dizer que possamos nem devamos usar esta função de direção em forma arbitrária. Somos vítimas de uma "idéia incurável", a idéia de cura (J.B.Pontalis), porém o que devemos fazer é não nos equivocar acerca da própria natureza de nosso trabalho e aceitar, sem que nos provoque o sentimento de um escândalo intelectual, o fato da enorme variedade dos processos analíticos positivos.

Tomando um exemplo: pensamos que a descrição por M. Klein da "posição depressiva" como momento concreto de um processo analítico (o analisando, mediante a interpretação de sua angústia de perseguição, aproxima seus objetos perseguidores e idealizados, unifica as partes clivadas de seu próprio "self", se dá conta de sua participação no conflito, experimenta tristeza e esperança, etc.) formula uma estrutura repetidas vezes observada nos tratamentos, um momento de mudança e de progresso. Se erigirmos esta descoberta em regra geral, tomando o acesso à posição depressiva como pauta básica para avaliar um tratamento analítico, buscamos (como aprendizes de Procusto) que todo tratamento alcance esta meta. Inclusive podemos chegar à idéia (manifestamente repreendida com a experiência) de que "quem não chora não se cura", e ainda, pensando no analista, que "o que não chora não cura".

Como as macacas de arame coberto de pele que a psicologia animal utiliza em alguns experimentos sobre a criação de macaquinhos, o analista "programado" com um prejuízo acerca do processo analítico "fabrica", se puder, pacientes ortopédicos mais ou menos semelhantes a um ser humano "curado".

O que resta, então? A incerteza total? Caricatura aparte, dispomos de indicadores da existência de um processo, ou de um não-processo, em um tratamento analítico, e é uma sorte que levemos em consideração estes indicadores, mesmo se não cabem em nosso esquema referencial teórico.

Não vamo-nos referir aqui aos indicadores mais freqüentemente mencionados, tais como o desaparecimento de sintomas neuróticos manifestos, ou os progressos realizados pelo analisando em distintas esferas de sua existência (acesso a um maior prazer genital, relação mais harmoniosa com os demais, maior rendimento em seu trabalho, aquisição de novas atividades sublimatórias, etc), não porque desestimemos sua importância, mas porque constituem conseqüências mais distantes do processo e não sua expressão imediata e essencial.

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Os indicadores da existência do processo e os do não-processo não se correspondem exatamente como o positivo e o negativo, como o verso e o reverso de um mesmo desenho. Aqui também nosso afã de simetria teórica poderia nos enganar.

Fica-se às vezes surpreendido ao constatar que o indicador inicial descrito por Freud da existência de um processo analítico - a recuperação de lembranças esquecidas (reprimidas) pelo analisando - tenha caído em desuso em muitas descrições do processo. Será que se dá por descontado? Será que muitos se esquecem da memória? Será que o "hic et nunc et mecum" se converte em prejuízo e apaga a temporalidade? Pensamos ao contrário que o vencimento da amnésia infantil continua sendo um indicador valioso da existência de um processo, e que, ao contrário, a persistência da amnésia infantil especialmente prolongada marca um topo do processo e corresponde muitas vezes a um episódio psicótico da infância do qual o sujeito se recuperou apagando uma parte de sua história e de uma restrição de sua pessoa.

A liberdade de acesso às lembranças da infância anda junto com a possibilidade de associar livremente, isto é, com a riqueza do relato, o fácil acesso às distintas áreas da existência do sujeito, a variabilidade das linguagens utilizadas por ele para se expressar, em particular sua possibilidade de usar a linguagem dos sonhos para permitir-se e permitir-nos o acesso ao seu inconsciente.

A fluidez do discurso não bastaria para indicar a presença de um processo analítico se não fosse acompanhada de uma circulação afetiva dentro do campo. A alternância dos momentos de bloqueio e dos momentos de mobilização afetiva, o surgimento de uma gama ampla de vivências e emoções concordantes com o relato, a transformação dos afetos transferenciais e contratransferenciais nos indicam a presença do processo. Este indicador, entretanto, não basta por si só para comprovar a existência do processo: muitas vezes o movimento afetivo se reduz a uma simples agitação, e a permeabilidade afetiva se transforma em inconsistência. A vivência pura não cura, contrariamente ao que parecem acreditar alguns psicoterapeutas não analíticos partidários das técnicas de sacudimento psicológico em voga dentro de certos ambientes. Só a convergência de ambos indicadores (variação do relato e circulação afetiva) nos informa cabalmente acerca da existência do processo. No enfoque da circulação afetiva, a categorização das distintas formas de angústia relatada por M. Klein (angústia persecutória, depressiva, confusional) nos proporciona uma bússola sem nenhum valor. A dialética entre produção e resolução da angústia e as transformações qualitativas desta, marca o processo.

Se nossa descrição do recurso do procedimento analítico é exata, a aparição e a freqüência dos momentos de insight constituem por lógica nosso indicador mais valioso. Porém, ainda nos falta diferenciar o insight verdadeiro e o pseudo-insight destinado pelo sujeito a auto-enganar-se e a enganar-nos acerca de seu progresso. A série de "descobertas" está destinada nestes casos a encobrir a ausência de processo.

O insight verdadeiro se acompanha de uma nova abertura da temporalidade, muito particularmente na dimensão do futuro: o processo em curso começa a ter metas, aparecem projetos e sentimentos de esperança. A temporalidade circular da neurose se abre em direção ao futuro.

Mas um dos indicadores mais importantes do progresso é o trabalho ativo que realiza o analisando cooperando com o analista: um esforço de sinceridade até o limi-

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te do possível; de escutar o analista e dizer-lhe tanto "sim" como "não", de deixar-se regressar e progredir. Isto se faz patente quando o analisando nos diz: "Na última sessão, encontramos algo interessante", e nós compartimos esse sentimento.

Algumas manifestações do não-processo analítico são mais complexas de se descobrir que as do próprio processo: afora as múltiplas formas de impedimento, o não-processo se manifesta pela aparência de todos os indicadores positivos do processo, utilizados para dissimular sua inexistência. O não-processo vale como disfarce de todos os indicadores positivos do processo (colaboração que na realidade é submissão, insight que é pseudo-insight, circulação de lágrimas de crocodilo, etc), com o qual o analisando pensa "conformar" o analista evitando perigos maiores.

Estes disfarces se denunciam a si mesmos como tais por seu caráter estereotipado, com o qual convergem com os indicadores do não-processo. O perigo intrínseco de todo tratamento psicanalítico é a estereotipia (do relato, dos sentimentos, dos papéis específicos, das interpretações). Quando esta estereotipia se disfarça de movimento, algo fica estereotipado: o tipo de angústia que se vem manifestando ou encobrindo. Em sua forma mais simples e evidente a estereotipia se revela em certos momentos dos tratamentos nos quais o processo se transformou num tipo de movimento circular que os analisandos podem expressar com a metáfora da Nora: o burro dando voltas é o paciente com seus antolhos, pensando que caminha e voltando sempre ao mesmo ponto.

Como é factível pensar, a Nora não envolve somente o analisando, podemos imaginar (recordar?) o analista dando voltas ao redor de suas próprias teorias sem encontrar o modo de romper o círculo, nem para ele mesmo, nem para o analisando.

O não-processo, em certos casos, pode expressar-se sob a forma de um movimento aparentemente bem encaminhado: são estes tratamentos que "caminham sobre trilhos", onde o analisando vem pontualmente, associa, escuta, aprova a interpretação, inclusive gratifica o analista com resultados terapêuticos bem visíveis, dando-lhe a impressão de um trabalho útil. No analista o sinal de alarme pode ser que "este tratamento anda demasiado bem", juntamente com o sentimento de que "aqui não acontece nada". Geralmente o indício que desperta a segunda olhada no analista é a tendência à eternização do tratamento, e o despertar no analisando de uma intensa angústia frente à mera idéia, largada pelo analista a título de globo de ensaio, de que "o analista tem um término".

As situações subjacentes são de índole muito diversa, mas todas possuem em comum a existência de um "baluarte", no sentido estrito. Pode ser, por exemplo, um "campo perverso" encoberto (que descrevemos alguma vez) onde a atividade propriamente analítica serve de tela a uma satisfação perversa do analisando (voyeurista, masoquista, homossexual, etc).Também pode ser um pacto anti-morte, sustentado na fantasia do analisando de que, "enquanto estou em análise, não morro" e na fantasia correspondente do analista, "se o interrompo, ele morre".

O mesmo que o não-processo pode encobrir-se com a aparência do processo, o pro-cesso pode realizar-se em forma sub-reptícia. Tais processos sub-reptícios se observam às vezes com analisandos que têm fortes obstáculos internos a seu próprio progresso, ou que querem exercer uma velha vingança contra seus objetos primários, ou que temem, mani-festando sua melhora, atrair sobre si a ira dos Deuses ou algum contragolpe do Destino.

O processo se realiza por resolução sucessiva dos obstáculos que se opõem a seu

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movimento: estes são conhecidos, mas nem todos correspondem aos mesmos mecanismos.Estes obstáculos podem ser entendidos como resistências se adotamos a definição da

resistência que formula Freud em "A Interpretação dos Sonhos": "Tudo o que perturba a continuação do trabalho é uma resistência".

Dentro das resistências, conhecemos muito bem as que classicamente expressam as defesas do Eu ou as alterações do Eu. Qualquer analista medianamente experimentado sabe categorizá-las e possui os recursos técnicos para enfrentá-las. Constituem o material de nossa compreensão e interpretação, são um elemento intrínseco do processo, parte dialética do mesmo. Sua resolução é nosso trabalho cotidiano.

Mais graves são as resistências que, mais além de um obstáculo - previsível e conhecido - colocam em sério perigo o trabalho analítico, comprometem o processo e podem chegar a interrompê-lo, a desvirtuá-lo e finalmente podem desembocar num resultado completamente oposto ao procurado. Claro, estão na mesma escala que as resistências "clássicas"; se escalonam, diríamos, a partir das resistências clássicas, por ordem de gravidade, até chegar a um polo extremo entre estes fenômenos: o comumente chamado "resistência incoercível", o "impasse", e finalmente a reação terapêutica negativa. Muitos textos analíticos empregam estes termos como equiparáveis ou superpostos. Pensamos, entretanto, que um uso mais preciso da terminologia seria útil em vista das implicações técnicas.

A diferença essencial destes processos com as resistências clássicas reside na sua intensidade e durabilidade. Não são elementos do processo que aparecem e se resolvem dando lugar a outros movimentos; são obstáculos muito mais estáveis, duradouros, aos que se agrega em forma manifesta a incapacidade relativa ou total do analista para dar conta deles e resolvê-los. O analista está muito mais envolvido, e a gravidade do fenômeno está dada precisamente por esse feito que o analista se torna impotente para controlá-lo. Pensamos que o que chamamos "baluarte" é subjacente a todos esses fenômenos: não se podem entender senão em termos de campo.

Fala-se normalmente do par resistência-contraresistência. Este par é o que leva ao baluarte: uma colusão entre resistências do paciente e resistências do analista, que entendemos como uma formação cristalizada dentro do campo que estanca a dinâmica deste. Analista e analisando dão voltas ao redor de um obstáculo sem poder integrá-lo ao processo.

A chamada "resistência incoercível", vista numa perspectiva unipessoal, é uma resistência que tende a tornar-se crônica e pode chegar a interromper o processo. Se prolonga-se por muito tempo, chega à situação que atualmente se denomina "impasse". No impasse, o analista se sente implicado tecnicamente. Busca em vão o recurso técnico que permita resolver a situação de estancamento. O impasse se resolve com os acting do paciente, que abandona o tratamento, o do analista, que tende a fazer inovações técnicas. Contudo, às vezes o analista encontra o recurso que lhe permite resgatar-se e resgatar ao paciente, e se o tratamento se interrompe por obra de um dos dois participantes, o paciente vai geralmente conservando os ganhos obtidos até esse momento. Por outra parte, a situação de impasse se pode produzir em qualquer momento de um tratamento analítico.

A reação terapêutica negativa - e esta é a primeira diferença com o impasse, se recordamos Freud — não tende a acontecer num começo de análise, mais sim depois de

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certo tempo e num tratamento aparentemente exitoso. É uma resposta negativa a ganhos efetivos do paciente frente a interpretações que o analista considera adequadas: o paciente começa a desandar aceleradamente o caminho recorrido para chegar finalmente a uma situação de suicídio ou acidente suicida. Em geral, não interrompe o tratamento, mas se aferra à ele até o desenlace catastrófico. Pode-se pôr fim ao impasse sem maior catástrofe; a reação terapêutica negativa é por definição catastrófica.

Pensamos que um signo patognomônico da reação terapêutica negativa é a parasitação do analista com o paciente. O analista não está somente preocupado cientificamente ou tecnicamente, ou ainda afetivamente pelo paciente, como no impasse, mas se sente totalmente invadido pelo paciente. O impasse pode corresponder ao que se chama às vezes neurose de transferência—contratransferência. A reação terapêutica negativa pode ser entendida como psicose de transferência-contratransferência: analista e analisando chegam a conformar uma "folie à deux". Precisamente por ser o polo extremo na escala dos obstáculos que se apresentam no processo psicanalítico, nos aparece muito mais claramente como produto específico do campo analítico. A partir do exame deste polo extremo, é que podemos entender que, em maior ou menor grau, o analista está envolvido como participante ativo em todos os fenômenos que se manifestam como obstáculos graves ao processo analítico. Neste sentido sustentamos que a todos estes obstáculos, o que é subjacente é um baluarte.

Com sua definição do procedimento analítico como repetição da neurose inicial e resolução desta neurose no nível da transferência, Freud marcava os dois pólos da repetição na técnica: como inércia ou "entropia" primeiro, como momento do processo ou parte do progresso em segundo término. A introdução do conceito de campo enfatiza uma dupla situação da compulsão repetitiva, em cada um dos participantes do processo. O analista também tem suas formas de repetir: pode entrar em colusão com o analisando, capturado inconscientemente na fantasia do campo, pode entrar nas estereotipias do analisando quando transforma suas sessões num ritual, pode tentar romper a repetição por medidas de força: será esta a chave para entender a patologia de certas inovações técnicas, certas "terminações" indevidas da análise? Mas talvez a forma mais dissimulada da repetição no analista se refere a sua clausura em seu próprio esquema referencial, sobretudo se este adquiriu um certo grau de sistematicidade e racionalização e tende a conformar uma rotina. O ideal do analista poderia ser o furão menor, que nunca sai do lado que o esperam, ou o anel escondido do jogo.

Mais rígido é o esquema referencial do analista, mas se encontra propenso a aceitar o papel do "sujeito suposto a saber", isto é, se torna cúmplice da estereotipia paralisante do processo. Por isto é recomendável que transitemos por múltiplos esquemas, fazendo sem ecleticismo confusional nossa própria colheita de vários deles: a clínica é mais variada que nossos esquemas e não nos recusa as oportunidades de inventar.

Como procedimento anti-repetição e anti-estereotipia, a análise tem constantemente que lidar com os baluartes que vêm-se criando e tratar de desfazê-los a medida que se criam. Estes baluartes se apresentam como extremamente proteiformes, alguns pouco cristalizados, outros duros e paralisantes para o analista. Há processo a medida que se vão detectando os baluartes e vão-se desfazendo-os. Neste sentido os dois aspectos da interpretação (ruptura e integração) aparecem claramente complementários.

O baluarte sempre renasce em formas renovadas; é a manifestação clínica mais

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Processo e não-processo no trabalho analítico Madeleine Baranger, Willy Baranger y Jorge Mom 131

conspícua da compulsão repetitiva, isto é, da pulsão de morte. Como tal, o baluarte, quando se reduz, expressa o triunfo do processo sobre nossa carga tanática intrínseca -outrora chamada "viscosidade da libido" -, e esta vitória, por momentânea que seja, constitui talvez o mais essencial da alegria que nos proporciona o trabalho analítico.

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Comentários

Facilitadores e inibidores do processo analíticoAs contribuições de Bleger, e dos Baranger e Mom sobre os conceitos de enquadre, campo analítico, e processo e não-processo em psicanálise

Juan Vives Rocabert

Existem parâmetros que são indispensáveis para conduzir um tratamento psi-canalítico, elementos sem os quais o processo não pode se realizar. Daí a importância de deixar perfeitamente estabelecidas certas invariantes que se agruparam sob os conceitos de contrato analítico e de enquadre, necessários para o desenvolvimento de tal processo. Este enquadre, o campo onde transcorre o trabalho da análise, tem a ver com uma estrutura formal que permite que um tratamento seja realizado.

Estes determinantes têm a ver, essencialmente, com o local onde se realiza o trata-mento, os dias e as horas acertadas, assim como a duração destas últimas; os ajustes em relação aos honorários, ausências e períodos de interrupção do tratamento (verão, Natal, segundo os países e os costumes de cada um); além disso, certos parâmetros ou regras sob os quais se realiza a psicanálise, como o uso do diva para o paciente -onde o analista permanece sentado atrás dele e fora de seu campo visual- assim como as regras da livre associação e atenção livremente flutuante no paciente e analista, respectivamente; a regra de abstinência e a atitude de neutralidade na escuta. Do mesmo modo, certos parâmetros éticos inseridos na técnica formam parte deste enquadre: o compromisso com valores como a verdade, a vida e a honestidade que ambos participantes compartilham, e que apesar de não serem explicitados desde o começo do processo, não por isto deixam de influenciar de maneira fundamental sobre a ideologia da análise.

Graças à relativa firmeza e consistência desta estrutura formal, podem aparecer todas as manobras às quais os pacientes costumam recorrer quando tendem a transgredir o contrato, romper o enquadre ou distorcer o setting. De fato, durante o tratamento logo se descobre que o paciente, mesmo tendo aceitado o enquadre proposto pelo analista, tenta antepor outro diferente, composto por pactos privados e unilaterais, alguns conscientes e outros inconscientes, para substituir o acordo feito.

A partir de uma perspectiva formal, poderíamos dizer que todos aqueles aspectos que tendem a favorecer a segurança e constância de tal enquadre, e a manter o campo analítico invariável, favorecem o processo psicanalítico; pelo contrário, toda manobra que tende a inibir, bloquear, suspender, interferir ou boicotar tal processo atuará como resistência à indagação psicanalítica. Como vimos, os primeiros fatores são aqueles estabelecidos pelo contrato psicanalítico e pela instauração do setting, assim como tudo aquilo que Bleger1

agrupou no conceito de enquadre. Pelo contrário, tudo o que se opõe ao andamento de tal processo, toda resistência que dificulta ou bloqueia o desenvolvimento da terapia psicanalítica, é denominado de não-processo, de acordo

* Membro da Associação Psicanalítica Mexicana.

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a denominação dada pelos Baranger e Mom2. Em ambos trabalhos, os autores destacam as condições metodológicas para levar a cabo a exploração do psiquismo, método que permite a investigação do inconsciente. Daí sua importância e o fato de que estes trabalhos se transformaram, ao longo do tempo, em clássicos de nossa literatura latino-americana: uma leitura obrigatória para a compreensão cabal do que está em jogo no decorrer deste tipo de indagação, do campo onde se reproduz a neurose ou psicose de transferência, como parte da interação que ocorre entre ambos os protagonistas desse périplo, que é o tratamento psicanalítico.

É interessante advertir, entretanto, que a prática de nossa profissão - o processo psicanalítico - consiste, justa e precisamente, na análise de todas aquelas manobras - as resistências - que os pacientes desenvolvem e que necessariamente emergirão no decorrer do tratamento, desde seus meros inícios até praticamente o término do mesmo, resistências essas que tendem a se opor ao andamento do processo analítico. A defesa do Ego, cuja missão é manter controlada a angustia (incluindo os tipos de angustia do Superego, que conhecemos pelo nome de culpa, vergonha e repugnância), afeto particularmente disruptivo que age como um sinal que alerta a instância egóica sobre a presença do desejo e a pulsão que, das profundidades do reprimido, insistem em se fazer ostensíveis e descarregar sua energia; estas defesas, repito, são as que estruturaram essa transação que conhecemos como neurose, psicose, transtorno da personalidade e/ou caráter, perversão, derivação psicossomática, etc. Esse é o motivo pelo qual todo tratamento tem, por necessidade, que atuar contra as forças que mantêm esse precário equilíbrio conhecido como transtorno psíquico.

Como vimos, o enquadre é o invariante, aquele que não "aparece" -o campo- o que permanece como pano de fundo de onde o cenário da neurose —ou psicose- de transferência, pode se desenvolver. Paradoxalmente, a "aparição" do enquadre como motivo do escrutínio da dupla analítica — isto é, quando se mexe naquilo que deveria permanecer invariável - provoca a aparição de um material psíquico relacionado aos aspectos mais regressivos do paciente, que, se não fosse pela "alteração" do enquadre, não teriam nunca emergido por si mesmos. Trata-se de aspectos geralmente muito primitivos ou muito defendidos do paciente, freqüentemente separados ou encapsula-dos do resto do seu mundo representacional.

Entretanto, sabemos que as tentativas de transgredir o enquadre e de distorcer o contrato terapêutico, não aparecem somente pelo lado dos pacientes. Veremos mais adiante como o analista pode ser um colaborador ativo nestas tentativas de transgredir a fronteira onde o processo ocorre - o que foi denominado como "baluarte" resistencial pelos Baranger, um bastião defensivo estruturado numa colaboração estreita inconsciente entre o paciente e seu analista.

Um exemplo clássico de ruptura deliberada do enquadre por parte do analista, habilitado como recurso técnico, nos foi oferecido pelo próprio Freud quando ele marcou um final, arbitrariamente imposto por ele, ao "homem dos lobos": única maneira de poder remontar certas resistências que chegaram a paralisar o processo psicanalítico. Coloquei de propósito em itálico a palavra arbitrariamente, devido a que, pois, neste caso, a ruptura de um enquadre onde o parâmetro duração do tratamento não havia sido estabelecido, implicou em um tipo de "interpretação atuada" - agora está na moda

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o termo enactment - cujo significado era o de limitar a capacidade continente do analista, quando esta estava sendo utilizada pelo paciente a serviço da resistência e da paralisação do processo analítico: "se nosso tempo de trabalho não estiver a serviço de um aprofundamento analítico persistente, não vale a pena continuar a duração deste não-processo" —seria o conteúdo ideacional de tal mudança no parâmetro duração imposto por Freud.

Outro exemplo particularmente transparente de variação do enquadre propiciada pelo analista, graças à qual se pode estudar a importância da firmeza e consistência do enquadre, assim como a intensa repercussão emocional que têm qualquer tipo de mudanças que sejam introduzidas, refere-se ao próprio setting onde se realiza a psicanálise: o consultório do analista. Vou-me permitir começar este tema mencionando uma anedota pessoal. Há mais de vinte e cinco anos, quando mudei o endereço de meu consultório para trabalhar onde, desde então atendo, praticamente todos os meus pacientes fizeram comentários em relação a uma mudança que alterava de maneira radical a firmeza e constância habitual do endereço anterior - onde havia transcorrido o processo de análise até esse momento. Houve quem enfatizou sobre a maior facilidade ou dificuldade de acesso a meu novo consultório, outros fizeram comentários sobre as características do bairro velho e do novo; outros, ainda, se referiram à sensação de que isto representava um "progresso" em minha carreira como psicanalista, com manifestações mais ou menos encobertas de inveja, ou preocupações a respeito de um aumen-to potencial de honorários; finalmente, a imensa maioria referiu-se à sala de consulta assinalando as diferenças com a anterior: a decoração, o espaço, o estofamento novo do diva, os móveis diferentes, etc. Somente dois pacientes chegaram na hora de sua sessão ao consultório novo, entraram na sala, deitaram no diva e começaram a trabalhar asso-ciativamente, sem fazer nenhuma menção ao fato de terem se deslocado a outra zona da cidade, entrado num consultório onde nunca haviam estado antes, com móveis e arranjos decorativos diferentes, e terem se deitado num diva estofado com outro pano. É óbvio que esses dois pacientes tiveram a necessidade de uma violentíssima negação de tudo aquilo que perturbava sua segurança, já que as mudanças ocorridas foram vividas de uma maneira tão catastrófica e desorganizadora, que tiveram que recorrer a um mecanismo de negação total, massivo- da mesma maneira que as alucinações negativas - com a finalidade de preservar seu frágil equilíbrio interno. Obviamente, tratava-se das duas pessoas que sofriam os quadros psicopatológicos mais regressivos entre todas as que eu atendia naquele momento.

Para continuar com o tema das mudanças introduzidas pelo analista, basta mencionar a experiência que todos nós temos sobre essas pequenas transgressões, cujo significado varia de paciente a paciente, que pode mudar no próprio analisando, dependendo da fase de tratamento em que se encontre e que têm a ver com pequenos atrasos no início da hora analítica, a importância de um cancelamento por alguma emergência ou doença do analista, uma ausência sem aviso prévio devido a um problema familiar de última hora, um acidente de carro ou espetacular engarrafamento no trânsito; assim como pela introdução de um novo quadro na decoração, a mudança do tapete ou outras obras de manutenção como a pintura dos muros, mudanças no estofamento dos móveis. Neste sentido, a experiência mostra que quanto mais regressivo e afetado esteja um certo paciente — isto é, quanto mais falhas tenham existido em suas

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etapas formativas na conformação de uma confiança básica (para utilizar o termo de Erikson) - mais afetado estará por uma mudança no enquadre, e terá mais necessidade de recorrer a mecanismos defensivos de proteção, mesmo que às custas da necessidade de instrumentar adaptações autoplásticas.

Fica claro que os pacientes, como todo o mundo, precisam sentir-se seguros e numa atmosfera de confiança quando estão em tratamento. Porém isto resulta particularmente certo e adquire uma dimensão especial quando se trata de estar submersos num procedimento que, por definição, tende a favorecer um certo grau de regressão, e, portanto, a atualizar aspectos sepultados no inconsciente que têm a ver com a vulnerabilidade e a falta de defesa experimentada durante os primeiros anos de vida.

Daí a necessidade de repensar se o campo ou enquadre tem a ver somente com aspectos simbióticos, como sugere Bleger, ou com uma ampla gama de fenômenos experimentados mais ou menos nebulosamente durante os estados mais primitivos -fases nas quais se constitui o sujeito e nas quais se estrutura o aparelho psíquico. Apesar de ser verdade que o Ego anterior se organiza e se forma graças à constância do Não-Eu que o envolve - principalmente, a mãe - também é verdade que este estado de narcisismo primário e de sensação onipotente de completude se quebra e se supera somente graças às "falhas" ou "inconstancias" do Não-Eu: são os atrasos da mãe, as pequenas frustrações cotidianas que toda maternidade impõe, as pequenas e inevitáveis inconstancias, as que estabelecem a distinção primitiva entre o si mesmo do bebê e seu objeto materno. Somente a ruptura da fantasia narcisista instaura os limites entre o sujeito e o mundo que o rodeia, é a desobediência aos desejos da criança, o que lhe demonstra que o objeto externo é diferente dele mesmo: trata-se do momento inaugural da diferença entre um mundo interno regido pelo princípio do prazer, e um mundo externo e autônomo que fomenta a necessidade de guiar-se pelo princípio da realidade, sempre em conflito com os imperativos do desejo.

Baseados neste tipo de exemplos, poderíamos discutir se o que foi colocado no enquadre ou campo, é o que Bion chamou de "núcleos psicóticos da personalidade" (ou as partes divididas e encapsuladas, como as "loucuras privadas" às quais André Green se refere), ou se, pelo contrário, na constância e na imobilidade de tal campo se projeta a confiança no outro — paradigmaticamente, na mãe. O que observamos diante da ruptura de tal enquadre, diante de mudanças ocorridas no campo, é a emergência de defesas primitivas, chamadas "psicóticas", o que nos mostra a dimensão catastrófica com que estes pacientes vivem estas mudanças.Também é justo consignar que a resposta dos pacientes que possuem uma organização edípica e egóica mais sólida, frente às variações no enquadre são muito menos dramáticas e não possuem essa dimensão apocalíptica com a que reagem os pacientes psicóticos ou com uma organização limítrofe e/ou narcisista da personalidade quando o campo muda. Por isto, minha tendência é pensar que possivelmente não se trate tanto de que se "coloquem" as partes psicóticas no enquadre, mas sim a necessidade de constância, solidez e segurança. Quando isto não se realiza, os pacientes mais afetados em suas etapas formativas mais primitivas, são os que reagem com defesas de tipo arcaico, como a negação massiva e alucinação negativa.

Afinal, esta observação não é nova. Sabemos que nas instituições de assistência3 paracrianças abandonadas - os chamados "meninos de rua" - a confiança dos menores

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não se vincula com as pessoas encarregadas de seu cuidado, educação, tratamento, etc, mas está depositada na instituição. Em certas ocasiões a sensação de segurança interna destes menores está depositada concretamente nas paredes do imóvel que os abriga, já que é o único que vêem como seguro e confiável. As pessoas, começando pelas figuras parentais que os abandonaram à sua própria sorte, não lhes resultam dignas de confiança; por esse motivo depositam projetivamente num edifício, a segurança e a consistência potencial, já que é a única contenção que tiveram em toda sua existência.

Por outro lado, e como já mencionamos anteriormente, durante o processo da cura psicanalítica ocorrem uma série de resistências ao tratamento, que podem provir das mais variadas fontes. Como sabemos, existem cinco tipos de resistências descritas na literatura psicanalítica: resistências do Ego (os clássicos mecanismos de defesa), a resistência da transferência, a resistência do Id (denominada por Freud como viscosidade da libido), as resistências do Superego (cuja origem provém do controvertido sentimento inconsciente de culpa); e, finalmente, as resistências derivadas dos benefícios oferecidos pela doença. Todas elas, longe de ser um impedimento para o processo analítico, são o próprio material com o qual o analista trabalha cotidianamente: parte fundamental da tarefa do terapeuta tem a ver com a interpretação, uma e outra vez, de tais resistências, com a finalidade de que o reprimido possa emergir e ser manipulado a partir de outra perspectiva - o que, com o tempo e graças à lenta e paulatina elaboração psíquica, torna desnecessário esse retorno do sepultado no inconsciente através das constelações sintomáticas.

Esta tarefa não seria tão problemática se não fosse pelo fato de que, como advertiu Freud oportunamente, ninguém pode ir mais além do que suas próprias resistências lhe permitem, incluindo os analistas. As resistências do paciente nunca são um problema quando o analista é capaz de detectá-las, identificar sua origem e dinâmica, investigar sua função a serviço de um equilíbrio neurótico, psicótico, limítrofe ou perverso, advertir sua pertinência e utilidade durante certa etapa infantil da vida, assim como sua cristalização e obsolescência contemporânea. O problemático na análise das mesmas derivará das dificuldades naturais e lógicas que os pacientes opõem para abandonar defesas que representaram uma salvaguarda conhecida, porém pouco exitosa devido a que seu uso implica limitar suas capacidades e flexibilidade egóicas, embora tenham lhes permitido continuar sua precária existência.

Entretanto, quando durante o tratamento o analista ergue suas próprias contra-resistências, quando o material do paciente incide sobre aspectos conflitivos e mal conhecidos pelo próprio analista - o que alguns denominam como os "pontos cegos" do terapeuta — se estabelece, então, o que os Baranger batizaram como baluarte resistencial — termo afortunado que nos mostra o caráter de bastião inexpugnável que tal estrutura implica. Nestas condições, algumas resistências dos pacientes não são advertidas pelo analista por um processo ativo de negação de partes específicas do material analítico; mais ainda, o analista opõe uma pertinaz contra-resistência a toda possibilidade de escuta relacionada com o material resistido.

Logicamente, este tipo de situação promove a paralisação do processo psicanalítico (que entra numa fase de não-processo) e o bloqueio do trabalho, com a lamentável esterilidade consecutiva. Longe de ser um trabalho que flui como uma espiral ascendente e progressiva - conforme a feliz metáfora de Pichón-Riviere -, de ser um

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caminho que penetra cada vez mais amplamente e com maior profundidade nos labirintos mentais do analisando, sobrevém a repetição estéril, o andar em círculos de umas associações que não levam a parte alguma, à compulsão repetitiva e tediosa do mesmo material, o estancamento em lugares comuns, o impasse, a reação terapêutica negativa, e um estupor de morte invadindo o campo terapêutico.

Nestas circunstâncias, o processo está destinado ao fracasso, a menos que o analista possa dar-se a oportunidade dessa segunda visão de que falam os Baranger e Mom, visão desde uma "posição meta" que resgate o analista de sua própria imersão nas correntes da resistência. Existem situações, no entanto, que requerem uma segunda visão a partir de outro lugar; daí a necessidade da intervenção oportuna de um colega, que, na supervisão, pode detectar a dinâmica que precipitou o não-processo, o motivo do impasse e o bloqueio do trabalho analítico. Inclusive, existem ocasiões em que a constatação da reiteração de certo tipo de problemas contra-resistenciais no tratamento de vários pacientes diferentes, as atuações do analista, a tendência a tratar certos temas com intervenções moralizantes ou a assumir posturas pedagógicas, pode prevenir o analista da necessidade de uma re-análise com a finalidade de desentranhar as causas que produzem ativamente o não-processo, e estar em condições de superar a paralisia.

Como podemos ver nesta brevíssima revisão das valiosas contribuições apresentadas nestes dois trabalhos destes ilustres expoentes da psicanálise que é praticada em ambas as margens do Rio da Prata, as noções de enquadre - de campo, de setting analítico e de processo analítico, assim como as dificuldades que ocorrem quando o trabalho é invadido pelo não-processo resistencial e quando os conteúdos colocados no enquadre aparecem - são fundamentais para entender esse trabalho impossível, mas fascinante, que é a indagação do inconsciente. A maneira de entender a investigação psicanalítica, de visualizar a inter-relação entre paciente e analista, a forma de ampliar a compreensão do que está em jogo a partir de todos e de cada um dos desvios através dos quais se transita nesse longo caminho chamado psicanálise, foram descritos com inteligência e capacidade de observação clínica singular. José Bleger, em 1967; M. e W Baranger e J. Mom, em 1982, plasmaram, nestes dois trabalhos, um capítulo obrigatório em todo estudo da técnica psicanalítica.

Bibliografia

1. Bleger, J. - (1967): Psicoanálisis del encuadre, en: Simbiosis y ambigüedad, Ed. Paidós, Buenos Aires2. Baranger, M.; Baranger,W.y Mom, J. - (1982): Proceso y no proceso en el trabajo analítico, Rev. de Psicoanálisis, 1982, 39 (4): 527-549 3. Bleger sempre insistiu que o enquadre adquire a estrutura de uma instituição, é o instituído.

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Comentários

Para uma psicanálise do processo psicanalítico. Enquadre, processo e não-processo

B. Miguel Leivi

Gostaria, antes de qualquer coisa, de agradecer à Direção de Publicações da FEPAL pela oportunidade de enfrentar este exercício de leitura de dois artigos clássicos da psicanálise latino-americana: "Psicanálise do enquadre psicanalítico", de José Bleger (JB)1, e "Processo e não processo no trabalho analítico", de Madeleine e Willy Baranger e Jorge Mom (BBM)2. São clássicos não porque o tempo transcorrido desde sua publicação - 35 anos em um caso, 20 anos no outro - os tenha revestido de uma patina envelhecida que os isola de qualquer transformação, preservando-os iguais a si mesmos, mas precisamente pelo contrário: porque sempre é possível empreender com eles um diálogo renovado e atual. O mesmo ocorre com a leitura -, na qual o leitor, coincidindo, discordando, refletindo, pode em última instância encontrar a si mesmo no próprio processo de ler. Nem os textos nem o leitor serão os mesmos após a experiência. Recordo a surpresa que experimentei ao reler, com quarenta e tantos anos, "Rayuela", de Júlio Cortázar, e descobrir que os protagonistas eram pessoas de quarenta e tantos anos, com conflitos próprios dessa época da vida; a primeira vez que o li, em minha adolescência tardia, me pareceu um livro de adolescentes.

Dialogar com dois artigos de diferentes autores, de distintos esquemas referenciais e também separados por um certo período de tempo supõe a necessidade de determinar uma certa medida comum entre eles e o leitor. Seria como um denominador comum que, tal como a baleia e o urso polar deveriam ter para dirimir suas semelhanças e suas diferenças3. Pois bem: mesmo que se suponha inevitavelmente um recorte, uma parcialização na riqueza conceituai de cada texto, não é difícil neste caso encontrar esse substrato comum na interrogação compartilhada acerca do processo psicanalítico, questão sempre de absoluta atualidade para um psicanalista. O que é o processo analítico? Como refletir sobre ele, como transmiti-lo e como avaliá-lo?

Se existe algo que caracteriza a psicanálise enquanto disciplina, e também a posição ética de um psicanalista ao encaminhar uma análise, é, exatamente, um permanente perguntar-se sobre o próprio agir que, desconfiando das certezas, coloca-o sempre em questão. Não só quando as coisas vão mal, mas também, e mais especialmente, quando parecem ir bem, inclusive demasiado bem (BBM,p.546). Sustentar um processo analítico implica em manter aberta uma atitude de interrogação, esclarecer e fazer trabalhar as perguntas implícitas no sofrimento do analisando. Colocar em questão o próprio processo analítico é, portanto equivalente, parafraseando Bleger, a encarar uma psicanálise do processo psicanalítico. Sobre isso se referem ambos artigos.

Obviamente, sempre se empreende uma análise para obter um resultado e para

*. Membro da Associação Psicanalítica de Buenos Aires.

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Para uma psicanálise do processo psicanalítico. Enquadre, processo e não-processo B. Miguel Leivi 139

produzir determinadas mudanças; daí que, em uma primeira aproximação, o processo analítico enquanto processo se caracterize por movimento, e mudança. O devir4 é a variável do fenômeno o que "se move" (JB,p.,241,247-48). Isto requer, certamente, maiores precisões. Não se trata obviamente de um movimento puramente inercial, senão do resultado de um trabalho sobre os obstáculos que a ele se opõem e que o detém (BBM,p.527,546).Também não se trata de um movimento qualquer: não é preciso recorrer a Zenão de Eléa para considerar o que o movimento pode ter de ilusório, de aparente e onde "na realidade não acontece nada" (BBM,p.530); por isso questões como a direção desse movimento num sentido desejável, assim como definições acerca de qual é esse sentido e quais são seus indicadores possíveis (BBM,p.543), não poderão ser evitados. Finalmente, e como que evocando a não-resolvida oposição entre Heráclito e Parmênides, se bem que processo é movimento, nem tudo é movimento, ao lado do que se move e muda no processo, é imprescindível considerar o que não se move e não muda, o que permanece igual. Ao lado do processo, o não-processo.

O não-processo, o que não muda, compreende no entanto dimensões diferentes, e aqui o interesse central de ambos os trabalhos é divergente, mesmo havendo pontos de encontro e de diferenças. Com efeito: para o primeiro deles, a idéia de não-processo se refere, fundamentalmente, "às constantes dentro de cujo marco se dá o processo", que são necessárias logicamente, já que "um processo só pode ser investigado quando são mantidas as mesmas constantes (enquadre)" (JB,p.241). Entretanto para o segundo artigo, não-processo refere-se "aos lugares onde o processo tropeça ou se detém", às "situações de obstrução" do mesmo (BBM,p.527,528), ainda que levando em consideração que, em última instância, "o processo se realiza por resolução sucessiva dos obstáculos que se opõem a seu movimento" (Ibíd.,p.546).

Ambas imobilidades caracterizam e definem, se bem que com formas totalmente diferentes, o processo analítico. Este deve ser concebido em sua dialética particular entre processo e não-processo e entre o que muda e o que não muda. Segundo a primeira pers-pectiva, o não-processo, "as constantes de um fenômeno, método ou técnica" (JB,p.241), é o que não deve mudar, o que deve ser mantido de maneira idealmente invariável para que um método — neste caso o psicanalítico - ainda possa continuar sendo considerado como tal. Esta é a condição que possibilita o processo. A partir da outra perspectiva, o não-processo constitui aquilo que detém e que se opõe ao movimento analítico como resistência (BBM,p.S46). O persistir imóvel pode levar a uma detenção total do processo, e só restaria uma aparência de movimento. Para um psicanalista em exercício, esta diferença é decisiva, já que seu dever é em ambos casos, divergente: deve agir para preservar invariável a constância do método, tanto quanto deve agir para superar os obstáculos que à ele se opõem. Para conservar imóvel, num caso e para mobilizar, no outro.

Esta dupla dimensão, que entendo ser em grande medida possível de ser aplicada a qualquer método de intervenção sobre um objeto, apresenta na psicanálise suas complexidades próprias, e a elas se dedica particularmente o artigo de Bleger. Nele trata-se em especial daquelas situações muito freqüentes para serem consideradas uma exceção, que parecem configurar um verdadeiro paradoxo: uma rigorosa preservação das constantes, uma análise "ideal" (JB,p,242). Esta condição que supostamente deveria garantir um adequado desenvolvimento do processo coincide, entretanto com uma detenção do mesmo, e pode chegar até sua completa imobilização: "... comporta-se como um 'bom paciente', cumpre com os aspectos formais do pacto, não apresenta resistências manifestas, não progri-

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de" (BBM,p.S29). Aqui, quando "o enquadre não é um problema", se trata justamente de "mos-trar que é um problema" (JB,p.242): não há processo e, em seu lugar, ambos sentidos do não-processo, convergindo, passaram a ocupar a totalidade do campo.

Um dos maiores méritos do artigo de Bleger talvez seja, precisamente, o de localizar esta dificuldade e interrogar-se a respeito dela ao longo de todo o trabalho. Contudo, a afirmação sustentada da primeira à última página, de que o enquadre deve ser preservado a todo custo apesar de sua manutenção idealmente normal ser um problema, não tem o mesmo valor, e parece mais a reafirmação de uma postura de princípio do que uma resposta parcial ou provisória, emergente da elaboração da dificuldade assinalada. Por esse motivo, gostaria de manter aberta neste comentário a interrogação sobre as constantes do método, do enquadre e do não-processo. Afinal, a questão do enquadre, tanto como a do processo, é sempre atual para um psicanalista.

Talvez o leitor tenha notado que, quase insensivelmente, produziu-se um desloca-mento: começamos falando das constantes do método, mas nos últimos parágrafos, seguindo as formulações de Bleger, tratamos do enquadre. Serão 'constantes do método' e 'enquadre' sinônimos, que podem ser utilizados de maneira equivalente? Acho que aqui há um aspecto importante a ser considerado no que se refere ao paradoxo exposto.

Para Bleger a resposta a esta última interrogação é indubitavelmente afirmativa, e essa é a razão de seu uso indistinto: as constantes do método são o enquadre em seu conjunto, que inclui "o papel do analista, o conjunto de fatores espaço (ambiente) temporais e parte da técnica (na qual se inclui o estabelecimento e manutenção de horários, honorários, interrupções regradas, etc.)" (JB,p.241). Note-se que a enumeração não é exaustiva, e poderia continuar. Todo esse conjunto que, apesar de tudo, deve ser preservado pelo analista de um modo "nem ambíguo, nem cambiante, nem alterado" (JB,p.2S5), ou restabelecido se é que foi rompido ou distorcido pelo paciente.

Como já foi assinalado, a postura do trabalho dos Baranger e Mom, mesmo que não seja este seu eixo principal, parece diferente: afastando-se "da hierarquização dos aspectos formais", que "propõe diversos problemas", fazem um recorte mais preciso da definição do método, mesmo que o artigo não fale de 'constantes do método'. Trata-se do estabelecimento da regra fundamental, com a assimetria de base que instaura entre analista e analisando, que não admite "nenhuma inversão de funções", e que situa o analista "como escuta e intérprete comprometido com a verdade de tudo o que o paciente associará ou vivenciará" (BBM,p.528), abstendo-sede "qualquer outra coisa atuada com o analisando" (Ibíd,p.533). Nada mais.

Os autores mantêm-se assim muito próximos das formulações freudianas que dife-renciam claramente, dentro do que seria o conjunto de normas do enquadre, as regras do jogo e das recomendações5. As primeiras, mesmo sabendo que seu cumprimento "ideal" é impossível6, são definitórias e obrigatórias: regra fundamental7, atenção flutuante8 e regra de abstinência9, nada mais. As segundas, facultativas e variáveis - "não pretendo nenhuma aceitação incondicional das mesmas" -, compreendem um conjunto de "detalhes insignificantes"10, que só adquirem sua importância "de sua relação com o plano geral do jogo". Estas são traçadas pelas regras e poderão ser modificadas de acordo "com a extraordinária diversidade de constelações psíquicas implicadas, a plasticidade de todos os processos mentais e à abundância de fatores determinantes"11,mas também de acordo com a individualidade de cada analista12. Para Freud é necessário evitar "toda mecanização da técnica"13, que é encarada por ele, como assinala Lacan, com uma soltura e uma liberdade que mostra que "a verdadeira questão se encontra em outro lugar"14: nas razões que sustentam o estabelecimento dessas regras.

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A que obedecem as regras, tal como são estabelecidas por Freud? Se "a estrutura ins-tituída pelo pacto está destinada a permitir um determinado trabalho tendente a um processo" (BBM,p. 528), esse trabalho consiste - primordialmente a através da fala - na revelação do inconsciente do sujeito analisado, através da emergência de seus derivados, tendo como objetivo produzir certas mudanças nesse sujeito. O dispositivo analítico está organizado de modo que tal emergência se produza somente no plano da palavra, e suas regras buscam organizar o diálogo particular no qual consiste a análise, repartindo assimetricamente os lugares entre ambos sujeitos: o que fala (associação livre), e o que escuta (atenção flutuante). São estas regras que, para Freud, não admitem variação possível15, já que constituem o fundamental do método.

Junto a elas, todo o resto dos ajustes - um conjunto heterogêneo de estipulações, impossíveis de enumerar em sua totalidade e que não são, com certeza, em absoluto indi-ferentes —, estão destinadas a fazer o trabalho analítico mais favorável, mais eficiente, inclu-sive mais confortável. Muitas vezes simplesmente permitem torná-lo possível. Seu valor depende, portanto, de forma secundária, da medida em que favorecem o funcionamento das regras fundamentais. Enquanto não interferirem nos fundamentos do método, podem variar de analista para analista, de caso para caso, de situação para situação. No melhor dos casos, podem fazê-lo por razões inerentes ao próprio processo, para favorecê-lo. Podem também variar por razões extrínsecas, não é a melhor mas é perfeitamente concebível que se possa trabalhar em condições pouco favoráveis, até mesmo precárias, mas ainda dentro do método psicanalítico, sempre que seus fundamentos forem conservados. Parece-me que esta perspectiva deveria ser particularmente levada em consideração nas condições em que nossa prática se desenvolve na atualidade do incipiente século XXI.

Podemos ilustrar esta situação utilizando livremente um argumento de Freud: no xadrez, só as regras referentes à disposição do tabuleiro, o número e movimentos das peças, a ordem das jogadas e o objetivo final do jogo é que constituem os fundamentos do mesmo. As outras disposições e estipulações possíveis - os materiais utilizados, as condições do ambiente em que se joga, etc. — só produzem o conforto dos jogadores e, nesse sentido, certamente contribuem à qualidade de seu desempenho dentro das regras. Porém é obvio que, mesmo em condições desfavoráveis - um ambiente ruidoso e perturbador, por exemplo — ainda pode-se jogar xadrez. Entretanto, bastaria modificar o complicado movimento do cavalo, para que o jogo já fosse outro.

Como exemplo da absoluta atualidade desta questão assinalemos que, num trabalho recente, Carlos Rios16 considera que o enquadre analítico, que inclui "o conjunto de variáveis e normas empíricas implementadas por Freud" - suas regras, conselhos e recomendações - "não são somente prescrições, mas em seu conjunto constituem regras do jogo (como no xadrez)18". Deste modo, "o enquadre da terapia psicanalítico é tão fundamental na definição do sentido como os discursos que são inerentes à mesma: associação livre e interpretação". Sustenta ainda, que "o enfoque metapsicológico do enquadre de cada analista tem um sentido que inevitavelmente se articulará com o que surge das associações livres do paciente", e cita o seu: "uma metapsicología baseada na Cena Primordial organizada como um Objeto Combinado que representa o núcleo do sistema superego-ideal do ego que funciona como uma matriz das funções do enquadre". Também Bleger, no artigo que estamos comentando, expõe sua própria concepção metapsicológica do enquadre: é "o marco sobre o qual estão construídos o Ego e a identidade do sujeito" (JB,p.246), "depositário da parte psicótica da personalidade... a parte indiferenciada e não resolvida dos primitivos vínculos simbióticos" (JB,p.247), "a parte mais primitiva da personalidade... de

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cuja imobilização depende a formação, existência e discriminação (do Ego, do objeto, do esquema corporal, do corpo, da mente, etc.)" (JB,p.248). Daí a absoluta necessidade de sua preservação: "o que altera funda-mentalmente toda possibilidade de um tratamento profundo é a ruptura que o psicanalista introduz ou admite no enquadre" (JB,p.255); isto presume sempre uma situação catastrófica (JB,p.248).

Por onde deveria passar a navalha de Occam? Não por um lugar unívoco, evidente-mente. Se a partir de certa perspectiva o risco é o de chegar a incluir entre os fundamentos um excesso de categorias meramente acessórias e circunstanciais, produzindo uma multiplicação que confundiria o sentido do método, a partir de outro ponto de vista o risco, oposto, é o de adotar um enfoque excessivamente restritivo que exclua dos fundamentos essas mesmas categorias, produzindo uma descontextualização e uma insuficiência ou uma perturbação da coerência do sentido (C.Ríos). Talvez se deva pensar que, depois de tudo, um dos produtos genuínos do diálogo é também localizar as aberturas percebidas nas divergências.

Para retornar ao artigo de Bleger, cabe assinalar que a inclusão do conjunto de estipulações do enquadre dentro das constantes do método não se deve somente a sua con-cepção metapsicológica, mas também a razões metodológicas. Como já indicamos, para Freud a análise é um "jogo" que se desenvolve no campo da palavra; portanto, para ele, os fundamentos são aqueles que regulam essa relação de palavra entre dois sujeitos. Não creio que nenhum psicanalista, qualquer que seja sua orientação, rejeite este substrato comum. Mas, evidentemente, para muitos, o mesmo resulta insuficiente, já que necessitam sobre-por-lhe outros modelos de relação. Isto certamente obedece à necessidade de torná-lo mais consistente e seguro; o inconveniente é que também acarreta novos problemas.

Bleger expõe com clareza: em sua delimitação entre processo e não-processo, constantes e variáveis, Bleger aborda a relação analítica como se tratasse de um experimento ou uma indagação científica realizada por um sujeito investigador sobre um objeto investigado; para estudá-lo, investigá-lo ou agir sobre ele, certos parâmetros devem ser imobilizados, mantidos invariáveis e constantes, para poder considerar somente as variações dos restantes enquanto objetos de estudo. Quanto mais variáveis forem assim imobilizadas, tornadas mudas, menores serão as interferências sobre as outras, que poderão ser estudadas em condições mais puras. O enquadre executa metodologicamente esta função.

O paradoxo que Bleger expõe em sua observação consiste em que, quanto mais a situação analítica se aproxima deste modelo ideal, mais problemática se torna; se o enquadre, o imobilizado, é executado com perfeição, "constitui a mais perfeita compulsão de repetição", contendo "o que não aparece e provavelmente nunca seja analisável" (JB,p.246); é "o 'baluarte' mais persistente, tenaz e inaparente" (JB,p.24S), "uma dependência" (JB,p.2Sl). A menos que o enquadre se rompa ou se altere, deixando de ser mudo (JB,p.253), por exemplo, por causas acidentais; nesse caso, as constantes se tornam variáveis e poderiam então ser analisadas. Mas isso é algo que não deveria acontecer.

Julgo que ocorre uma relação de palavra entre dois sujeitos falantes - não é isso, afinal, uma relação analítica? — que não se presta a ser reduzida apenas a uma relação regulamentada entre um sujeito e um objeto, segundo o modelo da ciência empírica. Sempre algo do sujeito se subtrai, se resiste a essa redução18. Mais ainda: quanto mais lhe imponham ajustes em um altar de uma objetividade ideal, mais o sujeito resistirá a estes ajustes. Isto é algo que foi se apresentando a Freud em sua experiência, e ele não deixou de cuidar disso. Havendo partido de um enfoque médico, objetivo, encontrou-

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se gradualmente com fatos surpreendentes, inesperados em um contexto de investigação científica, que o levaram a formular conceitos que vieram a ser parâmetros para a psicanálise, como por exemplo a resistência e a transferência, e levaram-no também a depurar o dispositivo analítico enquanto centrado na palavra.

Com certeza é por isso que, para um analista - que lida com um sujeito falante —, a aproximação a esse ideal científico somente expõe sua impossibilidade ou, mais ainda, sua incredibilidade: para um sujeito não há maneira de adequar-se ao mesmo, e por isso não surpreende demais que o mais perfeito e exigente respeito das normas do enquadre resulte considerado como um "exagerado cumprimento obsessivo" (JB,p.241). É impossível, mesmo que ele seja cumprido à risca, evitar distorcer o enquadre. Este impasse não deixa de evocar a imortal piada relatada por Freud: "Que mentiroso você é!... Se você diz que vai a Cracóvia é porque quer que eu acredite que você vai a Lemberg. Mas eu sei que na verdade você vai a Cracóvia. Então, por que você mente pura mim?"19. A lembrança não é casual. É que a situação analítica possui certamente mais uma estrutura de chiste do que de experimento científico. Afinal, o chiste, modelo de emergência do inconsciente, tem, como o sujeito falante e como a relação analítica, uma estrutura de palavra. Nela o sujeito nunca é transparente e calculável, como o é potencialmente um objeto científico; justamente, como assinala Lacan, "o sinal no qual se reconhece a relação de sujeito a sujeito, e que a discrimina da relação entre o sujeito e o objeto, é o fingimento": Se existe algo em que se reconhece um sujeito é o fato dele ser capaz de mentir, de enganar20. O que, obviamente, não quer dizer que o faça necessariamente - isso até poderia sugerir alguma certeza paradoxal: um sujeito sempre mente —, mas que indica que é inevitável contar, em toda relação com um sujeito, com essa dimensão de incerteza e que ela deve ser controlada.

Penso que algo parecido ocorre com outra tentativa teórica de Bleger de fundamentar as constantes do enquadre. Refiro-me ao fato de que o imobilizado se situa conceitualmente em um nível diferente ao das variáveis em jogo, um nível imprescindível do qual dependeriam os fenômenos que formam parte do processo: "agora sabemos que a comunicação inclui uma metacomunicação, a ciência uma metaciencia, a teoria uma metateoria, a linguagem uma metalinguagem, a lógica uma metalógica, etc... Assim, o enquadre, sendo constante, resulta decisivo para os fenômenos do processo da conduta. Em outras palavras, o enquadre é uma metaconduta, e dele dependem os fenômenos que reconheceremos como condutas" (JB,p.244). O caráter de metaconduta, de metalinguagem,atribuído ao enquadre, é outro argumento que o estabelece como aquele que deve ficar imobilizado para que o resto das variáveis possam ser estudadas. O problema, novamente, é que longe de permanecer invariável, "às vezes de forma permanente, e outras esporádica, o enquadre se transforma de fundo de uma Gestalt em figura, quer dizer, em processo" (JB,p.242); devendo permanecer silencioso, deixa de ser "mudo" (Ibíd.,p.253).

Segundo a tradição, Arquimedes, que postulou algumas das leis mais fundamentais da mecânica, disse certa vez com relação ao princípio da alavanca, (por ele formulado): "Dêem-me um ponto de apoio e eu moverei o mundo". Não parece pedir demais: só um ponto imóvel para mover o universo inteiro. O problema é que para esse ponto de apoio poder servir para mover o mundo, ele deveria estar fora do mesmo; seria, portanto necessário, antes de tudo excluir esse ponto, o qual, só depois serviria de apoio para produzir o trabalho buscado. Creio que uma expectativa similar fundamenta o que foi fixado no enquadre: as categorias de metaconduta ou metalinguagem, por exemplo, supõem a imobilização, fora do universo da conduta ou da linguagem, de um conjun-

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to de fenômenos dos quais vai depender o resto. Só que é impossível excluir um ponto do mundo. Para nós este mundo é o mundo do discurso. Se a expectativa desta operação é silenciar as variáveis do enquadre para agir sobre o resto baseando-se nelas, ocorre que, longe disso, o silenciado reaparece interferindo na conversação. Tratando-se de seres falantes, o excluído como metalinguagem retorna como linguagem. Tal como Freud demonstrou no histórico de Dora, mesmo que não exatamente com relação ao enquadre: "... quem tem olhos para ver e ouvidos para escutar pode convencer-se de que nenhum mortal pode guardar um segredo. Se seus lábios estão silenciosos, conversa com a ponta de seus dedos..."21. Ou, poderíamos agregar, com as constantes do enquadre.

Baranger e Mom destacam em seu trabalho que "comparar a psicanálise às 'ciências da natureza', ou experimentais, nas quais a história não tem lugar" tem vários efeitos. Um deles é o fato de contribuir para a perda de uma perspectiva central do trabalho analítico, ao menos tal como é concebido por Freud: mais precisamente, a da história do sujeito como "dimensão essencial do que deve ser revelado numa psicanálise" (BBM,p.S3S). Uma lembrança oportuna, totalmente válida também em nossos dias, e que parece marcar outro paradoxo é que a necessidade de buscar consistência recorrendo a modelos científicos empíricos põe a perder a dimensão em que se desenvolve a investigação analítica propriamente dita, a dimensão histórica. Com efeito: se existe algum campo onde Freud procura, em toda a sua obra, certo grau de problemática consistente para a exploração psicanalítica, esse campo é justamente o histórico. É isto que dá sentido às suas formulações referidas ao objetivo do trabalho analítico: eliminar amnésias, recuperar lembranças e acumular lacunas mnésicas22, "obter um quadro dos anos esquecidos do paciente que seja ao mesmo tempo confiável e completo em todos os seus aspectos essenciais"23. Nesta perspectiva, "o processo analítico reescreve de certo modo a história do sujeito ao mesmo tempo em que muda seu sentido" (BBM,p.S38), através de inferências e reconstruções que, abertas a possíveis erros, dúvidas e incertezas, somente aspiram conseguir "um certo grau de probabilidade"24. Ainda assim, pode-se esperar delas "um resultado completo... uma convicção assegurada da verdade da construção (histórica) que obtém o mesmo resultado terapêutico que uma lembrança recuperada"25. Se "a transposição de material de um passado esquecido sobre o presente ou sobre uma expectativa de futuro" é uma das dimensões centrais da formação de sintomas, nas neuroses tanto quanto nas psicoses, o processo terapêutico busca, coerentemente, "libertar o fragmento de verdade histórica de suas distorções e de seus vínculos com o dia de hoje para levá-lo de volta para o ponto do passado ao qual pertence".

Como poderia um enfoque experimental empírico ter noção desta dimensão, essencial tanto para a subjetividade como para o trabalho que a psicanálise se propõe sobre ela? "Submeter as hipóteses analíticas ao testemunho de uma observação experimental" implica reduzir a perspecti-va histórica da psicanálise, inteiramente desenvolvida no plano simbólico, "às observações experi-mentais da psicologia evolutiva", de acordo com o "pré-julgamento básico" baseado em "acreditar que a psi-canálise está em continuidade com a psicologia evolutiva e que forçosamente as descrições têm que coincidir, se são ver-dadeiras" (BBM,p.536). Pelo contrário, os autores enfatizam "a descontinuidade da psicanálise com todo tipo de psicologia evolutiva", o caráter contraditório que em si mesmo possui um "enfoque 'histórico-genético'" e o fato de que a história e o desenvolvimento evolutivo supõem concepções totalmente divergentes da temporalidade, ou seja: "ao invés de um acontecimento constituir-se numa causa determinante de uma série de acontecimentos ulteriores (desenvolvimento), este acontecimento inicial não adquire seu sentido senão em virtude dos acontecimentos ulteriores (nachtr glichkeit, história)" (Ibíd.). Como já assinalei, acho estas precisões conceituais tão atuais como quando foram escritas.

Deixaria, ao invés disso, uma interrogação em aberto - que somente quero indi-

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car aqui, sem desenvolver - com relação a uma questão complexa que os autores abordam e às possíveis alternativas propostas para encará-la. Trata-se do fato de que, se um analista não deve, por um lado, renunciar à sua função de "direção da cura" (BBM,p.S43) -razão pela qual necessita ter alguma idéia acerca do devir de um processo —, a possível clausura em seu próprio esquema referencial (Ibíd.,p.548) pode, por outro lado, dar a essas idéias prévias o caráter de um "leito de Procusto" (Ibíd.,p.542), de pré-julgamento, que o leve a "fabricar" indivíduos em série27. Diante do importante problema que é o excesso de consistência de uma teoria que explica em demasia, ou de sua possível utilização por parte de algum analista para não deixar em aberto nenhuma margem de incerteza, os autores propõem uma utilização instrumental das teorias, ou seja, transitar por "múltiplos esquemas", já que "a clínica é mais variada que nossos esquemas e não nos regateia as oportunidades de inventar" (Ibíd.,p.S48-S49). Mesmo advertindo contra o "ecletismo confusional" (ibíd.), não está claro como se pode evitar este outro problema, simetricamente oposto ao primeiro. Algo parecido se propõe em relação aos possíveis indicadores da existência de um processo ou um não-processo: os autores propõem alguns indicadores para serem considerados "ainda que não se encaixem em nosso esquema referencial teórico" (íbid,p.543). Surge aqui uma interrogação sobre a possibilidade de existirem indicadores que sejam independentes de qualquer teoria. O que eles propõem em primeiro lugar, é a questão do "vencimento da amnésia infantil" (íbid.,p.S44), que está completamente determinado pela teoria analítica freudiana; quem não a acata - um sistêmico, por exemplo - dificilmente a aceitaria como o valioso indicador que é para um psicanalista; e o mesmo vale para outros indicadores: fluidez do discurso, circulação afetiva dentro do campo, etc.

A distância cronológica que existe por um lado, entre o momento da escrita e publicação dos artigos que estamos comentando, e por outro o da leitura dos mesmos, abre uma perspectiva na qual a complexidade retroativa da temporalidade histórico-psicanalítica não deixa de estar presente: o acontecimento ulterior da leitura pode aportar sentidos ao acontecimento inicial da escrita, sentidos que talvez a diacronia permite colocar mais claramente em evidência; ao contrário, considerar o contexto no qual o primeiro acontecimento, o da escrita, ocorreu, pode contribuir, por suas semelhanças e suas diferenças, à compreensão das condições atuais. O interjogo entre ambos momentos permite, no que nos diz respeito, destacar as diferenças entre os fundamentos trans-históricos do método, aqueles que não deveriam mudar através do tempo e das circunstâncias, e os outros aspectos, contingentes e determinados por circunstâncias históricas mutantes; esclarecendo por via das dúvidas, que considerá-los contingentes em absoluto significa supor-los indiferentes ou intranscendentes. Queria fazer algumas breves considerações a esse respeito antes de concluir meu comentário.

Perto do final de seu trabalho Bleger cita um exemplo clínico tirado de uma supervisão, no qual, como nos outros casos relatados, o enquadre havia deixado de ser silencioso. Com a particularidade de que "neste caso o próprio enquadre do psicanalista estava vicia-do", porque "paciente e terapeuta se tratavam por 'você'28 porque assim havia proposto o paciente no começo de sua análise (e isto foi aceito pelo terapeuta)" (JB,p.253-254). Bleger não tem dúvidas a respeito de que "o analista não tem que aceitar tratar o paciente por você", e orientou a supervisão, portanto, para a correção dessa falha. Alcançada a correção, "a mudança do tuteio mediante a análise levou a ver que o caso não era o de um caráter fóbico obsessivo mais sim o de uma esquizofrenia simples com uma 'fachada caracterológica fóbico-obsessiva" (Ibíd.,p.254).

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É indubitável que naqueles idiomas nos quais existe uma dupla forma de dirigir-se ao interlocutor — digamos, 'o Sr.' e 'você' —, não é indiferente em absoluto utilizar uma ou outra. Não creio que seja necessário estender-se a esse respeito, mas sim formular algumas perguntas. Por que é uma obrigação para o psicanalista utilizar somente uma destas formas? Isto acontece em todos os casos e situações? Por exemplo, um adolescente também deve ser tratado de 'Sr.'? Se a resposta a esta última pergunta for negativa, quando e em quais circunstâncias a diferença deve ser considerada? Fora isso, se o sentido de fixar uma constante é torná-la "silenciosa", excluí-la do processo, por que razão é uma forma mais silenciosa do que a outra?

Parece-me que abordar esta questão em perspectiva esclarece que a mesma está fora dos fundamentos: mesmo deixando de lado o ponto já assinalado de que nem todos os idiomas possuem este duplo modo de tratamento, parece evidente que tratar o paciente por 'você', mesmo dentro de uma mesma língua, está submetido a regras que mudam de acordo com lugares, costumes locais e épocas. Não creio que nem mesmo onde foram publicadas, as normas consuetudinárias a respeito do uso social do 'Sr.' e do 'você' tenham-se mantido invariáveis nos 35 anos transcorridos desde a publicação do trabalho de Bleger. Por isso, o significado de uma e outra forma de tratamento - já que ambas estão longe de ser constantes metalingüísticas mudas - certamente não é o mesmo. Mesmo assim, o importante é sem dúvida, em última instância, o significado que cada uma pode adquirir na singularidade de uma análise ou de alguma conjuntura particular da mesma, como parte do processo. É evidente que o mesmo não ocorre com a livre associação ou a atenção flutuante, que continuam sendo constantes enquanto fundamentos, qualquer que seja o idioma, as circunstâncias ou a subjetividade em jogo.

Quanto ao caso relatado, e levando em consideração que não há no artigo elementos de juízo suficientes para poder opinar com base sobre o mesmo, surge outra pergunta. Se a modificação na maneira de dirigir-se ao paciente levou a uma mudança de tal magnitude em seu enquadramento diagnóstico, não seria mais lógico pensar que talvez o que estava detur-pado não era tanto o enquadre senão, precisamente, o diagnóstico? Em tal caso, de tratar-se efetivamente de uma estrutura psicótica, talvez houvesse sido melhor não ter que se sujeitar procustianamente a uma exigência do enquadre e continuar a tratar o paciente por 'você' — já que, se era tão importante, talvez permitisse ao paciente obter certa estabilização -, ao invés de impor uma mudança que poderia arriscar um desencadeamento psicótico. Obviamente, isto não é mais que uma especulação, mas propõe outra alternativa clínica e técnica a partir de um diferente enfoque da questão das constantes do método.

Muitas coisas mudaram no tempo transcorrido desde que os artigos em questão foram publicados, e não somente as regras sociais do tratamento: o mundo, a sociedade, nossos países, os costumes. Tudo é muito diferente. Como não poderia deixar de ser, também as condições nas quais a prática psicanalítica se desenvolve certamente mudaram muito. Afinal um psicanalista trabalha imerso na atualidade, com sujeitos concretos, de carne e osso, que vivem numa sociedade e numa época determinadas e padecem, além do mais, dos conflitos eternos e estruturais de todo ser humano e os mais próximos de seu tempo e lugar. Não é minha intenção, obviamente, estender-me aqui sobre estas questões. Só quero salientar que, tal como manifestou Freud, a função central do conjunto heterogêneo de ajustes da prática clínica é atender às singularidades: as subjetivas de quem consulta, as de cada analista em sua prática, mas também - eu acrescentaria - as

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Para uma psicanálise do processo psicanalítico. Enquadre, processo e não-processo B. Miguel Leivi 147

das circunstâncias em que essa prática se desenvolve em cada tempo e em cada lugar. Se alguém relê, por exemplo, as "Recomendações aos médicos que praticam psicanálise" ou "Os inícios do tratamento" reconhecerá facilmente que, à exceção dos fundamentos, o restante atende a condições que pouco têm a ver com as atuais. A finalidade essencial que organiza o dis-positivo analítico, a revelação do inconsciente através da emergência de seus derivados, continua, portanto, sendo a mesma, e a isso respondem os fundamentos do método, os únicos que deveriam permanecer invariáveis. Entendo, portanto, que as recomendações de Freud quanto à utilização dos recursos deveriam ser particularmente levadas em consideração, com a finalidade de encarar - de maneira flexível e evitando qualquer rigidez da técnica - as circunstâncias que o trabalho analítico enfrenta na atualidade.

Notas

l.Rev.dePsicoonálisis.Vol. XXIV N° 2, 1967, pág. 241-258.2. Rev.dePsicoanálisis.Vol. XXXIX N° 4, 1982, pág. 527-549. 3. Freud, S. - História de uma neurose infantil. S.E., Vol. XVII, pág. 48. 4. Ferrater Mora,J. — Diccionario de Filosofia — Art.: Proceso, movimiento, devenir. 5. Freud, S. - Los comienzos del tratamiento (1913). S.E. Vol. XII, pág. 123. 6 Ibíd. pág. 13 Sn. 7. Ibíd. pág. 134. 8. Freud, S. — Recomendaciones a los médicos que practican psicoanálisis (1912). S.E. Vol. XII, pág. 111. 9. Freud, S. - Observaciones sobre el amor de transferencia (1915). S.E. Vol. XII, pág. 16 5 - Líneas de avance en terapia psicoanalítica (1919). S.E. Vol. XVII, pág. 162. 10. Ibíd. nota 6. 11. Ibíd, 12. Ibíd. nota 8 - "... elas eram, para Freud, um instrumento, no sentido que se diz de uma ferramenta feita sob medida. Em resumo,diz, está feita sob medida para minha mão, e assim é como eu posso segurá-la. Outros talvez preferissem um instrumento ligeiramente dife-rente, mais adequado a sua mão..." (Lacan, J. Ibíd., nota 15). 13. Ibíd. nota 6. 14. Lacan, J. - Seminário I. Los escritos técnicos de Freud (1954). Paidós, Barcelona, 1981, pág. 23. 15. Recorde-se, por exemplo, sua resposta ao Homem dos Ratos quando este lhe pediu para ser dispensado de relatar todos os detalhes de seu grande temor obsessivo - "eu não poderia outorgar-lhe algo que está mais além de meu poder. Poderia igualmente pedir-me que lhe dê a lua. A superação de resistências é uma lei do tratamento, e sob nenhuma consideração poder-se-ia prescindir dela" (S.E. Vol. X, pág. 166) -, ou sua terminante negativa a convalidar qualquer tipo de reserva mental na comunicação das associações: "Pour faire une omelette il faut casser des oeufs... Toda a tarefa se torna impossível caso permita-se uma reserva em um só lugar" (S.E. Vol. XII, pág. 135). 16. Rios,C. - Encuadre y sentido -Apresentado no Ateneo de APdeBA em 14/V/02. 17. Destacado pelo autor. 18. Clavreul,J. - El orden médico. Argot, Barcelona, 1983, pág. 27. 19. Freud, S. — El chiste y su relación con Io inconsciente. S.E. Vol. VIU, pág 115. 20. LacanJ. - Seminário III: Las psicosis. Paidós, Barcelona, 1984, pág. 58, 95. 21. Freud, S. - Fragmentos del análisis de un caso de histeria (1901). S.E. Vol. VII, pág. 77-78. 22. Freud, S. - El procedimiento psicoanalítico de Freud (1904). S.E. Vol. VII, pág. 253 - Recordar, repetir y elaborar (1914). S.E. Vol. XII, pág. 148. 23. Freud, S. - Construcciones en el análisis. S.E. Vol. XXIII, pág. 258. 24. Ibíd. pág. 259-260. 25. Ibíd. pág. 266. 26 Ibíd. pág. 268. 27. Bleger também se ocupa brevemente deste problema em seu artigo (JB, p. 251-252). 28. Destacado pelo autor.

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Mudanças e permanências

4. Crianças e adolescentes

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Artigos clássicos

O mundo do adolescente*Arminda Aberastury

Se pensarmos no que há de essencial na adolescência, no que a define, diríamos que é a necessidade de entrar no mundo do adulto. A modificação corporal, essência da puberdade, o desenvolvimento dos órgãos sexuais e da capacidade de reprodução, são vividos pelo adolescente como o eclodir de um novo papel que modifica sua posição frente ao mundo e que ademais o compromete também em todos os níveis da convivência.

Creio que frente à iminência das primeiras mudanças corporais e à ansiedade que estas provocam, o adolescente realiza uma fuga progressiva do mundo exterior e busca um refúgio temporário em seu mundo interno.

As características deste mundo interno determinarão em sua maior parte a qualidade de suas crises. O mundo exterior aceitando ou rejeitando sua riqueza crescente, permitirá ou impedirá o desenvolvimento do que considero típico do pensamento e da ação do adolescente.

No temor ao crescimento e na angústia de entrar no mundo do adulto os sentimentos de rivalidade e insuficiência que mostrarei mais adiante, desempenham um importante papel e devo também assinalar que a criança nesse momento já sabe como e em quê não quer ser como um adulto, mesmo que grande parte de si mesmo aspire a ser-lo de um modo geral.

É como se um pouco aterrorizado ante uma metamorfose com a qual não está muito de acordo e à qual se sente impulsionado por forças desconhecidas atuantes dentro dele, procurasse desesperadamente mediante uma série de planos e reformas do mundo exterior assegurar-se de que poderia colocar limites à ação do adulto caso necessário.

O interjogo e distância entre mundo interno e realidade exterior determinará a duração e qualidade de sua crise emocional.

Durante este período, no qual se prepara para entrar no mundo do adulto, produzem-se algumas mudanças fundamentais no pensamento dos adolescentes de ambos sexos. Antes de enfrentar-se com a mudança total e enquanto esta se vai produzindo são evidentes uma série de modificações internas que se traduzem na construção do que Piaget chama estruturas formais do pensamento. Estas estruturas lhes permitirão o acesso ao mundo do adulto.

Quando a criança sente a iminência dessas mudanças, começa a julgar com severidade crítica aos adultos, pais, professores, etc, e expressa assim sua angústia por ter que entrar num plano de igualdade e reciprocidade com eles.

Por exemplo, a menina, em competição com a mãe, desvaloriza sua imagem e

* Aberastury, Arminda. El mundo dei adolescente. In: Aberastury, Arminda, et ai. Adolescência. 3. ed.Buenos Aires: Ed. Kargieman, 1976. p.337-66.Lo: Ab37ad, 1976

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sua conduta, para diminuir assim a noção de distância. Com o menino a luta é com o pai e se expressará de múltiplas maneiras mas o significado é o mesmo.

Seus próprios valores sobressaem à medida que desvaloriza as capacidades e os valores dos pais sem necessidade de fazer o esforço para que sobressaiam por si mesmos.

Este é o primeiro passo de uma competição na qual a conquista da vitória implica na aniquilação da vítima, aniquilação essa que deve ser absoluta para que não seja possível a vingança.

Mas quando realizou uma certa quantidade de conquistas adultas que lhe permitem competir sem necessidade de aniquilar o adversário, já se sente mais poderoso, os sentimentos de amor e gratidão podem aflorar junto com os de competição e ódio.

O adolescente sente que deve planejar sua vida (controlar as mudanças) surgindo nele paralelamente a necessidade de adaptar o mundo exterior às suas necessidades imperativas. Daí sua ânsia de reforma social.

A dor que lhe produz abandonar seu mundo e a noção de que existem mais modificações incontroláveis dentro de si, leva-o a empreender reformas exteriores que lhe assegurem a satisfação de suas necessidades na nova situação em que se encontra agora frente ao mundo, e que ao mesmo tempo lhe servem de defesa contra as mudanças incontroláveis internas e de seu corpo. Acontece neste momento um incremento da intelectualização para superar a incapacidade de ação (que é a correspondente ao período de onipotência do pensamento na criança pequena). O adolescente busca teoricamente a solução de todos os problemas transcendentes, o amor, a liberade, o casamento, a paternidade, a educação, a filosofia, a religião.

A inserção no mundo social do adulto com suas modificações internas e seu plano de reformas é o que vai formando sua personalidade.

Porém nos perguntamos: o que define a qualidade desse plano de vida e de reformas?Podemos ver que consiste na transposição ao mundo exterior das primeiras relações

com seus pais. Quanto mais harmônica e feliz é a vida de uma criança, quanto mais estável e em paz seu mundo interno, menor será seu ressentimento familiar e social.

Seu novo plano de vida lhe exige abordar o problema dos valores éticos, intelectuais, afetivos; implica o nascimento de novos ideais e a aquisição da capacidade de lutar para consegui-los.

Mas ao mesmo tempo implica em um desprendimento: abandonar a solução do "como se" da brincadeira e do aprendizado, para enfrentar o "sim" e o "não" da realidade ativa que tem em suas mãos.

Quer dizer, implica num distanciamento do presente, e com isto a fantasia de projetar-se no futuro e ser, tornando-se independente, e de não ser como os pais.

Tudo isto exige formar uma série de teorias, um sistema de idéias, um programa ao qual agarrar-se e também a necessidade de algo em que possa descarregar o montante de ansiedade e os conflitos que surgem de sua ambivalência: o impulso ao desprendimento e a tendência a permanecer ligado.

Esta crise intensa se soluciona transitoriamente com uma fuga do mundo exterior, um refúgio na vida de fantasia, no mundo interno, com o incremento da onipotência narcisista e a sensação de prescindir do exterior para poder iniciar a partir daqui conexões com novos objetos do mundo exterior.

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O mundo do adolescente ,4rmínda Aberastury

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Em nossa fantasia inconsciente levamos dentro de nós um mundo formado a partir do modelo das pessoas que primeiro amamos e odiamos e que representam também aspectos de nós mesmos. Sua existência dentro de nós pode ser tanto ou mais real em nossos sentimentos inconscientes que os acontecimentos exteriores.

Freud foi o primeiro a descobrir a existência do objeto introjetivo, como fenômeno de nosso desenvolvimento normal dando-lhe a categoria de realidade psíquica. Em seguida Melanie Klein, ao estudar as fantasias inconscientes em crianças pequenas ampliou o conceito de Freud. Estas figuras de nosso mundo interno, foram e são sentidas por nós, como fazendo parte de nós mesmos e representam o que amamos, admiramos e ambicionamos possuir; constituem os bons e maus aspectos de nossa vida e de nossa personalidade.

O aspecto positivo destas figuras é menos consciente que seus maus aspectos, já que são estes os que nos produzem reações de temor e ansiedade. A vida das emoções, ativa em nós desde o nascimento até a morte, está baseada num simples modelo: tudo é mau ou bom; nada é neutro. Os acontecimentos, as circunstâncias, os objetos e as pessoas e sobretudo nossos próprios sentimentos e experiências são vividos em nosso íntimo como essencialmente maus ou bons.

As palavras mau e bom estão aqui empregadas em seu sentido mais simples, como as usaria uma criança pequena, pois conservam seu sentido original ainda que nossas experiências sucessivas as mudem mil vezes de nome e as multipliquem até o infinito.

O adolescente em sua fuga defensiva mantém e reforça sua relação com os objetos internos e evita os externos. Nesse momento salva-o do autismo, por exemplo, escrever seu diário íntimo, a conexão com o amigo feito à sua imagem e semelhança.

Sua hostilidade frente aos pais e ao mundo em geral expressa-se em sua desconfiança, na idéia de não ser compreendido, em sua recusa da realidade.

Vejamos como sai desta submersão no mundo interno e como um adolescente se torna adulto.

Só quando sua maturidade biológica estiver acompanhada de uma maturidade afetiva e intelectual que lhe permita sua entrada no mundo do adulto, reconciliando-se com os pais e substitutos nos quais reconhece e aceita tanto o bom como o mau, poderá sentir gratidão e fazer críticas tomando distância deles. Entra, então, equipado de um sistema de valores, com uma ideologia que confronta com a de seu meio e onde a recusa a determinadas situações se cumpre numa crítica construtiva. Confronta suas teorias políticas e sociais e se embandeira, defendendo uma idéia. Sua idéia de reforma do mundo se traduz em ação. Tem uma resposta às dificuldades e desordens da vida. Adquire teorias estéticas e éticas. Confronta e soluciona suas idéias sobre a existência de Deus e sua posição não se acompanha de exigência de submissão.

Todo este processo exige um lento desenvolvimento onde são negados e afirmados seus princípios, onde luta entre sua necessidade de independência e sua nostalgia e necessidade de reasseguração e dependência.

Sofre crises de susceptibilidade e de ciúmes, exige e necessita vigilância e depen-dência, mas sem transição surgem nele a recusa ao contato com os objetos originários e a necessidade de tornar-se independente e de fugir deles.

A qualidade do processo de amadurecimento e crescimento dos primeiros anos, a estabilidade nos afetos, a quantidade de gratificação e frustração e a gradual adapta-

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ção às exigências ambientais, irão marcar a intensidade e gravidade destes conflitos. Por exemplo, obter uma satisfação suficiente (adequada no tempo) às necessidades fundamentais da sexualidade infantil, incluindo nesta satisfação tanto a ação como o esclarecimento oportuno dos problemas, determinará no adolescente uma atitude mais livre frente ao sexo, do mesmo modo que relações cordiais mantidas com a mãe determinarão no menino uma maior facilidade em sua relação com a mulher o mesmo se referindo à menina com o pai.

Neste período de transição o adolescente flutua entre sua necessidade de solidão e de comunicação, entre sua idéia de bondade e de maldade, de egoísmo e de altruísmo, de ascetismo e de sexualidade, de tendência à sujeira e prurido, de limpeza e elegância. Na realidade os opostos convivem nele.

Em todo este conflito interno, enfrenta-se na realidade com o mundo do adulto, que ao sentir-se atacado, julgado, molestado e ameaçado por esta onda de crescimento tende a reagir com uma total incompreensão, com recusa e com um reforço de sua autoridade.

Nesta circunstância a atitude do mundo exterior será decisiva outra vez para facilitar ou entorpecer o crescimento.

Todo este processo da adolescência que assinalei em linhas gerais, quero lhes mostrar através do diário de uma adolescente: "O Diário de Anne Frank".

A adolescência de Anne Frank sofreu a sina da perseguição nazista. Aos quinze anos morreu num campo de concentração alemão.

Através das páginas de seu diário nos é revelada a modificação paulatina da relação interior e exterior com seus pais, o incremento de seu amor ao pai e os ciúmes e a crítica frente à mãe. O diário é para Anne seu refúgio. Num dado momento seus afetos se põem em Peter, um companheiro do Refúgio, filho do casal Van Dan. Começa então a desprender-se de seu pai, a ocupar-se de suas sensações corporais, descobre o amor e o sonho ao mesmo tempo com suas antigas companheiras. Mas a vida de Anne se centra desde esse momento em sua relação com Peter, desligando-se do pai.

Paralelamente à elaboração da situação edípica e à descoberta do amor por Peter, vão surgindo ânsias de valores, de ideologias, entusiasmos estéticos, ânsia de saber e o interesse cada vez maior pelos acontecimentos do mundo exterior, que no começo do diário aparecem somente em relação ao seu bem-estar pessoal e imediato.

Anne era filha de comerciantes alemães estabelecidos em Frankfurt. Quando começam as primeiras perseguições nazistas mudam-se para Amsterdã (1933), onde o pai crê encontrar um lugar seguro para ele e os seus. Depois de 1940, quando tem 11 anos, começam para Anne as situações mais difíceis. A guerra, a capitulação e a invasão dos alemães os levaram à miséria.

Começam as disposições contra os judeus: devem usar a estrela, ceder suas bicicletas, estão proibidos de subir num bonde, de dirigir um carro; devem fazer as compras em lugares marcados como "negócio judeu" e somente das 13 às 16 horas. É-lhes proibido sair depois das oito da noite. Nem sequer podem permanecer em seus jardins ou em casa de amigos depois dessa hora. É-lhes proibido exercitar-se em qualquer esporte, não podem freqüentar os cristãos e são obrigados a freqüentar escolas judaicas. Anne Frank, que estava na escola Montessori desde o jardim de infância, teve que

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O mundo do adolescente Arminda Aberastury 153

abandonar com toda a dor seus professores e companheiros e entrar no Liceu judaico, em 1940. Em 1 2 de junho de 1942 Anne inicia seu diário. Acaba de cumprir 13 anos.

A poucos dias deste grande acontecimento chegou uma citação da S.S. para seu pai. Todos sabiam o que isso significava.

Em 9 de julho de 1942 põem-se a caminho do Refúgio que o pai de Anne vinha preparando há mais de um ano. No diário, iniciado há um mês, Anne descreve assim a dolorosa partida: "Os operários matinais nos olhavam com compaixão, suas caras expressavam o pesar de não poder oferecer-nos um meio de transporte qualquer; nossa estrela amarela era suficientemente eloqüente".

"Durante o trajeto, papai e mamãe me revelavam em migalhas e pedaços toda a história de nosso esconderijo. Há vários meses, haviam transportado, peça por peça, uma parte de nossos móveis, o mesmo com a roupa de cama e parte de nossa indumentária; a data prevista de nossa desaparição voluntária havia sido fixada para 16 de julho. Por causa da citação, houve a necessidade de adiantar em dez dias nossa partida, de maneira que íamos nos contentar com uma instalação mais rudimentar. O esconderijo estava no edifício do escritório de papai"

A parte da casa que serviu de esconderijo às duas famílias que ali se refugiaram de 1942 a 1944 foi chamada de "o anexo". Era uma construção freqüente nas velhas casas de Amsterdã e consistia num pequeno apartamento que dava ao jardim ou ao pátio, separado dos apartamentos que dão à rua.

Ali começa a prisão de Anne, da qual tenta libertar-se através de seu diário e da qual sairá a caminho da morte.

As circunstâncias exteriores limitaram suas possibilidades de contato com o mundo exterior justo no início de sua adolescência. A necessidade de isolar-se temporariamente do mundo para logo se adaptar, foi-lhe então imposta de fora junto com uma brusca limitação das satisfações normais a sua idade.

Nesta situação, o que salvou Anne Frank de uma crise de adaptação, de uma ado-lescência transtornada?

Foi, sem dúvida a segurança e a beleza de seu mundo interior, surgido da boa relação interiorizada com seus pais, assim como de sua capacidade de criar.

O dom extraordinário de seu pai tornou-lhe possível recriar nesse mundo limitado de oito judeus trancados, fugindo da Gestapo, a maioria dos interesses que o mundo exterior lhe teria proporcionado, tornou possível seu desenvolvimento de interesses e estímulos quase normal.

Os contatos de Anne com o exterior eram unicamente um rádio, através do qual captavam as emissões clandestinas. Alguns amigos e fornecedores que, à noite e às escondidas, chegavam até eles quando as circunstâncias não eram demasiado perigosas.

Em 12 de junho de 1942 começou Anne Frank seu diário íntimo: "Espero te confiar tudo como até agora não pude fazê-lo com ninguém, confio também que serás para mim um grande apoio". Em 20 de junho —ainda no mundo exterior—, diz: "Precisava refletir sobre o que era um diário. É uma sensação singular a de expressar meus pensamentos". E, "o papel é mais paciente que os homens", e na continuação, diz: "Pensei nesta frase num dia de ligeira melancolia, muito aborrecida para sair ou para ficar em casa", e também; "Estou em meu ponto de partida. A idéia de começar um diário, não tenho nenhuma amiga". Inicia-se assim —em Anne— a retirada do mundo exterior.

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1S4 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

Diz: "Ninguém pode acreditar que uma menina de treze anos se encontre sozinha no mundo. Porém, não é totalmente exato, tenho pais a quem amo, uma irmã de 16 anos, umas 30 companheiras e, entre elas, as chamadas amigas; tenho admiradores em abundância que me seguem com o olhar, enquanto os que, em classe, estão mal situados para ver-me, tratam de pegar minha imagem com a ajuda de um espelhinho de bolso. Tenho família e um lar agradável. Aparentemente não me faz falta nada, salvo a Amiga, está aqui a razão de meu diário, evocar melhor a imagem que me forjo de uma amiga longamente esperada. Quero que este diário a personifique. Se chamará Kitty".

Anne expressa assim a necessidade de voltar-se a seu mundo interior, de conhecer-se, antes de enfrentar o encontro do exterior desconhecido. Expressa seu desconhecimento do mundo interior, ao que se encaminha quando diz: "Kitty ainda ignora tudo sobre mim".

Anne pressente ali o ponto de partida de uma nova Anne, desconhecida ainda, e que há de construir-se sobre a imagem de seus objetos internos, que confrontará logo com os do mundo exterior novo.

Mas no primeiro momento de enfrentamento com o desconhecido, recorre ao mecanismo de divisão de si mesma e do mundo, até chegar ao momento em que possa juntar suas duas imagens, confrontá-las com os objetos do mundo exterior e começar a ação. Em Anne o processo se detém com a morte.

Assistimos à perda de suas conexões com o mundo, a seu afastamento, a suas ansiedades, a sua rebeldia. Sua reconstrução começa com o encontro de Peter e com a descoberta do amor. Através dele surgem suas conexões com o mundo exterior, seus ideais, suas crenças, o nascimento de ideologias.

Mas aí se detém seu diário e ela mesma. Transcreverei fragmentos desse diário assinalando os conteúdos que me interessam para estudar sua crise de adolescência.

As primeiras mudanças corporais e o refúgio no mundo interno

"No que me diz respeito, como me encontro aqui desde ao redor de meu décimo terceiro ano, comecei a refletir sobre mim mesma muito antes que as outras moças e me preveni antes que elas da "independência" individual. A noite, na cama, sinto às vezes uma necessidade inexplicável de tocar-me os seios, sentindo então a calma das batidas regulares e seguras de meu coração".

"Inconscientemente, tive sensações semelhantes muito antes de vir para cá, porque recordo que, ao passar a noite em casa de uma amiga, tive então a irresistível necessidade de beijá-la, e certamente o fiz. Cada vez que vejo a imagem de uma mulher nua, como, por exemplo, Venus, fico extasiada. Me aconteceu achar isso tão maravilhosamente belo, que me custava reter as lágrimas".

"Se ao menos tivesse uma amiga!"

Sensações corporais e descoberta do amor

"Uma moça, durante os anos de puberdade, se recolhe em si mesma e começa a refletir sobre os milagres que se produzem em seu corpo".

"O que me sucede me parece maravilhoso; não só as transformações visíveis de

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O mundo do adolescente Arminda Aberastury 15S

meu corpo, mas as que se verificam em meu interior. Mesmo que eu nunca fale a ninguém de mim mesma, nem de todas estas coisas, penso nelas e as refiro aqui".

"Cada vez que estou indisposta —só me sucedeu três vezes— tenho a sensação de levar comigo um segredo muito terno, a despeito da dor, da moleza e da sujeira; é porque, apesar dos pequenos fastídios destes poucos dias, me regozijo de certo modo desde o momento em que vou sentir esse segrego uma vez mais".

Inquietações, ambivalências, dúvidas. Divisão da personalidade

"O sol brilha, o céu é de um azul intenso, o vento é agradável e eu tenho umas vontades loucas —umas vontades loucas— de tudo... de conversas, de liberdade, de amigos, de solidão. Tenho umas vontades loucas... de chorar. Noto que gostaria de explodir. As lágrimas me apaziguariam, eu sei, mas sou incapaz de chorar. Não fico quieta, vou de um quarto a outro, me detenho para respirar através da fresta de uma janela fechada e meu coração bate como se dissesse: • "Mas, vamos, satisfaça de uma boa vez meu desejo..."

"Creio sentir em mim a primavera, o despertar da primavera; sinto-a em meu corpo e em minha alma. Me custa o indizível comportar-me como de costume, tenho a cabeça emaranhada, não sei o que ler, que escrever, que fazer. Languidez... Languidez... Como te fazer calar?...".

"Adormeço com essa sensação estranha de não ser como eu quero, ou de proceder de maneira distinta da que eu queria ou de como sou".

Quando desabrocham os primeiros indícios de seu amor por Peter, companheiro de refúgio, filho do casal Van Dan, diz:

"Queria estar sozinha, estritamente sozinha. Papai não deixou de notar que algo se passa comigo, mas me seria impossível contar-lhe tudo. Queria gritar: "Deixem-me em paz, deixem-me sozinha". Quem sabe! Talvez um dia estarei mais sozinha do que deseje".

Para que necessita Anne sua solidão? Para entender-se e comunicar-se com seu objeto interno e para não ser invadida pelo julgamento do adulto.

Das páginas de seu diário se desprende uma progressiva zanga com a mãe, que a leva a refugiar-se na figura idealizada de seu pai.

"Me aborreço e zango, sem poder demonstrá-lo. Gostaria de gritar, bater com os pés, chorar, sacudir mamãe, sacudi-la bem; queria não sei quê... Como suportar de novo, cada dia essas palavras que me machucam, esses olhares brincalhões, essas acusações como flechas lançadas por um arco demasiado tenso, que me penetram e que são tão difíceis de retirar de meu corpo?".

"Mas sou incapaz disso, não posso deixar transparecer meu desespero, não posso expor aos seus olhares as feridas das quais me acusam, nem suportar sua simpática compaixão ou suas carinhosas provocações, o que me faria gritar ainda mais. Já não posso falar sem que se me julgue afetada, nem me calar sem ser ridícula, sou tratada de insolente quando respondo, de astuta quando tenho uma boa idéia, de preguiçosa quando estou fatigada, de egoísta quando como um bocado a mais, de estúpida, de

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156 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

apoucada, de calculista, etc, etc. Durante todo o dia não ouço mais que iss que sou uma mocinha insuportável; ainda que ria e finja não entender, confesso que isso me faz efeito. Tomaria a Deus por testemunha e lhe pediria que me desse outra natureza, uma natureza que não provocasse a cólera alheia.

"Aqui estou em uma situação difícil. Mamãe está contra mim e papai fecha os olhos diante do combate tácito que suscitou entre mamãe e eu. Ela está triste porque me quer muito; eu não estou triste em absoluto, porque sei que ela o está por falta de compreensão".

"O pesar se lia em sua cara quando disse que no carinho não se manda. A verdade é dura. Entretanto, mamãe me repeliu —é verdade também—, me oprimiu sempre com suas observações intempestivas e sem tato, e zombou de coisas que eu resisto a aceitar como brincadeiras. Ela estremeceu ao comprovar que todo amor entre nós desapareceu verdadeiramente, exatamente como eu estremeci ao receber a cada dia suas duras palavras".

Em sua relação com o pai, a qual nota-se ser boa através de seus relatos, começa uma crescente pertur-bação na medida em que se vê invadida pelas mudanças dentro de si.

"Eu me aferro a papai porque ele é o único que mantém em mim os últimos restos do sentimento familiar, é mamãe com seu caráter e suas falhas quem pesa terrivelmente sobre meu coração".

Há momentos em que se rebela contra ele, em outros trata de julgar objetivamente seus valores; por momentos sente que definitivamente se desligou dele e que já não tem remédio. Seu amor por Peter ocupa mente e corpo.

O pai não resiste à perda e sua conduta se torna mais severa. A distância se incrementa neles pela fuga de ambos.

"Não me estenderei no que se refere a papai e a mim mesma. Pim é o mais discreto de todos. Cuida primeiro de que cada um tenha se servido. Ele não necessita nada. Tudo o que é bom destina às crianças. Aí está a bondade personificada... e, ao seu lado, o incurável feixe de nervos que sou eu".

Na transição do pai a Peter, Anne busca em Peter os traços mais queridos de seu pai.

"Não podes imaginar quanto te admiro, e enquanto sinta a meu lado tua bondade e a de papai —pois nesse sentido, eu não vejo grande diferença entre vocês dois— conservarei a esperança de viver".

A descoberta do amor produz-se nela quando encontra no mundo exterior o duplo de seu objeto de fan-tasia, um antigo companheiro, Peter Wessel.

"Sentirei algum dia sua face contra a minha, como senti a do outro Peter em sonho? Oh, Peter e Peter! Vocês não são mais que um, vocês são o mesmo Peter! Eles não nos compreendem, nunca suspeitarão que nos basta estar sozinhos, sentados um ao lado do outro, sem falar para estar contentes. Não compreendem o que nos impulsiona um ao outro. Ah, estas dificuldades! Quando serão vencidas? De qualquer modo, há

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O mundo do adolescente Arminda Aberastury

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que vencê-las; assim o desenlace será belíssimo. Quando o vejo deitado, a cabeça sobre os braços e os olhos fechados, não é mais que um menino; quando brinca com Mouschi é um encanto; quando é encarregado das batatas ou de outras coisas pesadas, está cheio de força; quando vai olhar os bombardeios ou surpreender os ladrões à noite é valente, e quando é desajeitado e torpe, resulta simplesmente delicioso".

Descreve através dele, o que sente em si mesma, seus traços de criança e o que de adulto vai surgindo através de seu amor.

"E onde estou depois de ter descido os catorze degraus? Na luz brutal, entre os risos e as perguntas dos outros, cuidando de não lhes exteriorizar nada. Meu coração é ainda demasiado sensível para suprimir de golpe uma impressão tal como a de ontem à noite. A pequena Anne terna é demasiado estranha e não se deixa caçar tão facilmente. Peter me emocionou, mais profundamente do que nunca o havia estado, salvo em sonhos, Peter me excitou, me deu voltas como a uma luva. Depois disso, não tenho o direito, como qualquer outro, de reencontrar o repouso necessário para situar de novo o fundo de meu ser?"

"Hoje de manhã ao acordar, por volta das cinco para as sete, lembrei o que eu havia sonhado. Estava sentada numa cadeira; e à minha frente, Peter... Wessel; folheávamos um livro, com ilustrações de Mary Bos. Meu sonho foi tão claro que me lembro ainda, parcialmente, dos desenhos. Mas o sonho não havia terminado. De repente, o olhar de Peter se cruzou com o meu e eu me afundei longamente em seus lindos olhos de um castanho aveludado. Depois Peter me disse muito docemente: "Se eu tivesse sabido, há muito tempo teria te socorrido". Bruscamente me voltei, porque não podia mais dominar minha vergonha. Em seguida senti uma face contra a minha: uma face muito suave, fresca e benfeitora. Era delicioso, infinitamente delicioso...".

Meus olhos se encheram de lágrimas diante da idéia de tê-lo perdido de novo, mas ao mesmo tempo me regozijou a certeza de que aquele Peter continua sendo meu predileto e o será sempre".

Um dia sente que sua crise está resolvida, sente-se desligada dos pais.

"Agora a luta terminou. Ganhei, tenho meu desquite. Sou independente de corpo e de espírito, já não necessito de uma mãe; me tornei forte de tanto lutar".

Manifesta suas queixas contra o pai que não aceita que Anne cresça, se torne independente e ame Peter.

"Mas já te falei dessas coisas várias vezes. Preferiria deter-me no capítulo "Papai e mamãe não me compreendem". Meus pais me mimaram sempre, me exteriorizaram muita amabilidade, sempre tomaram minha defesa e fizeram tudo que estava em sua possibilidade de pais. Contudo, eu me senti terrivelmente sozinha durante muito tempo; sozinha, excluída, abandonada e incompreendida. Papai fez todo o possível para moderar minha rebeldia, mas de nada serviu; me curei eu mesma, reconhecendo meus erros e tirando deles um aprendizado".

A distância torna-se irreparável pela dupla fuga

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"Como é possível que, em minha luta, papai nunca tenha conseguido ser para mim um apoio e que, ainda estendendo-me uma mão em auxílio, não tenha acertado? Papai não se situou bem; sempre me tratou como a uma criança que passa pela idade ingrata. Isto parece estranho, porque papai é o único que sempre me confirmou amplamente sua confiança, e o único também que me fez sentir que sou inteligente. Por outro lado, eu seria incapaz de confiar em alguém que não me dissesse tudo de si mesmo, e como sei demasiado pouco de Pim, é impossível aventurar-me completamente sozinha pelo caminho da intimidade".

"Pim se situa sempre no ponto de vista do pai, pessoa de mais idade, conhecedor deste tipo de inclinações porque já passou por elas e as julga, conseqüentemente, como triviais; de modo que é incapaz de compartir minha amizade, mesmo quando a busque com todas as suas forças".

Arme vivência por momentos a perda e surge o sentimento de solidão e de vazio, junto à impossibilidade de recuperar o passado.

"Cada dia me sinto mais abandonada, noto que o vazio cresce ao meu redor". "Por mais querido que me seja (o pai) nunca poderá substituir meus amigos de antes, todo meu pequeno domínio".

Surge nela então a rebeldia ante o mundo do adulto que não compreende seu sentimento de perda.

"Nós, jovens, temos que fazer um esforço em dobro para manter nossas opiniões, nesta época em que todo idealismo foi esmagado e destruído, em que os homens revelam suas piores taras, em que a verdade, o direito e Deus são postos em dúvida"

"Porque no fundo, a juventude é mais solitária que a velhice. Esta frase, lida em já não recordo que livro, me ficou na cabeça, porque creio ser certa".

"Quem ache que os mais velhos do Anexo enfrentam uma vida muito mais difícil, não compreende sem dúvida até que ponto estamos assaltados pelos problemas..., problemas para os quais talvez sejamos demasiado jovens, mas que não deixam de nos ser impostos; até que, após longo tempo, críamos haver achado a solução, geralmente uma solução que não parece resistir aos fatos, já que terminam por destruí-la. Aí está a dificuldade desta época: assim que os idealismos, os sonhos, as belas esperanças logram germinar em nós, são atacados e totalmente devastados pelo espanto da realidade".

Por momentos Anne nos dá a visão do mundo exterior aterrador em que vive no qual ela descreve o que acontece fora e o que dentro dela é também destruição e morte.

"O terror reina na cidade. Noite e dia, transportes incessantes dessa pobre gente, providas somente de uma bolsa ao ombro e de um pouco de dinheiro. Estes últimos bens lhes são confiscados no trajeto, segundo dizem. Separam-se as famílias, agrupando homens, mulheres e crianças".

"As crianças, ao voltar da escola, já não encontram seus pais. As mulheres, ao voltar do mercado, acham suas portas lacradas e notam que suas famílias desapareceram".

Também acontece aos holandeses cristãos: seus filhos são enviados obrigatoriamente à Alemanha. Todo mundo está com medo.

Todos os estudantes que tenham terminado ou pensem prosseguir seus estudos

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este ano foram convidados a assinar uma lista apresentada pela Direção, comprometendo-se a simpatizar com os alemães e com a nova ordem. 80% se negou decididamente a renegar sua consciência e suas convicções e tiveram que sofrer as conseqüências. Todos os estudantes que não assinaram serão enviados a um campo de trabalho alemão. Se todos os jovens são condenados a trabalhos forçados em terra de nazistas, o que restará da juventude holandesa?

"Vê-se as crianças daqui circularem com blusinha de verão, tamancos nos pés, sem casaco, nem gorro, nem meias, e ninguém açode em sua ajuda. Não têm nada na barriga, e, roendo uma cenoura, abandonam o apartamento frio para sair no frio e para chegar a uma classe mais fria ainda. Muitas crianças param os transeuntes para pedir-lhes um pedaço de pão. A Holanda chegou a isso".

Mas Anne mantém seu tom vital, se ocupa de seu corpo, de seus estudos, de seus penteados, se sente por momentos superficial ou muito profunda, mas não por isso deixa de assinalar e sofrer as situações reais de perigo e perseguição.

Vejamos algumas de suas reflexões:"Me sinto oprimida, indizivelmente oprimida pelo fato de não poder sair nunca, e

tenho muitíssimo medo de que sejamos descobertos e fuzilados. Aí está, naturalmente, uma perspectiva menos regozijante".

Tem momentos de desalento.

"Mais de uma vez me pergunto se, para todos nós, não teria sido melhor não temo-nos ocultado e já estarmos mortos antes de ter que passar por todas estas calamidades, sobretudo por nossos protetores, que, ao menos, não estariam em perigo. Nem sequer este pensamento nos faz retroceder: Ainda amamos a vida, não esquecemos a voz da natureza e continuamos esperando, apesar de tudo. Que algo aconteça bem rápido, que cheguem as bombas se for necessário, porque elas não poderiam nos esmagar mais que esta inquietude. Que chegue o fim, ainda que seja duro; ao menos saberemos se, no final das contas, devemos vencer ou perecer".

"A noite tivemos um curto circuito, precisamente durante um bombardeio. Não posso me livrar do medo dos aviões e das bombas e passo quase todas as noites na cama de papai buscando ali proteção. É uma criancice, admito, mas se você tivesse que passar por isso... os canhões fazem um estrondo de mil diabos, que nos deixam surdos".

"De repente, começaram a atirar com as metralhadoras, o que é cem vezes mais aterrador que os canhões".

Mas esse desalento é passageiro nela, surgem seus desejos de vida e sente-se através de seu diário o carinho com que realiza tudo quanto a embeleze por dentro e por fora.

Diz Anne: "Ademais tenho prazer em escovar os dentes, colocar os bobes, revisar-me as unhas, usar pedaços de algodão embebidos de água oxigenada (para clarear o pelinho negro de meu lábio superior) e tudo isso em pouco mais de meia hora".

"Se decido usar um novo penteado, cada qual tem o olho crítico e sempre posso esperar a pergunta":

Que artista você imitou?"E ninguém acredita mais em mim quando respondo que é uma de minhas criações.

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"Quanto ao penteado, não dura mais que uma hora e meia, após a qual me sinto tão contrariada pelas observações, que corro ao banheiro para arrumar meu cabelo como todos os dias".

"Junte a isso que eu tenho uma extraordinária vontade de viver, me sinto sempre muito forte, muito disposta a enfrentar o que seja, e me sinto muito livre e muito jovem! Quando me dei conta disso pela primeira vez, me senti contente, porque me parece que eu não me curvarei facilmente aos golpes dos quais ninguém nunca escapa".

Ante uma vida tão rica, tão cheia de possibilidades de amor e de criação se torna mais sinistra a devastadora onda de morte do nazismo. Exige estar alerta para não se deixar conduzir outra vez às primeiras concessões que levam precipitadamente à submissão e à morte.

Também é um assinalamento do poder do amor e uma advertência de que é evitável grande parte da ansiedade que é o sinal do adolescente, e que a construção de um mundo interno livre e harmônico torna possível a entrada no mundo adulto sem tanto despedaçamento e sem tanta morte.

A sociedade de adultos com suas limitações, seu aborrecimento, suas neuroses, me fez pensar sempre com nostalgia no destino da riqueza de afetos, de imaginação criativa, de possibilidade múltipla de comunicação que é o comum na infância. Só o maltrato e a perseguição explicam a morte de tantos mundos ricos, libertados às vezes pela análise, definitivamente mortos na maior parte dos casos.

Ao falar de Anne Frank, quis falar de sua adolescência e da de todos, e despertar em vocês o impulso para lutar pela conservação da liberdade e do amor.

Se quisesse definir a irremovível chama de sua vida interior, o faria com palavras de Dante: "Em virtude do poder do amor e do culto à liberdade me conduzistes. Preserva em mim tão pura magnificência".

Um pequeno fragmento de seu diário me parece definir sua riqueza interior. O que coloca Anne em sua mala? O que quer salvar de seu mundo. O caderno, as tesouras para ondular o cabelo, lencinhos, livros escolares, pentes, cartas velhas.

Diz: "Embalei as coisas mais inverossímeis. Não lamento, porque me interessam mais minhas recordações que meus vestidos".

Jamais as pessoas livres poderiam conceber o que os livros significam para as pessoas escondidas. Livros, mais livros, e o rádio...

"A música, como sempre, me emociona".

Este diário é não somente a mais forte alegação em favor da liberdade e um documento sinistro da opressão nazista, mas também um documento que mostra como a capacidade de vida e de prazer triunfa sobre a privação e como essa riqueza e esse amor à vida estiveram dados em Anne por sua relação feliz e constante com seus pais internos, que lhe deu segurança e força para descobrir a vida ainda dentro da prisão que constituiu a moradia de sua adolescência.

Por isso o livro, além da tristeza de sua vida mutilada, deixa uma sensação de alegria, de que valeu a pena viver. Penso que isto deve ter sentido o pai de Anne, o único que sobreviveu às privações do campo de concentração, quando na volta recuperou sua filha através deste diário.

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O inundo do adolescente ArmindaAberostury

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O diário de Anne Frank é também documento psicológico valioso para compreender o processo da adolescência.

Em seu caso, as duas estruturas que mostrei como fundamentais - a qualidade do mundo interno e a atitude do mundo externo, favorecendo ou entorpecendo - adquiriram em sua vida características extremas.

O Anexo foi seu Refúgio, mas um refúgio cujos limites não puderam alargar-se normalmente.

Anne poderia ter ficado presa na prisão, porém não foi assim. Podemos nos perguntar o por quê. Em meu parecer é porque seu mundo exterior foi se configurando dentro dessa prisão como um refúgio da realidade mais externa, cuja periculosidade e maldade eram tão extremas que para poder sobreviver tinha-se que ficar no Refúgio.

Seu mundo externo foi um mundo externo relativo que engenhosamente seu pai lhe recriou através do que vinha do mundo de fora, livros, estudo, música, presentes, relatos sobre o que se passava com outros seres, desconhecidos alguns, muito distantes todos.

Existe também o fato de que no Anexo estiveram seus pais e uma irmã mais velha, porém mais outra família, os Van Dan e seu filho, tão diferentes deles e que concentraram durante muito tempo a curiosidade de Anne. Esta família, numa vida normal teria constituído "a outra gente".

A presença de um personagem sozinho, constituindo uma ilhota dentro do Anexo, permitiu o interjogo de relações sociais mínimas porém reais.

Estas relações lhe permitiram fazer os confrontos que as crianças com uma vida nor-mal realizam com os pais e irmãos de cada um de seus amigos em diferentes grupos.

Também pôde ir confrontando as reações de cada um deles com as suas, em cada uma das situações extremas de perigo que viveram tantas vezes nesses dois anos.

Um dos relatos mais trágicos da rigidez das portas do Refúgio, é a descrição do profundo silêncio que deviam fazer durante horas, em determinados momentos em que o medo de ser descobertos os forçava a não abrir as torneiras, não puxar a descarga da privada, não mover-se, não acender a luz e suportar tudo no escuro e no silêncio mais absolutos. Numa das páginas do diário se torna muito evidente o mecanismo de divisão de Anne. A medida que aparece mais áspera sua crítica e rivalidade com a mãe, aparece a imagem idealizada da Rainha da Holanda com a qual quer conectar-se.

"Me sinto mais e mais afastada de meus pais, mais e mais independente. Por mais jovem que seja, me sinto com mais vontade de viver e mais justa, mais íntegra que mamãe. Sei o que quero, tenho um norte na vida, formei uma opinião, tenho minha religião e meu amor. Me sinto consciente de ser mulher, uma mulher com uma força moral e muito mais velha".

"Se Deus me deixar viver, irei muito mais longe que mamãe. Não me manterei na insignificância, terei um lugar no mundo e trabalharei para meus semelhantes".

"Compreendo neste instante, que a coragem e a alegria são dois fatores vitais".Anne se desprende do mundo mas com dor. Por momentos mostra toda esta dor e a

luta do desprendimento."Isso não se produziu da noite para o dia. Cheguei a viver sem o apoio de mamãe ou

de quem quer que fosse, à custa de brigas, de muitas brigas, e lágrimas; me custou caro chegar a ser tão independente como o sou agora. Podes rir e não me acreditar, mas isso não me importa. Tenho consciência de haver crescido sozinha e não me sinto no

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mais mínimo responsável perante vocês. Se te digo tudo isso é porque não quero que penses que me faço de misteriosa; no que diz respeito a meus atos, me sinto responsável comigo mesma".

"Quando me debatia completamente sozinha, todos vocês, e você também fechou os olhos e taparam os ouvidos; não me ajudaram; ao contrário, só recebi reprimendas porque era demasiado estrondosa. Ao chamar a atenção assim, eu pensava fazer calar minha pena, me obcecava por fazer calar aquela voz interior. Durante mais de um ano e meio interpretei a comédia, dia após dia, sem queixar-me, sem afastar-me de meu papel, sem desfalecer. Agora a luta terminou. Ganhei, tenho meu desquite. Sou independente de corpo e de espírito, já não necessito uma mãe: me tornei forte de tanto lutar.

"E agora que tenho a certeza de ter recebido o desquite, quero prosseguir sozinha meu caminho, o caminho que me parece que é o bom. Você não pode, não deve considerar-me como uma menina de catorze anos, porque todas estas misérias me envelheceram; me proponho a trabalhar segundo minha consciência, e não deplorarei meus atos.

"Obviamente poderás impedir-me que me reúna com Peter. Ou me proíbes pela força, ou confias em mim em tudo e para tudo. e me deixas em paz!".

Mas sempre surge nela o incontrolável desejo de vida e a confiança em sua capacidade de viver.

"Sou jovem, muitas de minhas qualidades dormem ainda, sou jovem e suficientemente forte para viver esta grande aventura que forma parte de mim, e me nego a queixar-me todo santo dia. Fui favorecida por uma natureza afortunada, minha alegria e minha força. Cada dia me sinto crescer interiormente, sinto que se aproxima a liberdade.

"Apesar de meus catorze anos sei exatamente o que quero, posso dizer quem tem ou não razão, formar uma opinião, concebo as coisas como as vejo. Tenho a impressão de ser absolutamente independente de todos que conheço".

"Na segunda parte do ano me transformei em mocinha e os mais velhos começaram a considerar-me melhor como uma deles. Comecei a refletir e a escrever contos ".

Vemos logo o surgimento de um plano de vida de ideais novos e novas estruturas de pensamento, tal como mostramos no começo. Anne observa e julga o mundo exterior, e suas opiniões sobre a guerra implicam já numa ideologia.

"Não é necessário muita imaginação para compreender esta eterna ladainha do desespero: Para que serve esta guerra? Por que os homens não podem viver em paz? Por que esta devastação?"

"Pergunta compreensível, mas ninguém encontrou a resposta final. Na realidade, por que se constroem na Inglaterra aviões cada vez maiores com bombas cada vez mais pesadas e, ao lado disso, habitações em comum para a reconstrução? Por que se gasta cada dia milhões na guerra e não há um centésimo disponível para a medicina, os artistas e os pobres?

"Por que há homens que sofrem de fome, enquanto em outras partes do mundo os alimentos apodrecem no lugar porque sobra? Por que os homens enlouqueceram assim?

"Jamais acreditarei que unicamente os homens poderosos, os governantes e os capitalistas sejam responsáveis pela guerra. Não. O homem comum se alegra muito ao fazê-la. Senão os povos há muito tempo haveriam se rebelado. Os homens nasceram

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O mundo do adolescente Aminda Aberastury 163

com o instinto de destruir, de massacrar, de assassinar e de devorar; até que toda a humanidade, sem exceção, não sofra uma enorme mudança, a guerra imperará; as reconstruções, as terras cultivadas serão novamente destruídas e a humanidade não terá mais que começar de novo ".

Através das páginas de seu diário vão surgindo idéias políticas, normas educacionais, críticas ao ensino, fantasias de criação que põe à prova pela realidade e confronta logo com seu juízo crítico. Nas últimas páginas do diário parece sentir a proximidade de seu fim. Se aferra a seus ideais, a seu ponto de vista sobre o homem, e à ilusão de que seus pensamentos em tempos vindouros poderiam chegar a realizar-se.

"Me assombra que eu não tenha abandonado ainda minhas esperanças, já que parecem absurdas e irrealizáveis. Entretanto, me aferro a elas apesar de tudo, porque continuo acreditando na bondade inata do homem. Me é absolutamente impossível construir tudo sobre uma base de morte, de miséria e de confusão. Vejo o mundo transformado mais e mais em deserto; ouço cada vez mais forte o fragor do trovão que se acerca e que anuncia provavelmente nossa morte; me compadeço da dor de milhões de pessoas, e mesmo assim quando olho para o céu, penso que tudo isso mudará e que tudo voltará a ser bom, que até estes dias inumanos terão fim e que o mundo conhecerá de novo a ordem, o descanso e a paz.

"Na espera disso trato de colocar meus pensamentos num abrigo, de velar por eles, para o caso de que nos tempos vindouros, talvez ainda possam ser realizáveis ".

Anne Frank morreu no campo de concentração de Bergen Belsen, dois meses antes da libertação da Holanda. Os fatos

ocorreram assim: em 4 de agosto de 1944 a destruição irrompeu no Anexo e todos os seus habitantes foram detidos e

levados a campos de concentração.

A Gestapo irrompeu no refúgio da família Frank destruindo tudo sem ter encontrado oposição.. No chão, entre objetos

desfeitos, diários e revistas, foi encontrado seu diário que termina com estas palavras proféticas:

"Sigo buscando a maneira de chegar a ser o que seria capaz de ser SE NÃO HOUVESSE PESSOAS NO MUNDO".

Numa de suas páginas ao falar de seu desejo de escrever algo transcendente diz: "Quero seguir vivendo depois de minha

morte".

Esta mensagem foi milagrosamente salva da destruição. Seu diário é um

documento e um legado para lutar pela liberdade. É um legado contra a

opressão e uma apologia da comunicação.

Queria que hoje tenha se transformado para vocês em um alarido de rebeldia contra as forças destrutivas. Contra a

submissão e contra a subordinação à morte.

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Artigos clássicos

A casa: cena da fantasia

Vida Maberino de Prego

"A casa para morar, um sucedâneo do ventre materno, primeira morada cuja nostalgia talvez ainda per-sista em nós, onde estávamos tão seguros e nos sentíamos tão à vontade."

Sigmund Freud

"A medida que o avião ia subindo e afastando-se da terra, os edifícios, as casas tornavam-se cada vez mais e mais pequenos.

Num instante, o lugar conhecido de onde partira havia apenas uns minutos, tinha-se transformado em uma maravilhosa cidade de brinquedo onde, com toda minha alma, queria regressar.

Muitos anos atrás, haviam me presenteado com um conjunto de casinhas brancas que durante muito tempo constituíra algo fascinante e que sempre permanece em minha lembrança; tanto que, quando viajo por outros países, detenho-me nas lojas de brinquedos, sempre ansiando o reencontro com esse brinquedo."

Detida no ar e no tempo pelo fio de uma lembrança, as casinhas brancas de sua infância aparecem desenhando, forma e cor, um pedaço da vida da paciente, que assim inicia uma sessão.

E é que as casas assinalam como marcos nosso trânsito pelo viver.De uma casa nascemos, casa-ventre que nos protege em uma etapa de formação;

vamos para outra casa, a última, com uma incógnita que não nos será jamais respondida.Não escolhemos nem a primeira nem a última morada, como também não podemos

escolher nem o momento de nascer nem o momento de morrer (exceto quando o morrer se vivência como um transcender a vida, para não perdê-la) e todo o espaço aberto é um trajeto entre um sair e um entrar; trajeto mais ou menos longo, mais ou menos difícil que é o viver.

A casa paterna, a escola, a casa onde moramos quando formamos nosso lar são lugares determinantes na vida e em nossos sonhos; assim como nos sonhos dos pacientes freqüentemente aparece uma casa - cenário do drama - onde, fora das leis temporais e espaciais que regem a vigília, nos é devolvido um lugar perdido há tempo.

Assim Otaviano12, presa do desejo da mulher amada morta, revive a cidade destruída até umas horas antes, devolvendo-lhe todo seu esplendor com a força de seu -também — desejo do reencontro.

Na magia da noite banhada pela lua, a primeira coisa que surge perante seus olhos, assombrados pelo milagre, é a casa, precursora do encontro predeterminado pelos sentimentos que a cópia do seio maravilhoso havia despertado nele.

Como uma reminiscência de algo perdido tempos atrás e que só pode recuperar-

* Lido na Associação Psicanalítica do Uruguai em 21 de agosto de 1976.** Maberino de Prego, Vida. La casa: escena dela fantasia. Rev. Urug. Psicoanál., v.56, p. 105-18, 1977.

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A casa: cena da fantasia Vida Maberino de Prego 165

se através de seu sonho, Otaviano, ao passar diante de uma casa que havia observado durante o dia e sobre a qual a luz da lua batia em cheio, viu, em estado de integridade perfeita, um pórtico cuja ordem havia tentado estabelecer... Essa estranha restauração, feita entre a tarde e a noite por um arquiteto desconhecido, atormentava Otaviano, certo de ter visto aquela casa no mesmo dia, em estado de ruína.

"O misterioso reconstrutor havia trabalhado muito depressa, pois todas as mansões próximas tinham o mesmo aspecto reluzente e novo."

E em seu encontro com Marcela... "Ao olhar aquela cabeça tão tranqüila e tão apaixonada, tão fria e tão ardente, tão morta e tão viva, compreendeu que tinha perante si seu primeiro e único amor, sua taça de embriaguez suprema."

Otaviano acorda de seu sonho de amor sozinho, outra vez, entre as ruínas da cidade destruída.

As ruínas que o arquiteto desconhecido ressuscita para ele são o continente de um passado alucinado com o instante do encontro com a mulher desejada; um instante que fusiona, na fantasmática, a personagem, a vida e a morte; o ontem e o presente.

O dia o encontra só, despossuído e inerme, porque sua libido ficou retida em um ponto do qual não pode sair.

Nesta linha, Ricoeur 19 nos diz, "para Freud, as posições sucessivas da sexualidade são teimosas e difíceis de abandonar, de modo que o caminho da realidade está marcado por objetos perdidos: o primeiro, o seio materno: o próprio auto-erotismo está parcialmente ligado a este objeto perdido. Eis aqui por quê a eleição do objeto tem ao mesmo tempo um caráter prospectivo e nostálgico." O fato de encontrar um objeto sexual não é, em resumo, mais que uma maneira de reencontrá-lo. Para a libido, o futuro está para trás, na felicidade perdida."

Felicidade que sempre será vedada a Otaviano quem, depois de sua estranha experiência, vagará como uma sombra, na obsessão pela busca do objeto perdido.

A casa, como recipiente desse objeto, adquire habitualmente a posteriori, a qualidade de um estojo que conservará o idealizado.

Se um arquiteto desconhecido nos permitisse recuperar a casa da infância, como acontece nos sonhos ou na literatura, ao abrir sua porta nos receberiam os moradores de então, deixando-nos com a ilusão de vencer o tempo e a morte em última instância, de negar-nos nossa impotência.

A casa e a castração

Em Ovídio, um jovem paciente que tinha começado sua análise há um tempo atrás, por causa de uma patológica relação com sua mãe viúva, "a casa imperfeita" que ele queria reconstruir, foi o tema primordial que preencheu, durante meses, o tempo de suas sessões..

Depois de uma breve interrupção, ao retomar sua análise, relata-me os contratempos que teve que suportar por causa da chuva torrencial que caiu nesses dias: a casa onde mora com sua mãe, e que tem muitos anos de construção, deixou entrar água por todas as partes.

Profundamente angustiado, refugiou-se em seu quarto, mas aí o barulho das goteiras deixava-o louco. Tudo ficava molhado e apesar de ter utilizado um complicado procedimento composto por tábuas e pedaços de náilon para desviar a água e proteger os livros, tudo foi inútil.

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166 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

Sentia-se realmente desesperado pensando que os conteúdos da casa iriam estragar.Sua namorada esperava-o para jantar, mas ele pensou que não poderia ir, deixando a

casa só, nessas condições. Quis dormir, esperando que enquanto isso a chuva parasse, mas não conseguiu conciliar o sono.

Finalmente decidiu sair para jantar com sua namorada, mas não pôde permanecer com ela, porque se encontrava preso por uma ansiedade ingovernável.

Voltou para sua casa, percorreu os quartos controlando os lugares por onde a água se infiltrava e os estragos que pudesse fazer, e só conseguiu tranqüilizar-se quando, pensando em um projeto para reconstruí-la, sentiu que poderia achar os meios para fazê-lo. "Não posso nem pensar em me casar, se antes não sou capaz de arrumar a casa onde morei e onde minha mãe vai continuar morando".

A casa que não protege da passagem da água, manifesta o buraco por onde o paciente sente-se escorrer, líquido em sua ansiedade pelo que não pode negar mais.

Os buracos por onde atravessam os jatos de água são aterrorizantes porque, como a cabeça de Medusa, evidenciam a castração.

Para Ovídio, o projeto que ele pode realizar — e que é a única coisa que consegue tranqüilizá-lo - representa não só o sentir-se em posse de um instrumento que lhe permite reparar a casa-corpo materna e o vínculo com ela, mas também, e principalmente, conseguir "a perfeição", que como um fetiche, negará a falta de falo na mulher.

Somente assim sente que pode resgatar-se da situação que o aprisiona.Em Adela, uma jovem advogada que iniciou a análise por suas dificuldades para

integrar um casal heterossexual, vemos como a casa é vivenciada como o vínculo conflituoso com a mãe e com sua própria feminilidade, que lhe é impossível assumir.

No primeiro mês de seu casamento, chega à sessão desanimada pelo trabalho que lhe dá o funcionamento da casa.

"Dirigir uma casa é algo tão difícil e cansativo!" diz. "Sempre há algo que fazer e quando esse algo termina, temos que recomeçar com a mesma coisa: limpar, lavar, arrumar, comprar os alimentos, cozinhar... não sei por que é tão difícil dizer isso à senhora."

Enquanto fala, aumenta sua ansiedade e acaba chorando amargamente.Acrescenta: "De manhã, estou desejando que meu marido vá para o escritório e que

regresse o mais tarde possível. Estando ele em casa, não sei o que me acontece, mas não posso fazer nada, como se ele se interpusesse entre mim e a casa."

A casa é apresentada por Adela como a imagem de uma mulher exigente, com a qual tem dificuldades de comunicar-se e que, além disso, separa-a de seu cônjuge.

Se o marido está na casa, sente-se paralisada na relação com ambos. A casa exige-lhe uma atenção que não pode dar-lhe, porque o marido a impede e, por sua vez, não pode estar com ele, apesar de desejá-lo muito, porque se sente observada por "tudo o que não está feito", segundo expressão da paciente. Em algumas ocasiões precisou sair da casa e ir a um café com o marido, para poder conversar intimamente.

A casa - que precisa que as coisas terminem de serem feitas - devolve para ela, como em um espelho, sua própria incompletude, evidenciada perante seu cônjuge, que sim, está "terminado", para ela.

O vínculo com ele agudiza a situação conflitante com sua mãe, responsável pela sua carência.

Tanto em Ovídio como em Adela, cremos ver na casa a representação da figura

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materna, contendo o vínculo com ela, suas exigências e especialmente a situação de dependência que impede a autonomia necessária para o estabelecimento de um casal adulto. Situação de dependência que é transladada para a casa, porque permite localizar nela a imperfeição que pode ser reparada —apesar de exigir um máximo esforço - afastando dentro do possível o fracasso da onipotência.

A casa e a mulher

Na minha experiência com pacientes do sexo feminino sempre tem aparecido o tema da casa.

A preocupação que a mulher, em geral, sente pelo aspecto que apresenta a casa, seja em relação à construção em si, à arrumação de seu interior ou à ordem que nela impera, é bastante conhecida e as "conversas triviais" sobre estes assuntos, em alguns momentos, podem chegar a ser o ponto nodal que, unido à difícil relação que se estabelece com as empregadas, fecha um círculo muitas vezes desanimador.

A importância que adquire a exibição de seus aspectos brilhantes, luxuosos ou de bom gosto, quando exibidos, por exemplo, em uma reunião social, vai mais além de ser um símbolo representativo do status sócio-cultural de seus habitantes.

Parafraseando Abrahan,2 diríamos que "a mulher poderia se resignar à sua femi-nilidade, se fosse absolutamente a mulher (casa) mais bonita de todas".

Deixando de lado as imposições culturais, condicionantes de uma dificuldade na condução da casa de forma mais livre, tenho me perguntado se a necessidade, muitas vezes imperiosa, de que a casa apresente um aspecto determinado, e a forma em que suas falhas e carências podem converter-se no centro das preocupações, não está na dificuldade de aceitar seu próprio corpo castrado e no ódio pela ferida narcisística que lhe foi imposta.

Diríamos que a necessidade das mulheres - pelo menos em sua maioria - de possuir uma casa que provoque inveja em seus conhecidos, pareceria um deslocamento do momento em que, como menina pequena... "percebe o pênis de um irmão ou de seu companheiro de jogos, visível de modo chamativo e de grandes proporções; reconhece-o na hora como semelhante superior de seu próprio órgão pequeno e inconspícuo e desde esse momento cai vítima da inveja fálica". 9

Aumentar e fazer conspícua a própria casa é como uma compensação que oculta sua inveja; ela também mostra algo que desperta a admiração dos que a contemplam.

Em "Introdução ao narcisismo", 6 Freud nos diz que "A evolução mostra uma estrutura muito diferente no tipo de mulher mais comum e provavelmente mais puro e autêntico. Neste tipo de mulher parece surgir, com a puberdade, e pelo desenvolvimento dos órgãos sexuais femininos latentes até então, uma intensificação do narcisismo primitivo... Sobretudo nas mulheres belas, surge uma complacência por si mesma que a compensa das restrições impostas pela sociedade à sua eleição de objeto. Tais mulheres só amam, na realidade, a si mesmas..."

Diríamos que a mulher "se ama" em todo seu corpo, em seus enfeites, nas roupas e nas jóias com que se enfeita, como uma forma de velar, ocultando a ferida narcisística pela incompletude a que foi submetida.

Assim como o homem nega a castração apoiando-se na visibilidade de seu órgão

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sexual, a mulher necessita de sua beleza e dos elementos que possam realçá-la, para negá-la.Vemos na casa uma extensão do corpo feminino e, portanto, parte importante de seu

narcisismo. Extensão do próprio corpo e outras vezes, deslocamento de interesse libidinoso do corpo para a casa, em que esta adquire para sua dona, a qualidade de apoio para a repressão da castração.

Em "A interpretação dos sonhos", 4 Freud se refere ao simbolismo da casa ou aspectos parciais da mesma, utilizados no sonho como um disfarce do conteúdo latente, para representar o corpo ou partes dele.

"Os quartos são, quase sempre, no sonho, mulheres e a descrição de suas entradas e saídas costumam confirmar esta interpretação."

Por outro lado, nos poucos trabalhos em que se referiu à sexualidade feminina, destaca as conseqüências que para a menina pequena tem a observação dos genitais masculinos.

Em "Uma teoria sexual" 5 nos diz que "A suposição de que ambos sexos possuem o mesmo aparelho genital (o masculino) é a primeira dessas teorias sexuais infantis tão singulares e que tão graves conseqüências pode originar."

"Pouco adianta para o menino que a ciência biológica dê razão para seus preconceitos e reconheça o clitóris feminino como um verdadeiro substituto do pênis. A menina não cria uma teoria parecida ao ver os órgãos genitais do menino, formados de forma diferente dos dela; o que faz é sucumbir à inveja do pênis, que culmina com o desejo, muito importante por suas conseqüências, de ser também um garoto."

Em 1925, ao referir-se às conseqüências psíquicas da inveja fálica 9i destaca que, "Uma terceira conseqüência da inveja fálica parece radicar no relaxamento dos laços carinhosos com o objeto materno."

No entanto para Klein, a casa, representando a mãe, nos coloca diante de outro aspecto do problema.

"Muito freqüentemente desenharão uma casa, que representa sua mãe e colocarão diante dela uma árvore simbolizando o pênis do pai e algumas flores representando meninos." 13

A preocupação pelo interior do corpo da mãe, alvo de seus ataques invejosos e, conseqüentemente, o temor dos ataques retaliativos, faz que cada lugar, cada canto necessite ser explorado e investigado como uma forma defensiva de trabalhar a angústia diante do desconhecido ameaçador.

Klein, 13 ao referir-se às múltiplas fontes de ansiedade que a menina vive em sua relação com a mãe, diz que, "comparada com o menino, encontra-se sob outras certas desvantagens, devido a razões fisiológicas."

"Sua posição feminina não ajuda na sua ansiedade já que sua possessão do bebê, que seria uma confirmação completa e uma consecução dessa posição, é, depois de tudo, só prospectiva. Nem tampouco a estrutura de seu corpo a prove de alguma possibilidade de conhecer qual é o estado real dos assuntos em seu interior. É esta incapacidade de conhecer algo sobre sua condição que agrava o que, na minha opinião, é o medo mais profundo da menina, isto é, que o interior de seu corpo tenha sido machucado e destruído e que não terá filhos ou só os terá estragados."

E acrescenta no rodapé da página: "Esta é, em parte, a razão pela qual o narcisismo

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masculino está focalizado no pênis, porque o maior temor do menino é ser castrado.""Em um estágio algo posterior do desenvolvimento, no entanto, em um momento em

que seus sentimentos de culpa se fazem sentir continuamente, seu desejo de apoderar-se dos conteúdos "bons" do corpo da mãe, ou melhor, sua convicção de que o fez, e expôs assim sua mãe, diríamos figurativamente, aos maus conteúdos, faz surgir um sentimento de culpa e de ansiedade muito graves. Tendo assim destruído sua mãe, crê ter arruinado o depósito do qual obtém a satisfação de todas suas necessidades morais e físicas. Este temor, que é de tão enorme importância na vida mental da menina pequena, fortalece ainda mais os vínculos que a ligam à sua mãe. Isto faz surgir um impulso para restituir e dar à sua mãe todas as coisas que pegou dela, um impulso que se expressa em numerosas sublimações de natureza tipicamente feminina."'3

A casa pode representar para o inconsciente - como vemos nos sonhos e na literatura - o corpo materno e também o próprio corpo. Seu cuidado, a limpeza e exploração de seus cantos, os enfeites que colocamos nela para embelezá-la e a forma em que pode funcionar nos fazem sentir ligados e protegidos, ou pelo contrário, senti-la como uma prisão cheia de perigos, de onde desejamos escapar. Isto nos permite - seguindo o pensamento kleiniano em relação à intensidade da culpa pelos impulsos destrutivos e à capacidade de reparação, "como o menino que coloca um curativo na pata do esquilo mordido, enquanto pronuncia a palavra mamãe, ser restituídos ao mundo humano de proteção, de 'sermos bons'".14

Em um texto intitulado "O espaço vazio", Karin Michaelis faz um relato do desenvolvimento de sua amiga, a pintora Ruth Kjär, a qual possuía um notável senso artístico, que empregava especialmente na arrumação de sua casa, mas não tinha um talento criador acentuado.

Bonita, rica e independente, passava grande parte de sua vida viajando e constan-temente deixava sua casa, com a qual havia tido tantos cuidados e gostos... No meio da felicidade que era natural nela e que parecia sem perturbações, afundava repentinamente na mais profunda melancolia.

Uma melancolia suicida. Se tentava explicar isto, dizia algo assim: "Há um espaço vazio para mim, que nunca posso preencher."

Um quadro que foi retirado de sua casa deixando uma parede vazia, que parecia coincidir com o espaço vazio dentro dela, levou-a a um estado de profunda tristeza, até que febrilmente e em poucas horas pintou um quadro que preencheu o vazio da parede.

Com relação a isto e à produção posterior da pintora, diz Klein: "É óbvio que o desejo de reparar, de arrumar o dano psicologicamente feito à mãe e também restaurar a si mesma, estava no fundo do impulso de pintar esses retratos de seus parentes... Ao fazê-lo, a filha pôde apaziguar sua própria angústia e pôde tentar reparar a mãe e fazê-la de novo através do retrato". 14

Em alguns momentos da análise de pacientes muito regressivas - especialmente nos estados psicóticos - surpreendeu-me encontrar que expressões como: "Quero que minha casa brilhe como um espelho", ou "Vejo-me nela", et cetera, significavam muito mais que uma mera forma de referir-se à importância que pudesse ter para ela a atenção de seu lar.

Por exemplo, uma paciente cuja casa tinha sido afetada por umas rachaduras no sótão, por onde se filtrava a umidade estragando a pintura, dizia: "Não posso suportar isto! Vejo-me nas paredes da sala e do meu quarto, com a pintura descascando e as pare-

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des rachadas, e sinto como se fosse eu mesma que caio em pedaços. Se não me ajudarem a arrumar tudo isto, temo enlouquecer."

Lacan 16 diz, "a fase do espelho é um drama cujo ânimo interno precipita-se da insuficiência à antecipação, e para o sujeito, presa da ilusão da identificação espacial, maquina a forma que se sucederão desde uma imagem fragmentada do corpo até uma forma que chamaremos ortopédica de sua totalidade e à armadura, por fim assumida, de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo seu desenvolvimento mental... Este corpo fragmentado, termo que também fiz com que fosse aceito em nosso sistema de referências teóricas, mostra-se regularmente nos sonhos, quando a moção da análise toca certo nível de desintegração agressiva do indivíduo..."

"Aparece, então, sob a forma de membros desunidos e órgãos figurados em exoscopia, que adquirem asas e armas para as perseguições viscerais, os quais o visionário Jerônimo Bosch, fixou para sempre, pela pintura, em sua ascensão durante o século décimo quinto ao zênite imaginário do homem moderno. Mas essa forma mostra-se tangível no plano orgânico do mesmo, nas linhas de enfraquecimento que definem a anatomia fantasmática, manifestada nos sintomas da excisão esquizóide ou de espasmo da histeria."

Pergunto se, em alguns estados, a casa, com seus elementos desarrumados ou deteriorados, não é como um reflexo que leva, em um processo inverso, da imagem do corpo como totalidade à angústia das fantasias de fragmentação.

Em outras palavras, se a imagem da casa deteriorada não nos remete, em um processo de involução, a uma angústia da qual tentamos fugir; mas como no suplício de Sísifo, a tarefa terminada se desfaz e temos que recomeçar cada vez.

Talvez na mulher, cuja máxima capacidade criativa está em seu misterioso interior, a preocupação de poder conservar ao seu redor uma harmoniosa completude, vivenciada como o reflexo visto do interior desconhecido - reflexo apoio da imagem do corpo como totalidade - esteja relacionada com a angústia de castração.

Não em vão Lacan se refere à "menina confrontando-se, nua no espelho: sua mão como um relâmpago cruzando com um corte grosseiro a carência fálica".16

A casa e a criança

Aberastury1 diz que, "durante o tratamento psicanalítico de crianças, achei com freqüência que no jogo de construir casas, a criança expressava muitos de seus conflitos fundamentais e podia observar-se se seu esquema corporal era deformado e de que maneira."

Acrescenta: "ao estudar as condições especiais sob as quais se estrutura o esquema corporal e a noção de espaço, pude compreender por quê na construção de uma casa, simbolizando esta o sujeito, podem ser expressadas situações emocionais traumáticas importantes e também ver como estas influíram em seu esquema corporal ou em sua relação com o espaço... Um sujeito valoriza uma parte da casa que constrói, põe ênfase em algo que outro anulou, acrescenta algo que não existe ou elimina partes fundamentais na construção de uma casa.

"A linguagem expressa neste jogo é uma linguagem espacial."

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"Cada sujeito tem e expressa uma determinada configuração espacial, e esta denominação criada por Homburguer, significa a especial relação dinâmica das formas, tamanhos e distâncias em cada sujeito."

"Em cada configuração espacial determinada, o sujeito expressa: a) sua experiência no espaço, e b) sua situação atual perante o espaço e seu próprio corpo."

Dupont Muñoz 8 utiliza o desenho da casa e "O construtor infantil" em sessões com crianças que enfrentam a proximidade da morte por câncer. "É bem sabido que a casa simboliza o corpo e suas partes e que ao construí-la se expressam situações traumáticas importantes na relação com o esquema corporal."

Sabemos que a casa é um dos primeiros desenhos da criança: persiste através de seu desenvolvimento e é um índice de seu nível intelectual e afetivo.

Neste presente de vôos espaciais, os livros e revistas de ficção científica, assim como os programas de televisão com o mesmo assunto, ocupam um lugar de privilégio nas mentes infantis. As complexas naves e as construções interplanetárias despertam seu interesse mais vivo e são reproduzidas em seus jogos e desenhos.

No entanto, a simples casinha-cabana continua desenhada nas paredes das salas de jogos dos analistas de crianças.

Com lápis, com giz de cera ou com massa para modelar, sua reprodução enche folhas e folhas, e segundo sua forma e cor, seu tamanho, sua localização no espaço, o ambiente que a rodeia e a ornamentação, podemos inferir o tipo de relação que pode estabelecer consigo mesma e com o outro; suas angústias, suas defesas e seus desejos.

Lembramos de um menino de três anos e seis meses, filho de pais divorciados e que sentia uma grande ansiedade por essa separação, chegar à primeira sessão de análise, acompanhado por sua mãe por se negar a entrar sozinho na sala de jogos.

Colocou os brinquedos que estavam sobre a mesa em uma fila apertada entre ele e o analista e pegando a massinha disse para sua mãe: "Mãe, faz uma casa para mim?" Ao que, obviamente, ela respondeu assustada: "Mas se não sei fazê-la!"

Diego, de sete anos, comunicou, através de uma série de casinhas desenhadas em sessões sucessivas, a gravidez de sua mãe que estava tentando elaborar. Primeiro foi a casa com telhado de duas águas; esta foi se modificando com a redondeza do telhado até se transformar num iglu; e finalmente, ao acrescentar as pernas, os braços e a cabeça, ficou transformada em "mamãe com a barriga aumentada".

Ana, de doze anos, em um período em que o trabalho analítico estava centralizado no processo de diferenciação entre ela e a figura materna, desenhou uma casa, começando pelo chão e continuando para cima com o desenho detalhado das paredes, com suas portas e janelas, até chegar ao teto, que se prolongava formando a saia de uma jovem que emergia, movendo-se como uma larva que deixa seu casulo.

Existem numerosos exemplos na literatura infantil, onde a protagonista - ou o herói - é expulsa da casa de sua infância, que mostram suas vicissitudes no longo trajeto antes de reencontrar a casa que os acolhe, que adquire assim sua significação de desejo realizado.

Em "Branca de Neve e os Sete Anões", a madrasta dona do castelo vive sem se preo-cupar com a menina até que esta, chegada a adolescência, transforma-se em sua rival.

O espelho que fala da beleza da menina, sela seu destino: deverá morrer. E assim sai do castelo e encontra a casinha do bosque.

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Estabelece-se então uma luta entre a bruxa que quer fazê-la sair da casa - ou pelo menos abrir suas aberturas - como uma maneira de quebrar a proteção que representa o estar dentro, e o esforço dos anões (aspectos fragmentados da figura paterna?) para que se mantenha trancada. Finalmente, quando assume a morte simbólica por ter comido a maçã envenenada, protegem-na colocando-a em uma caixa-casa de cristal, de onde será resgatada pelo príncipe, que com um beijo lhe devolve a vida.

O assunto das crianças perdidas no bosque que surpreendentemente encontram uma casinha tentadora de açúcar e torrone e que, ao penetrar nela, têm que passar por múltiplos perigos antes de poder regressar, como o herói, triunfantes e cheios de ouro à casa paterna, é freqüente.

E são inumeráveis os exemplos de casinhas - ou castelos - que têm um papel importante na dinâmica dos contos infantis.

É que a casa é para nós o continente da lembrança.Nossa vida vai se depositando em suas paredes, em seus cantos, e a eles acudimos cada

vez que necessitamos nos localizar no tempo ou no lugar do sonho ou da fantasia.Sonha-se com a casa da infância ou da adolescência; com a casa dos avôs, deste ou

daquele amigo que deixou uma marca em nós.Revelam características de uma época, de um momento histórico, das necessidades e

das modalidades de um país e dos anseios de seus moradores. E a história de suas transformações acompanha a história da humanidade: o homem e sua morada sempre vão juntos.

A casa: sua relação com o sintoma

Continuo, comentando dois exemplos nos quais o sintoma predominante estava estreitamente relacionado com a casa: permanecer ou sair dela.

1) Gladys, de vinte e três anos, veio à consulta por um sintoma que dificultava todas as suas atividades: sentia-se terrivelmente angustiada cada vez que era obrigada a deixar sua casa.

Em algumas ocasiões conseguia vencer sua ansiedade, mas na maioria das vezes esta se tornava tão intolerável que, pouco a pouco, foi ficando reclusa sem outras atividades que as que podia desenvolver dentro da sua casa.

Começou uma análise no curso da qual pode-se ver a complexidade de seu sintoma. O temor de sair centralizava-se, fundamentalmente, no fato de que, estando na rua, não poderia se esconder caso encontrasse determinadas pessoas. Em sua casa podia sentir o mesmo terror diante da perspectiva desse encontro, mas a diferença era que a casa, sentida como algo extremamente protetor, oferecia-lhe seus múltiplos cantos e a possibilidade de que suas portas fechadas funcionassem como obstáculos entre ela e seu perseguidor.

As pessoas temidas não eram sempre as mesmas, mas em qualquer encontro casual, estas poderiam tornar-se perigosas, de acordo com um complicado mecanismo associativo que não podia controlar.

Portanto, a pessoa que até ontem representava o perigo poderia, em um determinado momento, transformar-se em aliada e deixar seu lugar de ameaça para outra, indiferente até então.

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Isto fazia com que tomar precauções fosse algo extremamente difícil para a paciente, pois só no momento do encontro podia conhecer sua reação. Esta consistia numa perda do controle motor; gostaria de correr, mas não podia. Ficava paralisada e exposta aos olhares do seu interlocutor e nesse momento produzia-se um delírio de transformação corporal pelo qual acreditava que sua boca adquiria uma forma tão estranha ao fechar e abrir para emitir umas poucas palavras, que a outra pessoa ficava espantada ao saber seu segredo, apesar de todos seus esforços para ocultá-lo.

"Se eu morasse em algum lugar da Arábia, onde as mulheres cobrem o rosto deixando descobertos somente os olhos, acho que não teria tantos problemas", disse em uma ocasião.

De sua casa, como de uma fortaleza, e ajudada por sua mãe, que, segundo ela, era a única pessoa que conhecia sua doença, sustentava uma complicada rede de mentiras para explicar sua ausência nas reuniões que faziam seus amigos e familiares, ou nos centros de estudo, de onde, pouco a pouco, foi se afastando totalmente.

A porta de sua casa estava sempre fechada; sofria de uma constipação muito rebelde e quando se casou, no decorrer da análise, desenvolveu uma vaginite que tornou impossível a relação sexual durante meses.

Toda ela estava fechada, assim como obrigava que fossem mantidas fechadas as portas e janelas de sua casa.

Após um tempo do tratamento, em uma sessão que foi a última, comunicou-me, muito assustada - e aterrorizada - que, sem que soubesse como, nem pudesse prevê-lo, nesse fim de semana tinham ocorrido dois fatos altamente surpreendentes: a defecação fora realizada sem nenhuma dificuldade e seu marido conseguira penetrá-la.

Não veio mais.Nesta paciente existiam elementos agorafóbicos, em que a periculosidade do espaço

aberto estava na ameaça do encontro: a proteção da casa fechada afastava a possibilidade de que este ocorresse. J. Mom destaca que "tanto a claustrofobia como a ago-rafobia mostram de forma dramática, uma dissociação ou divisão perfeita no paciente afetado por alguma delas [...] Parece então que, no momento em que são colocados os perigos internos em um lado, cumpre-se aquilo de poder viver tranqüilo no outro lado. Apesar de que mais um detalhe seria necessário para que se cumprisse o último: evitar, através de um cuidadoso controle, que a partir dessa instância, esses dois lugares entrassem em contato." '8

Na parte de dentro, que é sua casa, a casa de seus pais na qual transcorrera toda sua infância, continuou morando quando casou.

Existia uma identificação dela com a casa na qual ambas se confundiam no esforço para manter duas zonas perfeitamente diferenciadas: a aberta, representando o perigo e afechada, onde se sentia segura.

Seu medo de janelas abertas era associado a uma lembrança infantil, no qual achava que tinha visto, através dos vidros, a máscara da morte. E a transformação de seu rosto, que aterrorizaria tanto ao outro, era seu próprio medo, como em um espelho, diante do rosto transformado em morte. Fechar-se era esconder-se, evitando um destino de destruição, assim como fechar suas aberturas representava seu desejo de manter sob controle os próprios aspectos tanáticos; que indubitavelmente estavam relacionados com a relação que mantinha com sua mãe. Esta era dependente e sádica ao mesmo

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tempo; ela era a portadora da palavra que explicaria a ausência, permitindo a manutenção do segredo e era vítima, ao mesmo tempo, do segredo, já que seu tempo estava, quase completamente, ocupado pelas necessidades de sua filha.

O pai estava à margem desta aliança, e quando a paciente casou, seu marido ocupou o mesmo lugar que ele: meras figuras secundárias do drama, onde o sintoma nos fazia pensar - através dos sonhos, das lembranças, etc. de Gladys - em sua relação com a morte.

Mas Freud 8 nos fala de um terror "relacionado com a visão de algo". "A visão da cabeça da Medusa paralisa de terror quem a contempla, petrifica-o." E mais adiante, acrescenta: "O que desperta horror em nós mesmos, também há de produzir idêntico efeito sobre o inimigo que queremos repelir. O diabo empreende a fuga quando a mulher lhe mostra sua vulva."

Freud destaca que "ficar rígido significa, efetivamente, a ereção. Ou seja, na situação de origem oferece um consolo ao espectador: ainda possui um pênis, e o fato de ficar rígido o confirma."

Mas a morte é um estar rígido também; convertida em pedra, sem vida. Isolar-se com sua mãe na casa fechada não seria talvez a expressão de um desejo de retornar à origem, além das diferenças e além, também, da vida e da morte?

II) Os pais de Guilherme, de três anos de idade, consultaram-me porque o menino apresentava sérios transtornos no ato da defecação.

Apesar do sintoma ocorrer há tempo, foi aumentando em intensidade e, no momento da consulta, representava um problema que abatia profundamente os pais.

Descreveram-no como um menino alegre e comunicativo até o momento em que começava a sentir necessidade de defecar.

Então ficava encolhido num canto, sem querer comer nem brincar.Permanecia assim, às vezes até oito dias e apesar dos esforços desesperados de seus

pais, negava-se teimosamente a sentar no vaso ou no penico, defendendo-se com veemência de tudo o que pudesse significar uma tentativa de violentar sua resistência.

Finalmente, quando já não podia agüentar mais, deitava em sua cama, totalmente vestido, cobria-se com os cobertores e assim, em posição fetal, defecava. Permanecia ainda uns minutos em total imobilidade e logo, lentamente, tirava a roupa e olhava as fezes com atenção.

Só então se mostrava aliviado, como se houvesse escapado milagrosamente de um grande perigo e permitia que sua mãe jogasse as fezes no vaso, limpando-o e vestindo-o.

O menino apresentava também outros sintomas: não permitia que cortassem seu cabelo nem as unhas e, fundamentalmente, era praticamente impossível para ele separar-se da sua mãe e da sua casa.

Não saía para brincar nem na calçada; permanecia dentro de sua casa e só em raras ocasiões assomava ao jardim.

Sua mãe não podia abandonar a casa nem um momento, porque durante sua ausência, o menino tinha uma crise de angústia, obrigando-a a permanecer ao alcance de seu olhar, o que a fazia sentir-se prisioneira, numa situação com a qual não podia nem sabia lidar. Devido às exigências do menino, a filha menor, de um ano e seis meses de idade, tinha que ser atendida, a maior parte do tempo, por uma empregada, já que

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ela se dedicava quase exclusivamente a Guilherme.A única saída permitida era a do pai, para atender suas ocupações; o resto da família

vivia como enclausurada na casa.Pulo outros dados do material clínico, assim como as circunstâncias que me levaram a

manter, com o menino e sua mãe, uma série de entrevistas que abrangeram um período de três meses e meio, com a base de três sessões semanais.

Em meu primeiro encontro com a criança, na sala de espera, surpreendeu-me seu aspecto agradável e vivo. Estava parado ao lado de sua mãe e, quando os convidei a entrar, abraçou-se a ela e entraram juntos, caminhando ele entre suas pernas e abraçado a elas, com o rosto apoiado em seu corpo.

Quando sua mãe sentou, ele subiu em seu colo e ficou estreitamente unido a ela, sem me olhar ou falar comigo.

A mãe também permaneceu um tempo em silêncio, contemplando a sala de brincar e logo fez alguns comentários sobre os desenhos e inscrições que via nas paredes. Além disso, perguntou o porquê dos brinquedos, da maça e da areia.

Ao dizer-lhes que a mãe tinha os olhos que podiam olhar, e as palavras, que podiam falar e que por isso Guilherme permanecia mudo e de olhos fechados, ela respondeu: "Não pode separar-se de mim; é uma parte minha."

Logo, dirigindo-se ao menino, lhe diz: "Conte à senhora que você tem um cachorrinho em casa."

Guilherme mexe lentamente a cabeça e me olha; é um menino extremamente agradável. Toca de leve com os dedos de sua mão direita a superfície da mesa, aponta a massinha, mas, apesar de que a aproximo, não a toca.

Pego a massinha e faço um cachorrinho que deixo sobre a mesa.Empurra-o, e ao fazê-lo cair, esboça um sorriso, mas em seguida esconde novamente o

rosto na saia de sua mãe e permanece assim até o momento de ir embora.Ao perguntar-lhe se quer voltar, olhando-me de soslaio, concorda com um movimento

de cabeça.Nas sessões seguintes a este primeiro encontro, Guilherme, sem deixar o colo de sua

mãe, mas já de frente para mim, foi utilizando cada um dos brinquedos para fazê-los defecar e depois, indiferenciados de suas fezes, jogava-os junto com estas na pia.

Logo, ele mesmo foi as fezes-bebê, que iam saindo de dentro das pernas de sua mãe, como um defecar-nascer.

Esta manobra foi repetida várias vezes e continuada no diva, de onde deslizava muito lentamente, com a cabeça para baixo, enquanto que com as mãos reconhecia o chão, antes de apoiar-se nele.

A mãe repetiu várias vezes: "É um pedaço meu; não pode se separar."Ao comentar que é como um cocô, que não desgruda, se desgrudar "fez cocô" (no

sentido de se perder, ir pelo vaso), Guilherme ri e começa a cantar: "Ca-ca, qui-qui, que-que, cu-cu".

Eu acrescento: co-cô. Joga um a um todos os brinquedos no chão, com força e diz: "Fizeram cocô." Canta e passeia pelo quarto olhando e tocando tudo; logo faz um cilindro com toda a massinha e diz que é um pinto.

Pensamos então que seus sintomas se relacionavam com uma intensa angústia de castração (tinha nascido uma irmãzinha, quando ele era ainda muito pequeno), onde

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as fezes não só representavam seu pênis em perigo de ser expulso, mas também todo ele, que ao desgrudar de sua mãe, ia desaparecer como o imprestável.

Numa entrevista que tive com os pais, um tempo depois, estes estavam muito satisfeitos porque o menino tinha melhorado consideravelmente.

Defecava naturalmente, permitia que lhe cortassem o cabelo e as unhas, e também... Nesse momento a voz da mãe tornou-se quase inaudível e tive a impressão de que tinha quefazer um esforço considerável para poder continuar seu relato. "...Agora pode sair da casa... sai para brincar na calçada e passa muito tempo na casa de uma vizinha, que tem crianças, brincando com elas. Nós também podemos sair. Vamos ao cinema ou à casa de amigos e as crianças ficam com a empregada, sem nenhum problema. Eu sei que tudo isso é uma melhora, mas..."

Desatou a chorar amargamente, apesar dos esforços do esposo - que até esse momento havia permanecido em silêncio - para tentar acalmá-la.

Após um tempo, que achei muito longo, relatou-me de forma entrecortada por uma intensa emoção, algo que surgia pela primeira vez: antes deste casamento, fora casada durante uns poucos meses e sua relação com o primeiro marido interrompera-se bruscamente quando, saindo de sua casa para ir ao trabalho, ele foi atropelado por um carro, morrendo instantaneamente.

Seu casamento com o atual marido ocorreu quase em seguida do acidente e pouco depois ficou grávida de Guilherme.

Pulo as circunstâncias que a levaram a realizar um segundo casamento logo após a morte de seu primeiro marido, mas sim quero destacar que este fato a afundou numa situação conflitante, que não se sentia no direito de manifestar, já que seu luto pertencia a um passado, apesar de que continuamente escurecia seu presente.

Não podia chorar; o morto não pertencia a esta família e portanto seu choro a ofendia.Então desenvolveu um temor, que ia aumentando cada vez que alguém saía da casa

para ir à rua.Guilherme foi a parte visível do que ela queria ocultar.Reter a mãe, e a si mesmo, dentro da casa, assim como reter as fezes até o limite do

possível dentro dele, era a tentativa de impedir a morte brusca, fazendo lento e retardado todo o processo de sair, que é como um defecar-nascer-morrer.

É por sua relação com a morte que o enfrentamento com a castração adquiriu em Guilherme caracteres tão dramáticos e ameaçadores?

Lacan pergunta: "O que é o complexo de castração? O pai é quem é, por direito, possuidor da mãe com um pênis suficiente, enquanto que o instrumento do menino está mal assimilado e é insuficiente."

"Esta é a origem. Apesar de que seu próprio pênis lhe está momentaneamente negado, o menino pode alcançar uma função paterna plena, ser alguém que se sente legitimamente em posse de sua virilidade."

"Este é o fim. O nome do pai é essencial para a estruturação de um mundo simbólico; mediante ele, o menino sai de seu emparelhamento com a onipotência materna. Mas o complexo de castração só pode ser vivido se o pai real jogar verdadeiramente o jogo." 17

Mas, que pai para Guilherme? O não-pai morto, separado bruscamente da mãe,

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mas que continua impondo-se através de um luto que não lhe é permitido elaborar?Ou o outro pai que sai e entra da casa, mas como a sombra substitutiva do outro?A angústia diante de uma ausência que não pode ser aceita, impede o sair: as fezes de

Guilherme, Guilherme da mãe, todos da casa.Porque o destino do que sai é morrer.Diante deste destino de morte - todos vamos morrer - surge a angústia da experiência

— nunca experimentada, mas ameaçadora — da morte.Ao submeter-se ao nome do pai para poder sair do emparelhamento com a figura

materna, o homem, vencida sua onipotência, emparelha-se com a morte.

A casa e a morte

A casa tem uma especial relação com o trabalho de luto."A dor experimentada no lento processo de juízo de realidade durante o trabalho de

luto, parece que se deve, em parte, não só à necessidade de renovar os vínculos com o mundo externo e assim continuamente reexperimentar a perda, mas também, ao mesmo tempo e por meio disso, de reconstruir ansiosamente o mundo interno que sente em perigo de deterioração e desastre." '3

A freqüência com que aparece nos sonhos, durante a situação de luto, a casa habitada em outro momento do existir, anterior à perda, é como a moldura ou o apoio para que esse mundo interno não desabe.

Para Guilherme e sua mãe, a casa de onde não se podia sair, era como uma teia de aranha que os envolvia numa relação sem saída, porque, não podendo falar do morto, esse silêncio condenava o pai vivo e a família toda a ser como uma sombra, mantendo-se como num sonho, na negação da morte.

No começo, referi-me à paciente que, do avião, transformava o afastamento espacial em algo temporal, já que as casas pequenas pela distância eram, para ela, as pequenas casas de sua infância.

Como desde um avião, contemplamos a vôo de pássaro e de forma muito sintética, alguns dos aspectos nos quais o transcorrer de nossa vida está unido emocional-mente a alguma casa.

Com alguns exemplos clínicos, referimos as vicissitudes da relação da mulher com a casa, representante do corpo materno e de seu próprio corpo, assim como sua relação com a castração e a morte.

Tentamos compreender o que é cada casa e em cada momento da situação analítica neste ou naquele paciente.

Talvez nosso interesse tenha detectado matizes especiais no assunto, porque uma mudança aos quatro anos, provocada pela morte de um familiar muito próximo, deixou o desejo do reencontro com a casa por onde ainda não havia passado a morte.

Conclusões

Tentando responder uma pergunta sobre o porquê da casa ocupar um lugar pri-vilegiado no desejo - consciente e inconsciente - de possuí-la, temos "olhado" para ela

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através dos olhos dos pacientes, e assim destacou-se ora como em sua representação do corpo materno ou do próprio corpo, ora com o significado do que poderia complementar a falta, já que sua qualidade de ser perfectível escapa ao destino inexorável daquilo que não podemos mudar.

Tentei mostrar como, para a mulher especialmente, o vínculo com a casa revive situações muito prematuras reprimidas, onde a rivalidade, a agressão e também os sen-timentos reparatórios em relação à mãe encontram uma forma de expressão sem empecilhos.

Nesse sentido, a relação ambivalente que se estabelece com a empregada - personagem que sempre está presente como se constituísse uma unidade junto com a casa - faz pensar na mãe-empregada, que é um objeto desvalorizado, mas altamente necessitado, a ponto de provocar uma intensa ansiedade se afastar-se.

Freud n, ao referir-se à importância da fase pré-edípica da mulher, diz: "[...] Até tive que aceitar a possibilidade de que muitas mulheres fiquem detidas na primitiva vinculação com a mãe, sem alcançar jamais uma genuína reorientação em direção ao homem." Mas acrescenta: "Tudo que se relaciona com esta primitiva vinculação pareceu-me sempre tão difícil de captar na análise, tão nebuloso e perdido nas trevas do passado, tão difícil de reviver, como se tivesse sido vítima de uma repressão particularmente inexorável."

Penso se, somente, através de uma repressão simbólica substitutiva, é possível o surgimento destas emoções vinculadas à precoce relação da menina com sua mãe.

Por outro lado, como já vimos, a casa tem uma particular vinculação com o passado perdido. Referi-me à casa que aparece freqüentemente durante a elaboração de um luto.

No inconsciente - onde nada morre - continua existindo como continente do "esquecido", como lugar onde habitam os seres perdidos e as emoções ligadas a eles.

Quando em 1920 Freud 7 introduz a pulsão de morte, diz: "A meta de toda vida é a morte; e com igual fundamento, o inanimado era antes animado [...] Temos estabelecido abundantes conclusões sobre a suposição de que tudo que for animado tem que morrer por causas internas. Esta hipótese tem sido naturalmente aceita por nós, porque aparece mais como uma certeza para nós. Estamos acostumados a pensar assim e nossos poetas reforçam nossa crença. Além disso, talvez tenhamos sido levados a adotá-la, o fato de que não tendo mais remédio que morrer e sofrer, antes que a morte nos arrebate as pessoas que mais amamos, preferimos ser vencidos por uma implacável lei natural, pela soberana avaykn do que por uma coincidência que talvez tivesse sido evitável. Mas talvez esta crença na interior regularidade de morrer, não seja também mais que uma das ilusões que criamos para suportar o pesar de viver."

Também em "O mal-estar na cultura", Freud 10 se refere à morte como a libertadora dos sofrimentos que impõe o viver.

"Para que nos serve, afinal, uma longa vida, se é tão miserável, tão pobre em alegrias e rica em sofrimentos, que só podemos saudar a morte como feliz libertação?"

A morte, então, nos devolveria para a casa-sepultura, como um retorno ao ventre materno, "primeira morada cuja nostalgia talvez ainda persista em nós, onde estávamos tão seguros e nos sentíamos tão à vontade", fechando assim o ciclo da vida humana.

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Nota

*** Já a linguagem cinematográfica tem utilizado a caia, com suas paredes que vão rachando, perdendo sua forma primitiva e caindo uma por uma até sua destruição total, para descrever a desintegração psicótica de suas personagens.

Bibliografia

1. Aberastury, A. - EI juego de construir casas. Su interpretación y su valor diagnóstico" Rev. de Psic. v. VII, p. 3, 1950.2. Abraham, K. - Manifestaciones del complejo de castración femenino. (1920) Psicoanálisis clínico, Ed. Hormé. 3. Dupont Muñoz, M.A. - El paciente que va a morir (1972) Rev. de Psic. v. XXXI, n° 4, 1974. 4.Freud, S. - La interpretación de los sueños (1900). O.C. v. VII, p. 2, Ed. Americana. 5. Freud, S. - Una teoría sexual (1905). O.C. v. II, Ed. Americana. 6. Freud, S. - Introducción al narcisismo (1914). O.C. v. XIV, Ed. Americana. 7. Freud, S. - Más allá del principio del placer (1920). O.C. v. II, Ed. Americana. 8. Freud, S. - La cabeza de Medusa (1922). O.C. v. XXI, Ed. S. Rueda. 9. Freud S, - Algunas consecuencias psíquicas de Ia diferencia sexual anatômica (1925). O. C. v. XXI, Ed. S. Rueda. 10. Freud, S. - El molestar en Ia cultura (1930). 11. Freud, S. - Sobre Ia sexualidad femenina (1931). O.C. v. XXI, Ed. S. Rueda. 12. Gautier.T. - Arria Marcela - Recuerdo de Pompeya Las mejores historias insólitas. Ed. Bruguera, 1970. 13. Klein, M. - Situaciones infantiles de angustia reflejadas en una obra de arte y en el impulso creador (1929). Contribuciones al psicoanálisis. Ed. Hormé. 14. Klein, M. - El análisis de niños (1932). Ed. A.PA. (El Ateneo), cap. XI. 15. Klein, M. - El duelo y su relación con los estados maníaco-depresivos (1940) Contribuciones al psicoanálisis. Ed. Hormé. 16. Lacan,J. - El estádio del espejo como formador de Ia funcíón del yo, tal como se nos revela en Ia experiencia psicoanalítica (1949). Lectura estructuralista de Freud. Ed. Siglo XXI. 17. Lacan,J. - La relación del objeto y las estructuras freudianas (1957). Rev. Uruguaya de Psic, v. XI, n° 2; 1969.18. Mom,J. - El yo y su control a través de los objetos en Ia agorafobia Rev. Urug. de Psic, v. IV, 4o, 3, 1961-1962. 19. Ricoeur, P. - Principio de placer y principio de realidad (1965). Rev. Urug. de Psic, v. IX, n° I; 1967.

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Comentários

A respeito do trabalho de Arminda Aberastury "O mundo do adolescente"

Liliana Pualuan de Gomberoff*

Nos passos dos pioneiros

As vozes que vêm do século passado não somente permanecem na história da psicanálise latino-americana, mas também se atualizam hoje e são vigentes no ensino de psicanalistas e psicoterapeutas que trabalham com crianças e adolescentes. A psicanálise latino-americana leva a marca da imagem de Arminda Aberastury123 num cadinho que se nutre de várias fontes. Aqui estão os originários destas terras e as misturas trazidas pelas gerações de emigrantes. No que diz respeito ao latino-americano descobrem-se nomes que vêm de outros continentes; formam parte de nossos mundos, estão nas raízes dos nomes de nossos ancestrais pais. Arminda Aberastury transmite a partir de seus escritos o entusiasmo e a força que transpassa os limites do tempo. Abrindo caminho como pioneira, leva-nos a seguir seus passos e recolher a visão de mundo de sua geração. Temos que estudar o que persiste, o que atualmente se redesenha, o que emerge aparentemente novo, a partir das novas modalidades de vida e das mudanças. Arminda Aberastury neste artigo descreve o mundo do adolescente, suas modificações profundas, as mudanças corporais, a ansiedade e angústia que estas provocam; a tentativa de realizar uma fuga do mundo exterior, e de buscar refúgio no mundo interno; a problemática que se desencadeia pela entrada no mundo adulto; os impedimentos e os recursos que o adolescente pode encontrar e descobrir nele mesmo ou em seu ambiente familiar e sócio-cultural; as tentativas de projetar e de conduzir no mundo externo as pressões de seu próprio mundo; os êxitos e fracassos nessa interação. Tudo isto, facilitado ou obstaculizado pela bagagem que traz a partir de sua constituição e experiência. Aberastury destaca a importância do luto na construção deste novo mundo, de como essa construção vai depender também dos materiais com os quais os pais e seu ambiente contribuíram na infância; das possibilidades do presente e das possibilidades que podem ser percebidas no futuro. O drama que significa esse processo aparece ilustrado com textos do Diário de uma adolescente que vive num contexto onde a clausura não é uma metáfora, onde a perseguição não é uma situação em que a adolescente possa buscar sem risco um refúgio no mundo interno. É uma ameaça constante de dia e de noite, com a consciência de que todas as ilusões e projetos podem terminar com a morte. É uma amostra da sobrevivência de uma adolescente num refúgio concreto, assediado de perigos e ameaças, com um espaço reduzido. Ali, entretanto, a criação foi possível. Este espaço, apesar da profunda crise, não ceifou a qualidade humana da famí-

* Psicanalista Didata. Membro do Comitê do Programa de Psicanálise de Crianças e Adolescentes. Instituto de sicanálise.

Associação Psicanalítica Chilena.

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lia, que unida frente aos riscos iminentes e à fragilidade da possibilidade de viver, contou com amor e segurança suficientes para iluminar um quarto escuro, e inclusive permitir a necessidade de intimidade da adolescente. Deu lugar também às lutas de independência e rivalidade que caracterizam essa etapa. Arminda Aberastury seleciona fragmentos desse Diário que mostram como nas condições mais extremas, se existem bons materiais no mundo interno e externo familiar, pode-se tramitar o desenvolvimento desse processo. Atualmente sabemos, o que não soube Arminda Aberastury na época que escreveu seu trabalho, que o pai de Anne Frank censurou os aspectos sexuais aos quais a adolescente se referia em seu Diário. Eles estavam presentes. Assim se completa, algo que nas primeiras edições faltava no desenvolvimento dessa adolescente.

Algumas características do mundo do adolescente do século XXI

A relação do homem com a natureza mudou. A interação humana tem um perfil diferente em relação ao do século passado. As metas do homem se movem num contexto diferente. Elas mesmas mudam. A leitura diminuiu notavelmente. A tecnologia, na infância e na adolescência, abrange dimensões gigantescas que vão além do que se pode regular e conduzir. Nesse contexto a criança pequena e logo o adolescente vai perdendo o espaço para a intimidade, para o desenvolvimento da fantasia que vem pronta, engarrafada nos programas de TV O mundo interno se povoa de imagens que são mais difíceis de se elaborar, há menos lugar para os sentimentos e a interação humana. Os fantasmas internos são pressionados e superdimensionados. Os ritos e crises de passagem ficam sepultados ou são de uma violência imanejável. No lugar da estabilidade e harmonia do desenvolvimento infantil que poderia garantir uma passagem à adolescência, como assinala Aberastury, menos violenta, o adolescente de hoje se encontra muitas vezes com a experiência do vazio. Os super-heróis, os homens-máquinas, os invencíveis, junto à multiplicidade de informação que chegam através de imagens e sons, violam a possibilidade de um filtro que possa discriminar os estímulos e regular o que não se pode digerir. A globalização se confunde com a homogeneização. Nesse contexto se estimula ainda mais o narcisismo e a onipotência. Como conseqüência, a sensação de perda é incalculável, e o tipo de angústia com essas características pode impulsionar procuras de atrativos que tornam mais profundas as fendas e mais difícil o caminho para entrar no mundo adulto. O contexto dramático de Anne Frank não impediu o descobrimento do amor a pesar da perseguição e do risco de morte. No século XXI o adolescente num contexto muito diferente aparece muito exposto. Torna-se complexo o desenvolvimento da identidade, a integração e desenvolvimento do esquema corporal, a sexualidade, o encontro com o outro. A desumanização dos estímulos responde-se de certa forma com a desumanização do homem. A acentuação de defesas autistas, de mecanismos obsessivos precoces, de recursos auto-tranquilizadores, aparecem incrementados no mundo atual, o que poderíamos interpretar como resposta e tentativas de autocontenção, de criações pseudo-salvadoras pelo incremento de incentivos que proporcionalmente aos recursos naturais podem sobrepassar a criança e o adolescente. Mesmo quando o ambiente humano seja de boa qualidade, é bem possível que não seja suficiente para graduar e dosar a quantidade de estímulos que escapam a seu controle. As barreiras que se podem criar, ou são muito frágeis ou são excessivas de maneira que

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o contato vai perdendo a permeabilidade que contribuiria a um desenvolvimento mais harmônico. As mudanças, a passagem à adolescência, podem ser aterrorizadoras. Os níveis de ansiedade, a modificação dos vínculos com os pais e irmãos, a elaboração edípica nos adolescentes com menos recursos para enfrentá-las, pode se transformar para eles em lutas devastadoras, esmagadoras, difíceis de manejar, lutas que evocam mundos como os descritos por Abel Posse4 em "A Rainha do Prata" onde não há lugar para a intimidade, onde as únicas paredes que parecem permitir a liberdade e a criação são a loucura e o manicômio; até a psicanálise aparece ali como outra forma de irrupção e de violência. Evoca um mundo que descreve Paul Auster5 em "A Cidade das Últimas Coisas" em que tudo se destrói ou desaparece concretamente. Os graus de perseguição, de falta de intimidade, de não ter nada próprio, de fragmentação do mundo, das buscas desesperadas, são levadas ao extremo, mostram um mundo roto, fragmentado sem esperança. Os caminhos para afogar os fantasmas e o terrorífico que se desperta nesse contexto dentro de muitos dos processos são a toxicomania, o alcoolismo e em níveis etários cada vez mais precoces. A crise do adolescente num mundo em crise com pouco lugar para a intimidade nos propõe, atualmente, talvez outros problemas e nos faz enfrentar outras modalidades de crises, que implicam também modificações nos métodos de tratamento.

A nova abertura em relação à sexualidade traz conflitos determinados por riscos antes não considerados ou pelo menos não na magnitude de hoje em dia. A AIDS converte-se em freio ou em risco. As perversões estão mais à vista, o maltrato infantil sai de seus rincões ocultos à luz. Há organismos multidisciplinários que se encarregam das vítimas e vitimizadores. A perversão a portas fechadas ou sutilmente presente já expandiu suas fronteiras e não é somente a família que a enfrenta e arca com os problemas. O acesso a tanta informação por diversos caminhos pode ser muito enriquecedor para o adolescente ou ter o efeito de uma super-estimulação que incrementa a ansiedade própria do processo. Quando o adolescente não conta com o apoio de uma história de vínculos estáveis e consistentes, o lugar para o processo adolescente pode se estreitar e tornar mais difícil a entrada no mundo adulto. O espaço para a elaboração edípica, a possibilidade de competir e rivalizar com os pais, e com os irmãos nem sempre encontra um canal apropriado; muitas vezes o trâmite dessas experiências tropeça e segue por caminhos distorcidos... O predomínio dessas situações torna mais difícil que a família, a sociedade e a cultura dêem um marco adequado para o desenvolvimento do adolescente. Os pais estão sob as pressões dos extremos: excesso de trabalho ou aposentadoria. A psicanálise nesse âmbito deve diversificar suas tarefas e buscar novas formas de abordar o homem de certa forma tiranizado pela desumanização.

Nos adolescentes, o uso do diário de vida, da comunicação epistolar e das expressões artísticas diminuiu. Atualmente as válvulas de escape estão mais à mão, e muitas vezes são recursos mais procurados que os que contribuem à elaboração. No lugar da busca ativa de reformas no exterior, que Arminda Aberastury destaca, como as maneiras de desenvolver recursos, de tentar resolver a crise interior, pode haver uma recepção passiva que não deixa espaço para a busca... Assim, o desenvolvimento do pensamento, os argumentos intelectuais através dos quais o adolescente descarrega tensões e ao mesmo tempo descobre seus próprios valores e identidades, nem sempre são acessíveis como recurso, facilitadores do processo adolescente. Ao invés da descarga através

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dos argumentos intelectuais, são comuns atualmente as descargas através de violências incontidas e a sociedade responde também com violência. Os grupos humanos, às vezes sem distinção, estão submetidos às mesmas circunstâncias.

Os adolescentes que tiveram uma infância menos traumática, poderão elaborar as angústias que necessariamente surgem nesse momento do desenvolvimento, no qual se revivem e se re-significam as etapas anteriores, junto à remodelação de seu mundo interno e ao assentamento de sua identidade. Estes adolescentes poderão tramitar um desprendimento menos tortuoso, uma crise tolerável, com resultados mais positivos. Porém o número de adolescentes que fica atolado nesse processo atualmente é muito numeroso.

Na família, as tensões conflitivas se somam às tensões econômicas e às buscas desesperadas para manter o sustento e o nível de consumo. As crises familiares muitas vezes acontecem junto a crises econômicas difíceis de resolver, os divórcios, as separações também ocorrem numa proporção maior do que no século passado. A família se desfaz.

A propósito do mundo do adolescente, tentei descrever a interação do adolescente do ano 2000 com o mundo atual; é um mundo que pode ser positivo se os vínculos familiares anteriores o foram. É um mundo diferente do que vivia Anne Frank e seus semelhantes. Ela ali perdeu a vida, querendo viver. Muitos de nossos adolescentes também perderam a vida, imersos no vício e através do suicídio. O que tentei ressaltar é que o contexto do desenvolvimento é tão diferente, que faz inclusive com que a definição de adolescência seja diferente.

Os ensinamentos de Arminda Aberastury se aplicam a um adolescente num mundo que mudou, apesar de que não se passaram tantos anos desde que ela escreveu seus trabalhos.

O desenvolvimento no interjogo entre mundo interno e realidade externa que em sua maior parte estaria representada pelo ambiente familiar, escolar, universitário ou de trabalho, pode empurrar o adolescente para uma adesão a um mundo mecânico, em que a violência se acumula no interior, eliminando as possibilidades criativas e consumindo o espaço interno. Em vez de um pensamento que se desenvolve em direção a estruturas formais, predomina o "pensamento ação" impulsivo.

A desvalorização dos pais na passagem para a adolescência a fim de ressaltar-se a si mesmo, perdeu o valor e o sentido que tinha no século passado. Muitos adolescentes já não procuram nos pais um lugar para expressar a competição e a rivalidade, para fortalecer-se e ensaiar a independência, e desenvolver recursos para se virar no mundo. A competição direta já não aparece tão clara; há uma procura de caminhos muito diferentes para se diferenciar. Ao invés da ânsia de reforma social, muitas vezes se percebe a ânsia de destruir as estruturas vigentes como expressão de falhas na própria estrutura.

Os estímulos são tantos e por tantos meios, que o intelecto é aplicado ao desen-volvimento de teorias que justifiquem o caos, e acaba sendo similar ao pensamento onipotente infantil. Os problemas que se tenta resolver através desses meios se transformam na criação de novos problemas.

Na educação, ao invés de discussões intelectuais e lutas por idéias, cada vez mais surgem lutas diretas e de ação com os professores. Da submissão se passa à rebeldia violenta. A onipotência da ação substitui a onipotência da fantasia. Há cada vez mais

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denúncias de professores espancados. A violência e a agressão direta estão em cena, assim como as tendências suicidas.

Arminda Aberastury mostra que a qualidade das reformas e do plano organizador do adolescente vai depender, em parte, de como foram suas relações anteriores. Ressalta também que na adolescência surge o abandono das soluções "como se" pelo não ou pelo sim da realidade que tem em suas mãos.

Podemos pensar que para o adolescente do século XXI a realidade escapa de suas mãos, que é difícil projetar-se em direção ao futuro, que vive mais o presente. Vive uma pseudo-independência de ser...

Epílogo

As investigações de Stern6, Fonagy e Mary Target7, Fonagy e Wallerstein8, entre muitos outros, abriram possibilidades de conhecer mais sutilmente aspectos do ser humano que confirmam o impacto dos estímulos no bebê, a complexidade das relações anteriores. São investigações que abrem novos canais de observação, exploração e estudo, que repercutem também na técnica psicanalítica. Mas há uma crise sócio-cultural que está ultrapassando a psicanálise. A psicanálise teria que re-estabelecer suas formulações para ver como se situar nesse contexto e poder ser mais efetiva, ampliando o campo de ação. A psicanálise tem uma responsabilidade importante não somente em influenciar em um caso isolado, mas também na comunidade, estabelecendo diagnósticos sociais e medidas preventivas que orientem para uma direção mais controlada dos fenômenos descritos.

Bibliografia

1. Aberastury A. - Teoría y técnica del psicoonálisis de niños, Paidos, Buenos Aires, 1969

2. Aberastury A. - Aportaciones al psicoanálisis de niños, Paidos, Buenos Aires, 1973

3. Aberastury A. - y col.. Adolescencia, Kargieman, Buenos Aires 1971.

4. Posse, A. - La Reina del Plata. Buenos Aires.

5. Auster, P. - La ciudad de Ias ultimas cosas.

6. Stern, D. - El mundo interpersonal del infante. Una perspectiva desde el psicoonálisis y Ia psicologia evolutiva, Bs. As., Paidós, 1991. 7. Fonagy, R; Target, M. - Nuevos apuntes sobre Ia psicologia infantil: Ia interfase con Ia información empírica.Cuadernos de psicoanálisis XXX: 3 y 4 Júlio - Diciembre 1997.pp.217-241. 8. Fonagy, P. y Wallerstein.

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Comentários

Sobre "O mundo do adolescente" de Arminda Aberastury e "A casa: cena da fantasia" de Vida Maberino de Prego

Pablo Cuevas Corona

Assim que recebi o correio eletrônico desta tarde, fui à seção "A" de minha estante e procurei-o, sabia que estava por ali. Sim, era esse, o de pasta azul e letras brancas: Aberastury: Adolescência. Procurei a página 343 e encontrei "O Mundo Adolescente". Folheei-o um pouco, foi editado por Kargieman em 1971. É um volume pesado, pois é uma cópia feita no "antigo" papel térmico, e encadernado de maneira artesanal. Naquele tempo, em meu país, como ocorreu em diferentes épocas a diferentes países, havia pouca possibilidade de comprar livros originais porque a paridade da moeda com o dólar, além de instável, era altíssima, e tínhamos que "nos virar" para obter e ler o material dos seminários do Instituto. Iniciava-se desde então o que nos disseram ser uma "crise econômica passageira", que depois se con-verteu em um verdadeiro modo de vida no qual estão submersas nossas economias com maior ou menor intensidade e tempo "de tolerar e solucionar".

Assim, tenho em minhas mãos essa cópia xerox que é "pesada", por causa dos autores que participam na aventura editorial: a própria Arminda, Maurício Knobel, Edgardo H. Rolla, Eduardo Kalina, Elfriede (Susana) Lustig de Ferrer, Sara G. de Jarast, Lea Rivelis de Paz y Raquel Zak de Goldstein. Aberastury escreveu o prólogo do livro, o primeiro capítulo denominado "Adolescência" e o capítulo final, "O mundo do Adolescente", que é o motivo deste comentário, no qual se inclui também um artigo de Vida Maberino de Prego (Montevidéu): "A casa: cena da fantasia",lido na Associação Psicanalítica do Uruguai em 21 de agosto de 1976, no qual Aberastury é citada e interpretada a partir de seu artigo "O jogo de construir casas". Essas contribuições pioneiras, escritas há três décadas, são o motivo para comentar a respeito da Psicanálise infantil na América Latina.

Qual a visão atual da psicanálise sobre a casa? Talvez poderíamos considerá-la como uma espécie de cenário cinematográfico onde se representam sonhos, fantasias, lembranças e argumentos, seja em forma seqüencial como num filme projetado de trás para frente, ou de maneira detalhada, como numa foto fixa.

Assim como no relato de Vida de Prego Otaviano observa a destruição da casa e sonha com sua reconstrução, o psicanalista se propõe a "desconstruir", através da comunicação analítica, o material consciente e inconsciente com o qual será reconstruído o mundo interno do sujeito. A casa, no transferencial, é o próprio lugar - continente - da sessão, é o ato psicanalítico em si, é a contenção do analista e a presença da interpretação. É o lugar onde se obtém o novo sentido a partir da compreensão do inconsciente.

Associação Psicanalítica do México.

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Sobre "O mundo do adolescente" de A. Aberastury e " A casa: cena da fantasia" de V. M. de Prego Pablo Cuevas Corona 189

A casa, para a menina e a adolescente do século 21 é um espelho que a reflete em sua completude. A menina se sente dona de casa desde muito cedo. As brincadeiras infantis e as idéias e fantasias que as acompanham, colocam em jogo o conceito da casa como o lugar onde acontecem os eventos que caracterizarão a futura personalidade. É bem possível que as casas de cada menina, a casa de bonecas, a casa da brincadeira, a casa da infância e da fantasia inconsciente, se transformem, com o tempo, na casa final, o lar, o crisol onde acontece o novo jogo da realidade e o novo jogo dos próprios filhos e a repetição incansável de todas as fantasias e brincadeiras que nos foram próprios em outro momento. A mulher projeta na casa e em sua arrumação seu próprio interior-função materna. A arrumação da casa representa a relação original com a mãe, sua qualidade, suas características, o que faltou, o que se incorporou como "bom" e "mau". Tal como, de maneira metafórica, propõem os versos de Rosario Castellanos (fragmento):

Aqui onde seu pé deixa a marca, neste corredor profundo e apagado crescia uma moça, erguia seu corpo esbelto e triste feito cipreste.

(Às suas costas cresciam suas duas trancas iguais a dois anjos da guarda gêmeos. Suas mãos nunca fizeram outra coisa a não ser fechar janelas.)

Adolescência cinzenta com vocação de sombra,com destino de morte:as escadas dormem, se desmoronaa casa que não soube te prender.

Passemos ao outro tema: Quem tenha tentado indagar sobre o conceito "adolescência" em relação a nossa ocupação psicanalítica, saberá que é um termo um pouco difícil de entender, algumas vezes confuso, outras contraditório. Por exemplo, existem duas possíveis origens etimológicas da palavra, uma que se refere a "padecer" e outra, mais precisa, que significa "crescer". Na obra de Freud, não há uma referência explícita ao termo, apesar de que Dora é a história da primeira análise de uma adolescente, assim como o relato do pequeno Hans e da análise - através de pessoa interposta - de um menino e sua fobia. Há menções do termo na literatura psicanalítica desde 1923, o qual nos indica que estamos diante de um conceito que tem menos de um século de vigência, um termo bastante recente e moderno no âmbito de nossa disciplina, porque é uma espécie de "interface" entre o que é o mundo interno do sujeito jovem, e a maneira como ele aparece no mundo social adulto. Há lugares e circuns-tâncias onde quase não há adolescência: nas áreas rurais de nossos países latino-americanos, por exemplo, ou nas situações extremas de guerra nas quais observamos muitas crianças-jovens convertidas em soldados no Oriente Médio ou na África. Por definição, ali a passagem das etapas da infância para a vida adulta ocorrem de maneira

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repentina, com a finalidade de solucionar necessidades muito mais urgentes que as emocionais, ligadas ao crescimento.

Pouco mudou no conceito da adolescência desde que se iniciou seu estudo formal como etapa do desenvolvimento. No artigo mencionado de Aberastury, a adolescência é considerada, com mais ou menos palavras, como sendo integrada por duas partes: a puberdade, que é a série de fenômenos biológicos que marcam o final da latencia, e a adolescência propriamente dita, a resposta psicológica, emocional a todas essas mudanças corporais. Apareceriam, assim, os jovens adolescentes, homens e mulheres, observando-se a si mesmos "enfiados nesse corpo novo", sentindo falta do corpo infantil, sofrendo o embate dos hormônios e as mudanças por eles produzidas, decifrando o conteúdo edípico reprimido da fantasia e praticando alegremente suas novas funções e sensações.

Ao abandonar a latencia, quando a infância e a meninice ficam submersas na amnésia, os jovens adolescentes estabelecem um processo importante de luto pela separação e transformação de suas lembranças, suas vivências e suas relações objetais. O decantado de tudo isto se integra paulatinamente no "ideal do ego", e as figuras originais ficam incorporadas como as "imagens" que servirão de referência para continuar o desenvolvimento. Isto, na realidade, é um processo dual de separação do adolescente de seus pais, e destes com ele. A necessidade de separação, autonomia e independência agem com vigor e gera a dor em ambos integrantes da dupla pais-filhos. Há uma sensação de perda em ambos, ao passo que se sabe que se está obtendo algo novo que refletirá numa forma diferente de relação. Vai-se acabar colocando um final aos componentes incestuosos evidentes da relação infantil, reeditados agora com o surgimento das mudanças sexuais secundárias.

Efetivamente, os adolescentes mostram essa propensão a voltar-se "para dentro" frente à iminência de tantas mudanças externas, como forma de "reunir forças" para incorporar-se ao mundo social, externo, adquirindo uma nova identidade, uma forma diferente de ser, uma personalidade específica. No transcorrer dessas vicissitudes, muitas demandas aparecerão de diferentes maneiras. Uma delas, verdadeiro "objeto transicional da adolescência" é escrever um diário, ato que se converte em um interlocutor "silencioso", testemunho mudo da fantasia, do desejo e da realidade da vida diária, um espaço que permite refletir e falar com o "outro eu". Esse é o exemplo que nos oferece o diário de Anne Frank, documento duplamente valioso neste caso porque nos permite observar de perto e de dentro da jovem escritora, não somente o processo adolescente pelo qual transitava interpretado magistralmente por Arminda Aberastury, mas que nos recorda, também, um fato da história para o qual devemos estar muito alertas para que não volte a acontecer.

Finalizo este breve comentário, feliz pelo fato de que recentemente o Comitê Diretivo da Associação Psicanalítica Internacional reconheceu de maneira oficial a validade da Psicanálise de Crianças e Adolescentes como uma especialidade psicanalítica. Este é um fato que reconhece o esforço e a participação de todos os pioneiros nesta área, mulheres tão valiosas como Arminda Aberastury e Vida Maberino de Prego. Todos estamos de parabéns com esta ampliação e mudança em nossa vida psicanalítica. Nos falta um longo caminho a percorrer, no qual desde já se distinguem duas vertentes, derivadas talvez da história, da infância desta especialidade: a primeira, que se dirige

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Sobre "O mundo do adolescente" de A. Aberastury e "A casa: cena da fantasia" de V. M. de Prego Pablo Cuevas Corona 191

pelos caminhos do conflito inconsciente e sua interpretação como alternativa de solução da neurose infantil; a segunda, que transita pelos conceitos do desenvolvimento, suas detenções e suas distorções. Não há dúvida de que o estudo, as publicações, a investigação e a tolerância marcam o destino desta nova vertente psicanalítica, especialmente no âmbito da FEPAL.

FEPAL, Junho-Julho, 2002

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Comentários

A propósito de "A casa: cena da fantasia"

"de Vida Maberino de Prego

Liliana Pualuan de Gomberoff*

Vida de Prego nos conduz, em seu trabalho, através de fragmentos literários e vinhetas clínicas ao exterior e ao interior da casa como símbolo universal. Abre uma de suas portas para o inconsciente do ser humano que cruza as idades e as fronteiras. A casa leva em si a marca da cultura, do desenvolvimento, dos tipos de vínculos e das relações objetais que foram estabelecidas. Estas levam o registro das vivências precoces, que se modificam com a experiência ou que ficam detidas em seu itinerário pela vida. Podemos transitar com a autora, por cenas que refletem o impacto da perda, do luto e do medo da morte através da imagem da casa. Este percurso tem início no começo da vida, desde o útero materno até a casa (útero)- sepultura. A vida se inicia com a perda da primeira casa, o útero, que é buscado e recriado na casa concreta, na casa corpo, e no esquema corporal. O ser humano torna-se independente durante o desenvolvimento da casa-mãe, ou se mantém precariamente separado, ou vive na nostalgia da sua busca, recriando-a ou substituindo a perda com criações novas. Às vezes fica preso no medo da castração, sem suportar a perda, atado ao fetiche que alimenta a fantasia de não perder a casa-mãe para sempre. A busca pode se deter, pelo medo da confirmação da castração.

Em seu trabalho, Vida de Prego nos mostra o compromisso pessoal do analista, sua experiência em buscar a maneira de entrar em contato com o paciente; a abertura e a procura de recursos em diferentes teorias. No personagem de Gautier, Otaviano, mostra a ilusão de vencer o tempo e a morte. Otaviano sonha com a reconstrução da cidade em ruínas onde reencontra a amada. Ele perde essa ilusão definitivamente quando acorda; ele se transformará numa sombra após a busca impossível... Ovídio, o paciente jovem, traz para a análise a casa esburacada onde mora com a mãe, com infiltrações da chuva, que os remendos não tapam. Expressa, através da casa que não protege, o terror à castração, o vínculo ruim com a mãe. Adela tem uma casa que é incapaz de manter arrumada, o que reflete sua sensação de incompletude. Gladys não podia sair de sua casa. Guilherme sofria de prisão de ventre, não podia sair de casa, nem deixar a mãe sair dela. Todos eles conduzem ao cenário de que a casa oferece, a representação do vínculo com a mãe e a imagem de si mesmo. Em seu trabalho, Vida de Prego também destaca a casa como reflexo da própria pessoa, o espelho que mostra aspectos obtidos e obscuros da personalidade, e de uma tarefa que nunca termina. Baseando-se em Arminda Aberastury 2 assinala que, em uma criança, a construção da casa pode-nos revelar conflitos importantes e problemas de desenvolvimento: o tipo de relação que estabelece consigo mesmo e com os outros; as angústias e defesas; a revelação de situa-

* Associação Psicanalítica Chilena.

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ções traumáticas; a formação e falhas na estrutura de seu esquema corporal. A expressão de configurações espaciais na construção que a criança faz da casa, forma parte de sua linguagem. Vida de Prego revela a relação da casa com o sintoma, em adultos e crianças. A prisão de ventre, por exemplo, pode ser uma ilustração da casa fechada. Deixa também à vista a manifestação do perigo que significa sair de casa, abrir as portas, evacuar, desprender-se do que se sente valioso e o perigo diante do estranho e do novo expressado na fobia, no medo da castração, de desaparecer, e da morte.

Desde o nascimento, o caminho da realidade está marcado por objetos perdidos. De acordo com a autora, a casa é como o recipiente dos objetos perdidos. Também será como um estojo que conservará o idealizado; por isso é lembrada e re-visitada.

A casa institucional da psicanálise de crianças e adolescentes: cenário da teoria e da técnica.

A casa institucional da psicanálise abriu suas portas oficialmente à psicanálise decrianças e adolescentes após dezenas de anos de perambulação criativa. Suas teorias e

as técnicas que a identificam têm onde se hospedar. Antes havia dúvidas se o trabalho que se realizava com crianças e adolescentes era, realmente, psicanálise. A legalidade institucional a considerava como uma aplicação da psicanálise apesar de que suas descobertas sustentavam a psicanálise de adultos.

Se usarmos a casa como símbolo da instituição psicanalítica, poderíamos dizer que esta, tornando-se pequena, recebeu em seu seio a psicanálise de crianças e adolescentes.

Também está recebendo a investigação empírica, que até pouco tempo atrás tinha que se desenvolver em casas diferentes: na universidade, em hospitais, ou em outras agrupações formadas por psicanalistas, porém não no interior da IPA.

Após a morte de Freud houve uma eclosão de teorias que se distanciavam da postura freudiana inicial. Cada uma se declarava sucessora de Freud. As diferenças entre elas eram substanciais, pelo menos para seus membros. Entre elas não existia uma comunicação maior.

Foram famosas as controvérsias entre os anafreudianos e os kleinianos na Inglaterra, que culminaram num acordo "de cavalheiros" entre três mulheres. Os desenvolvimentos das diferentes teorias foram autônomos. Cada grupo tinha suas próprias técnicas de tratamento. Apesar das teorias permanecerem até hoje diferenciadas, as técnicas foram se integrando de tal maneira que atualmente se lemos ou escutamos o trabalho clínico dos diversos representantes de cada grupo, nem sempre é possível identificar claramente sua origem teórica, isto é, foi produzido um modo de diversidade teórica e integração técnica.

A IPA tem estado preocupada com os requisitos mínimos, que tendem a homogeneizar a técnica. A investigação empírica poderá validar algumas técnicas e demonstrar que outras são inferiores quanto a sua eficiência. Isto caminhará junto com a credibilidade de algumas teorias e a rejeição de outras.

Já não é possível encerrar-se numa determinada teoria da qual se desprende uma técnica exclusiva, com a qual os pacientes podem ser tratados: crianças, adolescentes e adultos de maneira similar. O ingresso de métodos de investigação diferentes no método analítico, trouxe um enriquecimento importante à bagagem do conhecimento psicanalítico. Não é possível usar as mesmas manobras técnicas na psicanálise de crianças, adolescentes e adultos. Não é possível que as interpretações do conteúdo sejam simila-

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A propósito de "A casa: cena da fantasia" de Vida Maberino de Prego Líliana Pualuan de Gomberoff 187

res nas três idades. Esta foi uma posição importante entre os analistas, uma postura que hoje poderíamos chamar de simplista, de cômoda. Pensar e acreditar que com somente uma teoria, com somente uma técnica básica, se podia tratar todo tipo de pacientes e aplicar a psicanálise a todo tipo de fenômenos. Tratava-se de uma posição idealizada de sua própria escola, que requeria a desvalorização das outras.

A casa da psicanálise mudou. Nela convivem não somente os diferentes esquemas referenciais teóricos e técnicos, mas podem ingressar, também, diversas teorias que eram tachadas de dissidentes, como por exemplo, a teoria lacaniana. Apenas há alguns anos, em lugares como a Argentina e os Estados Unidos, se permitiu o ingresso de nossos psicólogos à casa psicanalítica. Juntaram-se à prática psicanalítica, recursos técnicos, vindos de outras teorias psicológicas e também de outras disciplinas. Hoje é possível, por exemplo, praticar a psicanálise com pacientes que estão, simultaneamente, em tratamento com fármacos.

Em crianças e adolescentes, as técnicas psicanalíticas restritivas que tentam preservar o "ouro puro" psicanalítico, somente são possíveis em pequeno número de casos. As intervenções familiares, os tratamentos psicopedagógicos, algumas manobras cognitivo-conceituais, acompanham o tratamento psicanalítico propriamente dito. Deve-se levar em consideração a necessidade de dependência da criança que impede a neutralidade a todo custo. O interessante é que tudo isso que os psicanalistas eficientes realizavam de forma intuitiva, atualmente pode situar-se num amplo marco psicanalítico teórico. As descobertas da investigação empírica exigem essas mudanças.

Tudo o que foi dito anteriormente implica no fato de que hoje nossa casa possui muitos novos habitantes, e que é necessário ampliá-la.

É possível que a definição da psicanálise deva ser menos restrita, e que outras variáveis, além dos critérios extrínsecos, além dos requisitos mínimos, devam ser con-sideradas e levadas também em consideração as descobertas das disciplinas afins.

Talvez não seja suficiente a existência de só uma casa.Sabe-se que, à medida que a família cresce, é necessário ampliar a casa, e às vezes há

que substituir-la por outra maior. Sabe-se que as mudanças de casa acarretam depressões, lutos. Isso se deve ao fato do ser humano enraizar-se, o que lhe torna difícil mudar de contexto. A psicanálise há muito tempo tem uma casa que não muda...

A mudança enfrenta a perda, a limitação, a desidealização, a aceitação de que existem outros que podem ser melhores.

O ingresso da psicanálise de crianças e adolescentes na casa psicanalítica é a expressão de uma abertura de nossa casa, tão fechada e isolada durante dezenas de anos.

Isso anuncia novos ingressos. Será difícil fechar as portas novamente.

Nota

1. Aberastury A. - El juego de construir cosas. Su interpretación y valor diagnóstico. Paidós. Buenos Aires 1961.

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Comentários

Sobre "O mundo do adolescente" de Arminda Aberastury e "A casa: cena da fantasia" de Vida Maberino de Prego

Pablo Cuevas Corona

Assim que recebi o correio eletrônico desta tarde, fui à seção "A" de minha estante e procurei-o, sabia que estava por ali. Sim, era esse, o de pasta azul e letras brancas: Aberastury: Adolescência. Procurei a página 343 e encontrei "O Mundo Adolescente". Folheei-o um pouco, foi editado por Kargieman em 1971. É um volume pesado, pois é uma cópia feita no "antigo" papel térmico, e encadernado de maneira artesanal. Naquele tempo, em meu país, como ocorreu em diferentes épocas a diferentes países, havia pouca possibilidade de comprar livros originais porque a paridade da moeda com o dólar, além de instável, era altíssima, e tínhamos que "nos virar" para obter e ler o material dos seminários do Instituto. Iniciava-se desde então o que nos disseram ser uma "crise econômica passageira", que depois se con-verteu em um verdadeiro modo de vida no qual estão submersas nossas economias com maior ou menor intensidade e tempo "de tolerar e solucionar".

Assim, tenho em minhas mãos essa cópia xerox que é "pesada", por causa dos autores que participam na aventura editorial: a própria Arminda, Maurício Knobel, Edgardo H. Rolla, Eduardo Kalina, Elfriede (Susana) Lustig de Ferrer, Sara G. de Jarast, Lea Rivelis de Paz y Raquel Zak de Goldstein. Aberastury escreveu o prólogo do livro, o primeiro capítulo denominado "Adolescência" e o capítulo final, "O mundo do Adolescente", que é o motivo deste comentário, no qual se inclui também um artigo de Vida Maberino de Prego (Montevidéu): "A casa: cena da fantasia",lido na Associação Psicanalítica do Uruguai em 21 de agosto de 1976, no qual Aberastury é citada e interpretada a partir de seu artigo "O jogo de construir casas". Essas contribuições pioneiras, escritas há três décadas, são o motivo para comentar a respeito da Psicanálise infantil na América Latina.

Qual a visão atual da psicanálise sobre a casa? Talvez poderíamos considerá-la como uma espécie de cenário cinematográfico onde se representam sonhos, fantasias, lembranças e argumentos, seja em forma seqüencial como num filme projetado de trás para frente, ou de maneira detalhada, como numa foto fixa.

Assim como no relato de Vida de Prego Otaviano observa a destruição da casa e sonha com sua reconstrução, o psicanalista se propõe a "desconstruir", através da comunicação analítica, o material consciente e inconsciente com o qual será reconstruído o mundo interno do sujeito. A casa, no transferencial, é o próprio lugar - continente - da sessão, é o ato psicanalítico em si, é a contenção do analista e a presença da interpretação. É o lugar onde se obtém o novo sentido a partir da compreensão do inconsciente.

Associação Psicanalítica do México.

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Sobre "O mundo do adolescente" de A. Aberastury e " A casa: cena da fantasia" de V. M. de Prego Pablo Cuevas Corona 189

A casa, para a menina e a adolescente do século 21 é um espelho que a reflete em sua completude. A menina se sente dona de casa desde muito cedo. As brincadeiras infantis e as idéias e fantasias que as acompanham, colocam em jogo o conceito da casa como o lugar onde acontecem os eventos que caracterizarão a futura personalidade. É bem possível que as casas de cada menina, a casa de bonecas, a casa da brincadeira, a casa da infância e da fantasia inconsciente, se transformem, com o tempo, na casa final, o lar, o crisol onde acontece o novo jogo da realidade e o novo jogo dos próprios filhos e a repetição incansável de todas as fantasias e brincadeiras que nos foram próprios em outro momento. A mulher projeta na casa e em sua arrumação seu próprio interior-função materna. A arrumação da casa representa a relação original com a mãe, sua qualidade, suas características, o que faltou, o que se incorporou como "bom" e "mau". Tal como, de maneira metafórica, propõem os versos de Rosario Castellanos (fragmento):

Aqui onde seu pé deixa a marca, neste corredor profundo e apagado crescia uma moça, erguia seu corpo esbelto e triste feito cipreste.

(Às suas costas cresciam suas duas trancas iguais a dois anjos da guarda gêmeos. Suas mãos nunca fizeram outra coisa a não ser fechar janelas.)

Adolescência cinzenta com vocação de sombra,com destino de morte:as escadas dormem, se desmoronaa casa que não soube te prender.

Passemos ao outro tema: Quem tenha tentado indagar sobre o conceito "adolescência" em relação a nossa ocupação psicanalítica, saberá que é um termo um pouco difícil de entender, algumas vezes confuso, outras contraditório. Por exemplo, existem duas possíveis origens etimológicas da palavra, uma que se refere a "padecer" e outra, mais precisa, que significa "crescer". Na obra de Freud, não há uma referência explícita ao termo, apesar de que Dora é a história da primeira análise de uma adolescente, assim como o relato do pequeno Hans e da análise - através de pessoa interposta - de um menino e sua fobia. Há menções do termo na literatura psicanalítica desde 1923, o qual nos indica que estamos diante de um conceito que tem menos de um século de vigência, um termo bastante recente e moderno no âmbito de nossa disciplina, porque é uma espécie de "interface" entre o que é o mundo interno do sujeito jovem, e a maneira como ele aparece no mundo social adulto. Há lugares e circuns-tâncias onde quase não há adolescência: nas áreas rurais de nossos países latino-americanos, por exemplo, ou nas situações extremas de guerra nas quais observamos muitas crianças-jovens convertidas em soldados no Oriente Médio ou na África. Por definição, ali a passagem das etapas da infância para a vida adulta ocorrem de maneira

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repentina, com a finalidade de solucionar necessidades muito mais urgentes que as emocionais, ligadas ao crescimento.

Pouco mudou no conceito da adolescência desde que se iniciou seu estudo formal como etapa do desenvolvimento. No artigo mencionado de Aberastury, a adolescência é considerada, com mais ou menos palavras, como sendo integrada por duas partes: a puberdade, que é a série de fenômenos biológicos que marcam o final da latencia, e a adolescência propriamente dita, a resposta psicológica, emocional a todas essas mudanças corporais. Apareceriam, assim, os jovens adolescentes, homens e mulheres, observando-se a si mesmos "enfiados nesse corpo novo", sentindo falta do corpo infantil, sofrendo o embate dos hormônios e as mudanças por eles produzidas, decifrando o conteúdo edípico reprimido da fantasia e praticando alegremente suas novas funções e sensações.

Ao abandonar a latencia, quando a infância e a meninice ficam submersas na amnésia, os jovens adolescentes estabelecem um processo importante de luto pela separação e transformação de suas lembranças, suas vivências e suas relações objetais. O decantado de tudo isto se integra paulatinamente no "ideal do ego", e as figuras originais ficam incorporadas como as "imagens" que servirão de referência para continuar o desenvolvimento. Isto, na realidade, é um processo dual de separação do adolescente de seus pais, e destes com ele. A necessidade de separação, autonomia e independência agem com vigor e gera a dor em ambos integrantes da dupla pais-filhos. Há uma sensação de perda em ambos, ao passo que se sabe que se está obtendo algo novo que refletirá numa forma diferente de relação. Vai-se acabar colocando um final aos componentes incestuosos evidentes da relação infantil, reeditados agora com o surgimento das mudanças sexuais secundárias.

Efetivamente, os adolescentes mostram essa propensão a voltar-se "para dentro" frente à iminência de tantas mudanças externas, como forma de "reunir forças" para incorporar-se ao mundo social, externo, adquirindo uma nova identidade, uma forma diferente de ser, uma personalidade específica. No transcorrer dessas vicissitudes, muitas demandas aparecerão de diferentes maneiras. Uma delas, verdadeiro "objeto transicional da adolescência" é escrever um diário, ato que se converte em um interlocutor "silencioso", testemunho mudo da fantasia, do desejo e da realidade da vida diária, um espaço que permite refletir e falar com o "outro eu". Esse é o exemplo que nos oferece o diário de Anne Frank, documento duplamente valioso neste caso porque nos permite observar de perto e de dentro da jovem escritora, não somente o processo adolescente pelo qual transitava interpretado magistralmente por Arminda Aberastury, mas que nos recorda, também, um fato da história para o qual devemos estar muito alertas para que não volte a acontecer.

Finalizo este breve comentário, feliz pelo fato de que recentemente o Comitê Diretivo da Associação Psicanalítica Internacional reconheceu de maneira oficial a validade da Psicanálise de Crianças e Adolescentes como uma especialidade psicanalítica. Este é um fato que reconhece o esforço e a participação de todos os pioneiros nesta área, mulheres tão valiosas como Arminda Aberastury e Vida Maberino de Prego. Todos estamos de parabéns com esta ampliação e mudança em nossa vida psicanalítica. Nos falta um longo caminho a percorrer, no qual desde já se distinguem duas vertentes, derivadas talvez da história, da infância desta especialidade: a primeira, que se dirige

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Sobre "O mundo do adolescente" de A. Aberastury e "A casa: cena da fantasia" de V. M. de Prego Pablo Cuevas Corona 191

pelos caminhos do conflito inconsciente e sua interpretação como alternativa de solução da neurose infantil; a segunda, que transita pelos conceitos do desenvolvimento, suas detenções e suas distorções. Não há dúvida de que o estudo, as publicações, a investigação e a tolerância marcam o destino desta nova vertente psicanalítica, especialmente no âmbito da FEPAL.

FEPAL, Junho-Julho, 2002

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Artigos premiados da FEPAL

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Prêmio Sigmund Freud

Interpretação psicanalítica: uma composição dodecafônica

Cintia Buschinelli

Expressionismo Schõnberg/ Freud psicanálise/dodecafonismo

Este trabalho, longe de se aventurar na seara da composição, musical pretende apenas, e tão só, apresentar um paralelo entre a interpretação psicanalítica e a música atonal, principalmente no que se refere ao efeito que tanto uma quanto a outra podem provocar em quem que as ouve.

Neste sentido, as composições musicais aqui empregadas possuem a função exclusiva de se exercer como um ponto de apoio para uma das funções que lhe são próprias, qual seja, de eliciar emoções no ouvinte. E é também a emoção veiculada na interpretação psicanalítica que será o alvo das considerações que se seguirão.

E foi como ouvinte que me perguntei por que a música atonal construída porSchõnberg, no lugar de se oferecer como um bálsamo das inquietações se presta a

incomodar o ouvinte, a molestá-lo de modo que o impulsiona a evitá-la?..A música dodecafônica, diferente das tendências composicionais dos períodos

anteriores à sua criação, se apresenta como uma seqüência de motivos fragmentados. Em geral, o efeito por ela produzido se constitui em um inequívoco desconforto1-

A capacidade desta composição de induzir inquietação se encontra na essência de sua conformação musical, qual seja, não possuir uma estrutura formal reconhecível pelo ouvinte. Falta-lhe um tema que a organize, uma estrutura que a defina.

Tal qual toda composição musical, a dodecafônica, ou atonal, revela uma disposição afetiva em quem a ouve, apenas que neste caso em particular, ela configura uma sorte de angústia no ouvinte.

Na verdade, a capacidade das composições musicais produzirem intensas emoções (claro que toda emoção é encontrada em maior ou menor grau em quase todo o tipo de música) surge no final do século XVIII com a introdução do movimento romântico na edi-ficação musical. Até este período, os compositores denominados clássicos buscavam o equi-líbrio entre a estrutura formal da música e sua expressividade.de modo que sua intenção última era passar ao largo do espírito do ouvinte. A música era preparada para agradar2

Beethoven, um romântico por excelência, ofereceu composições que abrangiam todos os possíveis estados d'alma. E é a angustia que está vigorosamente manifestada em suas sonatas tardias aquelas compostas já no período onde perdera totalmente a audição3'

A pergunta que nos fazemos então é: por que motivo falamos da angústia no dodecafonismo quando este sentido afetivo já fora tão bem representado nas composições beethovianas?

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194 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

Angustia: representação em Beethoven e Schõnberg

E certo que nossos ouvidos não rejeitam a música de Beethoven, muito ao contrário ela é sempre bem-vinda. Cabe sublinhar que este efeito não é casual. Mesmo quando os acordes de Beethoven induzem sentimentos avassaladores estes são,de imediato, aplacados. Um conflito é apresentado, o estado de tensão se configura. Segue-se fatalmente um afrouxamento da tensão e a conseqüente sensação de repouso. O conflito é então solucionado.

O ouvinte das sonatas de Beethoven, ou mesmo de suas sinfonias, jamais é aban-donado com a sensação de que algo ficou sem sentido, ou sem representação. A angustia oferecida nestas composições, se é que esta é a melhor denominação à emoção presente, tem conteúdo.4

A questão que estamos oferecendo à reflexão, portanto, não está na natureza do sentimento proposto pela música, mas sim na solução que a composição musical oferece para aquela emoção proposta. Em outras palavras não se fica no vazio,em Beethoven.

A música de Beethoven, levando-se em conta as diferenças de estilos de criação das diversas épocas,.segue a tradição dos compositores que o antecederam. Caso ofereçam um conflito ao ouvinte, apresentam também sua solução.

Se dirigirmos nosso olhar, superficialmente apenas, à estrutura destas composições, será possível perceber que esta sensação de resolução que acompanha o ouvinte quando a música termina não é casual. Ela está figurada em sua concepção musical, que até Schõnberg seguia a estrutura tonal.

A música tonal, que se constitui em toda e qualquer composição musical do ocidente até as construções do dodecafonismo, possui uma espécie de polo imantado, marcado no início da composição, e que a atrairá para ele quando soarem seus acordes finais. Este polo, o tom, oferece aos nossos ouvidos um destino sólido de reconhecimento. Aos primeiros acordes, indica-se um caminho que tem um ponto de chegada já previsto em seu ponto de partida. Os vôos sonoros que transportarão o ouvinte às mais diversas emoções estão sempre amarrados por um fio condutor. A música ocidental até Schõnberg não submete o ouvinte a um vôo livre.

Expressionismo

A compreensão da revolução introduzida por Schõnberg na música ocidental requer um olhar sobre o movimento artístico no qual ela estava inserida. Estamos nos referindo ao expressionismo.

O movimento expressionista surge no final do Sec. XIX e se constitui em uma manifestação artística em que o conteúdo emocional e as reações subjetivas exercem forte domínio sobre o convencionalismo e a razão.

São muitos os artistas dos mais diversos segmentos da expressão artística daquele período, cujas obras se inserem neste contexto. Entre estes poderíamos lembrar nas artes plásticas Münch, Schiele, Kandinsky, na literatura Kafka, e na música, que nos interessa particularmente, Schõnberg.

O expressionista possuía o desejo explícito de que sua obra transmitisse predo-minantemente sentimentos. A disposição afetiva do artista deveria se expressar em, suas pinceladas vigorosas sobre a tela, nas palavras que compunham seus poemas, nos açor-

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des que estruturavam sua sinfonia. O público ao qual se dirigia a obra é convidado a participar da emoção do artista, emoção esta produzida no âmago da ser. A arte expressionista oferecia com eficácia um grande suprimento de emoções.

Van Gogh considerado como um pré-expressionista declara sobre sua intenção como artista:

"Eu quero que meus desejos atinjam as pessoas a fim de que elas digam a respeito do meu trabalho: este homem sente profundamente"5.

A emoção do artista esta representada na obra e exatamente por esse motivo, pretende comover seu público. Esta intenção veementemente declarada por Van Gogh, um artista cujo movimento do pincel acompanhava a turbulência de seus movimentos afetivos, revela o sentido último da obra na qual a função expressiva é ressaltada de modo que as ressonâncias emocionais surjam sob formas excepcionalmente vigorosas.

A arte expressionista tende ao retorno aquilo que se considerava as verdadeiras fontes de sentimentos, alinhavando criatividade com impulsos emocionais e instintivos, sem a mediação e interferência provável da racionalidade.

Emoções intensas expressadas intensamente, pode ser o lema expressionista6.Ao se referir ao sentido da produção artística,Schõnberg declara:"Uma obra de arte não pode atingir efeito superior senão o de transmitir ao espectador as emoções que

assaltaram o criador, de forma a fazer com que ele seja tomado, invadido por essas mesmas emoções".7

A música de Schõnberg se assenta confortavelmente no terreno fertilizado pelos ingredientes expressionistas. Seu desejo é que sua música tome o ouvinte "de assalto", que o invada. Ele não propõe que seus acordes aplaquem a inquietação que provocam, que restituam a serenidade abalada.

Todas essas considerações sobre o sentido do movimento expressionista ambicionam suscitar uma interrogação a respeito de um outro movimento, muito caro para nós, que se fundava também neste mesmo período.

Não é preciso lembrar que ao se avizinhar o século.XX, Freud se aventurou em direção ao território psíquico, abrindo caminho para a compreensão da vida que pulsava sob a ordem da consciência. A pergunta que se coloca então é: seria Freud um expressionista?

Freud, um expressionista?

A pergunta tem seus motivos. A Viena dos expressionistas é a mesma Viena de Freud, tanto no que diz respeito ao território geográfico quanto cultural. Cabe lembrar que o ano de 1900 assistiu a maior parte da composição da primeira obra maior de Schõnberg os Gurre-Lider8 (que se constituem como uma síntese final da tradição musical do Séc. XIX e o início de um novo mundo sonoro).

O ano de 1900 também recebeu de "olhos arregalados" a publicação da "Interpretação dos Sonhos", a obra que instaura a abertura para uma revolucionária compreensão do mundo psíquico. A interpretação dos sonhos, um livro cujo autor é simultaneamente o sonhador, o interprete dos sonhos, o teórico e o narrador.

Pode-se a partir daí supor aproximações entre estes dois renovadores.No que diz respeito a Freud não há dados que sustentem que ele fizera contato direto

com os expressionistas e edificado os alicerces psicanalíticos sob a influencia

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deste movimento cultural. Sobre este fato, Renato Mezan, em seu livro Freud o pensador da cultura é peremptório:

"A possibilidade de uma influencia qualquer da Viena dos talentos', em sua expressão madura, sobre a constituição desta disciplina, é imediatamente afastada pelo fato de que em 1886, quando Freud regressa de Paris e começa a se interessar pelas neuroses, nenhum dos movimentos que, para nós tornam tão significativa a Viena em que ele viveu havia sequer se iniciado."

Deste ponto de vista, não se pode falar em influência dos expressionistas na construção da psicanálise.

Para reforçar este argumento pode-se voltar aos escritos de Freud sobre arte. Nestes, não se encontrará referência à vanguarda artística de seu tempo. O olhar freudiano está direcionado à arte desenvolvida pelos consagrados da Vinci, Michelangelo, Ghoete. A arte clássica, portanto.

Para reiterar um terceiro.não, a pergunta que reúne a construção da psicanálise ao expressionismo basta voltarmos nosso olhar à intenção de Freud ao construir a psicanálise. Afinal, estaríamos diante de um cientista não de um artista.

Agora, pode-se responder esta pergunta não mais do ponto de vista de um observador externo que tem acesso aos contornos do fenômeno que observa, mas sim impregnado pelo próprio fenômeno. Quem sabe chegaremos a uma outra resposta a essa interrogação.

Voltemos então ao dogma básico do movimento expressionista: Ele afirma que" os impulsos criativos verdadeiros brotam das profundezas do indivíduo, a um nível primitivo da vida emocional ainda não atingido pela arte acadêmica. O desejo de criar é identificado a um impulso atemporal que,a princí-pio, pode manifestar-se a qualquer momento, em qualquer cultura e em qualquer parte do mundo.9

Impossível não reconhecer neste enunciado o parentesco com enunciados de Freud sobre o inconsciente e sua expressão. Por exemplo: "o desejo inconsciente escapa a qualquer influência, é independente das tendências contrárias ao passo que o consciente é atalhado.por tudo quando, igualmente consciente se lhe opuser.' °

Outro princípio exemplar do expressionismo.e a confiança irrestrita na expressão direta dos sentimentos que se originam na própria vida do criador, sem a mediação direta e a interferência provável da racionalidade.'1

Aqui podemos reconhecer mais um parentesco com a psicanálise. Sabe-se que o método de investigação do inconsciente foi apurado através do mergulho de Freud em seus próprios sonhos. O caldo da psicanálise foi extraído do psiquismo de Freud.

Ainda mais um passo a diante. A arte expressionista faz com que o fator de expressão seja dramático e visível. É um trabalho em que a função expressiva é tão ressaltada, que as ressonâncias emocionais se apresentam sob formas excepcionalmente vigorosas. O expressionista tende a conduzir seus sentimentos a formas extremas de modo a introduzir o maior conteúdo possível na forma mais intensa.:

Tomemos a obra de Egon Schiele12." Podemos detectar em seu trabalho uma aura inquietante de sentimentos expostos de modo pungente, centrados em uma sexualidade frenética, que é a impressão geral causada pelos desenhos e pinturas daquele jovem artista. Os torsos macilentos e os membros retorcidos de alguns nus de Schiele sugerem uma preocupação em revelar impulsos libidinosos, mas seu propósito é, sobretudo, desig-nar o corpo como expressão de sofrimento."13

Caso fosse possível transformar em pinceladas vigorosas sobre tela a descrição que Freud nos apresenta de suas primeiras pacientes histéricas é bem possível que as

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Interpretação psicanalítica: uma composição dodecafônica Cintia Buschinelli 197

confundíssemos com uma das pinturas de Egon Schiele, tal a expressão dramática que havia em sua personificação. As pacientes histéricas de Freud emergem sob uma disposição expressionista.

Vejamos então a Sra. Emmy Von N.com quem Freud inicia o tratamento em 1889:" Esta senhora, quando a vi a primeira vez, estava deitada num sofá com a cabeça repousando numa

almofada de couro. Parecia ainda jovem e as feições eram delicadas e marcantes. 0 rosto tinha uma expressão tensa e penosa, as pálpebras estavam cerradas e os olhos, baixos; a testa apresentava profundas rugas e as dobras nasolabiais eram acentuadas.Falava em voz baixa, como se tivesse dificuldade, e a fala ficava de tempos em tem-pos sujeita a interrupções espasticas, a ponto de ela gaguejar. Conservava os dedos firmemente entrelaçados, e eles exibiam uma agitação incessante. Havia freqüentes movimentos convulsivos semelhantes a tiques.no rosto e mús-culos do pescoço, durante os quais alguns destes, se tornavam muito salientes. Além disso, ela interrompia com freqüência suas observações emitindo um curioso estalido com a boca, um som impossível de imitar..."

O que a paciente me dizia era perfeitamente coerente e revelava um grau inusitado de instrução e inteli-gência. Isso fazia com que parecesse ainda mais estranho que, a cada dois ou três minutos, ela de súbito se calas-se, contorcesse o rosto numa expressão de horror e nojo, estendesse a mão em minha direção abrindo e entortando os dedos e exclamasse numa voz alterada e carregada de angustia: Fique quieto. Não diga nada. Não me toque!14

Sra. Emmy Von N. é uma pintura expressionista de Sigmund Freud.Bem, a algumas linhas atrás observamos que Freud era um cientista, não um artista.

Retificamos agora nossa observação, reivindicando-lhe ambas designações: enquanto edifica o saber psicanalítico concebe o movimento dos fenômenos psíquicos, reconhecendo-lhes os sentidos, estamos diante de um rigoroso cientista. Ao solicitar que seu paciente se acomode no diva e diga tudo que lhe vem à cabeça, toma nas mãos o cinzel e a argila. O artista se configurou. A interpretação, o instrumento de trabalho do psicanalista é matéria de um artista.

No artigo " O método psicanalítico de Freud" - 1904- (aquele em que Freud escreve na terceira pessoa,lemos o seguinte:

"Freud desenvolveu uma arte da interpretação 'qual compete a tarefa, por assim dizer, de extrair do minério bruto das associações não intencionais o metal puro dos pensamentos recalcados".15

A arte não exclui a exigência do rigor no manejo da técnica psicanalítica. Quanto a isto, Freud nos adverte no artigo escrito em 1911- O manejo da Interpretação dos Sonhos na Psicanálise:

"Afirmo que a interpretação dos sonhos não deve ser praticada ao longo do tratamento como uma arte em si, mas que seu manejo está sujeito às regras técnicas a que deve obedecer a totalidade do tratamento".

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Quem se dedica a esta matéria e amplia o sentido da interpretação como arte é Fábio Herrmann. Em seu livro "Clínica Psicanalítica- a arte da interpretação".

Depois de esclarecer os caminhos da construção da interpretação na sessão de análise ele nos diz:

"Isto é a arte da interpretação. Mais um dedilhar da alma alheia do que uma formulação pseudocientífica sobre o discurso do paciente".16

A seu favor, Freud nos diz que ela é " o Método mais conveniente de obter uma compreensão interna(insight) da vida psíquica inconsciente."Ou como nos esclarece Herrmann propondo um alargamento de sua função: O processo de decifração de sentidos fora da rotina e as intervenções nele baseadas, que ajudam o paciente a romper o limite dos assuntos que pensava poder tratar em separado, chama-se interpretação psicanalítica."17

A interpretação psicanalítica: uma composição dodecafônica

A interpretação está no âmago da doutrina e da técnica freudiana. Freud a ela reservou um lugar de destaque uma vez que por meio dela o ato psicanalítico se constitui.

A interpretação cabe revelar o sentido latente de qualquer modalidade das mani-festações psíquicas. Através da interpretação se traz à luz o desejo formulado em qualquer produção do inconsciente.

Mas o que se passa quando o desejo é posto a nu, sem o disfarce com que o veste a repressão? Qual é a emoção que aflora sob o impacto de uma interpretação?

Herrmann ao expandir a noção de inconsciente e esmiuçar a função da interpretação descreve o acontecimento psíquico dela resultante. Ele chama de Vórtice o efeito que a interpretação ocasiona sobre o paciente.

" Vórtice é o mesmo que redemoinho .........acompanham-no sentimentos de perder o pé, afundar-se emsi mesmo, de despersonalização, de estranheza.18

Em outro ponto reitera;" .. .a consciência em condição de análise experimenta uma séria angus-tia, uma impressão de se desagregar, de não saber quem é, ou de não ser nada.

Vórtice, a intensa e breve reação emocional desencadeada pela interpretação tem suas razões de ser. Afinal, um campo representacional ao qual estava assentado o paciente, se desfez. Ele então se encontra como que solto no espaço, neste lugar que nada contém, neste hiato entre alguma coisa que deixou de ser e outra que ainda será.

O paciente submetido à interpretação está na lacuna entre o campo abandonado e o próximo no qual vai se escorar. Sem lugar, imerso no hiato entre a representação desfeita e outra que surgirá, irrompe a angustia.

Este momento profundamente perturbador da análise é também a "fonte de maior conhecimento"19 que dela advém.

Caso fosse possível expressar a interpretação através de uma forma musical, ela seria, sem dúvida uma composição dodecafônica.

A interpretação está sob o regime da música atonal, que tal qual "a música do inconsciente" não apresenta uma estrutura formal reconhecível pela consciência.

A interpretação desobedece o tom do discurso consciente. Sua estrutura composicional, se assim podemos chamá-la, não está sujeita as regras básicas da harmonia do pensamento. Não é por acaso que o efeito da interpretação, o vórtice, se traduz pela impressão de fragmentação, perda de si mesmo, sensação esta que afinal corresponde

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aquilo que é efetivamente experiência a qual está submetido o paciente.20 Afinal

a angustia é necessária?

A angustia desencadeada pela interpretação poderia ser evitada ? é a pergunta que poderia ser feita. Afinal, o paciente que procura a análise busca algo que aplaque a angustia, este ruído de fundo que o acompanha. Pode 'parecer paradoxal, que o remédio para essa dor mental, provoque a mesma dor que se deseja aliviar.

É aparente tal contra senso. Não porque a angustia inerente ao vórtice fora quem sabe menos intensa, mais discreta e assim pedagogicamente suportável. Não, a sensação de desagregação é a mesma, mas o que sobrevém depois dela é o que a diferencia de experiências semelhantes que ocorrem fora da sessão de análise.

O efeito de vórtice, esta sensação de estar na brecha vem imediatamente acompanhada por uma nova representação de si mesmo.. É esta experiência propiciada pela interpretação e por todos os efeitos emocionais que a acompanham que a distingue da angustia vivida fora da analise. Esta se configura como um permanente não estar em lugar algum, acompanhado por não ter para onde ir.

O vórtice é um estar entre dois campos representacionais. Os estados de vórtice desencadeados no decorrer da análise são portanto inerentes ao processo analítico, caso fossem evitados, a análise estaria comprometida. O fenômeno vórtice é o indicador de que o ato analítico esta sendo levado a efeito.

É claro que este estado afetivo produzido pela perda de uma representação a qual o paciente estava aderido, este átimo de "não sei quem sou" é imediatamente aplacado pelo reconhecimento de" agora sou assim".

Esta mobilidade entre representações de si custa ao paciente lapsos de vazios, o que não é pouco, mas oferece a oportunidade da recuperação da plasticidade psíquica uma das particularidades da vida mental enfraquecida pela persistência da neurose.

Para concluir é certo que a musica dodecafônica raramente é escolhida para deleite do ouvinte, mas é certo também que após a revolução composicional introduzida por Schõnberg a música ocidental não foi mais a mesma.

Toda a criação musical, após a introdução do dodecafonismo foi aprimorada. O exces-so de maneirismos exacerbados das composições foi abandonado, a gordura que encobria as formas musicais foi derretida deixando ressurgir a leveza e delicadeza de sua estrutura.

O dodecafonismo se embrenhou em toda e qualquer composição de modo a possibilitar a criação de uma sonoridade original até então desconhecida.

Do mesmo modo a interpretação psicanalítica irrompe as representações que o paciente tem de si abre o campo para novas representações criando possibilidades até então desconhecidas proporcionando novas aberturas de sentido ao desatar as amarras aprisionantes da neurose que imobilizavam a vida mental.

Notas

1. recomendo ao leitor a audição da peça de Schömberg- Pierrot Lunaire regida por Pierre Boulez, grava da em CD pela Deutsche Grammophon. 2. recomendo ao leitor a audição de: sinfonia n. 32 de Mozart, executada pela"Academy of Ancient Music"

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200 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

regida por Jaap Schrõder- gravação de 1981 Decca Record Co. Ltd. London primeiro movimento( 2:49min).3. sonata n.30 em fá maior.opus 106 de Beethoven com Charles Rosen ao piano – Il Prestissimo gravação Sony (2:19 min). 4. Quinta sinfonia Beethoven. 5. Citado em Graetz.H.R. The symbolic language of Vincent Van Gogh(Londres: Thames and Hudson, 1963) 6. Cardinal R. 0 expressionismo, pg26, Zahar R. J. 1984. 7. idem, pg.28. 8. canções de gurra; composição com um narrador e cinco solistas sobre o poema do poeta dinamarquês Jacobson. Gurra é o castelo onde vive a heroína do sec.XII. 9. Cardinal, R. 0 expressionismo, pg 9 Zahar, RJ. 1984. 10. Freud, S. - Quinta lição de psicanálise .Vol.XI Ed. Standard Imago.RJ. 1969. 11. Cardinal, R. - O Expressionismo, pg 25 Zahar RJ. 1984.12 Artista nascido nos arredores de Viena em 1890 em cuja obra o corpo é o suporte da expressividade.13. Cardinal, R. - O Expressionismo, pg41- Zahar RJ. 1989. 14. Freud, S. - Estudos sobre a Histeria, pg 80 vol.II Edição Standard- Imago RJ. 1969. 15. Freud. S. - O método psicanalítico de Freud, pg 235-,vol.VIII- Ed. Standard RJ. 1969. 16. Herrmann, F. - Clínica psicanalítica -a arte da interpretação- pg 90 Ed. Brasiliense. 1991. 17. Herrmann, F. - O que é psicanálise- pg.30 edit-psique 1999 18. Herrmann, F. - Clinica psicanalítica- a arte da interpretação, pg.72 Edit. Brasiliense, S.P., 1991. 19. Herrmann, F. - O que é psicanálise- para iniciantes ou não pg.37 Psique S.P 1999. 20. recomendo a audição da valsa opus 23 n.5 de Schõnberg tocada ao piano por Caio Pagano.

Bibliografia

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Prêmio FEPAL

Rêverie grupal, uma função possível?

Grupo SYGMA*

"0 bebê sabe o que é ter emoções avassaladoras — coisas às quais damos nomes toscos, como medo, depressão, amor, ódio - mas não sabe como chamá-las; quando chega a dominar a linguagem articulada, já se esqueceu o que se sente sendo bebê. E nós, que já adquirimos a capacidade da linguagem articulada, quase esque-cemos o que se sente sendo humanos."

W.R.Bion

Como preâmbulo, queremos manifestar nosso interesse pelos fenômenos grupais e nossa intenção de seguir transitando por seus mistérios e complexidades.

Em nosso país, após o auge da terapia e da psicanálise grupai, produziu-se uma notável diminuição - quase desaparição - de tal prática, em parte devido ao terrorismo de estado implementado na década de 70, mas também pelo fato de que, a partir de alguns âmbitos psicanalíticos, a terapia grupai sempre foi vista com suspeita e comparada, em todo caso, ao cobre, nunca ao ouro.

Ademais, bombardeados por notícias apocalípticas que anunciam a morte de coisas que amamos e com as quais crescemos, como a história, a ciência, a cultura da modernidade e também a grupalidade, nós não acreditamos nessas mortes.

Por outro lado, observamos fenômenos grupais que desmentem a asseveração da tendência ao primitivismo individualista da espécie humana e continuam introduzindo como manifesto a oscilação e o conflito, entre as tendências tanto ao social-ismo como ao narcisismo, que já estabelecera Bion como constitutivas da nossa mentalidade.

Um dos fenômenos grupais mais conhecidos é o da investigação científica levada a cabo por equipes. É praticamente impensável um cientista isolado em seu laboratório descobrindo sozinho a idéia genial. Nosso próprio grupo é uma prova da possibilidade de trabalhar, estudar e pensar em conjunto, o que nos resultou profundamente enriquecedor já que os efeitos dos pensamentos que a grupalidade capta e elabora nos atingem e transcendem enquanto indivíduos.

Entretanto, observamos que no terreno psicanalítico predomina a tendência ao isolamento e à produção individual, o qual talvez esteja relacionado com as características de nossa prática, mas, talvez, também com a história de nossas identificações com os ancestros psicanalíticos e com a história da institucionalização da psicanálise.

Por outro lado, é provável que os fenômenos que gera a grupalidade nos atemorizem, como a todos os seres humanos. Pensemos no impacto emocional amplificado, nos processos de despersonalização que podem ser promovidos pela situação grupai,

* Compõem o Grupo Dr. Diego J. Rapela (Titular Didata da APC), Lic. Dolores Banhos (Titular da APC), Lic. Cristina Blanco (Titular APC), Dr. Carlos Curto (Aderente APC), Lic. Teresa Reyna (Aderente APC), Dra. Lidia Lansky (Aderente de ApdeBa) e Lic. Amália Giorgi (não membro IPA). São membros correspondentes e consul-tores permanentes a Dra. Elizabeth Tabak de Bianchedi (Titular Didata da ApdeBa) e o Dr. Marcelo Bianchedi.

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202 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

no uso eventualmente excessivo de evacuações e projeções, no possível e temporário predomínio dos fenômenos de SB1, etc. A esse respeito, chamou-nos a atenção, em alguns fóruns nos quais apresentamos nossas idéias, a divisão categórica que se estabelece entre GT e GSB e certa tendência à valorização, considerando algo assim como "positivo" ao GT e "negativo" ao GSB. Queremos adiantar que nossa posição não é esta. Não os consideramos nem positivos nem negativos, mas inevitavelmente existentes e, melhor, nos interessa estudar a possível interação de funções de ambos tipos de grupo, para o que trataremos de desenvolver algumas idéias a respeito da capacidade dos grupos para conter e ajudar a nascer idéias, pensamentos e mitos, levando em consideração as dores próprias de tal parto.

Num trabalho anterior2, propusemos à grupalidade como derivada, transformações mediante a fusionalidade, entendendo-a como sendo uma tendência protomental, determinada à "ordem da manada" como um pressuposto básico que se expressaria através de transformações, na mente primordial, como uma concepção originária, a de "espécie humana", que não teria uma realização sensorial específica mas sim uma expectativa, baseada na memória filogenética: a de que a fusão da manada permite ignorar qualquer possibilidade de não existência. Tal pré-concepção conteria, também, um escuro saber acerca de que, mesmo que os indivíduos pereçam, a espécie deve perdurar, saber alimentado pela ancestral "lembrança" de catastróficas desaparições.

No mesmo trabalho, ademais, estabelecemos a possibilidade dos grupos gerarem capacidade de reverie3.

Em primeiro lugar, queremos deixar claro que tomamos a descrição que fez Bion da capacidade de rêverie na relação mãe-bebê, como um modelo de vínculo4, modelo que pretendemos aplicar ao que de fato pode-se descrever como um grupo, deixando à margem desenvolvimentos possíveis sobre grupo interno, a mente individual funcionando como grupo, etc.

Pelo que faz a capacidade de rêverie, nós a consideramos como uma função na qual distinguimos, a princípio, dois fatores: contenção e devaneio.

A respeito do primeiro, aplicar a idéia de Bion de "personalidade total" a corpos sociais, levou-nos a pensar numa "grupalidade total", em termos de coexistência de distintas modalidades de contenção grupai: um fusional (o mais arcaico e primordial), outro próprio da organização de SB e outro, próprio do grupo de trabalho, no qual se manteria no nível protomental a contenção fusional e de SB, porém o grupo seria, ao mesmo tempo, capaz de conter e desenvolver idéias novas e também cooperação.

A respeito do fator devaneio, baseamo-nos na afirmação de Bion de que o mito e o conteúdo manifesto do sonho têm de ser considerados como versões GRUPAL e INDIVIDUAL da mesma coisa e essa coisa tem de ser considerada uma afirmação de que certos elementos estão constantemente em conjunção, e em conseqüência disso, propusemos a hipótese de que a capacidade de rêverie grupal, no que diz respeito a este fator de devaneio, se manifestaria na criação e no uso de mitos.

Mesmo assim, pensamos que a capacidade de rêverie gera-se no mesmo grupo e como um epifenômeno da grupalidade, em certas circunstâncias. Vale dizer que não é o resultado do transporte ao grupo dos diversos avatares vividos por seus membros em suas primeiras relações objetais, mas um fenômeno que pode gerar também a grupalidade "per se".

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Rêverie grupal, uma função possível? Grupo SYGMA 203

Segundo Teilhard de Chardin5 produziu-se no Neolítico uma metamorfose através da qual e, pelo que parece, sobre vastas extensões da Terra SIMULTANEAMENTE6, a Humanidade passou pela primeira vez, como por um jogo de maturação generalizada, do social difuso ao social organizado. A partir de então, produziu-se um tipo até então inédito e especialmente revolucionário de mutação: a resultante não mais de uma re-disposição das partículas germinais no interior de alguns indivíduos, a não ser da INTERFECUNDAÇÃO MASSIVA DE GRANDES GRUPOS ÉTNICOS QUE ENTRARAM REPENTINAMENTE EM CONJUNÇÃO, ao AZAR de suas migrações ou de sua expansão.

O resultado desta nova envoltura humana do planeta foi a aparição de uma nova "esfera": a esfera pensante, ou NOOSFERA.

Acreditamos7 que esta descrição tem bastante semelhança com a que se faz, na termodinâmica dos processos irreversíveis e que nos oferece uma nova alternativa para os sistemas não isolados em desequilíbrio. Esta "nova alternativa" é a ordem por flutuações e o conceito de estrutura dissipativa. Quando os sistemas se afastam muito do equilíbrio termodinâmico, a situação deixa de descrever-se como uma prolongação lógica de tal estado. Os sistemas abandonam o chamado "regime linear" da termodinâmica para entrar no "não linear". O estado estacionário compatível com as condições que impõe o ambiente já não é o único, aparecem descontinuidades e instabilidades e as flutuações espontâneas (...) podem ampliar-se e arrastar os sistemas a novos e IMPREVISTOS estados estáveis.

Vale dizer que apareceria uma nova ordem por flutuações (desvios ao azar), que levam o sistema a uma auto-organização temporal que deriva em uma estrutura espacial estável. A essência da mudança parece consistir em adaptações entre bifurcações. Nos pontos críticos dos sistemas complexos, o azar torna-se criador e "causa" uma nova ordem, a ordem por flutuações. "Em resumo, fugir do equilíbrio predispõe à intervenção do azar através da ordem por flutuações que contribui (em contraste à adaptação), às novidades genuínas para a mudança".8

Pareceu-nos que isto poderia ser usado como modelo para pensar nos grupos e no surgimento de determinadas funções neles. Por outro lado, acreditamos que este modo de descobrir as coisas está vinculado com o que Bion propôs acerca da aparição do "feito selecionado", como um processo diferente da "causalidade" e, portanto, aparentado com a oscilação PS <-> D. Poder-se-ia usar este modelo, também, para pensar sobre a noção de "mudança catastrófica".

Temos consciência de que estamos aplicando um modelo que foi elaborado para outro tipo de estruturas e sistemas, mas pensamos que é lícito fazê-lo sempre que lembremos que é apenas um modelo e, portanto, um suporte para o pensar.

Imaginamos que é mediante este processo de flutuação <-> auto-organização que, num grupo, de repente emerge uma nova função, como seria a de continente <-> contido, como "pulando" da estrutura anterior. O que nos levaria ao conceito de transformações de Bion. Assim pensamos, também, surgiria a capacidade de rêverie grupal que, portanto, não seria uma somatória das capacidades de rêverie dos indivíduos que o compõem, mas sim uma função nova, gerada pelo "feito" grupai.

Com a intenção de exercer a função de criar mitos, imaginamos que, nas origens da humanidade, primeiro foi a manada, que chegado um determinado momento de ruptura do equilíbrio, produziu-se uma transformação que originou o grupo, que neste se

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geraram, por processos que poderiam ser descritos como mudanças catastróficas, funções novas e inéditas, e entre elas, a possibilidade de dar sentido às experiências emocionais e sensoriais, resolvendo o problema da não-coisa (presença de uma ausência) o que pode ter levado ao surgimento de símbolos, cuja articulação possibilitou a aparição da linguagem, tanto para "elucidar e comunicar o pensamento como para encobri-lo por meio da simulação9". Também imaginamos que algo de tudo isto perdura nos níveis protomentais da espécie, e, mesmo sendo censurado, é potencialmente disponível.

Por outro lado, há alguns dados que permitem garantir a idéia de que, chegado um ponto determinado de auto-organização da espécie, a cultura começou a emergir simultaneamente em distintos lugares do planeta, com subordinações de pensamento similares, sem que se possa demonstrar nenhuma relação causai entre eles10.

Isto nos leva a pensar que é possível a existência de uma rede epistemológica da espécie criada e sustentada por este processo turbulento dissipativo que é a socialização. Essa rede estaria constituída pelos vínculos K, L e H, mais a tendência à auto-enganação1 ],também própria da espécie, mais todas as contrapartes negativas dos mencionados vínculos. Esta rede, sustentada na grupalidade, seria a que elabora mitos sobre as coisas que não pode explicar, mitos que são constituídos de "símbolos pictóricos dos feitos que os indivíduos EM GRUPO (destaque nosso) necessitam transformar para serem armazenados e lembrados à vontade12."

Aqui permitimo-nos utilizar a denominação de MITOPOIESE como referência a este fator que acreditamos encontrar na capacidade de rêverie grupal. Para R. Romano13, a dimensão cinética do pensamento criativo que pode ser expresso no mito, no sonho, na fantasia, representa a possibilidade de retorno do inferno da loucura. O mito possui, para ele, uma propriedade transformativa unificante, é conectivo e enlaçante e, portanto, criador do "senso comum", tanto no indivíduo singular quanto no grupo. Parece-nos aqui que, este autor descreve em linguagem de conquista, a capacidade desintoxicante da função de rêverie, que viemos sustentando poder ocorrer nos grupos, aplicando o modelo proposto por Bion para a capacidade de rêverie materna.

Também encontramos pontos de contato entre nossa proposta e a de F. Corrao'4 sobreuma função gamma:... "Que pode ser definida como o análogo simétrico, na estrutura do grupo, daquilo que representa a função alfa na estrutura pessoal". Assim como haveria relações mutuamente potenciais entre a função alfa individual e a função gamma grupal haveria também entre capacidade de rêverie individual e grupai.

Por fim, acreditamos que a capacidade de rêverie, tanto na mente individual quanto na mentalidade grupai, se apóia por um lado no GT e por outro no de SB.

Nos remetemos a Bion quando disse "... a atividade do grupo de trabalho é obstruída, diversificada e, EM OCASIÕES, ASSISTIDA (destaque nosso) por outras certas atividades mentais que têm em comum o atributo de poderosos supostos emocionais. Estas atividades, à primeira vista caóticas, cobram certa coerência se aceitamos que procedam de certos SB comuns a todo o grupo15".

Entendemos que na transmissão emocional das identificações projetivas realistas, predominaria o pólo de modalidade GSB e no processo de encontrar significado, o pólo GT.

Em todo caso, a função de rêverie dependeria da OSCILAÇÃO de amplitude adequada entre GT <-> GSB.

Tudo isto nos leva a repensar os elementos beta e sua intervenção na comunica-

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ção das emoções. Pareceu-nos muito interessante a diferenciação de Corrao entre elementos beta fortes e elementos beta debilitados, sendo os primeiros aqueles indicados por Bion e "os segundos seriam o resultado da adaptação do grupo pequeno à função analítica". G. Corrente16 afirma que "estes elementos beta debilitados estão na base de diverso processos transformativos grupais, entre os quais estão aqueles micro-alucinatórios, que se tornariam disponíveis para serem elaborados pela função gamma".

Isto reforçou nossa idéia de que, no desdobramento da função de rêverie grupai devem existir elementos beta (debilitados, ligados ao que Bion descreveu como IPR17), assim como a função alfa e elementos alfa. Por isto é que pensamos, seguindo Bion, que sem elementos alfa (GT) não há possibilidades de comunicação verbal e sem elementos beta (GSB) não há possibilidades de comunicação emocional, sendo ambas necessárias para aprender da experiência, que, como sabemos, não é um processo linear, evolutivo e sereno, mas que avança a saltos entre evacuações e digestões. "Sem elementos alfa não é possível conhecer nada. Sem o elemento beta é impossível ignorar algo". "Reservo o termo "conhecimento" para a soma total dos elementos alfa e elementos beta".18

Suspeitamos que entre os beta e os alfa existiria um amplo espectro de elementos, produto da transformação de beta em alfa e vice-versa e em dependência, ademais, do tipo de vínculo que predomine durante seu uso, se L, H, K, ou -L, -H, -K, assim como do meio em que a transformação se realize. Por exemplo, no discurso fanático, não se empregariam elementos alfa em transformações rígidas ou projetivas, porém saturadas (oniscientes) e incluídas num meio de alucinose e num vínculo —K?

Portanto, também não consideramos os elementos beta como negativos nem positivos, mas necessários para a comunicação emocional, mesmo que, às vezes, possam resultar obstrutivos.

Temos interesse em evitar as conotações valorativas tanto acerca dos distintos tipos de elementos, como das distintas configurações grupais, porque, como dissemos, temos observado nas discussões sobre nossas idéias uma tendência à idealização do GT e dos elementos alfa e ao desconhecimento - para nós inevitável - da presença de elementos beta e organização em GSB. Como parte da idealização do GT, poder-se-ia até chegar a pensá-lo como se fosse imune às ansiedades produzidas pela emergência do pensar. A esse respeito, voltamos a citar Romano quando diz que: "a penetração do pensamento sobre a ação é sempre dramática, nunca doce". E também que: "O pensar, o pensamento cognoscivo, compreendido o juízo, pode ser intrusivo, despedaçante da identidade de uma pessoa ou de um grupo num dado momento; o pensamento não pode ser contido porque não há continente. O grupo é o lugar ideal, pois pode ser evidenciada a rigidez dos indivíduos e porque pode-se criar as condições de uma diversificação das funções ao serviço da dinâmica dos afetos".19

Parece-nos válido lembrar o interesse de Bion pelos grupos em seus últimos trabalhos, nos quais retoma seus descobrimentos de "Experiências em grupo", por exemplo, os desenvolvimentos que faz em "Atenção e Interpretação". Assim como, também, o uso que faz de modelos grupais para entender aspectos da mentalidade individual. Já na Introdução a "Experiências" tinha declarado: "Como psicanalista, surpreende-me o fato de que o enfoque psicanalítico, através do indivíduo, e o que descrevem estes estudos, através do grupo, abrangem diferentes facetas do MESMO FENÔMENO (destaque nosso). Os dois métodos proporcionam uma visão binocular rudimentar"... a "afinida-

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de se nota através de certos fenômenos que, ao serem examinados com nosso método, centralizam-se na situação edípica, relacionada com o grupo de emparelhamento; quando se examinam com o outro, centralizam-se na Esfinge, em relação com os problemas do conhecimento e do método científico".20 A isto agrega Romano que o grupo "deveria ser também o lugar no qual o indivíduo se situa frente a Tirésias porque quer saber, criando um espaço mental que pode ser doloroso".21

Haveria muitos exemplos de funcionamento "bem sucedido" dos grupos nos quais poderíamos supor a "função de rêverie grupai" desintoxicando e fazendo possível o pensar, tanto com o fator contenção como com o de devaneio.

Mencionamos as equipes de investigação (mitos sobre a verdade, sobre o domínio da natureza e, portanto, da morte, etc); podemos pensar também em alguns grupos de auto-ajuda (mitos sobre a "vida sã que outorga felicidade", sobre a "beleza que procura amor", etc). Também observamos fenômenos como a "auto-organização" frente a situações de catástrofes naturais como as inundações recentes (em Córdoba, sempre reaparece o mito da ruptura da parede do dique San Roque, como também se criam novos mitos "meteorológicos").

Por outro lado, os suicídios coletivos de algumas seitas também nos mostram que os grupos podem ser armadilhas mortais nos quais não puderam ser gerados mitos para retornar do inferno mas, precisamente, para mergulhar nele (retorno à primitiva fusionalidade num meio de alucinose?).

De modo que não pretendemos idealizar os grupos. Simplesmente pensamos que é útil tratar de manter a "visão binocular" com um olho posto na individualidade e o outro posto sobre a grupalidade como dimensões intrínsecas da mentalidade humana, para enriquecer nossa perspectiva como analistas. Para finalizar, gostaríamos de citar algumas idéias de D. Armstrong22 que pareceram-nos ressoar em consonância com aquelas por nós estabelecidas. Além de nomear os grupos como "areia para as transformações", o que nos ofereceu uma imagem pictórica de algo do que pretendíamos comunicar, também adverte que "é fácil demais para proteger-se debaixo da crua e simples idéia do GT como o grupo que consegue realizar uma "TAREFA MANIFESTA". A ela, qualquer que seja, subjaz a "TAREFA PRIMARIA", definida como "aquela tarefa que deve levar a cabo o propósito do sistema especificamente humano em todo momento, sendo este o de SOBREVIVER".

Não seria esta, depois de tudo, uma INVARIÂNCIA que poderíamos encontrar desde a "fusionalidade na manada", passando pelo GSB até o GT e através de todas as mudanças catastróficas que tais transformações puderam suportar?

Abril de 2000

Notas

1. Daqui em diante utilizamos SB como Suposto Básico, GT como Grupo de Trabalho, e GSB como Grupo de Suposto Básico. 2. A Fusionalidade. Uma hipótese para pensar. III Congresso Argentino de Psicanálise. Córdoba. 1998 3. Esta idéia foi também proposta no fórum informático que precedeu o evento BION 99 e nele foi objeto de interessantes discussões e controvérsias, que nos levaram a desenvolvimentos estabelecidos aqui, vinculan-

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Rêverie grupai, uma função possível? Grupo SYGMA 207

do-os com os de outros autores que acabaram sendo sugestivos e frutíferos.4. Parthénope Bion Talamo. "Do sem forma à forma (Ps <-> D) à publicação." Este artigo fala de capacidade de rêverie do artista, do cientista, etc.5. O Grupo Zoológico Humano. 6.Todos os destacados em maiúsculas são nossos.7. Tomando livremente idéias de Prigogine, Wagensberg e outros e com o perdão de Alan Sokal. 8. Wagensberg, J: Idéias sobre a complexidade do mundo. 9. Bion. Atenção e interpretação. 10. Por exemplo, a construção de pirâmides. 11. Aqui remetemos ao leitor à diferença que realiza a Dra. E.T. de Bianchedi e outros, no trabalho sobre "As distintas caras da mentira." 12. Bion. Cogitações. Pág. 64 13. Romano, R.: La pensabilitá: un oggetto della psicoanalisi. 14. Corrao, F. Citado por Corrente, G. em: Oscillazioni gruppo<->individuo. 15. Bion. Uma revisão da dinâmica de grupos. 16. Corrente, G. Op. Cit. 17. IPR, identificação projetiva realista. 18. Bion. Cogitações. Pág. 199. 19. Romano, R. Op. Cit. 20. Bion. "Experiências em grupo". 21. Romano, R. Op. Cit. 22. Armstrong, D.: Names, thoughts and lies. Op. Cit.

Bibliografia

Armstrong, D. - Names, thoughts and lies: the relevance of Bion's later writings for understanding. Experiences in Groups.Bianchedi, E. e outros - the various faces of lies, Karnac Books, London & New York, 2000.Bion Talamo Parthénope - De Ia sin forma a Ia forma (Ps<->D) a Ia publicación. Revista Actualidad Psicológica Año XXIINo 2243, 1997.Bion.W. R. - Experiencias en Grupos, Paidós, Buenos Aires, 19 61 .Atención e interpretación, Paidós, Buenos Aires, 1974.Cogitaciones, Promolibro, España, 1996. Transformaciones, Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1972.Corrente, G. - Oscillazioni grupo <-> indivíduo, Koinos, Ano XVIII, No 1-2.Grupo Sygma - La fusionalidad - Una hipótesis para pensar, Revista de Fepal, año 1999.Contribución a Ia mesa redonda Bion a finales del Siglo Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis, Cartagena, 1998.Romano, R. - La pensabilitá - un oggetto della Psicoanalisi.Teilhard de Chardin, R - El grupo zoológico humano,Taurus, Ed. S. A., Madrid, 1964.Wagensberg, J. - Ideas sobre Ia complejidad del mundo,TUSQUETS, Barcelona, 1985.

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208 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

Prêmio Psicanálise e Literatura Cyro Martins

Celebração e dromedários

Dr. Augusto Escribens

Celebração do teu corpo

Tenho celebrado teu corpo e minhas mãos conservam o olor dos teus segredos.

Tenho celebrado teu corpoe a celebraçãorecheou de fogose músicas frenéticaso vazio da tardecomo a tarde celebraos segredos de tantos casaisque copulam discreta,incomodamente,nos bancos dos parquesarregaçando suas mangas,encostando seu amor aos salgueiros,dando um brilho triunfalde dentroàs murtas.

Tenho celebrado o início da tardecom teu corpoe a tarde me devolveo gestocom lembranças da tua pele,com gritos tépidos e selvagensque saem enquanto caminho,a cada passo.

* Membro Titular da Sociedade Peruana de Psicanálise.

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Celebração e dromedários Dr. Augusto Escribens

Cubilôs

A sorte está lançada,os corpos estão lançadose às vezes rodamternamenteou se agitame sacodem,cubilôs que, ao fim,despejam seus dadoscarregadospelo chumbo do vazio,pelo peso específicodos peitos desabitados.

A sorte está lançadaos corpos estão lançadosternamentedepois de despejartodos os dadose encontrar-seno brilho habitadodos olhos.

Pequenos Festins

Nesta horaquatroevintecincoda manhãou na horado sono separadoJapão não está mais ao sulQue suas monótonas melodiasE seus pequenos festins.

Mas mordituas pernascom longas dentadascomo corresponde,longos, frouxosmas arredondados.

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210 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

Suave e inocuamente o olho da madrugada tem vigiado nosso sono antes que partíssemos cegos pela chuva.

Hoje é tão hojeporém menos que entãoe mesmo bastando olharmeu sorrisonum espelhopara te alcançarigual pesa tua ausênciamesmo que você acompanhe tudoe tua graça se desprendadas margensda luz.

Prelúdio ao Banho de Lourdes

Porque o dia vai te tocandotanto como o entardecerfica na tua peleuma marcaque você não viu.

Porque o sono também sabeabrir os poros,dilatar vazios ocultos,quando caia águamolha tambémmais de um suspiro,amorna o contráriodos pequenos desencantos,umedece teus desejos secretos.

Quando cai a água do banho.Este outro confidente que compete com o travesseiro.

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Celebração e dromedários Dr. Augusto Escribens

Reflexo de gaivotas e ciprestes

I

A noiteou o reflexo de uns poucos faróisentra pela minha janela que dá para o mar.

Já não estão as loucas gaivotas do tetoremexendo as sobras decabelo de anjo,braço de cigano,perna torcidaou do meio podrelobo marinho que rompe o preciso traçodo litoral.

Aqui,do outro lado da janela,o pranchão.

Tuas mãos não estão e as minhas sobram, tomam uma taça sem vinho um abridor de cartas, um lápis, buscam entre os restos que guincham

seus cyanes,suas magentassua turva tipografia,sua gordura e seu molho de tomate escorrido

sobre um lenço de papel; remexem no fundo do balde, giram no ar e caem, como envelopes vazios e enrugados.

II

Do outro lado do maruns ciprestesforam incendiadospor mãos alheias,enquanto outros homens e mulheresdeixam-se calar e vêmrechear-se de uma fumaçatransparenteseus vazios

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que antes a palavra calava ou fazia retumbar.

A maré, enquanto isso, sobe ou descee não faz diferença:apesar do fogoos ciprestesconseguem ocultaros nichos bem alinhados.

Pompas e boatos

É um dia especial:deixei o amorsuas pompas e boatos.

Meu rosto é agora transparentee deixa vero mar através de suatez de pergaminho.

Hoje cheguei à beira do mare pude ver a ebuliçãodo fitoplâncton e do zooplânctone o aguçado labordas algas industriosas.

Tenho sentido o marnão salubremas marcialcom sua sístole e sua diástoleacudindo ao chamadodo baralho lunare pude deixaresquecidosos corpos arrebentadosdos náufragos.

E entãomeu corpo já não écorpo de rebentaçãonem meu coração naufraga.

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Celebração e dromedários Dr. Augusto Escribens 213

Agora que não podemos colocar um marca-passo no amor.

Uma Sombra

Com o canto do olhovi passar uma sombra-da direita à esquerda-e pensei que era você,mas vi que era apenasuma mancha no humor vítreo,um resíduo de lembrançaturvando a solução salina,um ocaso imaginadoque se colouno reverso do olho.

Vi passar uma sombrae percebique a única sombraque restaé a sombra da minha pupila.

Física Elementar

O frio émais um líquido,o qual se faz evidente nos mictórios.

O líquido émais um frio,mesmo sendo o ardente líquidono qual buscamos consoloaquecendo a pelede nossas tripase esfriado a tripa da alma.

Frio e líquido transformam-se um no outro,

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mudando sua densidade,cruzando umbrais,fazendo os higrômetros darem saltos.

Frio e líquidotransformam-seum no outro,mas nada se crianem se destrói-só se transforma-no ordenado universo do desencanto.

O dromedário e o sábio sumério.

Miríades de dromedários atribulados estacionam-se debaixo da minha janela.

São tributários do meu enorme pesare do fato de queminhas esperanças não acabam.

Milhares de dromedáriosnão são melhoresque um só dromedário louco,aquele que leva sua corcova inútilsobre campos de espuma.

Dez dromedários são menos que um dromedário segundo a velha fórmula descoberta pelo sábio sumério.

Suas tabuletas de argilarepousamno fundo de um vale cobertopelas cinzasda grande explosão.

Ninguém pode dizer à priori quantos dromedários são necessários para sepultar as cinzas de um sonho extinto.

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Celebração e dromedários Dr. Augusto Escribens 215

Eu posso apenas enfiar minha mão à posteriori para tocar um extremo suave do silêncio.

Mascomo mostra o princípiode indeterminaçãode Heisenberg,o extremo suave do silênciofaz-se turbulentoquando enfio a mãoà posteriori.

E eu quero crerque a turbulência à posteriori é diferente do enorme pesar dos que são tributários as miríades de dromedários atribulados que se estacionam debaixo de minha janela.

Mas então chegao velho sábio sumérioe me convidaa observar as cinzas.

-Olhe-me diz-este grão de cinza: é o teu rosto.

E teu amor não soma mais que cinco, cinqüenta, quinhentos grãos de cinza.

Eu sou o sábio sumério,você é um simplesdromedário:nada pode teu amorcontra a minha sabedoria-

Eu cuspo no sábio sumério e corro para queimar

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todos os escritos de Heisenberg,arrancando as páginasdas enciclopédiasonde aparecem suas palavras.

E compro feno,pupilas,tâmarase entardecerespara acalmar a fomedo meu inútil dromedário,aquele que alimenta minhas veiasdiretamenteda sua corcovana minha viagem por estecaminho de vaporessiena queimadono meio do deserto.

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Prêmio Psicanálise de Crianças e Adolescentes

Considerações teórico-clínicas sobre as patologias severas na adolescência

Rodolfo Urribarri

k*M ^ í*

A adolescência age como reveladora das vicissitudes precoces, tanto das aquisições como de seus déficits6. Colocado em outros termos, o processo adolescente coloca em relevo os aspectos sólidos, conseguidos na estruturação psíquica assim como os aspectos frágeis, deficitários ou falidos.

Entre os numerosos aspectos que se mobilizam durante este processo de reestru-turação, a partir do desajuste produzido pelo embate púbere, assinalarei:

a) Re-conflito em torno à dependência dos objetos externos, em especial os objetos primários.

b) Possível problemática entre a busca de satisfação de necessidades e desejos, e a ameaça potencial que produz o objeto; o que leva a Ph. Jeammet3 a formular que o jovem enfrenta o paradoxo de que aquilo que necessita e/ou deseja é o que ameaça sua identidade e atenta contra seu equilíbrio narcisista.

c) Reativa e estabelece conflitos de identidade, o que também põe em questão sua identidade.

d) Reativa as representações do corpo, e seu esquema se vê questionado a partir da mudança física e, em particular, das novidades que o erotismo genital introduz.

Destaco, dentro dos fundamentos narcisísticos precoces, a importância do auto-erotismo e de que, em suas origens, o escoramento não somente se dá desde o fisiológico de certa função, mas também da ação do objeto que estimula e sacia o fisiológico, determinando uma peculiar qualidade de afetos, modos, ritmos e relação. Pela qualidade de sua resposta na geração de sensações prazerosas, o objeto está presente ainda nas

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218 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

origens do auto-erotismo, muito antes de ter acesso à sua representação. Quando não se pode gerar este modelo prazeroso de relação na qual se baseia o auto-erotismo, digamos positivo, enquanto favorece uma estruturação progressiva, o bebê, seja por carência de estímulos ou pela invasão excitatória caótica da mãe, utiliza seu corpo na busca de sensações, muitas vezes dolorosas. Gera-se assim um auto-erotismo compensador, não ligado ao objeto, mas anti-objetal, que poderíamos denominar auto-erotismo negativo ou mortífero6,7|8,9, já que promove o fechamento em si mesmo, afastando-se do objeto, até o limite de ignorá-lo. Este funcionamento pode ser observado nos transtornos psicossomáticos do bebê, nas condutas auto-agressivas como arrancar os cabelos, bater nas bordas do berço, o balanço estereotipado e contínuo, etc. Este modo de organização perturba os processos de interiorização e a transicionalidade, o que dificulta a constituição dos fundamentos narcisísticos, assim como do processo de separação-individualização S'6.

Vejamos alguns dados de Juli (Salomón Júlio): nasceu com fórceps baixo (quase dois anos depois do casamento de seus pais), depois de um longo trabalho de parto de trinta horas, no qual a mãe adormeceu, "esgotada do esforço e da dor"; separado de sua mãe já que teve que ficar na incubadora devido à icterícia, somente o levavam à sua mãe para mamar durante quatro dias. No princípio custou a segurar o peito mas logo conseguiu. Teve episódios alérgicos e respiratórios desde bebê. Dormia com a cabecinha posicionada no ângulo do berço e se o acomodavam no meio do mesmo, movia-se até voltar à posição inicial. Não engatinhou.

Pode-se inferir destes dados precoces a dificuldade do estabelecimento de um bom vínculo materno-filial precoce (era evidente no relato, a frieza e falta de empatia materna), assim como sinais do denominado auto-erotismo negativo.

Menino, primeiro filho, primeiro neto e sobrinho da família paterna, lindo bebê, era exaltado, mostrado, homenageado e visto quase como um troféu pela família nuclear e ampliada, num claro investimento narcisístico convergente.

Quando criança era inquieto, "se metia por todos os lados, abria closets ou armários, desarru-mava, não se detinha brincando com algo, jogava tudo no chão, esparramava tudo; isto ainda continua em parte". Quando havia estranhos, era retraído e tranqüilo. Perto dos dois anos realizou o controle esfincteriano rápido e bem, nunca perdeu o controle. Aos dois anos e quatro meses foi para o jardim; no primeiro dia "quando estava lá há pouco tempo me disse: vá, faça as compras, e ficou contente". Um mês e meio depois nasceu sua primeira irmã, "ele estava contente, a esperava"; mas "quando eu tinha que atender a bebê, ele se isolava" e se vinha gente de visita "entrava debaixo do móvel ao lado da parede ou no canto do quarto perto do closet olhando a parede", "buscava os cantos, inclusive agora". (E clara a atribuição de sentido que a mãe realiza a respeito de sua alegria e aceitação da irmã, desestimando a evidência de suas condutas de retração e rejeição).

Da síntese de sua história precoce ressalto as dificuldades do parto e perinatais, sua dificuldade para mamar, a separação inicial de sua mãe, as alterações com as mudanças evolutivas, concomitantes às alterações psicossomáticas, assim como sua forma de dormir e sua conduta reativa de separação tendente a ignorar a necessidade do objeto, (por exemplo, na rápida adaptação ao jardim quando sua mãe estava grávida de quase 8 meses), assim como a dificuldade da mãe em compreender e atender seus estados afetivos, pelo que podemos claramente inferir déficit nos fundamentos narcisistas.

Têm sido muitos os autores que remitem ao passado infantil como etiologia em

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Considerações teórico-clínicas sobre as patologias severas na adolescência Rodolfo Urribarri 219

relação à patologia adolescente, e poucos os que como P. Blos2,3 têm enfatizado a importância do período de latência. Blos diz claramente:

"O requisito para ingressar na fase adolescente de organização pulsional e egói- ca reside na consolidação do período de latência; se ela não se produz, o púbere não vivência senão uma intensificação das características prévias à latência, e exibe um com portamento infantil que tem mais o caráter de uma detenção do que o de uma regres são" (3 -pág. 89-90).

A latência foi pouco estudada e a tendência foi estabelecê-la como um período anódino, em que nada realmente importante ocorre, mero recesso entre dois momentos chaves da evolução da sexualidade, subproduto da dissolução do Complexo de Édipo. Em outros trabalhos tentei desconstruir esta falsa imagem10,11. A nova organização que se desenvolve é derivada do esforço psíquico que deve encarar o ego para mitigar a expressão sexual direta, e lograr que o que a princípio é basicamente executado pelos processos defensivos (repressão, formação reativa), progressivamente possibilite afirmar-se a inibição de meta e a descarga pulsional mediante a sublimação.

O intenso trabalho que desenvolve o aparelho psíquico, quanto à organização, complexidade, funcionalidade e ampliação que resumi, levaram-me a postular um Trabalho de Latência11. Este, utilizando diversos mecanismos defensivos prévios, transforma-os a serviço e à primazia da sublimação. Cria-se um modo diferente de funcionamento do aparelho, que modifica o decurso e destino pulsional, uma particular relação entre os processos conscientes e os inconscientes, um refinamento do sistema defensivo, um distanciamento do ego com relação ao objeto, uma afirmação qualitativa e quantitativa do pré-consciente, uma crescente capacidade do ego para controlar as tendências regressivas, uma diferenciação e complexidade dinâmica e tópica, um incremento dos objetos internalizados, uma ampliação de suas capacidades, atividades e do mundo relacionai, com a conseguinte descentralização progressiva do ego e de seus objetos primários, uma crescente capacidade simbólica de pensamento e expressividade (seja verbal, gráfica ou corporal), o aparecimento da autocrítica, uma regulação da auto-estima mais centrada nos êxitos e no consenso, a guinada para o mundo real e a tentativa de dominar seu meio ambiente através do aprendizado, uma crescente autonomia, um funcionamento psíquico cada vez mais de acordo com o princípio de rea-lidade; todos processos possibilitados pelo que foi denominado de Trabalho da Latência11.

Se nos ativermos aos diversos aspectos recém sintetizados, poderemos lembrar que se estes processamentos são alcançados e a organização do psiquismo do latente conta com vastos recursos para enfrentar o embate púbere, os processos de reorganização psíquica durante a adolescência podem ser realizados dentro de caminhos relativamente normais.

As diversas dificuldades que, por perturbações prévias ou por transtornos durante a latência, puderam travar ou alterar os processamentos do Trabalho da Latência, condicionarão um variável grau de patologização do processo adolescente.

Um quadro observável é o que apresentam algumas crianças que não conseguiram a "redução da dependência objetai infantil em virtude da identificação e da organização do superego" (3, pág. 126). Não cederam à identificação com a mãe fálica, o que dificulta a constituição da dramática própria do complexo de Édipo, conseqüente-

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mente a organização e o Trabalho da Latência se vêem perturbados.Persiste em algum grau as indiferenças internas-externas, sujeito-objeto, percebido-

desejado, assim como uma marcada tendência à descarga imediata e a busca de gratificações primárias. Por isso não podem desenvolver verdadeiras vias sublimatórias para canalizar o pulsional, e seu psiquismo se estrutura em base a uma intensificação de: repressão, mecanismos obsessivos e inibições. Falta o interesse e a sensação prazerosa no jogo e outras atividades. Não se questiona o que faz, nem transmite desejos próprios, somente reproduz um modelo esperado. Portanto, não há verdadeira ampliação egóica, no que diz respeito a capacidades e recursos, senão acumulação enciclopédica. Geralmente de bom nível intelectual, logram um desempenho escolar adequado, são obedientes, claramente apegados às normas, e a seu cumprimento, com certo ritualismo e lentidão em seu atuar. Não diversificam, nem harmonizam seus mecanismos de controle da ansiedade, mas recorrem a intensificar a utilização de rígidas defesas que o empobrecem e limitam.

São afetivamente "apagados" e tristes. Não podem utilizar seu ambiente para facilitar a descarga, a ampliação de seu mundo relacionai, promover a cooperação, a amizade e novas identificações com outros adultos e pares que a enriqueçam. São daqueles que nunca são levados à consulta, já que não apresentam problemas escolares, nem familiares e, raramente, de saúde física. Este quadro que denominei Pseudolatência10, no qual se intensifica um falso self que vai se apropriando da pessoa e automatizando sua vida, isolando-o do contato afetivo com as pessoas e consigo mesmo, de maneira insidiosa e disfarçada, produz sua eclosão clínica somente na adolescência, ou se perpetua até a idade adulta.

A Pseudolatência é mais notória se há marcadas dificuldades prévias, e sua posterior patologia adolescente é mais severa.

Voltando ao exemplo de Juli, aos 5 anos e meio ingressa à pré-escola, nasce sua segunda irmã e sua conduta não se vê especialmente alterada. Começa o primário com 6 anos e 4 meses, evidencia algumas dificuldades de aprendizado, seus desenhos são pobres para sua idade, sua linguagem era escassa e sua sintaxe às vezes, inadequada. No primário conseguiu um desempenho que lhe possibilitou, com certa benevolência, ir passando de ano, melhorando nos dois últimos anos. Muito observador e detalhista, seu desempenho era melhor em atividades de memorização, mas dificultado ao diferenciar o principal do acessório, devendo seguir modelos repetitivos para a realização de atividades e com certa confusão em suas intervenções. Não participava na aula, eludia as atividades grupais, ficava sozinho nos recreios, recusava a comida do colégio e almoçava um sanduíche ou uma guloseima isolado do resto. Somente na 6a série fez dois amigos e poucas vezes foi a suas casas, a pedido deles.

Era um menino que não apresentava problemas, cumpria as tarefas (mesmo que com pouco brilho e criatividade nula), não apresentava expressões agressivas ou de rupturas, era cordial e submisso com os professores, acatava suas propostas, "ideal" para um docente.

Seu pensamento, igual que sua linguagem, era restrito, limitado, concreto, pouco alusivo, sem vôo imaginativo, com esporádica dificuldade nos nexos causais, ou para se fazer entender.

Desde menino mostrava uma tendência à constipação e se negava a defecar.

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Parecia que houve irrupções masturbatórias durante a latência, talvez também anais, muito encobertas e persecutórias já que se tratava de um meio familiar severo, repressivo da sexualidade e muito religioso. Houve um episódio aos 9 anos, em que no colégio ofereceu um intercâmbio sexual a um colega, o que motivou uma severa repreensão. Persistia um medo marcado dos cães e temor à escuridão.

Pode-se inferir uma organização onde predominam as modalidades primárias de satisfação, a persistência de condutas e sintomas de etapas prévias e uma dificuldade para estabelecer as inibições sexuais características do começo da latência, derivadas de uma inadequada elaboração edípica. Como enfatizam diversos autores, parecia que se estabeleceu um débil ou falso conflito edípico, em que a inclusão do terceiro perturbou pela ruptura da exclusividade diádica com a mãe, a insegurança que lhe gera e a injúria narcisística que implica, o que não deriva no Complexo de Édipo propriamente dito (no que diz respeito ao erotismo incestuoso e rivalidade criminosa com os progenitores), e conseqüentemente em sua resolução que possibilita o início da latência. Conseqüentemente não se estabeleceu o Trabalho de Latência, configurando um tipo de patologia marcada por fissuras onde freqüentemente emerge o pulsional, com dificuldades para o assentamento da sublimação.

Consultaram-me quando ele tinha 14 anos e meio (um ano depois que me ligou a colega que o encaminhou), devido a uma crescente agudização sintomática, com dificuldades de escolaridade e na vida familiar. Os pais manifestam que foi um menino que não apresentou dificuldades, mesmo sendo tímido e reservado desde pequeno, e que cursou bem o primário. Começou com "esquisitices" com a finalização da oitava série numa escola religiosa em seu bairro, com a passagem para o segundo grau da mesma comunidade, época em que começou a viajar sozinho e para fora de sua vizinhança.

Aos doze anos consultaram o pediatra e o endocrinologista e "tinha um atraso de maturidade de uns dois anos"; assinalam que os pêlos púbicos apareceram aos 13 anos e meio, que "nessa época urinou na cama algumas noites" (polução noturna?). Dizem que pouco depois "tocou a empregada" e "à noite foi a seu quarto", diante do que o "reprimiram muito e o castigaram" (não fisicamente).

No segundo grau foi incluído numa turma sem seus companheiros de primário, agudizou-se sua dificuldade de relação com seus pares, como suas demoras e dificuldades no aprendizado.

Assinalam que, desde o fim do ano anterior, tinha cada vez mais problemas tanto para estudar como de comportamento apesar de ter conseguido ser aprovado no primeiro ano com apoio extra-escolar. Durante as férias retardava a partida da família do hotel até o meio-dia com uma exacerbada ritualização das orações matinais a partir das 6:30 h., (apesar de que seu pai as realizava em 40 minutos). Criava tensões e dificuldades várias não só por esse motivo, mas por outros rituais (como a alimentação ou o sono) e condutas "estranhas", razão pela qual a avó paterna, com quem dormia no mesmo quarto, insistiu que estava mal e necessitava ajuda. Há vários meses estava num tratamento psicoterapêutico que: "não anda, está cada vez pior, o Doutor parece desconcertado".

Nas provas escolares, se tinha dificuldade em alguma pergunta ou não a sabia, não podia continuar com as seguintes, mesmo que as soubesse. Os professores o perdoavam porque diziam que era inteligente e sabia quando lhe tomavam a lição a sós. No ano em curso o desajuste foi cada vez mais notório (por ex.: na sexta hora de aula

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perambulava pedindo em voz alta os apontamentos da matéria ditada na segunda hora que não havia terminado e ignorava o professor ou os preceptores). As perturbações na aula motivaram queixas reiteradas de professores, preceptores, alunos e pais. Foi progressivamente objeto de gozação e agressões de seus colegas. De tarde, na aula de religião também apresentava problemas de concentração, apesar de mais controlada, já que seu tio era responsável pelo ensino.

Durante o período diagnóstico houve um episódio difícil na escola, e logo um segundo em que se trancou no banheiro e incendiou os rolos de papel higiênico de tal modo que provocou uma intensa fumaceira e o começo de um incêndio de duas portas, fato que o expulsou do colégio, apesar da forte influência que a família tinha na comunidade.

Na hora do diagnóstico se mostrou de acordo com o esperado, conectado relativamente comigo e com a situação, mas claramente dominado por seus impulsos destrutivos. Podia-se observar a dissociação como recurso habitual, simultaneamente a uma atitude desafiante; por exemplo, fura repetidamente a borracha com o lápis e a quebra, quebra o lápis, olhando-me ao fazê-lo com certa picardia e desafio e imediatamente dizia: "quem fez isso?,... que aconteceu?" e sorria zombando. Seus desenhos mostravam um primitivismo e desorganização do traço, em especial a letra, expansão maníaca, fortes defesas obsessivas falidas e agressão incrementada. Seu relato e fala eram pobres no que diz respeito à linguagem, que era concreta e simplista. Percebia-se sua dificuldade (como ao longo de sua vida) para a narração e o jogo, que era pré-simbólico, com claro predomínio do muscular altamente erotizado e com escasso controle, portanto se brincar, tocar, investigar, então quebrará, estragará e poderá ser duramente castigado; sempre cuidando, evitando e, conseqüentemente, extrapolando às vezes ao fracassar o controle fóbico-obsessivo.

Havendo-se produzido uma ruptura do frágil equilíbrio intersistêmico a partir da pujança púbere que o extrapola e, pelas falhas precoces de sua estrutura, deixa liberada a agressividade que em vão tenta controlar com rituais obsessivos dentro de um marco paranóide de perigo e contaminação.

Provavelmente, produziu-se um episódio psicótico perto do nascimento de sua primeira irmã, com uma restituição baseada em intensas dissociações, impedimentos fóbicos e tenazes mecanismos obsessivos que resultaram em numerosos rituais.

O começo do tratamento se estabeleceu em quatro sessões, após dúvidas dos pais, e a decisão, contrariando minha proposta, de retirá-lo do colégio para conservar a educação religiosa à tarde. Os estritos rituais religiosos eram privilegiados em detrimento da escolaridade, de seu isolamento social e de sua perseguição sintomática.

Nas primeiras sessões se desenvolveu amplamente seu extravasamento, com condutas intempestivas e imprevistas, algumas de ataque direto a mim, mas especialmente apareceu de maneira manifesta a problemática sexual.

Na primeira sessão, após realizar alguns rituais obsessivos, bruscamente virou-se tirando seu pênis ereto e avançando em minha direção com propostas de brincadeiras sexuais. O que chamava a atenção destas repetidas condutas em sessão, mais além de seu descontrole e excitação, eram as verbalizações que acompanhavam os atos, ou as que depois, quando era dominado e reduzido em seu ato, produzia. Eram emitidas em outro tom de voz e modalidade, com insinuações de intercâmbios e oferecimentos diversos,

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mas que eram como os emitidos por um adulto (ele) a uma criança (eu), à que trata de convencer o quanto seria bom e tranqüilizante, dizendo por exemplo: "ninguém tem que saber", "isto fica entre nós". Ao ser controladas estas manifestações passava várias vezes por sessão, intempestivamente, da prática de rituais à realização de movimentos de coito ou masturbatórios com objetos (mesas, cadeiras, etc.) ou contra a parede, acompanhado também de verbalizações, sons e gestos incomuns para o conhecimento de um jovem de sua idade. Estas atuações podiam ser explicadas como dramatização de situações de sedução sexual por um adulto, que tentava dominar transformando o passivo em ativo. Interpretado nesta linha, não recusava as mesmas (como diante de outras que entendia como errôneas), pelo contrário, havia como uma tácita aceitação e tentava continuar a tarefa de sedução e convencimento para que nos entregássemos a um intercâmbio gratificante e tranqüilizador. Estas atitudes se alternavam com outros extravasamentos (como queimar papéis ou quebrar) ou a realização monótona e repetitiva de numerosos rituais e cerimoniais obsessivos, alguns claramente dirigidos a resistir às intrusões do exterior (p.ex.: buzinas, tosses, gritos, etc.) e às vezes orações não terminadas da cerimônia religiosa matinal.

Pode-se pensar na ocorrência de episódios traumáticos, (sedução sexual), que desorganizaram o precário equilíbrio psíquico, produzindo uma ruptura da ordem lógica do pensamento e da estrutura defensiva, o que resulta no desmentido das representações traumáticas, exageros, incongruências. Unido à inoperância de um superego escassamente constituído possibilita os extravasamentos impulsivos. O desmentido das representações reaparecia nos atos, podendo notar-se sua intolerância à re-introjeção; a tentativa de recuperar o controle mediante os rituais que o ordenam. Pôde-se ver como o tratamento possibilitou uma reorientação interna e a recriação de níveis lógicos com melhoria sintomática, relatos breves de situações acontecidas e maior conexão na sessão, onde se evidenciava o privilégio transferencial na mudança.

Assim, pôde-se perfilar a dificuldade para montar seu esquema corporal, para aceitar a diferença de sexos, a falta de representações psíquicas com palavras que os denominem, afundado em um funcionamento com base em cisões e desmentidos, que junto à escassa continência egóica e à tendência à atuação promoviam uma organização perversa ativa. Era clara sua dificuldade para a representação e a utilização de seu corpo para a descarga através da masturbação.

Escolhi este material porque, como se pode ver, mostra deficiências na constituição precoce dos fundamentos narcisísticos, um momento de crise - talvez psicótica -após o nascimento de sua irmã, um débil conflito edípico, uma saída defensiva na pseudolatência e a desorganização progressiva conseqüente à mudança social e ao embate púbere que desemboca com o fracasso defensivo numa psicose púbere.

Tudo parecia indicar que o avô paterno houvesse seduzido sexualmente Juli quando criança. É assim que a provável intrusão sexual infantil em um menino com deficiências precoces de organização, dificultaram seriamente sua estruturação edípica e conseqüentemente a latência, razão pela qual o impacto púbere foi altamente destrutivo, sendo também difícil seu progresso terapêutico devido aos indiretos boicotes familiares.

Gostaria, finalmente, de assinalar alguns aspectos do ambiente familiar. Ressaltarei a forte carga endogâmica e violenta da linha familiar paterna, com vários

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membros notoriamente perturbados, assim como na família materna na qual predominam o encobrimento e o segredo. Havia uma notória tendência a des-hierarquizar as atitudes e condutas do avô, desde os enlouquecidos maus-tratos à sua esposa, até sua nociva cumplicidade com Juli. Isto implicava que mesmo se sugerissem ou propusessem mudanças, (por exemplo, que não fosse dormir com seu avô, já que dividiam o quarto e "colaborava" em banhá-lo), isto era aparentemente aceito e em curto prazo voltava a ocorrer; o que levava a pensar que deveriam ter havido outras pistas de feitos negados-ocultos num pacto denegatório na família. Por outro lado, o predomínio e privilégio do religioso, que mais além das crenças, servia para eludir responsabilidades, reforçar os aspectos ritualizados-defensivos de Juli, o silêncio encobridor da violência e os segredos.

Menos grave e dramática pode ser a situação de um jovem que possa produzir de início uma alteração de conduta inquietante (como rituais, idéias obsessivas, desajuste temporal, relativa insônia, etc.) e detectar-se uma prévia organização de pseudolatência, não se observam fundamentos precoces preocupantes.

Vejamos um exemplo. Os pais de Ariel Alejandro me consultaram quando ele tinha 13 anos e 3 meses e estava na metade do ano letivo, cursando o primeiro ano do segundo grau (período da manhã), preocupados pela intensa mudança de comportamento há ano, agravado seriamente há dois meses.

Voltava do colégio e os rituais de acomodação de seus objetos demoravam tanto que ia almoçar quando os demais já haviam terminado. Após a preparação de seus livros e materiais na escrivaninha, podia demorar mais de uma hora até começar suas tarefas, cuja realização era lenta, meticulosa e estendia-se no tempo, causando que dormisse uma média de 2 a 4 horas. Abandonou outras atividades, "tem boas notas, mas a um alto custo, se ocupa exclusivamente do colégio e leva um tempo excessivo, vive obcecado com as tarefas escolares". O pai se queixava que, além disso, não os deixava descansar, já que podia consultá-los por alguma dúvida várias vezes por noite, inclusive nos finais de semana.

A mãe atribuiu seu mal-estar ao fato de "terem se juntado três grandes mudanças": Io)Passou a dormir sozinho há oito meses (dividia o quarto com sua irmã 3 anos menor). 2o) A mudança para o segundo grau. 3o) Uma mudança física intensa.

A história vital não revelava aparentemente problemas importantes. Descreverei alguns dados que me parecem significativos. Do parto, a mãe relata que, meio obnubilada pela anestesia, se angustiou porque não o escutou chorar e adormeceu. Quando acordou pediu para ver seu filho, temia que não estivesse vivo, o que se confirmava com a espera e que não prestavam atenção a suas queixas, assim como a ausência de seu marido.Tranqüilizou-se quando o trouxeram, um par de horas depois, mas desde então teme que possa acontecer-lhe algo quando não o vê (o mesmo não acontece com sua filha menor).

Demorou mais o controle esfincterial anal que o vesicular, que começou perto da data em que a mãe engravidou. Começou o Jardim de Infância aos 2 anos e 10 meses, 2 meses depois nasceu sua irmã; 20 dias depois contraiu uma delicada doença pulmonar (a poucas semanas do controle definitivo da matéria fecal).

Seus pais contam que durante a infância era um menino retraído, concentrado, reflexivo. Caminhou aos catorze meses "com certa insegurança e logo se soltou mais decidido". Esforçava-se por fazer as coisas sozinho, tinha boa memória e teve una escolaridade sem

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maiores dificuldades. Jogava bola sozinho e futebol no clube, tinha poucos amigos.Aparentemente sua vida infantil havia transcorrido sem maiores problemas para os

pais, que se reconheciam como exigentes e algo autoritários, ambos com caracterologia obsessiva. O pai estava bastante ausente de casa e era claramente dominado e dirigido por sua esposa. A mãe parecia ter um vínculo fusional com seu filho, notado controle e super-proteção, com dificuldades para perceber o crescimento de seu filho, enquanto o pai pro-testava com pouca energia e com impotência sobre o vínculo mãe-filho.

O nome escolhido de "comum acordo" correspondia a um desejo expressado pelo pai, porque ia "ser um grande", esperavam dele "grandes empresas" e em alusão a Alexandre Magno lhe puseram esse nome, precedido por um nome curto de fácil denominação (de origem judaica, como a mãe). De fato, seu segundo nome não pesava, como o desejo do pai que não passava de uma fantasia idealizada do filho famoso e conquistador que o estancara em seu narcisismo; no entanto, a escolha materna, por "motivos práticos", era a dominante, fixando a artir do nome o tipo de relação.

Uma busca mais minuciosa e afinada de índices clínicos permitiu esclarecer o panorama. Foi um menino de olhar opaco e perdido, com uma velada tristeza e falta de vitalidade, sem expressão afetiva intensa, nem alterações episódicas. Realizava as atividades que lhe pediam (fossem escolares, caseiras, ou esportivo-recreativas), mas não se dirigia espontaneamente à busca de alguma atividade ou se entregava plenamente a realizar algo, faltava emoção. O desempenho escolar foi bom, era um "menino modelo", conseguia adquirir um conhecimento médio, cumpria com seus deveres, era obediente, "respeitador e correto" com os mais velhos, tranqüilo e "sem agressividade" com seus companheiros, em resumo: não perfilava nem pensamentos, nem condutas independentes ou diferentes do esperado, não questionava, nem perguntava, era "emocionalmente estável", que mais pode pedir um professor?

Seu pensamento não se instalou como uma ferramenta que lhe possibilitasse a criação de relações de idéias e o conseqüente aparecimento de novos sentidos que o enriquecessem, senão como um modo repetitivo de reprodução de idéias e/ou técnicas. O mesmo poderia se dizer de sua linguagem, que era pouco expressiva e alusiva, era opaca, operativa e parca, assim como a sufocação do fantasioso, apegando-se ao percebível e pragmático.

Sua atividade física era mais imposta ou induzida que procurada por ele. Jogar bola era repetitivo e solitário, jogava futebol somente se vinham buscá-lo ou se o pai o levava ao clube. Também nadava e andava de bicicleta, mas não procurava, nem se exercitava com interesse e prazer. Mesmo não sendo rejeitado nem evitado, tinha poucos amigos e não os procurava, nem telefonava, não parecendo desfrutar da companhia de companheiros, mesmo que se entediasse em sua casa.

Todo o quadro mostra uma caricatura do funcionamento de um latente, expressão da ausência de realização de um verdadeiro Trabalho de Latência, uma cópia vazia de sensações das atitudes e atividades esperadas, que dá a aparência de um menino que transcorre bem sua latência, mas que não está realmente produzindo o intenso trabalho de organização psíquica que lhe é próprio, sendo mais defensivo que elaborador, o que configura a pseudolatência.

Por trás desta manifestação, pode-se ver a mitigação que se realizou de sua indi-vidualidade, exigindo mais o esperado pela mãe do que favorecendo a expressão do

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desejado pelo menino, desejo que inclusive se vê travado em seu desenvolvimento pela intrusão e domínio da mãe. A isso se junta a fraca e pouco operante presença do pai para a adequada elaboração edípica e conseqüentemente a latência não conta com bases eficientes para seu processamento. Produz-se então uma consolidação caracterológica prematura, (uma ampliação do falso self nos termos de Winnicott).

A diferença entre ambos casos pode observar-se, exceto sua história e alguns ele-mentos sintomáticos, na qualidade dos desenhos, tanto no que diz respeito a seus traços e organização (p.ex.: a expansão maníaca, aproximando-se do extravasamento e da desor-ganização, com a "salada de palavras" em Juli e a organização, mesmo que rígida e desembaraçada de Ariel) quanto nos desenhos livres, casa e árvore. Mais ainda nos cor-respondentes aos casais, onde o desenho de um é absolutamente infantil (poderia assemelhar-se ao de uma criança de 5 anos) com franco extravasamento agressivo, enquanto que o outro, apesar de rígido e controlado, mais de acordo com sua idade, revela elementos de diferenciação sexual. Destaco a importância como sinal clínico da presença/ausência de pescoço como uma representação do pré-consciente e sua funcionalidade7, que marca uma clara diferença em ambos casos nos aspectos diagnósticos e prognósticos (como pôde confirmar-se na evolução posterior). Também podem ser notadas as diferenças no relato, tanto nos aspectos manifestos (texto, sintaxe, caligrafia) como nos latentes.

Em minha prolongada prática clínica com adolescentes, me foi possível observar jovens com profundos desajustes nos quais se pôde inferir este funcionamento perturbado durante a latência, que lhes impediu de enfrentar com recursos o embate púbere. Após um período de agudização defensiva sofreram uma crise, que vai desde uma pequena, apesar de inquietante, problemática de resolução bastante favorável, mediante breve tratamento e orientação parental como em Ariel, até severas desorganizações de prognóstico ruim como em Juli, passando por diversos transtornos de conduta e caráter como a anorexia nervosa, o uso de drogas e formas de violência social.

Além de suas diferenças, todos os quadros antes mencionados, de eclosão durante a adolescência, têm em comum: a preeminência de uma organização de personalidade baseada no defensivo e suas falhas notórias, dificuldade para tolerar a demora e a frustração, assim como a confrontação com limitações ou travas (tanto no sujeito como no mundo exterior), pouco desenvolvimento do pensamento secundário, da linguagem e escassa capacidade sublimatória, conseqüente dificuldade para estabelecer mediações pré-conscientes e um predomínio do princípio de realidade modulando e limitando o princípio do prazer, com escassa canalização e discriminação de afetos e emergência recorrente de angústia. Estas dificuldades mostram as falências ou distorções que impediram a conquista de uma organização psíquica derivada do Trabalho de Latência, que sobressai como elemento prévio de grande importância a considerar e cujo fracasso ou insuficiência condiciona seriamente o futuro desenvolvimento dos adolescentes e suas patologias.

Sobre pseudolatência em outros autores

Após expor num trabalho10 a pseudolatência, encontrei alguns autores que usavam um termo similar ou um conceito parecido, que passo a resenhar.

Marion Burgner num artigo4 sobre a situação edípica na ausência do pai, estabe-

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lece as dificuldades evolutivas nessas crianças que estariam mais em uma situação de triangulação (no sentido usado por Levobici -1982), encontrando-se mais preocupadas pelo terceiro que atenta ou quebra a exclusividade diádica do que pela dramática erótica em relação ao incesto-parricídio que é próprio do complexo de Édipo. Mostra que enquanto captou esta conduta pseudoedípica, evidenciou-se a pseudolatência, que apesar de não definir nem se estender, conclui-se sua condição defensiva, com uma adaptação não integrada ao eu, em que se perpetua um exagerado investimento ambivalente do objeto primário, que pode prolongar-se até a adolescência e inclusive até a fase adulta. "Era como se eles não pudessem se permitir usar sua curiosidade normal para buscar informação sobre seus corpos, seus pais, o mundo físico e, eventualmente, para participar no aprendizado formal na escola, mas se sentem mais compelidos a restringir a curiosidade total, circunscrevendo sua compreensão e conhecimentos, sentem que estão menos vulneráveis" (págs. 312-313).

Destaca o pensamento onipotente e que, conseqüentemente à distorção edípica, dificulta a formação do superego que tende a ser hiper-estrito pela preeminência de aspectos pré-edípicos.

Alicia Etchegoyen cita5 este autor, e apesar de também não realizar uma categorização precisa do conceito, exemplifica um caso clínico de uma púbere para "ilustrar as conseqüências catastróficas para o desenvolvimento se o período de latência não for estabelecido sobre fundações firmes"; do qual destaco sua qualidade de sobre-adaptação: "menina adorável, que nunca se zangava ou preocupava"; aparentemente independente mas com falta de autonomia verdadeira.

Jean Bergeret1 ressalta a importância do período de latência (verdadeiro) por suas identificações, sublimações, acomodações sócio-relacionais e culturais, e suas manifestações sexuais amiúde desordenadas.

Introduz o termo "pseudolatência" entre as hipóteses emitidas em relação aos estados limites, nos quais corresponde "a um estado prolongado e fixo comportando por um lado um silêncio evolutivo, e por outro um intenso ruminar" (Pág. 63-64)

Ele afirma que, havendo podido enfrentar os problemas de etapas prévias, subitamente no momento de começo do Édipo, "a situação relacionai triangular e genital não pode ser abordada em condições normais; um fato na realidade de seu contexto ê sentido pelo sujeito como uma frustração muito intensa e vivida, como um risco de perda do objeto", o que denomina traumatismo psíquico precoce. "Este deve ser compreendido no sentido afetivo do termo, correspondente a uma emoção pulsional intensa que ocorre num menino cujo psiquismo se encontra ainda bastante mal organizado e muito pouco maduro, no que diz respeito às suas defesas, suas adaptações e equipamento para enfrentar esse 'fato real' em condições inofensivas". Portanto o menino "entra de maneira brusca, demasiado brutal, total e precocemente na situação edípica para a qual não está absolutamente preparado" para enfrentar e transitar. Seu efeito imediato "será deter a evolução libidinal posterior do sujeito", e desenvolve "um tipo de pseudolatência, mais precoce e mais durável que o período de latência normal, recobra este período e se estende" sufocando as intensas vivências e reorganizações estruturais próprias da adolescência e o debut da genitalidade, podendo inclusive prolongar-se até a vida adulta. Implica numa estruturação lábil, com tendência à desorganização, com um "custoso esforço do ego, que necessita sem cessar o funcionamento de contra-investimentos ou de formações reativas onerosas" (pág. 134-137).

Como vemos, este autor é mais preciso no que diz respeito à etiologia e psicodinâmica da pseudolatência, expõe as dificuldades do edípico (no que coincidimos os diversos autores), mas em relação ao trauma e é claro seu caráter defensivo (com o que também concordamos). Esta etiologia seria provavelmente mais apropriada para explicar

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meu primeiro caso clínico do que o segundo.Peter Blos, apesar de não utilizar este termo, se baseia em vários lugares de sua obra, sobre a

importância de um processamento bem feito da latência para uma passagem normal pelo conflito adolescente. Assinala também em diversas passagens como um processamento falido da latência (do qual, a meu ver, seria a pseudolatência uma constelação particular) condiciona a eclosão patológica na adolescência, com o que concordo plenamente.

Diz em um trabalho: "Ao falar de um desenvolvimento egóico impedido durante a latência, penso principalmente nas fixações pulsionais no nível do narcisismo infantil, como conseqüência das quais as paixões edípicas resultam fracas, a resolução do conflito correspondente é incompleta, e o superego jamais conquista o império autônomo sobre a idealização infantil do self que é condição prévia para a entrada no período de latên-cia. Contemplando esta constelação pelo lado do ego, diríamos que não se estabeleceu uma clara ou estável linha demarcatória entre a fantasia e a realidade como parte da estrutura egóica da latência; fica então freada a capa-cidade do ego de avaliar criticamente o self e o objeto. "Sou o que faço" é substituído rapidamente por "Sou o que quero ser" ou por "sou o que os demais pensam que sou". Nestas condições é natural que a voz do ego auto-observador seja fraca ou contraditória, ou que permaneça em silêncio. A repercussão deste estado no exame de realidade, em especial no mundo das relações objetais, nunca deixa de alertar o clínico sobre a existência de uma anomalia evolutiva. Não obstante, não podemos ignorar o fato de que, independentemente da fixação pulsional e da imaturidade egóica, durante o período de latência certas crianças são capazes de notáveis conquistas cogniti-vas e criativas, cuja natureza defensiva não se revela até a adolescência.

A conseqüência desta defasagem evolutiva é uma adolescência abortada ou uma impossibilidade de obter o domínio autônomo das tensões internas desequilibrantes e de utilizar, de maneira seletiva, o ambiente social em termos de adaptações sublimatórias e identificatórias. (3-pág. 384-385).

Da mesma forma e em relação ao Edipo diz em outro lugar: "Se a necessidade infantil de unidade com a mãe arcaica é vigorosa demais, o complexo de Edipo cai sob a influência desta fixação. Um componenteregressivo na dissolução do complexo de Edipo do menino pode perceber-se na identificação narcisista com a mãe arcaica, onipotente e fálica, [...] não se deve esquecer que toda vez que uma fixação pré-edípica à mãe fálica debilita a afirmação fálica do menino, a afirmação de sua rivalidade, o Complexo de Edipo está fadado a ficar incompleto. Esta condição anormal torna-se por certo evidente durante a adolescência, se é que isto já não ocorreu durante o período de latência". (3- pág. 273).

Poderia parafrasear, a respeito de meus dois exemplos clínicos, o que ele mostra com relação a seus exemplos: "Não se havia conseguido o que normalmente se obtém durante a latência: a redução da dependência objetai infantil graças à identificação e à organização do superego. Em lugar disto, as identificações primitivas jacentes no superego haviam deixado sua poderosa marca nestes dois adolescentes". (3-pág. 126).

Dado que às vezes a pseudolatência persiste sem ruptura da emergente patologia, chegando até a fase adulta com as limitações e inibições próprias do defensivo, assim como o incremento de um falso self (como oportunamente assinalei), isto trouxe à minha memória um conto curto da escritora Aída Bortnik, que com a sagacidade e fineza do poeta - como mostrou S. Freud - define o destino destas pessoas. Por isso o transcrevo, sendo os sublinhados de minha autoria.

Tomás, o ortodoxo:

Tomás era um menininho muito caprichoso. Tanto, que quase, quase, não parecia um menininho. Nunca perguntava demais, nunca pedia demais, nunca bisbilhotava

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Considerações teóricas-clínicas sobre as patologias severas na adolescência Rodolfo Urribarri 229

demais. Estava sempre limpo e ia dormir quando os menininhos tinham que ir dormir. Todos seus brinquedos estavam inteiros, brilhantes e na estante correspondente. Estava tão preocupado em conservar seus brinquedos, que nunca brincava com eles.Tomás era um menininho a quem não inquietavam o vôo dos pássaros, nem o funcionamento do corpo.

Tomás era um jovem disciplinado demais. Tanto, que quase, quase, não parecia um jovem. Nunca perguntava demais, nunca pedia demais, nunca bisbilhotava demais, nunca intervia demais. Estava sempre caprichosamente vestido e era educado com as moças e respeitador com os mais velhos. Estava tão preocupado em repetir bem suas lições que nunca sabia sobre o que estava falando. Tomás era um jovem a quem não inquietavam a rotação das estrelas, nem o fervor do sangue.

Tomás era um homem muito ordeiro. Tanto, que quase, quase, não parecia um homem. Nunca perguntava demais, nunca pedia demais, nunca bisbilhotava demais, nunca intervia demais, nunca se comprometia demais. Estava sempre com o humor certo e tratava gentilmente as mulheres, aos mais velhos, aos chefes e aos subordinados. Estava tão preocupado em cumprir todas as suas obrigações, que nunca teve tempo para saber o que significavam. Tomás era um homem a quem não inquietavam o destino da humanidade, nem o significado de seus pesadelos.

Tomás era um marido muito metódico. Tanto que quase, quase, não parecia um marido. Nunca perguntava demais, nunca pedia demais, nunca bisbilhotava demais, nunca intervia demais, nunca se comprometia demais, nunca dava demais. Quando era preciso, dispunha-se a falar brevemente, escutar brevemente e proceder brevemente, durante o abraço. Estava tão preocupado em observar todas as regras do casamento que nunca pensou em aproveitá-las. Tomás era um marido a quem não inquietavam os fantasmas da felicidade, nem os demônios do ciúme.

Tomás era um pai muito rigoroso. Tanto, que quase, quase, não parecia um pai. Nunca perguntava demais, nunca pedia demais, nunca bisbilhotava demais, nunca intervia demais, nunca se comprometia demais, nunca dava demais, nunca esperava demais. Estava sempre disposto a julgar e a ordenar; sem esquecer as boas maneiras. Estava tão preocupado em executar todas as obrigações da paternidade que nunca pôde conhecer seus filhos.Tomás era um pai a quem não inquietavam a frustração de seus sonhos, nem a possibilidade de uma guerra.

Tomás morreu numa manhã de verão. Enterraram-no à tarde. E à noite começaram a esquecê-lo.

O Senhor o observou em silêncio, enquanto escutava o minucioso relato de seus deveres cumpridos. Depois suspirou, o Senhor.Tomás jamais suspirava. E disse:- "Quase sete dias quando oravas com esmero tuas orações, sem esquecer nenhuma palavra, eu esperava, Como esperaram teus pais e teus filhos, teus professores e tua mulher, teus colegas e teus anjos. Esperava que perguntasses algo, que pedisses algo, que exigisses algo, que sentisses algo poderoso demais para ser controlado. Esperava que te encontrasses ou que te perdesses. Esperava, como todos esperaram que me necessitasses. Mas, me destes, regularmente, cada sétimo dia, o mesmo que destes à vida: uma devoção vazia. Tu és o único fracasso imperdoável para a criação: um homem que não a questiona. Vete, Tomás - concluiu o Senhor - também eu quero te esquecer".

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Resumo

O autor propõe mostrar a relação entre o período de latência e a patologia adolescente. Resenha as principais modificações que se produzem em dito período, sobre o Trabalho da Latência; e que, quando este não é adequado, a estruturação psíquica se torna deficitária e dificulta o processamento do embate púbere, que desemboca num quadro psicopatologico. Define uma modalidade defensiva que denomina Pseudolatência, que exemplifica com dois casos clínicos e diferencia no que diz respeito a seu destino sintomático em função dos fundamentos prévios.

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Prêmio psicanálise e Mitos

Misticismo e religiãoEstratégias narcisistas, gozo e masoquismo

Lic. Rosa Petronacci de Hacker Dr. Andrés Rascovsky

"os deuses são criações das forças anímicas do homem" Sigmund Freud, em "Totem e tabu"

As religiões desenvolvidas pelas diversas culturas através da história da humanidade foram organizações de poder e de riqueza. Exerceram uma complexa constelação de funções: legislaram, professaram atividades éticas e discriminatórias, justificaram crimes e intimidaram a inteligência, impondo modos de pensamento ou oferecendo uma visão cósmica que atuou como barreira e obstáculo epistemológico para os descobrimentos científicos.

Nas etapas de precipitação de conhecimentos, na esfera das ciências (matemática, biologia, astronomia, etc.) atuaram como aliadas da ideologia dominante e como sistema de representações imaginárias que justificava a organização social e o poder do momento, alegando mandatos divinos e sagrados.Todo conhecimento que tendesse a iluminar a organização de exploração e domínio humano, tanto material quanto espiritual, foi considerado transgressivo e ameaçador para o sistema religioso e por ele condenado.

Dentro dos paradoxos da cultura, encontramos a persistência das organizações reli-giosas e de seus sistemas conceituais, que se desenvolveram anterior e paralelamente às disciplinas científicas. Isto nos leva a diversas reflexões e nos afasta de um benévolo oti-mismo com respeito ao poder intelectual e à capacidade transformadora das revelações psicanalíticas, que se caracterizaram pelo compromisso com o pensamento científico.

O descobrimento do inconsciente e de suas formações permite-nos compreender o substrato imaginário próprio. Paralelamente ao desenvolvimento do pensamento formal, persistem produções fantasmáticas exercendo efeitos como um gigantesco parque jurássico onde fertilizam as fantasias arcaicas, as crenças infantis, a magia, o sobrenatural e o religioso1.

Quão modificáveis podem ser as profundas cisões de que padece nosso aparelho psíquico? Quão inerme é o adulto que, sustentado por sua organização social e pelas instituições científicas, não pode prescindir de suas crenças infantis que persistem no pensamento lógico-formal?

As religiões constituem uma organização de representações que colaboram como defesas diante das feridas ou catástrofes psíquicas indeléveis. Freud, ao assinalar que possivelmente "Lourdes continuará curando...", aludia à intensidade que adquirem os fenômenos de sugestão e à eficácia de ditas curas milagrosas.

Atualmente, podemos constatar uma queda involutiva da ideologia religiosa, que

* Membro Associado da Associação Psicanalítica Argentina. ** Membro Titular da Associação Psicanalítica Argentina.

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se orienta em direção ao desenvolvimento crescente da compreensão racional e científica do fato espiritual. Porém, ao observar os grupos sociais, vemos a forma massiva como se intensificaram as crenças sobrenaturais, os processos mágicos de características primitivas, a adivinhação, as premonições e as estratégias místicas.

O que leva os homens a buscar Deus?

Freud assinala em "O Porvir de Uma Ilusão" (1923) que é a necessidade de consolo frente aos sofrimentos que emanam da relação com a natureza, o próprio corpo (condenado à deterioração), as perturbações nas relações com os outros homens, as renúncias e o desejo de respostas aos enigmas da vida e da morte.

O desamparo inicial da criatura humana, necessitando um semelhante para suportar um longo período de adaptação, clama por uma permanente proteção. Os sentimentos de indefesa derivam da infância e são o produto da fragilidade física e psíquica do lactante. Desde o nascimento se encontra numa ampla trama relacionai e cultural que o procede, e necessita da ajuda alheia para sustentar o devir da vida.

A tragédia inicial de confrontar-nos com um mundo essencialmente hostil, com uma indigência quase absoluta e com a inadequação do nosso aparelho psíquico, revela que o vínculo com nossos criadores é dramaticamente imprescindível e tremendamente determinante.

O processo de individuação e de acesso à cultura é conflitante e trágico e tem sido mediado pelo confronto com o protopai da horda. O Totem foi o primeiro substituto paterno, o protetor inicial, antepassado da estirpe; conhecia a seus filhos, era benévolo, guardião e auxiliador. Essa foi a base das obrigações sociais e religiosas. Na idéia de Deus, se humaniza projetivãmente a instância coercitiva e protetora e reedita-se o desejo de consolo, de proteção e de cuidado que a criança ansiou ter de seus progenitores.

O patrimônio cultural nos fornece também as representações religiosas e a oferta institucional é utilizada para a organização defensiva, uma prótese celestial para certos derivados de necessidades pulsionais e de carências narcisistas ou estruturais. Podemos observar algumas destas estratégias no material clínico:

"Quando era pequena tinha um diário, estava dedicado a Deus, tudo o que fazia e escrevia era dedicado a Ele. Quando estava sozinha ou mamãe estava internada eu rezava e de noite quando eu tinha medo e não podia dormir, eu rezava. Esse é o mistério de Deus: de repente ele se revela a você, te ama, te protege e te guia. Nunca ninguém me inculcou nada, papai não gosta que eu vá à igreja. Eu encontrei a religião.Descobri Deus e ele me ensinou a crescer na fé".

A visão religiosa é reveladora da persistência de concepções regressivas, fala-nos de desejos aos quais não foi possível renunciar2. A constelação de representações psíquicas que emergem de conflitos internos encontra nas estratégias religiosas um tema prometido, certeiro e inquestionável, mais além da realidade.

Misticismo e sentimento religioso: As instituições religiosas oferecem organizações de representações para resolver certos enigmas. Estas são as ilusões, os dogmas e as promessas (de ressurreição, de vida eterna, de recompensa pelas nossas penas e sofrimentos, e o perdão dos pecados). Possuem uma fragilidade lógica, mas sua força convoca a solução de ferimentos primários. As estratégias religiosas geram fantasias e delírios compartilhados, oferecem consolo e amortecem a dor. É a crença no poder de um

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objeto paterno capaz de proteger o homem contra os perigos do mundo interno e externo. A necessidade de ser amado e protegido nunca o abandonou.

"Esta noite tive um sonho ruim. Eu escutava ruídos, eram ladrões que arrombavam a fechadura e entra-vam. Eu tinha medo de ficar sozinha em casa. Acordei e comecei a rezar. Olhava as paredes e elas estavam vazias. Rezei muito, muito... até começar a me sentir melhor. Estava com meu Deuzinho".

Nesse pressuposto de carência afetiva, de solidão extrema e de temor da sua iniciação sexual, a reza e a oração são relatos e rituais que as representações oferecem para as angústias e ferimentos psíquicos não modelados pela elaboração psíquica. A cristalização da compreensão dos conflitos bloqueia o trâmite psíquico, restringe a visão, a possibilidade do descobrimento e a clausura das demandas da infância.

Talvez nisso resida o singular poder e a persistência das "crenças" porque dão res-postas, transgridem a renúncia, anulam os limites, preenchem com presenças, repudiam o conhecimento e impõem a certeza. A satisfação auto-erótica destes rituais retém a relação primária e desconhece o desejo exogâmico.

Relata-nos a paciente: "Meu noivo está em Chivilcoy,"missionando". Quando se foi, me incomoda-va que eu não tivesse "missionado" este ano. Foram apenas aqueles dias em Córdoba com as crianças incapacitadas. No ano que estive em Formosa na comunidade indígena foi muito importante "missionar", levar a palavra de Deus às comunidades carentes. Levávamos uma vida de sacrifícios. Meu Deuzinho sempre foi meu único suporte."

Toda concepção animista, religiosa ou científica é um intento de descobrir, de criar ou de impor uma ordem no aparente caos, de esclarecer o confuso, de captar aquilo que apenas se intui, se percebe e não se compreende; pode generalizar o que é vivido como singular e produzir um fenômeno de assombro ou fascinante compreensão.

Pensamos que a narração mágico-mística-religiosa revela distintas estratégias psí-quicas para a tramitação da problemática edípica estabelecida pela cultura judaico-cristã no patriarcado monoteísta. Põem em jogo representações que explicam por deslocamento certos acontecimentos traumáticos e oferecem uma estratégia resolutiva para a privação objetai e para a frustração interna.

Em "Totem e Tabu" (1913) Freud relata que as primeiras criações intelectuais da humanidade são os espíritos, representações da morte inconcebível, intolerável e irrepresentável que permitem o reencontro com o amado e negociam a ameaça angustiante que representa o ressentimento do morto. A passagem à cultura está mediada pela presença e a morte do primeiro repressor e protetor: o pai.

A criação das representações parece ser o resultado de uma experiência libidinal e erótica que logo se constitui no fundamento da fé. Sobre a experiência de satisfação libidinal e de erotismo nascente, configura-se uma representação,uma existência interior de uma instância amante e protetora. A representação permite acreditar no reencontro, na recuperação de uma plenitude infantil.

Paciente: "Cheguei a Luján caminhando. Foi muito lindo; agüentei e cheguei sem reclamar. íamos todos os jovens rezando e cantando. Eu rezei muito pela minha mãe. Estava chegando o Dia das Mães. No ano passa-do foi muito triste, estava internada e me custava aceitar sua ausência".

Um aspecto do sentimento religioso foi descrito por Freud (1923) como uma vivência oceânica de expansão egóica que proviria dos inícios do desenvolvimento do eu, que abrange tudo. Este sentimento de fusão com o todo, sem limites, é de natureza primária. Desvanecem-se os limites entre sujeito e objeto. Surgem vivências de indiscriminação e pertinência com o ente divino que são fundamento da maior parte das

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experiências místicas.O misticismo foi descrito por Freud (1938) como "a escura auto-percepção do reino

situado além do eu, do ID", na zona escura dos matizes representacionais. Tenta-se recuperar a satisfação perdida através das estratégias da retração narcisista.

Os gozos com a representação e a eficácia fusional dão lugar a formas falsas de satisfações internas, ou seja, prescinde-se do objeto externo e há uma hipercatexia de representações interiores. Retorna-se aos estados egóicos primários de satisfação alucinatória, conservando a distinção entre a percepção exterior e a representação interior, deificando as percepções internas.

As vivências fusionais e a busca nirvânica podem constituir momentos ou estados permanentes: são satisfações defensivas, o eu se divide para recusar certas representações intramitáveis. Continua a paciente:

"Neste fim de semana fui à nova paróquia. Falei com o padre depois da missa, tive medo, não conhecia ninguém e ele me disse: "Eu te conheço, sei da tua dor". O retiro espiritual foi no sábado e no domingo, em Benavidez. Foi um retiro destinado à reza, não houve intercâmbios sociais. Não se podia falar com ninguém. Rezei muito, mas foi difícil passar os dois dias sem falar... Apenas a reza.Tinha que encontrar Deus e estar com Ele."

Os estados religiosos ou místicos são os movimentos regressivos e geram uma busca de estabilização narcísica e uma satisfação auto-erótica que às vezes retêm um objeto metafórico e em outras goza de um desligamento bem sucedido que prescinde da representação e retém o vazio ou o nada sacralizado. É o gozo na queda de tensão que prescinde da representação.

Escreve a Irmã Joana Inês da Cruz:

Mesmo cegando-me, de te olhar Que importa cegar ou ver Se gozos que são da alma Até um cego é capaz de ver?

Também se descreve na vivência mística a experiência gozosa do nada, a qual parece aludir à libidinização do efeito de esvaziamento produzido pela perda de representações de coisas e por estratégias projetivas extremas, uma verdadeira imersão nos domínios da pulsão de morte.

A descatequização dos órgãos sensoriais e a perda das representações da mesmice e das funções egóicas são estratégias conducentes a submergir-se no reino do ID e vivenciar o não-ser, como oposição ao ser. O desejo de não-ser e a busca da anulação ou desmonte do desejo são os elos no caminho para a abolição da vida individual ou do eu. É o desejo de ser parte de Deus, de formar um Todo com Ele, de incorporar-se ao objeto divino e transformar-se no "escolhido".

São João da Cruz escreve:

0, noite, amável mais que a alvorada,O noite, que juntasteAmado com amada,Amada no amado transformada!

(A noite escura)

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A estratégia fusional, regressiva, e as vivências oceânicas e de completude, formam parte da constelação de fenômenos psíquicos que conformam a complexa experiência do misticismo. Observamos formas narcisistas que restauram o Eu-ideal, enquanto a discriminação sujeito-objeto é abolida.

Bataille nos mostra que o misticismo é da ordem da experiência e não do pensa mento. As descrições em "A experiência interior" mencionam uma anulação da refle xão, do processo secundário e a uma clausura da representação para um trajeto de vivências interiores ou corporais, um ser em si, experiência abordada como uma forma de bem estar, de recuperação, de satisfação plena.

Escreve Irmã Joana Inês da Cruz

"... pois do mesmo coraçãoos combatentes desejos,são holocausto poluídosão afetos materiais,e somente da almaem religiosos incêndiosarde sacrifíciode adoração e silêncio".

Rosolato, ao falar das experiências místicas, assinala que são as que constituem a vertente afetiva do pensamento apofântico ou negativo "como uma compreensão integral que comove o espírito, situando-o numa crença de plena certeza". Possuem formas variadas, podem estar carregadas de imagens mentais ou ter as características de alucinações visuais e/ou auditivas. É um sentimento de plenitude ou de esvaziamento, é uma experiência singular, indizível e inefável...

"Na Igreja de Nossa Sra. da Unidade é diferente. Ah! Como posso rezar! Ah! Tive sinais de Deus, tive distintas vivências da presença de Deus. Escrevi uma carta ao meu noivo, disse-lhe que no amor está a presença de Deus, que o amor me dá a força vital de cada dia, de gozo e de dor..."

Os sentimentos de dor dilacerantes pelas perdas e pelas situações traumáticas se libidinizam para produzir um gozo masoquista com vivências alternantes de plenitude, de energia e de êxtase.

"No sábado fui visitar o padre. Ele me achou mais crescida, me disse que sentia que eu estava peregri-nando... Voltei à minha casa caminhando, mais de quarenta quarteirões...Tinha vontade de rezar.Voltei rezando e depois comecei a cantar salmos. Não sei o que me aconteceu, mas algo me aconteceu. Rezei, cantei e chorei muito...

A:Você estava se sentindo muito sozinha?P: Sim, tinha muito medo. Estava com saudades do meu noivo e pensava na minha

mãe. Ela tentou o suicídio novamente."Podemos considerar a reza como um encontro místico com conotações de ritual, ligado

ao pensamento mágico e onipotente que se opõe ao critério de realidade e ao processo secundário. Este ritual protege de ansiedades regressivas, e através dele se recupera a relação com a mãe-pai onipotente da primeira etapa da vida. Remete-nos a estados regressivos de uma fusão narcisista que perde os limites (sentimento oceânico), é

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a união primária com um Pai poderoso de quem se faz parte. As pregações, os ritos e orações sempre realizadas da mesma maneira são também formas de anular o tempo cronológico e dão lugar ao "vazio mental" (Rosolato). É a ausência do pensamento reflexivo e criativo.

"Hoje me levantei contentíssima. Rezei "A Liturgia das Horas". Os padres têm suas rezas e seus ofícios todos os dias, os leigos temos estas orações. Eu não tenho o super tempo, mas a oração é parte da minha vida, variando segundo o meu estado de ânimo. E um livro de orações por horas e em qualquer parte do mundo tem alguém rezando o mesmo que você..."

No processo evolutivo da sexualidade, o narcisismo precoce toma forma e é resignificado em acontecimentos quase místicos ou em momentos sagrados, desenvolvem-se através do encontro objetai com o objeto do desejo. A impossibilidade do encontro com o objeto da sexualidade freqüentemente remete às experiências auto-eróticas e aos gozos anobjetais.

A alegoria religiosa alude à instalação de uma lei paterna e ao gozo masoquista, à voluptuosidade que se derrama nos caminhos regressivos do desligamento dos objetos. O destino tanático e mortificante que conduz seus fiéis,guarda uma cumplicidade implícita com o desenvolvimento de uma civilização que desliza para a aceitação da submissão. O paradoxo fundamental é o da morte em vida e da vida na morte.

Disse São João da Cruz:Oh, cativeiro suave!Oh, chaga presenteada!Oh, mão tenra!Oh, toque delicado,Que a vida eterna sabeMatando, morte em vida tu trocaste.

Na exaltação masoquista da mortificação e do sacrifício, no transbordamento de ameaças, exigências e restrições por parte da "fortaleza estrangeira interior" e os ideais patológicos colocam o sujeito da crença à beira do abismo da culpa e do cultivo de tánatos, que contribuem para que a vida terrena se constitua em uma sentença.

Assim o expressa Teresa de Ávila:

'Vivo sem viver em mimE tão alta vida esperoQue morro porque não morro."

O êxtase libidinal se satisfaz na erotização da dor, no corpo maltratado e na humilhação. O sacrifício, transformado em valor, consolida a mortificação que a consciência moral cultiva como modalidades de masoquismo tanático. A promessa de amar e servir a Deus pressupõe uma posição de passividade subjetiva. Poder-se-ia pensar num "masoquismo religioso", no qual encontraríamos aspectos do masoquismo feminino e do masoquismo moral.

Diz O. Paz: "ao final, a Irmã Joana poetisa não se converte numa teóloga ou numa doutora da Igreja mas numa penitente que enterra, com seu nome, seu entendimento... A fé e as crenças de Irmã Joana foram cúm-

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plices de sua derrota. Ofereceu seus livros, castigou seu corpo, humilhou sua inteligência e renunciou ao seu mais precioso dom: a palavra..."

Notas

1. A fantasia surge como meio indispensável para a produção da subjetividade. Em que medida o imaginário institucional ou o alheio sufoca toda produção fantasmática que lhes resulta sediciosa? 2. "A função encomendada à divindade resulta ser a de compensar os defeitos e danos da civilização... nascido da necessidade de tornar tolerável o desamparo humano... contra os perigos da natureza do Destino e contra os danos da própria sociedade humana..." O porvir de uma ilusão. Freud, S. (1923).

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