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REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNACIONAL Ano 42 nº 1 1999 INSTITUTO BRASILEIRO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS MCT Programa de Apoio a Publicações Científicas ISSN 0034-7329

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REVISTA BRASILEIRA DEPOLÍTICA INTERNACIONALAno 42 nº 1 1999

INSTITUTO BRASILEIRO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

MCT

Programa de Apoio a Publicações Científicas

ISSN 0034-7329

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Revista Brasileira de Política Internacional(Rio de Janeiro: 1958-1992; Brasília: 1993-)

©1999 Instituto Brasileiro de Relações Internacionais. Revista semestral. Asopiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade de seusrespectivos autores.

Editor: Amado Luiz CervoEditor Adjunto: Paulo Roberto de AlmeidaRevisão: José Romero Pereira Júnior

Conselho Editorial: Antônio A. Cançado Trindade, Carlos Henrique Cardin,Celso Amorim, Celso Lafer, Guy de Almeida, HélioJaguaribe, Luciara Silveira de A. e Frota, Luiz AugustoP. Souto Maior, Mario Rapoport, Moniz Bandeira, PauloG. F. Vizentini, René Armand Dreifuss, Rubens Ricupero,Sérgio G. Bath, Thomaz Guedes da Costa.

Assinatura Anual: Brasil: R$ 30; Exterior: US$ 30Assinatura de apoio: US$ 100

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Sumário

ROTAS DE INTERESSEO Brasil e o mundo no limiar do novo século: diplomacia e desenvolvimento 5

Luiz Felipe de Seixas CorrêaOpinião pública e política externa do Brasil do Império a João Goulart:um balanço historiográfico 30

Tânia Maria Pechir Gomes ManzurA participação brasileira em negociações multilaterais e regionais sobre serviçosfinanceiros 62

Marcos Antonio Macedo CintraA vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra 77

Wolfgang Döpcke

PRIMEIRA INSTÂNCIAO mar territorial brasileiro de 200 milhas: estratégia e soberania, 1970-1982 110

Gustavo de Lemos Campos CarvalhoSegurança e defesa: uma única visão abaixo do Equador 127

Darc CostaGlobalização, regionalismo e ordem internacional 157

Valérie de Campos Mello

Errata 182

INFORMAÇÃONotasA Europa atual: questões de segurança coletiva e integração econômica 183

Arthur V. Corrêa MeyerO capitalismo pós-nacional e os riscos da inserção desigual do Brasil 193

José Vicente da Silva LessaResenhas 202Selma PANTOJA & José Flávio S. SARAIVA: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul.Paulo Roberto de ALMEIDA: O Brasil e o Multilateralismo Econômico. Paulo Roberto deALMEIDA: O Estudo das Relações Internacionais. Víktor SUKUP: Europa y laglobalización. Tendências, problemas, opiniones. John Lewis GADDIS: We Now Know:Rethinking Cold War History. Ulf ENGEL & Hans-Georg SCHLEICHER (unter Mitarbeitvon Inga-Dorothee Rost): Die beiden deutschen Staaten in Afrika: Zwischen Konkurrenzund Koexistenz 1949-1990.

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Contents

ROUTES OF CONCERNBrazil and the world at the turn of the century: diplomacy and development 5

Luiz Felipe de Seixas CorrêaPublic opinion and Brazilian foreign policy from Independence to João Goulart: ahistoriographic view 30

Tânia Maria Pechir Gomes ManzurBrazilian participation in multilateral and regional negotiations of financial services 62

Marcos Antonio Macedo CintraThe long life of the straight lines: five myths about Black Africa’s frontiers 77

Wolfgang Döpcke

FIRST INSTANCEThe 200 miles off-shore Brazilian border: strategy and sovereignty, 1970-1982 110

Gustavo de Lemos Campos CarvalhoSecurity and defense: an unified perspective south of the Equator 127

Darc CostaGlobalization, regionalism and the international order 157

Valérie de Campos Mello

Erratum 182

INFORMATIONNotesContemporary Europe: the problem of collective security and economic integration 183

Arthur V. Corrêa MeyerPost-national capitalism and the risks of an unequal Brazilian insertion 193

José Vicente da Silva LessaReviews 202Selma PANTOJA & José Flávio S. SARAIVA: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul.Paulo Roberto de ALMEIDA: O Brasil e o Multilateralismo Econômico. Paulo Roberto deALMEIDA: O Estudo das Relações Internacionais. Víktor SUKUP: Europa y laglobalización. Tendências, problemas, opiniones. John Lewis GADDIS: We Now Know:Rethinking Cold War History. Ulf ENGEL & Hans-Georg SCHLEICHER (unter Mitarbeitvon Inga-Dorothee Rost): Die beiden deutschen Staaten in Afrika: Zwischen Konkurrenzund Koexistenz 1949-1990.

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O Brasil e o mundo no limiar donovo século: diplomacia edesenvolvimento

LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA*

“... whatever its faults or problems, no outsider todaysees Brazil as a joke. The biggest country in its regionis now treated – and acts – as such a countrydeserves to be and, in the long term, has to be” (TheEconomist, “Brazil’s steady nerve”, 10/10/98, p.15).

Durante o primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso(1995-98), o exercício da diplomacia foi fortemente beneficiado pela retomada deum sentimento de auto-estima da sociedade nacional e pela repercussão externapositiva dos avanços políticos, econômicos e sociais do país. O Itamaraty pôdetrabalhar com renovada desenvoltura, sem as inibições que tanto o haviam limitadono passado ainda recente, derivadas do regime autoritário entre 1964-85, dasincertezas da transição política subseqüente e das dificuldades econômicas doperíodo 1981-92.

A confiança do Brasil em suas próprias capacidades e o respeito dacomunidade internacional asseguraram o êxito de uma série de operaçõesdiplomáticas de grande envergadura. Continuamos a consolidar e aprofundar oMERCOSUL. Assinamos em 1996 acordos de integração econômica com o Chilee a Bolívia. Tivemos papel de liderança nas discussões sobre o lançamento denegociações para a futura conformação da Área de Livre Comércio das Américas(ALCA), e logramos imprimir a esse processo um ritmo compatível com osinteresses nacionais. Estivemos à frente dos entendimentos que levaram àconvocação da primeira reunião de cúpula entre Chefes de Estado e de Governoda América Latina-Caribe e da União Européia, que se realizará no Rio de Janeironos dias 28 e 29 de junho próximos. Na América do Sul, o Brasil trabalhou comêxito pela manutenção do ambiente de paz, estabilidade e entendimento que adistingue de modo tão favorável na comparação com outros continentes. Juntamente

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 5-29 [1999]* Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores (1999).

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com os parceiros do MERCOSUL, atuamos em favor da consolidação do regimedemocrático no Paraguai. O Presidente Fernando Henrique Cardoso lideroupessoalmente os entendimentos que levaram à celebração de acordo de paz entreo Equador e o Peru, em outubro de 1998, em cerimônia realizada em Brasília. Noplano multilateral, o Brasil – utilizando uma expressão do Ministro das RelaçõesExteriores, Luiz Felipe Lampreia – “resgatou hipotecas” que ainda pesavam sobrenossa presença no mundo. A ratificação em 1998 do Tratado de Não-Proliferaçãode Armas Nucleares (TNP) foi a iniciativa de maior relevância e visibilidade nessesentido.

Essa linha de avaliação positiva sobre o trabalho da diplomacia brasileirano governo Fernando Henrique Cardoso tem sido repetida por importantes órgãosda imprensa nacional e internacional.1

Na virada de ano 1998-99, que coincidiu com a reeleição do PresidenteFernando Henrique Cardoso para um segundo mandato (1999-2002), criou-se,porém, uma nova situação. A crise de liquidez nos mercados financeirosinternacionais atingiu duramente o Brasil e trouxe conseqüências importantes paraa operação da diplomacia do país. O presente texto examina as prioridades dapolítica externa brasileira neste novo momento, e em que medida as condiçõesexternas e internas supervenientes condicionam ou limitam o exercício dadiplomacia. Na primeira parte, o texto faz comentários de natureza geral e históricasobre as visões dos brasileiros e do mundo exterior a respeito do Brasil. A segundaparte contém observações gerais a respeito do atual cenário internacional e sobresuas características que não operam em favor do desenvolvimento de países comoo Brasil. A terceira parte, por fim, trata da agenda diplomática do país em 1999.

I. O Brasil e a busca do desenvolvimento

O Brasil busca arduamente adaptar-se aos novos tempos e às novascondições da ordem internacional. Muitas vezes, não obstante, somos criticadospelo que se pode perceber como uma certa lentidão do sistema político-institucionalbrasileiro em promover as mudanças necessárias.

Nem sempre é fácil compreender o que está acontecendo no país. Asdiferentes dimensões em que se desdobram as realidades contrastantes do Brasil,suas ambivalências e seus ritmos às vezes indecifráveis constituem um duro testepara a imaginação dos que tentam explicá-lo. Da mesma forma que a sua formaçãohistórica singular desafia a capacidade dos que se dedicam às ciências do passadopara compreender o presente do Brasil e pensar sobre seu futuro.

Os tempos brasileiros são, efetivamente, muito particulares. Mas têm suarazão de ser, sua explicação e, sobretudo, suas virtudes. Ao aproximar-se o novomilênio, que gerações de brasileiros anteviam como o umbral de desenvolvimentoeconômico e social do país, o Brasil continua a enfrentar uma série de desafios. O

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7O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

sonho ainda não se realizou. O Brasil segue sendo, nas palavras do presidenteFernando Henrique Cardoso, um país injusto, que quotidianamente sofre asconseqüências da má distribuição da riqueza e que, como o demonstram fatos esituações recentes, se vê forçado a lidar com temas primários tais como a distribuiçãoda terra, a destruição do meio ambiente, a violência estrutural, más condiçõessanitárias e baixa qualidade da educação. Mas, ao mesmo tempo, é um país queproduz bens e serviços de alta tecnologia, que dispõe de meios intelectuais,empresariais e governamentais plenamente integrados com o que há de maisavançado no mundo. Um país, portanto, que se apresenta frente a si próprio efrente ao mundo em fragmentos contraditórios e imagens freqüentementedesconexas. Um país que é como um quebra-cabeça, em busca de uma visãointegral capaz de revelar o sentido profundo de suas diferentes realidades.

Essa preocupação não é nova. Acompanha a história do Brasil desde suasorigens, especialmente a partir do início do século XX, quando se tornou evidentea incapacidade dos dirigentes brasileiros de atender às expectativas de progressoe modernização despertadas pela proclamação da República em 1889. Sãoconhecidos os paradigmas cristalizados naquele momento: de um lado, o ufanismo,surgido em meio à euforia nacionalista que caracterizou as comemorações do IVCentenário do Descobrimento do Brasil, representado pelo Conde Afonso Celso,autor do célebre opúsculo Por que me ufano do meu país; de outro, o pessimismoe o desprezo pelo nacional, tão dramaticamente expressados por Paulo Prado emseu Retrato do Brasil.

As ciências sociais no Brasil ao longo de todo o século XX estiveramsempre fixadas na discussão de temas como a formação nacional, as raízes denosso subdesenvolvimento e, ao mesmo tempo, em propostas ou visões para superaro atraso.2 São exemplos dessa constatação as obras clássicas de Gilberto Freyre(Casa-Grande e Senzala), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), OliveiraViana (Populações Meridionais do Brasil) ou Vianna Moog (Bandeirantes ePioneiros). No início dos anos noventa, apenas para citar um exemplo mais atual,Francisco Weffort deu seguimento a essa tradição com o belo ensaio A AméricaErrada.

Entre os extremos da exaltação nacionalista de Afonso Celso e aautoflagelação europeizante de Paulo Prado, custou muito ao pensamento brasileiroencontrar o equilíbrio de hoje. Depois de um longo caminho que conduziu o paíspor constantes espasmos de demagogia e autoritarismo, chegamos ao V Centenáriodo Descobrimento e nos preparamos para cruzar a marca mítica do milênio comum sentido comum e uma circunspecção inéditos. Não mais estamos à beira doabismo perene que, desde os tempos de Dom João VI, ameaça tragar a sociedadebrasileira, e tampouco nos encontramos no paraíso terrestre que, embalado pelasdescrições edênicas da carta do escrivão Caminha a Dom Manuel o Venturoso,em 1500, o brasileiro se obstinava em encontrar, contra todas as evidências, nas

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8 LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA

asperezas da sua realidade quotidiana. A sociedade brasileira parece haverfinalmente despertado de suas fantasias, positivas ou negativas. As reações deequilíbrio da população no período de turbulências cambiais entre janeiro e marçode 1999 foram indicativas desse novo estado de espírito. Em nenhum momentoperdeu-se a crença quanto à possibilidade de manter o país no rumo da estabilizaçãoeconômica. Ao contrário: as reações espontâneas da própria sociedade(consumidores e agentes econômicos) foram determinantes para evitar a volta dainflação, fato que levou o Presidente Fernando Henrique Cardoso a dizer que a“âncora” do Plano Real é o povo brasileiro.

Como se ao final de um longo processo analítico, os brasileiros finalmentetivéssemos assumido nossa própria personalidade e nossa própria realidade, comseus notáveis êxitos e com toda a carga de seus desacertos. Um país em suadimensão de sociedade nacional é, essencialmente, um conjunto de pessoasassociadas em torno de ideais e comportamentos comuns. O estado de espírito deum país é tão importante quanto o estado das coisas. Assim como as pessoas noplano individual, as coletividades nacionais se movem no espaço interior de umpaís e se relacionam com o mundo exterior em função de anseios, frustrações,complexos, temores e ambições. Em função, enfim, de toda a gama de fatores quecondicionam o processo decisório individual e coletivo, como por exemplo o graude ajuste e sociabilidade de cada um. Todo pensamento legítimo, na expressão deManuel Bomfim, antes de ser pensado foi sentimento. Bomfim, um dos intelectuaisantimonárquicos mais importantes, participante ativo da demolição institucional damonarquia brasileira e da construção da utopia republicana de princípios do século,imaginava um brasileiro dono de seu pensamento, desprovido de ceticismos edesinteresses, um homem que “transforma em conceito o que sente, rompendocom as fórmulas correntes para afirmar a indispensável renovação”; ou, comoqueria Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, um livro certamente ainda atualpara a compreensão das diferentes dimensões brasileiras, um brasileiro capaz dedeixar de lado seu sentimentalismo rudimentar, “a exploração pecaminosa de todasas dores e todas as calamidades”, e de bater-se à luz de seus princípios, “ainda queadversos, sem o acompanhamento obrigatório dessas eternas loas ao infortúnio,dessa constante ladainha de agruras”.

O brasileiro imaginado no início do século pela visão de Bomfim e deEuclides parece ter tomado forma agora que chegamos ao seu final, em meio atantas inquietações e dúvidas persistentes. Frente a um espelho imaginário, o Brasilse vê hoje em sua totalidade. Um país diante de suas próprias circunstâncias: nemo mais atrasado, nem o mais adiantado; nem o mais rico, nem o mais pobre; nem omais justo, nem tampouco o mais injusto. Um país que busca transformar-se nãopor impulsos autoritários ou visões impostas, mas sim mediante a gestação deconsensos aproximativos que, mesmo não sendo o caminho mais rápido, constituemcertamente o mais seguro e duradouro.

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9O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

O Brasil tem pela frente uma agenda organizada sob a forma de grandesantinomias que se expressam, por exemplo, em tendências oscilantes entre aberturae fechamento; entre integração e alienação; crescimento e estagnação;harmonização e imposição; participação social e confrontação social; modernizaçãoe atraso. Ainda que subsistam no país segmentos que, consciente ouinconscientemente, favorecem políticas tendentes a acentuar o lado negativo dessasantinomias, felizmente o que hoje prevalece na sociedade brasileira é uma visãopositiva, uma deliberação afirmativa pela abertura, pela integração, pelo crescimento,pela harmonização, pela participação social e pela modernização.

O ano eleitoral de 1998 foi, sob todos os aspectos, crucial para oprosseguimento do processo de transformações internas e adaptações externas doBrasil. À luz de sua nova maturidade, a sociedade brasileira tomou decisõesfundamentais sobre o futuro do país e sua inserção no mundo. As eleiçõespresidenciais coincidiram com um momento de grave deterioração da crisefinanceira internacional iniciada em meados de 1997 na região da Ásia-Pacífico.A moratória russa de agosto de 1998 agravara ainda mais as dificuldades quepaíses emergentes como o Brasil já vinham enfrentando para manter o acesso acréditos e financiamentos externos. O Presidente Fernando Henrique Cardoso,em plena campanha eleitoral, anunciou que seria necessário um esforço renovadode austeridade fiscal, para que se pudesse manter a estabilidade econômicaconquistada com o Plano Real. A sociedade brasileira assimilou esse gesto degrandeza política e de sinceridade pessoal e renovou o mandato do Presidente,confiante em sua direção para que o país continuasse no rumo da estabilização,das reformas e da abertura.

O Brasil foi durantemente golpeado pela instabilidade dos mercadosfinanceiros internacionais. O governo Fernando Henrique Cardoso havia-sedecidido, desde 1995, por um ritmo de gradualismo na implementação de reformaseconômicas. Buscara-se sempre o mais amplo grau possível de consenso entre ospartidos políticos e os diversos grupos sociais. Partia-se da constatação de que osmercados financeiros internacionais estavam cientes dos avanços que o país vinharealizando e manteriam sua confiança e disposição de financiar os déficits emtransações correntes.

A partir da moratória russa, contudo, o quadro externo alterou-se de mododramático. Em um contexto momentâneo de grave crise nos mercados financeiros– por muitos caracterizada como a mais grave desde o início do funcionamentodas instituições de Bretton Woods após a II Guerra Mundial –, os capitaisinternacionais afastaram-se dos países emergentes de uma forma geral, sem fazerdistinções em favor daqueles que, como o Brasil, tinham (e têm) a mais absolutaestabilidade política, compromisso com as reformas econômicas e o saneamentofiscal, sistema bancário sólido, ausência de “bolhas especulativas” e empresaspouco endividadas.

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10 LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA

O Brasil viu-se na contingência de ter de recorrer ao Fundo MonetárioInternacional (FMI). Em novembro, o país assinou uma primeira carta de intençõescom o Fundo, e recebeu compromissos de ajuda externa de vários organismosfinanceiros internacionais e de governos de países industrializados no valor de US$41, 5 bilhões. O apoio político do governo dos Estados Unidos foi decisivo paraesse resultado.

Naquele momento, pareciam encaminhadas as medidas que possibilitariamao Brasil a travessia do credit crunch nos mercados financeiros internacionais.Na seqüência, contudo, obstáculos no Congresso Nacional, em dezembro, paraaprovação de medidas de ajuste fiscal (em especial o atraso na votação da CPMFe a derrota do Governo no tema da contribuição previdenciária de servidorespúblicos) e as dificuldades no relacionamento entre a União e governadoresempossados a 1º/1/99 transmitiram aos mercados a impressão de que o país comoum todo ainda não se havia conscientizado da necessidade inadiável de corrigir odéficit fiscal – superior a 8% do PIB em 1998.

Agravou-se a crise de confiança externa. A situação do balanço depagamentos deteriorou-se rapidamente. Em meados de janeiro, o Governo foi levadoa alterar sua política cambial. De uma política de desvalorizações graduais econtroladas, passou-se à livre flutuação. Após momentos iniciais de dificuldadespara adaptação ao novo cenário econômico, a determinação do Governo em mantero curso de saneamento fiscal e de reformas e abertura econômica conduziu o paísem março/abril a um novo ponto de equilíbrio.

Uma série de fatores contribuiu para essa evolução positiva. Ainda emfevereiro, o Congresso Nacional aprovou, por fim, as propostas governamentaissobre contribuições previdenciárias de servidores públicos, inclusive os inativos.Em encontro conjunto com 26 dos 27 governadores estaduais, o Presidente FernandoHenrique deu início a uma distensão no diálogo entre a União e os Estados. Emmarço, foi assinada uma nova carta de intenções com o FMI. O Governo Federaltornou explícita a decisão de substituir a política cambial por uma meta inflacionária(ao lado das medidas de ajuste fiscal) como âncora para a estabilização econômica.Já em meados do mesmo mês, os diferentes índices de inflação que haviamapresentado fortes altas logo após o impacto inicial da desvalorização do Realvoltaram a apresentar tendência declinante. A balança comercial será superavitáriaem 1999, e haverá um decréscimo substancial no déficit da balança de transaçõescorrentes. No final de abril, o Governo realizou com grande êxito emissão de títulosno mercado internacional. O Brasil continua a receber importantes fluxos deinvestimentos diretos (possivelmente em nível suficiente para financiar todo o déficitda balança de transações correntes em 1999), os quais são talvez a mais importantedemonstração de confiança – real e não apenas retórica – nas perspectivas delongo prazo de um país.

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11O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

Pode-se, portanto, dizer que o Brasil está no bom caminho para superar osmomentos mais difíceis da crise econômica que o atingiu tão duramente. Éfundamental ter sempre presente, por outro lado, que a análise de um diplomatasobre as potencialidades de um país e sua capacidade de projeção externa não sedeve fixar em momentos específicos, por mais positivos ou negativos que possamser. Por exigência de sua profissão, o diplomata deve manter a visão do longoprazo, das tendências mais permanentes.

Independentemente das flutuações de curto prazo nas percepções internase externas a respeito do Brasil, há toda uma série de considerações que estãosempre presentes no planejamento e na execução da política externa nacional:

1º) entre os países emergentes, o Brasil destaca-se pela solidez de seuregime democrático e pela existência de um regime jurídico estável e transparente.O grau de liberdade sindical ou de imprensa em nada fica a dever na comparaçãocom os países mais adiantados do mundo;

2º) a efetiva dimensão econômica do País não se mede pela flutuaçãodiária dos mercados financeiros e de câmbio. A desvalorização do Real não significa,naturalmente, que a economia brasileira tenha encolhido de um momento paraoutro. Os indicadores de produção física são os que contam. Medido pelo critérioda paridade do poder de compra da moeda nacional (em oposição à utilização detaxas nominais que variam diariamente), o PIB brasileiro continua a ter um valorna faixa de US$ 1 trilhão;

3º) o elevado valor do estoque de investimentos estrangeiros diretos (IED)no Brasil representa sinal inequívoco de alto grau de confiança nas potencialidadesde longo prazo do país. De acordo com dados da UNCTAD, o Brasil é o segundomais importante receptor de IED entre os países emergentes, superado apenaspela China. O Brasil detém o quinto mais importante estoque de IED norte-americano em todo o mundo (cerca de US$ 34,5 bilhões), superado apenas peloReino Unido, Canadá, Holanda e Alemanha.3 Conforme dados do Bundesbank,somos o mais importante destino de IED da Alemanha entre os países emdesenvolvimento (estoque de US$ 13,5 bilhões), seguido pelas Ilhas Cayman, oMéxico e a Argentina. Mesmo em meio às turbulências da mudança do regimecambial, manteve-se vivo o interesse dos investidores externos pelo Brasil. Asúltimas estimativas indicam que o ingresso líquido de recursos nessa rubrica noano de 1999 será da ordem de US$ 20 bilhões. No primeiro trimestre de 1999, ototal líquido de IED recebido foi de US$ 7,7 bilhões – valor superior em cerca de50% ao déficit da balança de transações correntes, que foi de US$ 5,17 bilhões;4

4º) apesar de todas as injustiças sociais que continuam a caracterizar oBrasil, e que representam o mais sério obstáculo ao processo de desenvolvimentonacional, o país tem feito avanços consistentes – ainda que em ritmo insuficiente –para resgatar sua “dívida” nessa área. A edição de 1998 do Relatório sobre oDesenvolvimento Humano (elaborado anualmente pelo Programa das Nações

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12 LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA

Unidas para o Desenvolvimento) pela primeira vez incluiu o Brasil entre os paísesde desenvolvimento social elevado.5 É evidente que não devemos nos iludir comesse êxito, pois as médias brasileiras encobrem discrepâncias significativas entreclasses sociais ou entre regiões e raças. Não se coloca minimamente em dúvida aprioridade e a urgência do muito que há por fazer. Mesmo assim, os progressosregistrados no chamado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil nãodeixam de representar clara indicação de uma tendência positiva, que se reflete namelhoria de diferentes indicadores sociais: a expectativa média de vida passou de52,7 anos em 1970 para 67,3 anos em 1995; a mortalidade infantil no primeiro anoapós o nascimento caiu de 87,9/mil em 1970 para 43,4/mil em 1995; o percentualde analfabetismo na faixa de 7-14 anos diminuiu de 38,7% em 1970 para 11,4% em1993.

Apesar do recente choque da desvalorização do Real, portanto, o Brasilcontinuará a ser percebido, por analistas e agentes econômicos que operam com aperspectiva do longo prazo, como um país que conta. Em seu mais recente livro(Years of Renewal), Henry Kissinger observa o seguinte: “Brazil has the resources,the population, and the scale to become one of the world’s leading powers”. SamuelHuntington considera que o Brasil seria uma das “grandes potências regionais”, aexemplo do condomínio franco-alemão na Europa ou da Rússia na Eurásia.6 Emdepoimento no Congresso norte-americano em janeiro passado, em período críticoda turbulência econômica que atingiu o Brasil, o Presidente do Federal ReserveBoard, Alan Greenspan, disse que “o problema brasileiro é largamente fiscal. Aeconomia do setor privado é uma entidade impressionante. Eles (os brasileiros)realmente construíram uma estrutura produtiva e um sistema financeiro muitosofisticados”.7

Evidentemente, a diplomacia brasileira não se deixa levar por qualquergrau de ilusão quanto ao alcance desses comentários. A política externa brasileiranão se baseia na busca de prestígio ou da afirmação externa do poder nacional,mas sim, tão somente, na preocupação de criar um ambiente externo que seja omais favorável possível para o desenvolvimento nacional.8 Há plena consciênciade nossas limitações internas e da complexidade dos desafios a superar.9 Mesmoassim, é útil manter presentes avaliações como as de Kissinger, Huntington ouGreenspan, pois servem para dar uma medida das possibilidades de atuação externado país. É com essa perspectiva que trabalham os diplomatas brasileiros.

II. O Brasil e a ordem internacional

É efetivamente muito importante que o sentido de direção e a obstinaçãocom que o governo brasileiro busca manter a inflação sob controle e, ao mesmotempo, criar as condições para o desenvolvimento sustentável da economia sejamreconhecidos dentro e fora do país.

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13O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

Isso, porém, não é suficiente. Podemos melhorar o Brasil, tal como estamosempenhados em fazer. Mas é preciso que melhorem também as condições externas.Como todo país continental, é natural que o Brasil revele uma certa tendência àintrospecção e à autarquia. Tendo sido dotado de uma eficiente rede de segurançaexterna no início do século, graças à visão estratégica da diplomacia do Barão doRio Branco, o Brasil apresenta uma sociedade civil que – à exceção dos segmentosprofissionais e do mundo dos negócios e das altas finanças – revela, no geral,reduzido grau de interesse relativo pelo fato externo. Pouco a pouco, não obstante,a sociedade vai-se mostrando mais permeável ao que acontece fora do país everifica que os acontecimentos no plano internacional são determinantes para oquadro interno.

A relevância do fato externo para a definição dos rumos internos do Brasilnão é, evidentemente, uma novidade. Os ciclos políticos e econômicos do Brasil-Colônia ou do Império sempre estiveram muito relacionados aos mercadosinternacionais (açúcar, ouro, café, borracha e assim por diante). Eventos-chave dahistória republicana foram também, em grande medida, decorrentes deacontecimentos externos. A Revolução de 1930, por exemplo, está ligada à criseeconômica da lavoura do café, na esteira da depressão mundial de 1929. Maisrecentemente, o esgotamento do regime autoritário e a transição para a democraciana primeira metade dos anos oitenta foram em boa medida decorrentes de umasituação de “estrangulamento” do balanço de pagamentos, que freou a economia eprovocou forte queda da renda per capita no período 1981-83.

Mesmo assim, até recentemente, a percepção da importância do fatoexterno era de caráter mais esporádico e estava, no geral, ligada a acontecimentosespecíficos como as duas crises do petróleo (1973 e 1979) ou a crise da dívidaexterna (1982). Já agora, contudo, a opinião pública e os diversos segmentosorganizados da sociedade passaram a acompanhar de forma mais consistente osacontecimentos internacionais. Firmou-se a consciência de que negociações comoas do MERCOSUL, da ALCA ou da OMC, para citar exemplos mais presentesna mídia, têm impacto imediato para o desenvolvimento nacional. Nas últimaseleições presidenciais, ademais, o debate sobre formas de melhor controlar osefeitos da crise dos mercados financeiros internacionais esteve no centro dacampanha eleitoral.

Daí nosso empenho renovado em contribuir positivamente para o debateque deve ocorrer com mais sentido de objetividade em torno de uma nova agendade transformação da ordem internacional nos planos político, econômico e social.Mesmo tendo sido superados os riscos globais impostos pela confrontação Leste-Oeste, por trás da aparente simplicidade do modelo unipolar escondem-se elementosde ambigüidade, dispersão e disfuncionalidade que demandam uma reflexãocuidadosa. O poder internacional se exprime de maneiras freqüentementesurpreendentes e unilaterais; os mecanismos de organização internacional não

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acompanham de modo adequado as transformações em nível mundial, fato do qualé prova a incapacidade de reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas.Devido ao surgimento de diversos sistemas e subsistemas regionais, cuja ponderaçãointernacional aumentou consideravelmente com a superação do maniqueísmoideológico, verifica-se uma virtual tendência à fragmentação, com toda sua redede rivalidades, de segmentações, de unilateralismos, de falta de visão de futuro ebusca de influências excludentes.

Essas realidades, que não são ainda compreendidas em todas as suasimplicações, sugerem a necessidade de ver o quadro internacional sob novasperspectivas. Torna-se necessário operar com redobrado cuidado e especialcriatividade. Sobretudo no caso de países como o Brasil, cujas complexas realidadesnem sempre podem ser adequadamente expressas de maneira clara e para o qualhá muito mais em jogo nos diferentes cenários internacionais – políticos, econômicos,comerciais, financeiros ou de segurança – do que a superação da Guerra Fria e daconfrontação ideológica.

O fenômeno da globalização não afetou todos os países de forma equilibrada.São preocupantes tanto a autocomplacência que se apoderou dos países ocidentaisdepois do colapso do socialismo real quanto a falta de visão estratégica frente àssituações de conflito e de exclusão que estão agravando-se na periferia do PrimeiroMundo.

O atual estado de coisas não poderia deixar de causar preocupação noBrasil. Com a autoridade que lhe confere o fato de estar implementando umprograma bem estruturado de modernização e ajuste, o Brasil tem buscado enfatizara necessidade de ampliar os debates sobre a ordem internacional. Temos tentadoassinalar a importância de repensar adequadamente os acertos, os mecanismos eos procedimentos atualmente vigentes para adaptá-los aos desafios destes novostempos da globalização.

Temos consciência de que o Brasil depende fundamentalmente do Brasil.Mas, ao mesmo tempo, sabemos que, por mais que a sociedade brasileira escolhade forma correta e racional todas as suas opções, tal como o faz, elas não serãopor si próprias suficientes se os grandes países desenvolvidos não se mostraremcapazes de resolver seus conflitos de interesse e de atuar, em seu próprio benefício,como promotores coadjuvantes do crescimento e da estabilidade nas regiõesperiféricas.

Já não se trata, como em tempos anteriores, de uma agenda conflitiva oureivindicatória. O mundo de hoje superou, felizmente, a retórica de confrontação.Mas não podemos deixar que se implante em seu lugar uma lógica de acomodação.

Se o mundo mudou com os avanços da tecnologia, com as proezas dacomunicação, com a globalização dos mercados, é preciso mudar também as normase as práticas ainda remanescentes do período anterior. Que momento melhor doque a virada do século para lançar um olhar analítico sobre as instituições e as

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formas de organização internacional que se originaram a partir da Segunda GuerraMundial? Cresceram sob a rigidez das divisões ideológicas e agora parecem umtanto anacrônicas, pouco operativas e até certo ponto redundantes. Em recenteentrevista, o Presidente Fernando Henrique Cardoso observou que “é preciso queas lideranças mundiais sentem-se novamente à mesa para estudar como conduziro mundo no próximo século. É preciso definir novas bases. Se a ONU é umorganismo excessivamente burocrático, é preciso definir qual o órgão ideal.Transferindo para o plano econômico e financeiro, é mais ou menos a mesmacoisa”.10

Afastado o perigo da confrontação global sob o qual vivemos durantedécadas, deveriam estar dadas as condições para que a sociedade internacional sededicasse novamente a pensar o futuro, a construir vínculos e instrumentos capazesde promover efetivamente a cooperação. O Brasil está preparado e desejoso decontribuir para essa meta, que deveria ser o grande projeto mobilizador, o maiorempreendimento dessa virada de século.

O caminho a percorrer passa pelo reforço das instâncias multilaterais. Ouseja, repensar a ordem internacional em linhas que, ao acentuar e privilegiar aorganização internacional, o façam em formas efetivamente associativas, nãocoercitivas.

Os dois vetores principais do processo de organização internacional, asegurança coletiva e a cooperação, são como as duas caras de uma mesma moeda.A segurança mais efetiva é, certamente, a que se baseia na cooperação. O mundodesenvolvido jamais poderá sentir-se seguro enquanto estiver cercado de misériae atraso. As cidades brasileiras são, nesse sentido, uma metáfora da realidadeinternacional. Que cidadão do Rio de Janeiro ou de São Paulo pode sentir-se segurode suas posses e de seus sentimentos, cercado por uma realidade urbana povoadade favelas, de criminalidade, de meninos de rua e tantas outras evidências deexclusão? Que cidadão norte-americano ou europeu pode não se sentir ameaçadopelas desigualdades da periferia do sistema internacional? No mundo da globalizaçãodos mercados, é preciso não esquecer de que se globalizaram também os riscos. Ede que se as áreas periféricas não forem rapidamente integradas aos benefícios dodesenvolvimento, não serão os países do Terceiro Mundo os únicos prejudicados.A expansão dos países desenvolvidos baseada nos seus próprios mercados podeestar próxima de seus limites extremos, como o demonstram, sobretudo, os altosíndices de desemprego que passaram praticamente a constituir fatores estruturaisdessas economias.

Já nos anos cinqüenta, a diplomacia brasileira introduziu nas Nações Unidasum conceito talvez excessivamente adiantado para a época, o qual, hoje, poderia,não obstante, ser recuperado e devidamente atualizado para as circunstâncias deum mundo globalizado: a segurança econômica coletiva. Um conjunto de idéiase mecanismos que complementariam, no plano econômico, as instituições e os

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procedimentos destinados a garantir a segurança política e militar em nívelinternacional. Com a globalização, a demanda por mecanismos que garantam aestabilidade econômico-financeira e impeçam a eclosão de crises mundiais deixoude ser um desejo utópico para constituir-se em uma necessidade urgente que acomunidade internacional deveria debater com absoluta prioridade.

Há, é certo, sinais alentadores de movimento nessa direção, a exemplo dainiciativa dos países industrializados para alívio da dívida externa dos países demenor desenvolvimento relativo (HIPC – Highly Indebted Poor Countries) ou darecente criação de uma linha de contingência do FMI para apoio financeiro apaíses que tenham políticas macroeconômicas sólidas e que, mesmo assim, sevejam atingidos pela volatilidade dos mercados. Mas é necessário fazer muitomais. Trata-se de pôr a questão do desenvolvimento no centro da agendainternacional.

Há dados que falam por si. Segundo a edição de 1996 do Relatório doDesenvolvimento Humano, nos trinta anos anteriores, a participação na rendamundial dos 20% mais ricos passou de 70 para 85%, enquanto os 20% mais pobresviram sua parcela decrescer de 2,3 para 1,4% do total. No início dos anos noventa,o mesmo Relatório do Desenvolvimento Humano (edição de 1991) estimavaque o protecionismo dos países desenvolvidos provocava uma perda anual de US$100 bilhões nas exportações de produtos agrícolas dos países em desenvolvimentoe de US$ 50 bilhões nas exportações de produtos têxteis. Essa soma de US$ 150bilhões era cerca de duas vezes e meia superior ao montante global de ajuda oficialao desenvolvimento – e, desde então, esse tipo de ajuda vem decrescendopaulatinamente, enquanto o protecionismo nos mercados dos países desenvolvidossegue no seu conjunto tendência oposta.

O Brasil tem procurado desenvolver uma linha de atuação externa sensívela essas condições e destinada a favorecer os consensos necessários para suasuperação. A consolidação da democracia e a estabilidade macroeconômicaconferiram ao Brasil, nestes últimos anos, a capacidade de recuperar uma margemrazoável de iniciativa no plano internacional. Imersos no labirinto de nossa criseinterna, havíamos perdido parte da capacidade de mobilização e iniciativa que,historicamente, caracterizou a política externa brasileira.

Estamos praticando uma diplomacia ativa, capaz de definir objetivosconcretos e de granjear recursos em diferentes níveis para persegui-los. Tantoquanto possível, a democracia brasileira observa um padrão de conduta que sebaseia em noções razoavelmente definidas de interesses em suas diferentesacepções. É nesse marco que se situa a prioridade estabelecida e operada peladiplomacia brasileira em duas áreas principais de atuação: o fortalecimento e aexpansão das relações com os países da América do Sul e a busca de associaçõesoperacionais com os países desenvolvidos, em particular os Estados Unidos e aUnião Européia. É também nesse marco que se inscreve a prioridade atribuída ao

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conjunto de temas relacionados com integração, comércio, meio ambiente e direitoshumanos. Nessas áreas geográficas e temáticas, o Brasil pratica políticas associativasque derivam de condições que o identificam como um país latino-americano emdesenvolvimento. Mas desenvolve, sobretudo, uma série de ações decorrentes dosfatores que o singularizam no mundo como um país de grande massa territorial, umgrande mercado, abundante em todos os principais fatores de produção e consumo,o mais desenvolvido parque produtivo da região, ou seja, os fatores que dãocredibilidade e substância a sua reivindicação de maior participação no processodecisório internacional.

III. A agenda de 199911

O desafio do desenvolvimento nacional é a prioridade do trabalho doItamaraty. As questões da paz, da segurança ou da definição territorial do Estado– que são aquelas mais tradicionalmente associadas à imagem da diplomacia –não representam preocupações imediatas para o país. Vivemos em paz com nossosvizinhos desde o final da Guerra do Paraguai, e temos com todos um padrãoconsolidado de relações fraternas e exemplares. É natural, portanto, a ênfase nodesenvolvimento, reafirmada pelo Ministro Luiz Felipe Lampreia em discurso noúltimo dia 30/4/99, por ocasião da formatura de nova turma de diplomatas.12

É evidente que as conseqüências de curto prazo da mudança do regimecambial e a perspectiva de queda do PIB brasileiro em 1999 dificultam em certamedida o exercício da atividade diplomática. A imagem que o Brasil haviareconstruído perante a comunidade internacional viu-se por alguns momentosnovamente em jogo. A administração da agenda de negociações comerciais torna-se mais complexa. As dificuldades enfrentadas no MERCOSUL neste início de1999 pelo menos em parte são reflexo dessa nova situação.

O Itamaraty deve administrar no curto prazo, portanto, uma agenda comnossos principais parceiros que será marcada no plano econômico-comercial pormenos convergências do que no passado recente. Essa situação não deve servista, contudo, como uma limitação à projeção externa de nossos interesses. Emprimeiro lugar, porque as boas notícias de março/abril apontam para a manutençãoda estabilidade econômica e a recuperação do crescimento a partir do segundosemestre. Em segundo, porque a diplomacia movimenta-se com a perspectiva dolongo prazo, e mantém sua determinação de trabalhar para criar condições externastão favoráreis quanto possível para a superação das situações desubdesenvolvimento com que o país ainda convive. Nessa linha de raciocínio, aagenda do Itamaraty para este ano de 1999 é particularmente densa, como secomenta a seguir.

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(1) Crise financeira internacional

Desde o início de seu primeiro mandato, o Presidente Fernando HenriqueCardoso vinha sugerindo à comunidade internacional a necessidade de maiorcooperação internacional para controle dos fluxos de capital. Esse tema foi objetode palestra realizada na sede da CEPAL, em Santiago, em sua primeira visita aoexterior. Ainda em 1995, às vésperas da Cúpula de Halifax do G-7, o Presidentedirigiu cartas a todos os participantes, com a mesma mensagem. Desde então, otema tem estado invariavelmente na agenda dos encontros internacionais doPresidente, do Ministro Lampreia e das autoridades da área econômica.

Está claro, portanto, que sempre estivemos atentos aos riscos da volatilidadedos capitais de curto prazo, mesmo nos momentos em que a situação do balançode pagamentos não indicava a iminência de riscos. Não se trata, em outras palavras,de uma “prioridade de ocasião”, motivada pelas dificuldades que levaram à mudançada política cambial do país e à perda em poucos meses de cerca de US$ 40 bilhõesem reservas.

Após a moratória russa em agosto de 1998, o debate ampliou-se, e o mundopassou a discutir com sentido de prioridade a necessidade de uma “nova arquiteturafinanceira internacional”. Trata-se, evidentemente, de uma discussão muitocomplexa, que envolve itens como a prevenção (transparência; early warning;regulamentação dos sistemas financeiros nacionais) ou o tratamento de crises(aumento dos recursos à disposição das instituições financeiras internacionais; linhade contingência do FMI; participação privada em esforços de resgate). Do pontode vista diplomático, a preocupação essencial do Itamaraty diz respeito aoentendimento de que o Brasil deve necessariamente ter assento nos foros em queo tema da “nova arquitetura financeira internacional” seja discutido.13

Ressalte-se que as posições do Presidente Fernando Henrique Cardosoem favor de uma maior cooperação internacional para o controle dos capitaisvoláteis ou o entendimento brasileiro de que se deve incentivar a discussão dereformas no sistema financeiro internacional não refletem qualquer tipo deinsatisfação quanto à forma com que a comunidade internacional reagiu àsdificuldades de balanço de pagamentos do Brasil a partir do segundo semestre de1998. O governo brasileiro tem bem presente o empenho dos governos dos paísesdesenvolvidos (EUA à frente) e dos organismos financeiros internacionais paraapoiar o país no momento necessário, como bem o demonstra a montagem do“pacote” de empréstimos no valor de US$ 41,5 bilhões.

(2) Protecionismo dos países desenvolvidos

Se, em temas financeiros, o Brasil tem motivos para expressarreconhecimento pelo apoio externo que tem recebido, no campo comercial temos

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sérias razões de insatisfação. O Brasil vem sendo duramente penalizado pelaspráticas protecionistas do mundo industrializado. Em recente estudo, o conhecidopesquisador norte-americano Gary Hufbauer estimou que o Brasil poderia exportarUS$ 6 bilhões a mais por ano para os Estados Unidos na ausência do arsenal demedidas protecionistas contra produtos como o suco de laranja, açúcar e álcool,fumo ou siderúrgicos, entre outros.14

Na União Européia, as barreiras são ainda maiores. De acordo com estudoda economista Lia Valls Pereira, do IBRE/FGV, o PIB brasileiro teria um incrementoanual de 2,08 e 5,05%, respectivamente, na hipótese de conclusão de acordos delivre comércio com os EUA ou com a União Européia.15 Ainda que, à primeiravista, tal conclusão possa ser interpretada como recomendação de maior prioridadeà aproximação com a UE, fica implícita a mensagem de que as barreiras comerciaiseuropéias impõem ao Brasil prejuízos superiores.

A diplomacia brasileira tem reforçado, nos últimos anos, sua atuaçãotradicional contra as barreiras protecionistas e as práticas desleais de comérciodos países desenvolvidos.16 Recentemente, tiveram grande repercussão asobservações do Presidente Fernando Henrique Cardoso no Fórum-EmpresarialMERCOSUL-Europa (Rio de Janeiro, 21 e 22 de fevereiro) sobre os efeitosnegativos da Política Agrícola Comunitária para países como o Brasil.17 Essamesma mensagem esteve no centro das conversações mantidas com os Chefesde Governo da Alemanha, de Portugal e do Reino Unido, por ocasião da primeiraviagem do Presidente ao exterior em seu segundo mandato, em abril.18 Em maio,o tema esteve presente na agenda do encontro nos Estados Unidos com o PresidenteBill Clinton. Também neste primeiro semestre de 1999, o Ministro Luiz FelipeLampreia tem estado à frente de negociações (ainda em curso) com os EstadosUnidos a fim de procurar limitar os danos de medidas protecionistas contra produtossiderúrgicos brasileiros.

Esses exemplos são mencionados a título meramente ilustrativo. Comoregra geral, pode-se dizer que o tema do protecionismo é invariavelmente parte daagenda dos encontros entre o Brasil e seus principais parceiros.

Em determinadas ocasiões, contudo, a opinião pública nacional temdemonstrado insatisfação com os resultados concretos das ações da diplomacianacional contra o protecionismo dos países desenvolvidos.19 São recorrentes, apenaspara citar um exemplo, as críticas aos resultados da negociação agrícola na RodadaUruguai do GATT. É necessário considerar, contudo, que seria irrealista esperarque através da ação diplomática o Brasil e os outros países em desenvolvimentopudessem atingir plenamente todos os seus objetivos em termos de acesso aosmercados dos países desenvolvidos. O que está em jogo, nesse caso, é a durarealidade dos interesses concretos de poderosos lobbies nos Estados Unidos, naEuropa ou no Japão, com grande capacidade de influência sobre os respectivossistemas políticos internos.

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Assim, por exemplo, para voltar ao tema dos resultados da Rodada Uruguaino campo da agricultura, é evidente que não obtivemos o que desejávamos – ou oque seria objetivamente justo, na medida em que se possa usar essa palavra nocampo das negociações econômicas internacionais. Mesmo assim, o simples fato deque a agricultura tenha sido pela primeira vez incluída nas disciplinas do comérciointernacional já representou, por si só, um avanço. Ademais, logrou-se obtercompromisso de retomada, justamente agora em 1999, de negociações para aprofundaros compromissos de liberalização do comércio internacional de produtos agrícolas.

Deve-se entender que as negociações internacionais são como um jogo dexadrez. Os ganhos são paulatinos, e não excluem a necessidade de sacrifíciostáticos. Nesse jogo, não há espaço para voluntarismos ou pretensões maximalistas– especialmente no caso de países que, como o Brasil, não dispõem de “excedentesde poder”, para usar a expressão do ex-Chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro.20

(3) Integração regional: ALADI e MERCOSUL

Os benefícios da integração regional para o Brasil constituem, em todos ostempos, uma das mais importantes contribuições da diplomacia nacional para odesenvolvimento do país. Em momentos em que havia, na melhor das hipóteses,cetismo ou desinteresse quanto a esses temas (por parte de outros órgãos doGoverno ou do próprio empresariado nacional), o Itamaraty esteve à frente dasnegociações no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI,que, em 1980, substituiu a Associação Latino-Americana de Livre Comércio), doprocesso de integração bilateral iniciado com a Argentina em 1985 (quando osPresidentes José Sarney e Raúl Alfonsín assinaram a Ata de Iguaçu) e tambémdas negociações do MERCOSUL (que estendeu em 1991 ao Paraguai e ao Uruguaio processo de integração entre Brasil e Argentina).

Hoje, o conjunto dos países da ALADI representa o principal mercadopara as exportações nacionais de produtos manufaturados (42% do total em 1997,sendo que apenas o MERCOSUL respondia por 28%, percentuais bem acima dosdos Estados Unidos – 21% – ou dos da União Européia – 16%). Desde 1992, aArgentina é o segundo mais importante mercado para as exportações nacionais.Os países da região vão-se tornando importantes supridores de energia ao Brasil(petróleo da Argentina e da Venezuela; gás da Bolívia e da Argentina; eletricidadeda Venezuela, e assim por diante), em um processo que cria uma teia de interessesrecíprocos de caráter estratégico, e que representa garantia de aprofundamentoda integração na América do Sul.

O Brasil tem em 1999 uma agenda particularmente densa no campo daintegração regional. O MERCOSUL vem passando, neste primeiro semestre, pelomomento mais difícil desde sua criação, pela coincidência no tempo de uma sériede fatores:

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— esgotou-se a etapa de ganhos fáceis com a integração, característicosda fase inicial de expansão de comércio em decorrência da desgravação tarifáriaautomática. Após crescer ininterruptamente a taxas aceleradas entre 1991-97, ototal do comércio intra-zona apresentou ligeiro declínio em 1998, de cerca de 0,5%,e deverá sofrer queda importante no ano em curso;

— no atual estágio da integração, a agenda de negociações passa a seconcentrar em temas mais complexos, ligados à consolidação e ao aprofundamentoda União Aduaneira (regime automotivo regional, medidas comuns de defesacomercial extra-zona, defesa da concorrência, harmonização de regulamentostécnicos e sanitários, defesa do consumidor ou, ainda, a abertura dos mercados deserviços e de compras governamentais);

— pela primeira vez desde a assinatura do Tratado de Assunção, ambasas principais economias do bloco – Brasil e Argentina – passam por um período deretração, o que diminui os espaços de manobra dos negociadores e faz aumentaras pressões protecionistas dos setores que se sentem prejudicados pela integração;

— o chamado Regime de Adequação, que vigorou no período 1995-1998,e que havia permitido prolongar por tempo limitado, no comércio intra-zona, aproteção tarifária a setores sensíveis, deslocou justamente para o início de 1999 oimpacto da carga de sacrifícios da integração na Argentina. O Brasil, de sua parte,havia optado por incluir poucos produtos em suas listas de adequação, de modoque os impactos da liberalização comercial intra-zona já haviam sido praticamenteabsorvidos por inteiro desde 1995.

Nesse período difícil, o Governo brasileiro e o Itamaraty continuarão adedicar às negociações do MERCOSUL, por todas as razões, o máximo sentidode prioridade, com o propósito de manter as conquistas da integração sub-regionale de preparar as bases para novos avanços em momento oportuno. Foi com esseespírito que o Presidente Fernando Henrique Cardoso manteve em fevereiroencontros com os Presidentes da Argentina, Paraguai e Uruguai, e que osChanceleres do Brasil e da Argentina se reuniram em Brasília em abril. A diplomacianacional trabalhará com esse mesmo espírito na preparação das reuniões de cúpulaa serem realizadas em junho (Paraguai) e em dezembro (Uruguai).

O Brasil espera concluir novos acordos de preferências tarifárias com aColômbia, Equador, Peru e Venezuela, e com isso lançar as bases para um futuroacordo de livre comércio entre o MERCOSUL e a Comunidade Andina. Arealização desse objetivo é de grande prioridade para a diplomacia brasileira, nãoapenas por seus efeitos mutuamente benéficos para os países da região, mas,especialmente, por suas conseqüências em termos de fortalecimento da capacidadede atuação dos países da América do Sul em negociações internacionais de especialrelevância para todos (ALCA, UE, OMC).

O Brasil está convencido de que, ao incentivar a conformação de umagrande área de prosperidade compartilhada na América do Sul, está contribuindo

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para criar, finalmente, as condições necessárias para que nossa região, como umtodo, assuma um papel relevante no cenário mundial.

Também com o México espera o Brasil negociar novo acordo depreferências tarifárias. Os Presidentes Fernando Henrique Cardoso e ErnestoZedillo mantiveram conversações a esse respeito por ocasião da visita ao Brasil doChefe de Estado mexicano em abril.

(4) A ALCA e o debate sobre a abertura comercial

Em dezembro de 1994, representado pelo então Presidente Itamar Franco– que se fez acompanhar pelo Presidente-eleito Fernando Henrique Cardoso –, oBrasil participou da Cúpula das Américas em Miami, na qual se aprovou ocompromisso de formação da ALCA até 2005.

Prevalecia naquele momento, no Brasil, uma visão favorável à aceleraçãode entendimentos sobre liberalização comercial (“choque” de concorrência paraos produtores nacionais; modernização da economia; abastecimento da demandaadicional criada pelo Plano Real; controle da inflação). Em um ambiente deabundância de capitais nos mercados financeiros internacionais, não havia maiorpreocupação com a perspectiva de aumento das importações e de reversão doselevados superávits comerciais que se registravam desde o início dos anos oitenta.21

Essa visão teve, naturalmente, de adaptar-se às transformações no cenárioeconômico mundial a partir de 1995. As sucessivas crises financeiras internacionaisrestringiram as condições de acesso a créditos externos. A ALCA tornou-se oepicentro dos debates no Brasil sobre o ritmo adequado para a abertura comercial.Em palestra na Escola Superior de Guerra, em 3/7/96, o Ministro Luiz FelipeLampreia já advertia que “queremos evitar uma exposição precoce e descontroladada economia brasileira a um segundo choque de abertura competitiva ao exterior –e a economias muito mais produtivas do que a nossa, como a canadense e a norte-americana, antes de que se consolidem as adaptações e aperfeiçoamentos impostospelo primeiro choque. Afinal, de 1990 para cá, fizemos uma ampla abertura comercialem três níveis – unilateral; regional, no âmbito do MERCOSUL; e internacional,no âmbito dos acordos da Organização Mundial do Comércio”.22

A reunião de Vice-Ministros da ALCA realizada no Recife em fevereirode 1997 pode ser vista como o momento a partir do qual as autoridades brasileiraspassaram a expor, de forma sistemática e com grande visibilidade para a opiniãopública, essa nova visão sobre a integração hemisférica e a abertura comercial.

As novas condições não alteraram o compromisso brasileiro com aformação da ALCA. Os entendimentos em nível hemisférico podem ser instrumentovalioso para superar obstáculos no acesso ao mercado norte-americano. Assim, oBrasil participou de forma ativa dos entendimentos que levaram ao lançamento

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das negociações para formação da ALCA, aprovado pela II Cúpula das Américas,em Santiago, em maio de 1998.

A diplomacia nacional tem atuado de maneira muito firme na defesa dosinteresses do país nessa negociação. Em editorial do dia 12/8/98, O Estado deSão Paulo registrou que “o Itamaraty vem operando com eficiência na discussãoda Área de Livre Comércio das Américas ...”. O ritmo de criação da futura áreahemisférica deve necessariamente ser compatível com a capacidade de adaptaçãoda economia nacional (em especial dos setores industriais). O país não fará quaisquerconcessões sem obter, em troca, compromissos concretos de desmantelamentodas barreiras protecionistas norte-americanas.23

Em novembro, em Toronto, o Ministro Luiz Felipe Lampreia estará presentena próxima Reunião dos Ministros Responsáveis por Comércio das Américas. OItamaraty continuará a participar desse processo com a mais plena consciência daresponsabilidade que o tema lhe impõe, por suas profundas implicações políticas,econômicas e sociais para o país. Em seu discurso na III Reunião de MinistrosResponsáveis por Comércio da ALCA, em Belo Horizonte, em maio de 1997, oMinistro Lampreia registrara que “estamos nos engajando no que será possivelmentea maior iniciativa de diplomacia comercial da maioria dos nossos países nos próximosanos”.

(5) América Latina e Caribe-União Européia; MERCOSUL-UE

Nos dias 28 e 29 de junho, teremos o privilégio de sediar a primeira cúpulaentre Chefes de Estado e de Governo da América Latina-Caribe e da UniãoEuropéia. Trata-se de uma ocasião de grande caráter simbólico, que reafirma ospropósitos de aproximação entre as duas regiões.

A diplomacia brasileira tem trabalhado com muito empenho para que ocorra,à margem da cúpula, o lançamento de negociações entre o MERCOSUL e a UEcom vistas à formação de uma área de livre comércio entre os dois agrupamentos,sem exclusão prévia de grupos de produtos. Essa questão esteve no centro dasconversações que o Presidente Fernando Henrique Cardoso manteve com osChefes de Governo da Alemanha, Portugal e Reino Unido, em sua viagem de abrilúltimo à Europa.24 No encerramento da redação deste texto, não é possível preverse teremos êxito nesse propósito. As preocupações de determinados paíseseuropeus em relação à liberalização do comércio de produtos agrícolas continua arepresentar um importante obstáculo. O MERCOSUL, de sua parte, não poderiaaceitar o início de negociações com a exclusão dos produtos agropecuários, nosquais temos grande capacidade de competição.

O Brasil tem reiterado aos parceiros europeus, nos mais altos níveis, nossointeresse estratégico em manter um mínimo de paralelismo nas negociações sobreliberalização comercial na ALCA e com a UE. O Brasil não deseja vincular-se de

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forma preferencial a um único bloco comercial, por razões político-estratégicas eeconômico-comerciais. Consideramos prioritária a manutenção do padrão históricode equilíbrio relativo que se observa na repartição geográfica de nossos fluxos decomércio internacional e de IED. Esse padrão contribui para a manutenção daautonomia de nossa política externa e para que o Brasil disponha de maior espaçode manobra nas negociações econômicas internacionais.

(6) Negociações comerciais multilaterais (“Rodada do Milênio”)

Ao longo dos anos, o Itamaraty vem procurando desenvolver um trabalhode mobilização da sociedade nacional em torno da importância de que o país participede forma muito ativa das negociações comerciais multilaterais no âmbito do GATT/OMC. Trata-se de foro em que se toma decisões com profundas implicações parao desenvolvimento nacional.25

Em 1999, as negociações comerciais multilaterais continuam a exigir grandeesforço de articulação externa e de mobilização interna por parte do Itamaraty.Até o final do ano, conforme compromisso que consta dos entendimentos finais daRodada Uruguai, deverão ser retomadas as negociações para liberalização docomércio agrícola. No entendimento do Governo brasileiro, esse é o mais importanteponto da chamada built-in agenda da Rodada Uruguai.

O Itamaraty empregará toda sua capacidade de negociação externa nadefesa dos interesses do agribusiness nacional. Para esse fim, estamos, desde já,trabalhando em estreita coordenação com os membros do Grupo de Cairns e comoutros países igualmente empenhados na liberalização do comércio agrícolainternacional. Evidentemente, as negociações serão, mais uma vez, muito duras,como já o foram na Rodada Uruguai, mas há fatores objetivos que permitemantecipar progressos na direção desejada. A UE vê-se diante de dificuldadesorçamentárias crescentes – que se agravarão com a perspectiva de admissão denovos membros – para manter seus dispendiosos programas de apoio à produçãoe à exportação, que consomem cerca da metade do orçamento comunitário. OsEUA, de sua parte, parecem agora mais determinados do que na Rodada Uruguaiem obter ganhos sensíveis na liberalização dos mercados agrícolas internacionais.

Em Seattle, em novembro próximo, será realizada nova ConferênciaMinisterial dos países membros da OMC, a terceira desde a entrada emfuncionamento da organização em 1995. Tudo indica que deverá ser aprovado, naocasião, o lançamento de uma nova rodada de negociações globais (“Rodada doMilênio”). Em seus contatos com os chamados major players, a diplomacia brasileiratem apoiado essa perspectiva, pois a dinâmica de uma “rodada” é mais favorávelaos interesses dos países de menor peso relativo do que a dinâmica de negociaçõessetoriais, nas quais os países mais fortes têm maior espaço de manobra para escolheros temas e ditar o ritmo dos entendimentos. Ao mesmo tempo, temos dito que o

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25O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

Brasil condicionará quaisquer compromissos de liberalização econômico-comerciala uma contrapartida de ganhos muito palpáveis em questões de nosso interesse,especialmente na área agrícola.

Diante da possibilidade de lançamento da “Rodada do Milênio”, encontra-se o Itamaraty mais uma vez empenhado em promover a necessária coordenaçãointerna para a definição dos interesses nacionais. O Governo Federal em seuconjunto, e o Ministério em particular, manterão o padrão de atuação, consagradona ALCA, de estreita sintonia e entendimento entre os negociadores oficiais e asociedade nacional. Esse padrão tem permitido ao Brasil falar com autoridaderedobrada nos foros negociadores de que participamos.

(7) Imagem

A capacidade de um país de influir em negociações internacionais, venderseus produtos, atrair investimentos, receber créditos, participar de programasconjuntos nas áreas da ciência e da tecnologia, obter ganhos com o turismo, enfim,a capacidade de promover seus interesses internacionais depende não apenas defatores objetivos, mas também da sua imagem externa. Por isso, quando o Itamaratyse empenha, continuamente, em mostrar e explicar a realidade brasileira aos nossosinterlocutores e à opinião pública internacional o que está em jogo sãodesdobramentos que irão ter reflexos concretos no bem-estar da população. Oassunto não é de interesse apenas para o Governo do momento, mas sim para opaís e para a sociedade.

Em recente entrevista, o Ministro Luiz Felipe Lampreia definiu os espaçospara a atuação do Itamaraty nessa matéria: “A imagem é sempre em função deuma realidade. No regime militar se falava muito em melhorar a imagem, masninguém tapa o sol com a peneira, ninguém vende uma coisa que não existe. Vocêsó melhora uma imagem se você melhorar uma realidade” (Correio Braziliense,“Exportar é a melhor aposta”, 14/3/99).

O Itamaraty deve trabalhar, portanto, com a meta de que a imagem dopaís deva corresponder à realidade nacional. Nossa tarefa consiste em informar,esclarecer, apresentar dados. Infelizmente, por toda uma série de fatores, o queainda se observa é que a imagem do Brasil é pior do que sua realidade. Não setrata de procurar negar a gravidade de nossos problemas econômicos e sociais,mas parece claro para o profissional da diplomacia – acostumado ao contato diáriocom a mídia e com ONGs internacionais – que o Brasil real é melhor do que suaimagem no exterior.

Procurar entender os motivos dessa situação iria além dos limites destetexto. Fica a impressão, contudo, de que nossos problemas de imagem têm muito aver com a psicologia nacional, que tende a ecoar com muita força os julgamentosnegativos sobre o próprio país, ao mesmo tempo em que coloca em segundo plano

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nossas realizações.26 Em boa medida, essa é uma atitude salutar, pois mantém oGoverno e a sociedade permanentemente mobilizados em torno da necessidade deencaminhar soluções para os dramas sociais do país e para tantos outros aspectosnegativos de nossa realidade. Ao mesmo tempo, como argumentado acima, essapostura pode ser também prejudicial, e, por isso, o Itamaraty trabalha para quehaja maior sintonia entre imagem e realidade.

As viagens presidenciais, além de sua importância intrínseca, constituemparte essencial dos esforços do Itamaraty no campo da imagem. Nessas ocasiões,o Presidente Fernando Henrique Cardoso invariavelmente mantém contatos coma comunidade empresarial, meios acadêmicos, ONGs e outros grupos relevantesdos países visitados. Em 1999, o Presidente já esteve na Alemanha, em Portugal,no Reino Unido e nos Estados Unidos, dando continuidade à sua intensa agenda deenvolvimento pessoal na promoção dos interesses do Brasil no exterior.27

* * *

Como se vê, essa simples enumeração seletiva e necessariamente muitoincompleta permite ao leitor uma visão bastante ampla da densidade da agendadiplomática brasileira em 1999 e de sua relevância para o processo dedesenvolvimento nacional. O Itamaraty deve ainda ocupar-se de toda uma sériede vários temas não menos importantes, a exemplo, entre outros, da participaçãodo país – como membro não-permanente eleito para o biênio 98/99 – no Conselhode Segurança da ONU, no qual estão em pauta temas como Iraque, Angola ouTimor Leste; da definição de nossas posições em situações de crise como a doKosovo; da condução de nossas relações com os vizinhos sul-americanos e demaisparceiros mais importantes do país; da atuação nos vários foros internacionais quetratam dos temas do meio ambiente, direitos humanos, não-proliferação ounarcotráfico; da promoção comercial no exterior, em apoio aos exportadoresbrasileiros; da assistência consular a brasileiros no exterior, e assim por diante.

O Brasil está mais do que nunca interessado em acentuar seus vínculoscom os países com os quais compartilha afinidades, interesses e, em especial,grandes projetos estratégicos, como é o caso especial do MERCOSUL. Para utilizaras expressões do Barão do Rio Branco, “por aspiração de sua cultura, pelo prestígiode sua grandeza territorial e pela força de sua gente, o Brasil considera podercontribuir positivamente para o encaminhamento das grandes questõesinternacionais”. Ao cumprir com essa tarefa, o Itamaraty estará dando suacontribuição para o desenvolvimento nacional.

Maio de 1999

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27O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

Notas

1 Ver Carlos Eduardo LINS DA SILVA, “Brasil cresce no plano externo”, Folha de São Paulo, 3/2/99. Essa matéria reflete, com grande capacidade de síntese, a riqueza e a diversidade da agendaexterna brasileira, e o aumento da projeção externa do país. Ver também TIME, “The odd manout is back in”, 20/10/97, p.36; Financial Times, “Brazil’s coming of age”, 28/10/97, p.19.

2 “ (...) quando Euclides da Cunha, na passagem para o século XX, ou, mais recentemente,Oliveira Viana, no Brasil dos anos 40, falavam do sertão, da marginalidade, do atraso, era paraafirmar suas próprias versões da civilização, do progresso, da modernidade. Em outras palavras:eles afirmavam o futuro” (Francisco WEFFORT; A América Errada, Qual democracia? SãoPaulo: Companhia das Letras, 1992).

3 O Estado de São Paulo, 26/8/98.4 Gazeta Mercantil, “Investimento direto financia déficit”, 24 a 26/4/99.5 VEJA, “O mais difícil foi feito”, 16/9/98. Em 1995, o Índice de Desenvolvimento Humano do

Brasil, que combina indicadores de educação, renda e expectativa de vida, foi de 0,809 em umaescala de 0 a 1. Em 1960, o IDH brasileiro era de 0,394 – equivalente ao que apresentam hojea Zâmbia e Bangladesh.

6 Samuel P. Huntington, “A superpotência solitária”, Foreign Affairs (edição brasileira – cadernoda Gazeta Mercantil, n.º 30, março de 1999).

7 O Estado de São Paulo, “Problema brasileiro é fiscal, diz Greenspan”, 21/1/99.8 “... não devemos, nem podemos, alimentar visões de projeção global de nosso poderio político-

militar. As carências que enfrenta o povo brasileiro não permitem, de modo algum, a mobilizaçãodos enormes recursos necessários para dar lastro e credibilidade a um projeto dessa natureza,como em algum momento imaginaram os defensores da idéia do ‘Brasil-potência’” (Luiz FelipeLAMPREIA, Discurso na transmissão do cargo de Secretário-Geral das Relações Exteriores, 4/1/99).

9 “(Brazil is) one of the world’s most diverse societies in its fifth most-populous country. Its160 m citizens range from Amerindian forest-dwellers to academics and businessmen assophisticated as any in the world. It has areas much like parts of southern Europe, othersbarely distinguishable from (peaceable) parts of West Africa” (The Economist, “Brazil’s steadynerve”, 10/10/98, p.15).

10 O Estado de São Paulo, “FHC diz que EUA devem partilhar decisões”, 22/4/99, p. A4.11 A definição das prioridades da diplomacia brasileira em 1999 foi objeto de discurso pronunciado

pelo Ministro Luiz Felipe Lampreia no dia 4/1/99, acima referido. Ver, também, Luiz FelipeLAMPREIA, “Política externa em 1999”, O Estado de São Paulo, 26/2/99.

12 “A solução sistemática das questões fronteiriças empreendida no decênio da gestão do Barãodo Rio Branco (1902-12) e nos anos subseqüentes (...) cria as condições de possibilidade paradirigir crescentemente a política exterior para objetivos de cooperação e desenvolvimento.Consolidado o território, era preciso desenvolvê-lo” (Rubens RICUPERO, “A diplomacia dodesenvolvimento”, Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira. Brasília: MRE, 1989).

13 Ver Folha de São Paulo, “FHC propõe a Tony Blair a ampliação do G-7”, 20/4/99.14 Folha de São Paulo, “Para americano, EUA fazem Brasil perder US$ 6 bilhões”, 5/4/99. Para

a Confederação Nacional da Agricultura, haveria uma perda anual de US$ 5 bilhões provocadapelas barreiras dos EUA apenas contra produtos agrícolas (O Estado de São Paulo, “Barreirasimpedem vendas de US$ 5 bi para os EUA”, 2/9/98).

15 Gazeta Mercantil, “País lucra mais com UE do que com ALCA”, 2/5/97; O Estado de SãoPaulo, “Técnicos consideram Europa mais vantajosa”, 13/5/97.

16 Ver O Estado de São Paulo, “O protecionismo europeu e o Mercosul”, 23/2/99. Esse excelenteeditorial proporciona uma visão bastante ampla da atuação do Brasil em diversas frentes contrao protecionismo dos países industrializados. Ver, também, The Economist, “Latin America and

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Europe. Slowly, slowly”, 6/12/97, p.58: “Not often, in public at least, are state visits markedby plain speaking. But the European Union, its governments and its farmers got an earful — ifthey were listening — from Brazil’s President Fernando Henrique Cardoso in London thisweek. ... he had words of acid for the EU’s farm policy ...”.

17 “O Presidente Fernando Henrique Cardoso foi tão duro quanto poderia ser o país anfitrião, aoabrir o Fórum Empresarial Mercosul-União Européia: condenou em termos veementes oprotecionismo dado pelos países europeus à agricultura ...” (O Estado de São Paulo, “Oprotecionismo europeu e o Mercosul”, 23/2/99).

18 Ver Alberto TAMER, “Brasil não deve se iludir com mais promessas de abertura comercial”, OEstado de São Paulo, 18/4/99.

19 Ver, por exemplo: (1) O Globo, “Hora de cobrar”, 11/8/98; (2) Alberto TAMER, “Brasilprotesta, Europa ouve e até concorda, mas não muda nada”, O Estado de São Paulo, 28/2/99,p.B9; (3) Gazeta Mercantil, “Maior pressão contra o protecionismo”, 8/3/99.

20 Ver Luiz Felipe LAMPREIA, “Diplomacia, jogo duro”, Folha de São Paulo, 7/3/99; “Bananase aviões”, Gazeta Mercantil, 15/3/99.

21 Ver, a título de exemplo, entrevista do ex-Presidente do Banco Central, Gustavo Franco: Folhade São Paulo, “Déficit não é ‘esquisito’, afirma Franco”, 9/3/97, p.1-20).

22 Ver, também, declarações do Presidente Fernando Henrique Cardoso durante visita ao ReinoUnido em fevereiro de 1997: Jornal do Brasil, “FH põe freio na abertura da economia”, 10/2/97; Folha de São Paulo, “FH diz que Brasil ‘precipitou’ abertura”, 10/2/97.

23 Ver The Economist, “Rediscovering the Americas”, 17/5/97, p.16 (“Along the long route to freetrade, the Brazilians have vigorously challenged the American road map. You have interests,they say, so do we; you have to listen, just as we do”) ; “A new world”, 25/4/98, p. 37 (“Sincethe FTAA idea was born in 1994, the leading force — not always in that direction, and oftenchallenging the Americans — has been Brazil. ... it has vigorously pressed its view of how theFTAA haggling should proceed — and won much of its point”).

24 A imprensa nacional noticiou com grande destaque essa ofensiva diplomática. Ver, por exemplo:Folha de São Paulo, “Brasil cobra União Européia”, 15/4/99; Gazeta Mercantil, “Alemanhapromete ajuda contra barreiras”, 16/4/99; O Estado de São Paulo, “FHC dá ultimato paraUnião Européia negociar”, 17/4/99, p. A8; O Estado de São Paulo, “FHC ganha apoio de Blairpara zona de comércio”, 20/4/99, p. A4; Folha de São Paulo, “Blair apóia união de blocos”, 20/4/99 (“O governo brasileiro fechou ontem o círculo de apoio à concessão do chamado mandatonegociador para que a União Européia inicie efetivamente as negociações com o Mercosul paraa formação, a partir de 2005, de uma zona de livre comércio entre os blocos. Obteve aconcordância do primeiro-ministro britânico Tony Blair ... . Antes, os primeiros-ministrosGerhard Schroeder (Alemanha) e António Guterres (Portugal) haviam manifestado apoio”).

25 Em artigo de imprensa, o Ministro José Serra registrou, em relação à Rodada Uruguai, “osesforços do Itamaraty, que fez o possível para despertar, sem sucesso, nos sucessivos governosbrasileiros, a consciência da enorme importância do assunto” (José SERRA, “Começo docomeço”, Folha de São Paulo, 19/5/97).

26 Ver EXAME, “Estamos tão mal assim?”, 8/5/96 (a.29, n.10).27 Sobre a importância em geral das viagens presidenciais, ver Sebastião do REGO BARROS, “A

execução da política externa brasileira: um balanço dos últimos 4 anos”, Revista Brasileira dePolítica Internacional (a.41, n.º 2, 1998). A respeito do tema da imagem, caberia um registrofinal a respeito da forma correta com que órgãos da imprensa internacional como a The Economist,o Financial Times ou o Frankfurter Allgemeine Zeitung descrevem os fatos brasileiros. Essaspublicações são exemplo de jornalismo sério, no qual as críticas aos tantos aspectos negativosda realidade brasileira é feita de forma equilibrada, sem excluir referências ao que há de positivono país e ao que se procura fazer para melhorá-lo. Ver, por exemplo, The Economist, “A Surveyof Brazil. The disorders of progress”, 27/3/99.

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29O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

Resumo

Durante o primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, arenovação do sentimento de autoconfiança do país e o respeito da comunidadeinternacional favoreceram a política externa. Diante das dificuldades econômicasna virada de ano 1998-99, a diplomacia deve manter a visão do longo prazo. OBrasil continua a ser um “país que conta”, e que depende fundamentalmente de sipróprio para desenvolver-se. Mas é também preciso que melhorem as condiçõesexternas. O Brasil empenha-se em contribuir para os debates sobre transformaçõesna ordem internacional. A tarefa prioritária da diplomacia nacional é a de criaçãode condições externas tão favoráveis quanto possível para o desenvolvimento. Aagenda externa do país em 1999 – crise financeira internacional; protecionismodos países industrializados; integração regional (MERCOSUL, Comunidade Andina,México); ALCA; Cúpula América Latina e Caribe-Europa; negociações agrícolase “Rodada do Milênio” na OMC; imagem – tem conseqüências importantes parao processo de desenvolvimento nacional.

Abstract

The renewal of the country’s self-confidence and the earned respect fromthe international community were two important assets for the Brazilian diplomacyduring President Fernando Henrique Cardoso’s first term. Faced with the country’seconomic difficulties in the end of 1998 and beginning of 1999, diplomacy mustkeep in mind a long term view. Brazil will continue to be a “country that counts”,which fundamentally depends on itself to develop. But the improvement of externalconditions is also necessary. Brazil is willing to give its contribution to the discussionsabout changes in the international order. Brazilian foreign policy’s priority is thecreation of the utmost favourable external conditions for development. The foreignagenda of the country in 1999 – international financial crisis; industrialized countries’protectionism; regional integration (MERCOSUR, Andean Community, Mexico);FTAA; Latin America and the Caribbean-Europe Summit; agricultural negotiationsand the WTO “Millennium Round”; image – has important consequences for nationaldevelopment.

Palavras-chave: Brasil. Diplomacia. Política exterior.Key-words: Brazil. Diplomacy. Foreign policy.

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30 TÂNIA MARIA PECHIR GOMES MANZUR

Opinião pública e políticaexterna do Brasil do Império aJoão Goulart: um balançohistoriográfico

TÂNIA MARIA PECHIR GOMES MANZUR*

Desde que, nos anos cinqüenta, Renouvin acrescentou à história diplomáticanovos ingredientes para transformá-la em uma história das relações internacionais,a opinião pública vem-se tornando uma das forças profundas mais relevantes naanálise das relações entre diferentes países. Entretanto, parece não ter ainda tomadoforça a percepção de que o tema das relações exteriores interessa tanto à opiniãopública quanto esta afeta o processo decisório de políticas internacionais dos países.No Brasil, em especial, inexistem obras que destaquem a opinião como fatordeterminante das relações internacionais e, quando muito, alguns autores amencionam como parte de um contexto que releva, dentre outros fatores tidoscomo mais importantes, a ação da diplomacia, as decisões dos homens de Estado,o papel das relações econômico-financeiras, da ação militar, da geopolítica, ou atémesmo da psicologia coletiva, que em muito se aproxima da noção de opiniãopública, mas que é apenas um de seus aspectos. Isso não quer dizer, entretanto,que não haja uma relação de influências mútuas entre a política externa brasileirae a opinião pública, mas sim que não se auferiu objetivamente, até o presentemomento, a importância que uma representa para a outra.

Quando se trata de opinião pública, esbarra-se, freqüentemente, no seupróprio conceito. Na verdade, não se pretende com este estudo dissecar as váriaspossíveis acepções do conceito de opinião pública, mas sim estabelecer para omesmo um enfoque histórico-teórico: opinião pública é o conjunto das correntes depensamento expressas em um país em determinado período. Com isso, engloba aexpressão de grupos definidos politicamente (como, por exemplo, o Parlamento,ou os partidos políticos), economicamente (as elites, as camadas populares) esocialmente (os movimentos sociais, dentre os quais associações, grupos religiosos,militares), naquilo em que apresentem um consenso, uma unidade em torno de

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 30-61 [1999]* Doutoranda em História da Política Exterior do Brasil pela Universidade de Brasília

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OPINIÃO PÚBLICA E POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL DO IMPÉRIO A JOÃO GOULART ... 31

posições definidas. Muito relevante na construção desse conceito é também opapel da imprensa, que tanto espelha quanto induz a formação de opiniões etendências.

I. A opinião pública e a política externa do Império

Os temas internacionais começaram a ser abordados no Brasil quandoainda não havia uma diplomacia estritamente brasileira. Com a transferência dacorte portuguesa para a colônia, em 1808, despontaram as relações com um mundonão mais restrito apenas a Portugal. Várias questões da época despertavam ointeresse da população, dentre as quais pode-se citar a abertura dos portos e suasconseqüências para o comércio brasileiro, os privilégios ingleses, as pretensões deD. Carlota Joaquina ao governo do Prata. Além disso, o próprio fato de querepresentantes de outros países estivessem residindo no Brasil atraía a atenção desegmentos da população brasileira.

Ao final de 1810, manifestações de descontentamento ocorreram emrelação ao fato de os portugueses, temendo um possível enfraquecimento e perdado poder da família Bragança, aceitarem as imposições e privilégios ingleses noBrasil. Isso se refletia na queda do comércio interno e levantou vozes contrárias àmanutenção daqueles privilégios.

Após a volta de D. João VI a Portugal, em 1821, as cortes portuguesastentaram o restabelecimento do regime colonial. Entretanto, brasileiros e portuguesesresidentes no Brasil, tementes de perder as vantagens do período em que a corteaqui habitava, formaram uma corrente para pressionar o Príncipe Regente D.Pedro I a descumprir as ordens de Lisboa. E com o apoio da opinião públicaorganizaram-se manifestações contra as intenções portuguesas1 .

D. Pedro, de início fortemente influenciado pelos laços familiares etradicionais com Portugal, teve aos poucos seus posicionamentos face à políticaexterna revistos e amadurecidos em decorrência da participação cada vez maiorda opinião pública nas diversas causas internacionais. Um dos mais fortes indíciosdessa mudança nota-se na própria questão da independência política. Assim queassumiu a Regência, D. Pedro, absolutamente contrário à independência, poucoligado ao Brasil e determinado a partir assim que possível, chegava a afirmar quenão gostaria de “influir mais nada no Brasil”2 . No entanto, ao mesmo tempo,iniciava-se na opinião nacional a corrente pela independência e foi então que D.Pedro teve seus primeiros contatos com a força contra a qual, mais tarde, acreditarianão conseguir lutar. José Bonifácio liderava a campanha pela Independência comUnidade e angariou a esta causa a adesão da elite por ele encabeçada. A consciêncianacional foi amadurecendo e passou a defender aquele ideal, atrelado ao qualvinha a defesa da monarquia, pois a instauração de uma república representaria,na concepção da época, riscos à própria unidade do país. À medida que se tornava

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32 TÂNIA MARIA PECHIR GOMES MANZUR

mais forte o envolvimento da opinião nacional com o tema da independência, maispresente ele ficava nas considerações de D. Pedro. Este chegava a atribuir àopinião tal força que cogitava descumprir as ordens de seu pai sob a alegação deque o povo o obrigava a fazê-lo, e de que a força da opinião era uma “entidadeinflexível, dominadora, soberana”, com poderes de enfeitiçá-lo3 . Baseado em talsentimento, D. Pedro passou a usar sua autoridade a favor do povo brasileiro e ase rebelar contra o despotismo da metrópole. Atendendo às aspirações populares,proclamou o Fico, em janeiro de 1822, em resposta ao manifesto do povo carioca,que reunira oito mil assinaturas em favor da autonomia brasileira face à coroaportuguesa. A opinião pública insurgiu-se contra a política de conquista de Portugal,o que resultou na organização da resistência nacional para a guerra deindependência, contra todas as “imaginárias tentativas de ligação de qualquergênero”4 com aquele país. Isso representou apoio a D. Pedro I, já feito imperadorpela aclamação popular e demonstrou a importância do pensamento nacional paraa tomada de decisões do Príncipe Regente sobre temas internacionais.

Seguiu-se à independência a política voltada para a busca doreconhecimento da nova situação do Brasil, especialmente por Portugal, Inglaterra,países vizinhos da América e potências européias. Os negociadores doreconhecimento eram instruídos a passar uma imagem de independência irrevogávelporque fundada sobre os seguintes princípios: “a vontade popular, a aclamação dosoberano, os sacrifícios de gente e de fazenda experimentados”5 . Deveriam tambémagir de acordo com a opinião pública, “de tanta influência”6 naquelas circunstâncias.O sentimento e os interesses nacionais eram, portanto, de grande relevância nabusca do reconhecimento da independência brasileira.

Entretanto, o reconhecimento da Inglaterra não viria sem imposições. Deinício, manteve-se neutra, devido a seus interesses comerciais tanto no Brasil quantoem Portugal. Posteriormente, impôs o alto preço que o governo brasileiro deveriapagar. Além da manutenção da subserviência determinada pelo sistema dos tratadosnegociados por D. João VI, que cediam tantos privilégios à Inglaterra e prejudicavamsobremaneira a indústria nascente no Brasil, passou a exigir também a eliminaçãodo tráfico de escravos, o que nem o governo nem os brasileiros aprovavam. Aescravidão era percebida pelo imperador como que enraizada na organizaçãonacional e, sendo as pressões inglesas para a abolição do tráfico de escravos tãointensamente contrárias ao sentimento nacional, acabaram por suscitar uma revoltaquanto à ingerência da Inglaterra nos negócios do Império. O ressentimentodemonstrado pela opinião brasileira foi tal que, segundo Manchester, “as relaçõesamigáveis entre os dois países foram seriamente ameaçadas”7 . Entretanto, apesarda revolta contra a preeminência inglesa no Brasil, a Inglaterra sentia que lhe foraconcedido um poder de barganha, e continuou a pressionar o governo brasileirosobre assuntos de seu interesse, conseguindo que D. Pedro assinasse convençõese tratados que revalidavam as concessões e privilégios anteriores. Além disso, D.

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OPINIÃO PÚBLICA E POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL DO IMPÉRIO A JOÃO GOULART ... 33

Pedro concordou, em 1826, por imposição de Portugal e Inglaterra, em pagar doismilhões de libras esterlinas como parte do pagamento pelo reconhecimento, o queangariou para o imperador “as mais acres censuras”8 quanto às condições tãodesfavoráveis nas quais foi negociado o reconhecimento.

No mesmo ano de 1826, foi instaurada a Assembléia Geral Legislativabrasileira, com o intuito de debater a matéria política interna e externa do país, serum porta-voz do sentimento nacional e contribuir para o esclarecimento da opiniãopública sobre os temas políticos. Representou a maior expressão da opinião nacionalda época e instaurou um novo processo de elaboração e controle da política externa.O aperfeiçoamento do escopo de ação do Parlamento, que imediatamente após aIndependência encontrava-se alheio ao controle da política externa (centralizadanas mãos do Executivo), aconteceu em um momento de grande ebulição devida à“compra da Independência” e decorrente da existência de focos separatistas einsurreições, como acontecia na Cisplatina, no Rio Grande do Sul, em Pernambucoe na Bahia, os quais minavam o poder absoluto do imperador, que “não ia muitoalém do Rio, de São Paulo e de Minas”9 . O Parlamento foi, portanto, instauradoem um momento no qual a opinião nacional era, em grande parte, favorável a quese estabelecessem freios à monarquia absoluta; assim, teria surgido em decorrênciada vontade geral e soube refleti-la na elaboração da política externa. Ao que tudoindica, o Parlamento caracterizou-se como grupo de pressão, além de controladore formulador da lei1 0.

Por seus posicionamentos nacionalistas em defesa da independência e dasoberania do país, bem como pela representatividade de seus componentes,advindos de diversas camadas sociais, o Senado e a Câmara tornaram-se a forçapolítica de maior representatividade no país. Seu papel era definido como “expressãosuprema da opinião pública”1 1 e tinha por moto principal a defesa do interessenacional. Ao Parlamento cabia a discussão, elaboração, aceitação e controle dapolítica externa implementada pelo Executivo1 2. E foi tendo em vista o interessenacional e a percepção de que o Parlamento deveria funcionar como grupo depressão “dando força ao governo e evidenciando ao mundo a opinião do país”1 3

que, entre 1826 e 1827, tomou corpo dentro do mesmo a corrente antitratados, quelhe reivindicava o direito constitucional de aprovar ou rejeitar tratados de qualquernatureza. A negação ao sistema de tratados estabeleceu um consenso entre asduas casas e, mesmo com a formação dos partidos, o sentimento generalizado erade repulsa ante aquilo que se considerava tentativa de domínio europeu sobre oBrasil, de efeitos muito negativos sobre a economia e a sociedade brasileiras.

Outra questão sobre a qual houve consenso no Parlamento, movido pelosmesmos ideais nacionalistas que impulsionaram a corrente antitratados, foi aresistência contra o estabelecimento pela Santa Sé de bispados, assembléiasepiscopais e benefícios eclesiásticos no Brasil. Senado e Câmara consideravamtal atitude ingerência da Igreja Romana em assuntos de direito nacional; opunham-

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se ao domínio que aquela desejava instituir em todo o mundo. As questões ideológicasexistiam no embate entre liberalistas e protecionistas, mas a liberdade de pensamentopropiciava maior fulgor nos debates sobre a política externa, tendo-se constatadoque, nos temas internacionais, houve mais unidade que separação dentro doParlamento.

Sob a mesma ótica antidominação estrangeira era rechaçada a propostados Estados Unidos de implementar a navegação no Amazonas com monopólio docomércio e privilégio exclusivo por vinte e cinco anos para aquele país; alegavamos americanos que o Brasil ignorava aquela região. Consciente dos interessesyankees e, em contrapartida, do interesse nacional favorável à abertura doAmazonas em moldes menos desfavoráveis ao país1 4, o Parlamento foi palco dediscussões calorosas entre as correntes liberal e conservadora, que se estenderamaté muito tempo depois, só ficando decidido o impasse nos anos 1860, com aprevalência da corrente liberal.

Além da defesa da soberania, outros princípios foram definidos peloParlamento como orientadores da política externa brasileira, quais sejam: privilégioda força do direito e da razão, sendo a diplomacia o instrumento básico de resoluçãode problemas internacionais; não-intervenção; e, em caso de reação, o uso derepresálias comerciais e da “neutralidade ativa”, o que significava uma posiçãointermediária entre a passividade e a possível intervenção. A questão da Cisplatinafoi para o Parlamento uma das provas de fogo de suas orientações e princípios. Foiuma demonstração de que Senado e Câmara estavam atentos aos clamores dasociedade na formulação da política externa.

O domínio da Banda Oriental representaria o controle de uma áreaestratégica por onde se escoava a produção de toda a região da Cisplatina e tambémdos estancieiros brasileiros do Rio Grande. Sobre ela deitavam os olhos tambémEstados Unidos e Grã-Bretanha. A Cisplatina separou-se do Reino de Portugal,em 1825, e toda a população da Banda Oriental aderiu ao movimento, atingindofrontalmente os interesses dos estancieiros brasileiros na navegação do Rio daPrata. Isso fez com que D. Pedro I decidisse entrar em guerra contra as ProvínciasUnidas. Percebendo que estavam em jogo interesses brasileiros na matéria-primaque a Banda Oriental oferecia e que o domínio político da região representaria ocontrole sobre uma importante área estratégica, o Parlamento apoiou a guerra. Osparlamentares alegavam que a honra e a dignidade do Império, bem como asinstituições do regime constitucional deveriam ser resguardadas e, com isso, deuao Executivo a liberdade de que necessitava para levar a guerra adiante. Entretanto,em 1827, já estava impraticável para o Brasil continuar com a guerra. Ela eraimpopular no Brasil, já que a opinião nacional não a apoiava; o Parlamento, cientedisso e das perdas de recursos humanos e financeiros que o Brasil contabilizava,passou a pressionar pelo fim da guerra. Em 1828, D.Pedro I outorgou a

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independência à Banda Oriental e autorizou a assinatura da Convenção Preliminarde Paz.

Nesse ínterim, o Parlamento teve outra oportunidade de se mostrar a pardos rumos que tomava a opinião nacional e ciente da necessidade de instruí-la afim de evitar que a exaltação dos ânimos fugisse “ao controle da razão”1 5. Ocorreuque o Rio Grande do Sul separou-se do Brasil, constituindo-se na República doPiratini e, para tanto, colaboraram com os rebeldes forças argentinas e da BandaOriental; violências e arbitrariedades eram impostas aos brasileiros residentesnaquela região e isso despertou o consenso no Parlamento em apoiar a guerracontra Rosas e a intervenção no Prata. Não haveria uma base conceitual paraqualquer doutrina intervencionista mas, em face das circunstâncias1 6, osparlamentares viram-se impelidos a esclarecer a opinião nacional sobre as razõesde uma guerra naquela situação, ressalvando a posterior condenação a quaisqueroutras intervenções. Assim foi que, quando Rosas, apoiado por Oribe na BandaOriental, declarou a guerra, o governo imperial já se encontrava preparado paraela, tendo tido para isso o apoio da opinião nacional. Havendo o Brasil vencido aguerra, expandiu sua influência econômica e política na região do Prata.

Mais tarde, nos anos 1860, também muito relevante foi a atuação doParlamento na guerra contra o Paraguai. Este procurava uma união com o Uruguaipara ter saída mais fácil para o mar. Temendo que o Paraguai passasse a ter ocontrole daquele ponto estratégico, Brasil e Argentina uniram-se para derrubar ogoverno de Montevidéu, cuja animosidade contra o Brasil era crescente; o Paraguai,em resposta, restringiu a navegação nos rios Paraná e Paraguai, e isso foi tomadocomo uma provocação pela opinião pública brasileira, que passou a hostilizar aquelepaís. Até então, o Parlamento se considerava de certa forma alheio às decisões depolítica externa; alertando para a perplexidade da opinião nacional e para a falta desegurança na condução de tal política sem seu aval, insurge-se, juntamente com apopulação, a favor do intervencionismo, baseado no fato de Aguirre, governadordo Uruguai, tentar aliança militar com o Paraguai e continuar a perseguição aosbrasileiros e suas propriedades. Quando recrudesceu o sentimento de revolta e apercepção da necessidade de uma intervenção, a opinião nacional forneceu asbases para o Brasil entrar em guerra contra o Paraguai.

Ao final da guerra, tendo-a perdido o Paraguai, este recusa-se a pagar asdívidas dela advindas. A isso, o governo brasileiro reage passivamente e oParlamento cobra atitudes, respaldado pelo sentimento popular, o que acaba porminar ainda mais o poder do império.

Restavam as relações com a Argentina, foco de grande preocupação parao governo brasileiro e para a opinião nacional, temerosa de um conflito que,agravado, levaria a uma nova guerra, totalmente indesejada. Os temores eramfundados nos seguintes problemas: impasses causados pelo armamentismoargentino, dificuldades impostas pela Argentina para selar o tratado de paz, suas

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intenções territoriais sobre o Paraguai e a indefinição da fronteira com o Brasil.Tudo isso fazia com que as tensões não se amenizassem e que o Parlamentoestudasse com bastante cautela o envolvimento brasileiro em qualquer questãoque dissesse respeito à Argentina. Somente após estudos aprofundados das relaçõescom a Argentina e a declaração de Cotegipe afirmando ser remota a possibilidadede guerra é que se arrefeceram no Parlamento e na opinião nacional os temoresde guerra.

O Parlamento contribuiu para o amadurecimento da consciência públicaem matéria de relações internacionais, principalmente por seu insistenteacompanhamento e cobrança quanto às decisões do Executivo em favor dointeresse nacional, bem como pelo seu papel esclarecedor da opinião pública, naqualidade de seu representante, sobre temas relevantes da política externa.Incumbiu-se da tarefa de analisar o envolvimento brasileiro na questão fronteiriçaentre Argentina e Paraguai, defendendo a doutrina do uti possidetis que, por seucaráter social, angariou apoio da a opinião pública expressa também na imprensa eacabou prevalecendo em outras questões.

Outro caso ilustrou a atenção do Parlamento aos clamores populares: adisputa brasileira com a França pela Guiana. A população se revoltava contra oque dizia serem pretensões imperialistas francesas e passou a boicotar produtosdaquele país; com isso, pressionaram o comércio francês e conseguiram queprevalecessem os “clamores brasileiros no conflito guyanense”1 7. Este sentimentotambém era nutrido pelos parlamentares, que reagiram de forma a suplantar aslutas partidárias e “unificar a nação em torno da bandeira”1 8.

Quanto à questão de limites com a Guyana Inglesa, era mais uma daspendências com a Inglaterra contra a qual a opinião nacional e o Parlamento, porreflexo, insurgiam-se. Havia entre os parlamentares o temor de que populaçãobrasileira considerasse uma humilhação ao Brasil caso a Inglaterra mais uma vezimpusesse seus desígnios. E tantas foram as querelas em torno dessa questão queela somente foi resolvida ao final do Império, quando se abandonou o território àação dos habitantes da região1 9.

Contudo, o tema em relação ao qual o Parlamento mais nitidamente expressaa opinião pública do Império é o do tráfico de escravos. Era assunto do qualdependiam o comércio, a navegação, a agricultura, enfim, toda a vida nacional,mas que por ser convenção imposta pela Inglaterra, atingia os brios da naçãobrasileira. O Parlamento, ao mesmo tempo que percebia ser aquela uma questãosocial que, por razões humanitárias, fazia-se necessário abolir gradativamente, estavaciente do peso das classes dominantes contrárias à supressão do tráfico. Nenhumparlamentar ou partido atrevia-se a enfrentar o sentimento geral2 0. O sentimentode revolta da população brasileira era alimentado a cada vez que a Inglaterratentava impor a eliminação do comércio de escravos e a Câmara procurava resgatarda opinião pública a força, o apoio sobre o qual o governo brasileiro pudesse resistir

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“por todos os meios a seu alcance”2 1. Logicamente, aos poucos a própria situaçãomundial, aliada à intervenção esclarecedora do Parlamento, incumbiu-se de alterara opinião brasileira, e foi só então que o governo pôde implementar sua política dedissipar o contencioso com a Inglaterra e eliminar os obstáculos à imigração livre,cujo insucesso se atribuía ao fato de o Brasil “mostrar simpatia por escravos”2 2. Émister notar o grande peso da opinião nacional e da tradição do pensamentoparlamentar2 3 na retenção e posterior fortalecimento da posição do governo quantoao tráfico de escravos. Não fosse também o papel do Parlamento na qualidade deformador da opinião pública, a situação ter-se-ia configurado de maneira certamentediferente.

No que tange à imigração livre, o Parlamento e a opinião nacional deram orespaldo necessário para o governo tomar a si as rédeas do processo. Promoviam-se congressos agrícolas com o intuito de colher a opinião dos fazendeiros sobre apossibilidade de imigração chinesa, e os resultados mostravam que o consenso erafavorável à imigração de uma raça não “inferior à branca”, como seria o caso dositalianos ou alemães. Taunay era o maior porta-voz dessa idéia no Parlamento erepresentava grande parte da opinião nacional.

O tema sobre o qual menos houve consenso na Câmara e no Senado, eque levantou os mais ardentes embates entre protecionistas e liberais foi o daindustrialização. De início, predominou o protecionismo, tal como se observou coma tarifa Alves Branco, uma obra concebida no Parlamento, onde se verificava queo pensamento liberal ainda não era forte. Na medida em que a indústria nãocorrespondeu aos estímulos criados pelo protecionismo e não se criou umempresariado forte, a ansiedade por resultados imediatos foi mudando a opiniãoparlamentar e desenvolvendo a idéia de que, para realmente promover aindustrialização do país, seria necessário um liberalismo com doses de protecionismo,o que o Parlamento não soube realizar. Na defesa da industrialização que sedesenvolvia, “espíritos mais entusiastas e persistentes procuravam interessar aopinião pública e o governo numa proteção mais eficaz”2 4, mas outros agentes,dentre os quais o comércio importador, agiam disfarçadamente e acabaram porlevar ao triunfo o pensamento liberal. Além disso, havia o dilema que, ao mesmotempo que buscavam o incremento da industrialização, os parlamentares tinhamque defender os interesses da lavoura2 5, assim desviando-se do eixo da busca daindustrialização para o desenvolvimento. Os integrantes do Senado e da Câmaraestavam a par do que se passava na sociedade, mas no afã de atrair para si adefinição do interesse nacional, perdiam-se em relação a quem deveriamrepresentar.

É interessante notar que, em matéria de política externa, o governo imperialdeu muita atenção aos posicionamentos do Parlamento e da opinião nacional. Desdeo início do Império até o fim, os governantes procuraram respaldo no sentimentonacional, tentando “fugir à crítica de agir por si só (sic)”2 6, especialmente no que

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tange às relações internacionais. O Parlamento pôde defender um ideal de interessenacional e o levou para a elaboração da política externa, procurando estar o maisimune possível às pressões sócio-econômicas da época. Isso trouxe algunsresultados positivos, na medida em que se buscava a coerência e a definição deprincípios básicos para a atuação internacional do Brasil; entretanto, por outrolado, auferiu-se ao Parlamento, formado por magistrados e elites letradas, relativaautonomia para definir aquilo que concebia como interesse nacional, o querepresentou freqüentemente o espelho dos sentimentos de uns poucos setores dasociedade e, portanto, uma opinião caracterizada como a de todo um país, masrestrita ao grupo que a formulava.

II. A política externa na República

O rompimento com as diretrizes do Império. Monarquistas contrarepublicanos

A partir de quando se instaurou a República no Brasil, houve uma tentativade rompimento com todos os vestígios da monarquia, principalmente no que tangeà política externa. Para tanto, buscou-se melhores relações com os países vizinhosda América e com os Estados Unidos e uma desvinculação com a Europa. Criticava-se, não apenas no Parlamento, mas na sociedade como um todo, os muitos diplomatasbrasileiros que eram nascidos e criados no exterior, sem ao menos conhecer oBrasil, por vezes não falando nem o português; tampouco se aceitava a atuação daopinião monarquista brasileira, que defendia a volta da monarquia atribuindo àinstauração da república o descontrole que se verificava no país. Também criticadoseram os diplomatas que, afeitos ao antigo regime, contribuíam com a imprensaestrangeira ao fornecer material para artigos difamatórios ou, no mínimo,esquivavam-se de defender o país no exterior. A formação de uma imagem tãonegativa do Brasil na opinião pública européia e americana resultou na diminuiçãodos investimentos estrangeiros no Brasil, o que detonou as mais fortes reações noseio da sociedade brasileira2 7. O embate entre republicanos e monarquistas teve,assim, graves repercussões na formulação e controle da política externa brasileira.Toda a situação acima descrita resultou em uma perda de rumos e diretrizes dessamesma política no período inicial da república: nem se conseguia fugir totalmentedo processo anterior, nem instaurar algo absolutamente novo. Foi na medida emque se mudou a face da política interna, com realce para o predomínio das novaselites agrárias produtoras de café, que a política externa pôde ser definida commaior clareza.

Primeiramente, procurou-se o apoio da opinião pública para romper com a“relação de ódio aos vizinhos”, na tentativa de estabelecer um novo ideal pan-americano2 8. As relações com a Argentina e com toda a região do Prata deveriam

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ter, então, novas diretrizes. Tal era o empenho dos formuladores da política externabrasileira em unir os interesses nacionais e argentinos que, por vezes, pareciaminterpretar incorretamente aquele ideal. Um exemplo disso foi a negociação doterritório das Missões por Quintino Bocaiúva, com o Tratado de Montevidéu, em1890. Segundo este Tratado, a área em disputa deveria ser dividida, o que significavaum estreitamento na região Sul do Brasil, já bastante estreita em relação ao restodo país. Foi tal a exaltação da opinião pública e do Congresso brasileiros2 9, alegandoque ao novo governo faltavam os meios e a eficiência na resolução dos problemasinternacionais, que este rejeitou o tratado e, para resolver o impasse, recorreu àarbitragem. Desta forma, se o resultado fosse desfavorável ao Brasil, poderia serconsiderado parcial e, assim, a perda de território para a Argentina seria menoshumilhante que por simples concessão.

Outro episódio em que se buscou eliminar os vestígios do regime monárquicofoi quando da proposta de extinção pelo governo republicano da legação na SantaSé, em 1891. Em parte, foi responsável por essa atitude o positivismo queinfluenciava o pensamento republicano da época, aliado ao cientificismo, contrárioà religião. Entretanto, Floriano Peixoto, tomando por base a atuação de setores daopinião pública representados no Parlamento, não colocou a lei em vigor.Certamente, influíram em sua decisão as posições defendidas por congressistascomo Barbosa Lima e Duarte Badaró, segundo os quais não se deveria provocaros católicos com o radicalismo republicano; era necessário resguardar os interessesda grande maioria da população católica da República, a exigir que se mantivesseum representante brasileiro junto à Santa Sé, apenas ressalvando a importância deevitar “relações de dependência ou alianças proibidas pela Constituição”3 0.

Em consonância com a busca do continente americano, fazia-se necessáriauma aproximação com os Estados Unidos, país com o qual o Brasil sempre tiverarelações amistosas. No Parlamento, defendia-se a idéia de que tal aproximaçãoestaria de acordo com “o sentimento geral da opinião pública”3 1, mas não haviaunanimidade nacional sobre o tema. Já se alertava, por exemplo, à época, sobre oassim chamado “perigo americano”, afirmando que a dominação norte-americanaseria pior que a inglesa. Essa era a idéia que defendia o livro A Ilusão Americana,publicado logo após a proclamação da República, procurando incitar o espíritopúblico contra o imperialismo yankee3 2. A disparidade de manifestações seevidenciava na medida em que novos atos internacionais eram implementados.Prevaleceu a opinião contrária ao estreitamento de relações com os Estados Unidosquando se firmou o convênio comercial conhecido como tratado Blaine – Salvadorde Mendonça, segundo o qual estabeleciam-se preferências tarifárias em ambosos países. Uma lista de produtos americanos teria tratamento alfandegáriopreferencial no Brasil, ao passo que o café, o couro e o açúcar brasileiros teriamvantagens alfandegárias nos Estados Unidos. Entretanto, não havia cláusula deexclusividade para o açúcar brasileiro, e quando os Estados Unidos firmaram um

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acordo com a Espanha permitindo a livre entrada do açúcar antilhano no mercadoamericano, houve reação muito forte da opinião brasileira3 3, principalmente dosmonarquistas. Alegava-se que outras áreas produtoras estavam tendo as mesmasvantagens que o Brasil, e que tais vantagens seriam relativas, na medida em que ocafé, por exemplo, desde 1873, tinha livre entrada nos Estados Unidos, alegadamentenão para atender aos interesses do Brasil, mas sim, do mercado interno norte-americano. Havia, entretanto, aqueles que apoiavam o incremento das relaçõescom os Estados Unidos, principalmente após este participar da Revolta da Armada.Este movimento, ocorrido em 1893, inicialmente, referiu-se apenas à indignaçãoda Marinha contra a predominância do exército republicano no governo do país,mas adquiriu, com o tempo, cunho monarquista. Devido ao fato de o Brasil estarem convulsão generalizada, com focos de tensão no Nordeste e no Sul, além deencontrar-se em péssima situação financeira instaurada depois da reforma de RuiBarbosa, Floriano Peixoto contou com as forças estrangeiras ancoradas no Rio deJaneiro, especialmente a americana, para debelar a Revolta da Armada. Com isso,foi vitorioso e fortaleceu seu governo. Tal fato não ocorreu sem condenações,especialmente daqueles que viam na intervenção americana a sujeição do Brasilao imperialismo dos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo reforçou a opiniãodaqueles que queriam uma maior aproximação. Dentre esses estavam as novaselites que defendiam o fomento da produção nacional industrial, agropecuária eextrativa3 4, para o que seria necessário defender mercados para os produtosbrasileiros, sendo os Estados Unidos o maior deles.

Nota-se com relação à política externa do início da República que oParlamento foi gradativamente perdendo terreno em sua formulação. Exemplodisso ocorreu quando, finda a Revolta da Armada, alguns revoltosos, dentre eles olíder Saldanha da Gama, refugiaram-se em um barco da esquadra portuguesa e,apesar das solicitações do governo brasileiro para que fossem devolvidos, rumarampara o Uruguai, de onde se embrenharam pelo Sul do Brasil, reforçando as agitaçõesdaquela região. O fato de o barco português não ter atendido aos apelos do governobrasileiro e devolvido os revoltosos culminou com o rompimento de relações entreBrasil e Portugal, mas o Parlamento ficou praticamente alheio a tal fato, tendohavido pouca repercussão do mesmo nas duas casas. Outro exemplo da fracaatuação do Parlamento quanto à política internacional do Brasil no período se deuno caso das relações com a Argentina. Permaneciam as desconfianças mútuasentre os dois países, mas toda e qualquer resolução quanto a convênios e tratadosera levada no nível da diplomacia, sem que se levasse em conta a opinião nacionalexpressa na imprensa ou no Parlamento3 5. Pode-se dizer que o Parlamento setornara afeito a apoiar as decisões do Executivo e o caso mais ilustrativo disso foio que ocorreu no Brasil face ao armamentismo argentino. A Argentina reforçavae reorganizava suas forças bélicas, o Chile armava-se para fazer frente a taisforças e o Brasil se encontrava debilitado em armamentos devido às baixas

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decorrentes da Revolta da Armada e das várias outras revoltas em curso no país.Com tudo isso, a imprensa brasileira temia que algum governante Argentino maisexaltado, cônscio da fragilidade bélica dos países da América do Sul, pudessequerer firmar a hegemonia argentina na região. Os presidentes Campos Sales eRoca, na tentativa de apaziguar o conflito latente, entabularam conversações quetiveram boa repercussão nos dois países. Mas a desconfiança mútua entre ospovos argentino e brasileiro permanecia, e o Parlamento se tornava cada vez maisalheio à política externa. Os parlamentares não mais decidiam, apenas algumaspoucas vezes a questionavam, como faziam aqueles que se insurgiam quanto à suadesvinculação com o Congresso. Muitas outras vezes, apenas apoiavam as decisõesdo Executivo reforçadas pela “política dos governadores”3 6.

Outra importante questão do período inicial da República foi a imigração.Fazia-se necessário incrementá-la para satisfazer às demandas da economia agrícolabrasileira. O governo, aliado aos plantadores de café, agiu em favor daregulamentação daquela que seria a única alternativa de mão-de-obra para alavoura cafeeira. Os parlamentares limitavam-se a legislar sobre a supressão oumanutenção de legações que satisfizessem aos interesses das elites agrárias, semcontudo discutir a essência, a formulação e o controle da política externa. Naverdade, o interesse nacional passou a ser confundido no Parlamento com osinteresses do café3 7. Portanto, pode-se dizer que quem passou a representar aopinião pública no período imediatamente posterior à proclamação da Repúblicaeram as elites detentoras do poder, tendo elas influído decisivamente na políticaexterna.

Momento de participação decisiva da opinião pública foi o da ocupaçãodas ilhas de Trindade e Martim Vaz pela Inglaterra (1895/1896). Situação e oposiçãouniram-se no Congresso contra a referida ocupação, considerada como uma afrontanacional. A Inglaterra propôs que se procedesse ao arbitramento, mas o governobrasileiro foi contrário, e alegou estar agindo “consoante a opinião pública”3 8. Asolução da disputa, mediada por Portugal, foi favorável ao Brasil, de modo asatisfazer os anseios da população.

Outra questão que ameaçou a integridade territorial brasileira e sobre aqual se manifestou a opinião nacional foi a do estabelecimento da empresa norte-americana Bolivian Syndicate em território sem limites definidos na região do Acre,alvo de controvérsias entre Bolívia, Peru e Brasil. O governo brasileiro declaravao Acre boliviano, não podendo, assim, interferir nos negócios internos de outropaís; mas, ao mesmo tempo, atuava em Washington e na Europa tentando anular ocontrato entre a Bolívia e a empresa americana, pois para tornar viável oempreendimento, seria necessária a livre navegação pelos rios da Amazônia, quefariam sua ligação com o oceano Atlântico. Acreditava a opinião brasileira que aregião amazônica estaria sendo alvo da cobiça internacional. O Parlamento, porsua vez, deu tratamento mais emocional à questão3 9, mostrando-se mais sensível

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em relação à opinião pública que o Executivo. O problema só foi solucionadoquando Rio Branco atraiu a decisão para a alçada da diplomacia, após declarar oAcre área oficialmente litigiosa (baseado em interpretação do tratado de 1867), noque agiu de acordo com a maior parte da opinião nacional manifesta no Congressoe na imprensa40. Decidiu-se a questão com o Tratado de Petrópolis que, apesar deter sido combatido por alguns setores da sociedade, foi “brilhantemente defendidona tribuna parlamentar como na imprensa”41 e rapidamente considerado um dosmaiores legados do Barão.

Em busca de amizades pragmáticas e de prestígio internacional

A diplomacia brasileira teve a percepção de que seria necessário um maiorrealismo em sua atuação, tendência essa que se reforçou com base nas ameaçassofridas à soberania do Brasil nos casos da invasão da ilha de Trindade e dasnegociações bolivianas com o Bolivian Syndicate. Rio Branco foi quem melhorexpressou essa nova tendência da diplomacia, dando a ela um caráter pragmáticoe personalista; paradoxalmente a seu estilo prático e pessoal de agir, o Chancelerdevotou grande atenção à opinião pública no esforço de “representar na políticaexterna da nação as aspirações da maioria dos brasileiros”42, o que o tornou populare admirado. Sentia-se responsável “apenas perante o presidente e a opiniãopública”43, mas em sua relação mais direta com as correntes do pensamento nacionalexpressas na imprensa, selou a queda de prestígio do Parlamento como espelhodas aspirações nacionais na elaboração e controle da política externa.

As linhas mestras da atuação do Barão referiram-se à demarcação dasfronteiras brasileiras44 e à aproximação comercial e política com os Estados Unidos,a fim de se adequar às demandas da elite cafeeira e de, ao mesmo tempo, angariarpara o Brasil um papel de prestígio no cenário internacional. Empreendeu umapolítica objetiva, de acordo com critérios por ele mesmo estabelecidos, para osquais teve o aval da opinião nacional.

A busca de amizades pragmáticas foi, primeiramente, voltada para osEstados Unidos. Rio Branco apoiou a Doutrina Monroe, apesar das manifestaçõesde receio das opiniões nacional e internacional quanto ao imperialismo americano.Os Estados Unidos intervieram na guerra civil do Paraguai, e o Barão, aomanifestar-se quanto ao fato, fê-lo defendendo a possibilidade de intervenção nocaso de defesa tanto da integridade territorial do continente quanto da liberdadepara o desenvolvimento de cada nação americana, principalmente quando seencontravam ameaçadas pelas nações européias. Parte da opinião nacional eracontrária à atuação de Rio Branco nesse sentido, alegando que a Doutrina Monroenada mais era que a aplicação disfarçada do imperialismo norte-americano.Entretanto, a posição do Barão advinha de uma percepção abrangente do contextointernacional no qual o Brasil se inseria; não significava alinhamento automático

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com os Estados Unidos, e sim uma aproximação pragmática, que deveria atendertambém aos interesses do Brasil. Por isso, angariou enorme apoio na sociedade.Rio Branco percebia claramente o que se passava no cenário internacional; sabiado desabrochar da potência americana e tinha a clara noção de que Estados Unidose Brasil não estavam em pé de igualdade de força ou poder. Exatamente por isso,procurou estreitar as relações com aquele país, na medida em que isso pudesseresultar em maior prestígio internacional para o Brasil; deste modo, foi ao encontrode uma aspiração nacional da época. De qualquer maneira, coerente com opragmatismo no qual suas ações se baseavam, Rio Branco não descartou as relaçõescom a Europa. Ele sabia que uma parte da opinião nacional ainda era ligada à idéiados laços tradicionais com os países europeus, e sua concepção do interesse nacionalnão era apenas relacionada aos interesses da elite cafeeira, mas, também, da classeindustrial recém surgida45.

A aproximação se deu também com outros países do continente,notadamente Argentina e Chile, com os quais Rio Branco tentou o estabelecimentode uma aliança geralmente conhecida como ABC. Esta aliança serviria paraestender o leque de ação do Brasil na América espanhola e, exatamente por essarazão, tinha ressonância negativa na Argentina, onde se acreditava que, mesmocom a possibilidade de vantagens políticas e econômicas para os três países, atentativa brasileira escondia ranços subimperialistas. Assim, não vingou a propostade aliança, mas o Barão manteve esforços para não ter atritos com aqueles países,em uma política de “boa vizinhança”, para a qual obteve apoio de larga parcela daopinião nacional. Nem mesmo o incidente do “telegrama número nove”46 conseguiuabalar o prestígio e os interesses de Rio Branco, que saiu fortalecido do incidente,dispondo do “apoio unânime da opinião pública”47 nacional.

Rio Branco buscava o consenso interno nas matérias internacionais e,para isso, utilizava-se de propaganda “para esclarecer a opinião pública e aumentara autoridade da política externa brasileira”48. Com isso, o país começou a ter asensação e a consciência da grandeza da nação e de sua importância no mundo;foi esse o grande motor da atuação internacional do Brasil durante a gestão de RioBranco e, mesmo que posteriormente tenha sido, como por vezes se avalia,superdimensionado o real papel do país no concerto das nações, essa tônica serviupara unificar o pensamento nacional e o apoio ao Executivo em matéria de políticaexterna.

Os sucessores do Barão não tiveram a mesma percepção de que o interessenacional estava atrelado ao, mas não dependia unicamente do, relacionamentocom os Estados Unidos, e passaram a um alinhamento automático. Não souberamestabelecer a diferença, tão nítida na gestão de Rio Branco, entre o acordo, sepossível, e a conformidade e acordo completos, e optaram pela segunda diretriz.

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A guerra e a opinião

O declínio nas relações do Brasil com a Inglaterra foi concomitante aoincremento do intercâmbio comercial com os Estados Unidos e com a Alemanha,devido à busca de novos mercados para o café, já que a indústria, ainda incipiente,não havia fixado mercados até então. Com a eclosão da guerra, e o conseqüenterefluxo do comércio com a Europa, os Estados Unidos passaram a terpreponderância absoluta nas relações comerciais do Brasil, mas, na opinião nacional,não se verificava uma linha tão clara. Ela estava dividia entre germanófilos, pró-aliados e aqueles que não pendiam para nenhum dos lados49. Por isso, houve sériosdebates quanto à entrada do Brasil na guerra. E, apesar de que a diplomacia já sedefinisse pelo alinhamento automático com os Estados Unidos, o Brasil só optoupor romper a neutralidade e declarar estado de guerra à Alemanha depois deincidentes que inflamaram a opinião pública: o torpedeamento pelos alemães doPaquete Paraná e os posteriores ataques a outros navios brasileiros.

Finda a guerra, observou-se o aumento do prestígio brasileiro no nível sub-regional e junto aos ex-aliados, e isso fica particularmente evidenciado quanto àatuação do Brasil na Liga das Nações. Por ter participado do conflito, o Brasilobteve assento nas negociações de paz, foi membro fundador da Liga e atuouefetivamente no Conselho daquele órgão. Prevalecia no país o pensamento de quecaberia lutar por um papel mais expressivo no contexto internacional; mas tambémhouve vozes dissonantes, especialmente aquelas tementes de que a participaçãodo Brasil na Liga fosse apenas figurativa e de que o país se tornasse uma merapotência submissa aos interesses dos grandes, principalmente dos Estados Unidos5 0.De qualquer maneira, prevaleceram as opiniões favoráveis e a tal ponto evoluíramque, no governo Artur Bernardes, amalgamaram-se em uma diretriz praticamenteúnica para a política externa do Brasil: angariar para o país um assento permanenteno Conselho da Liga. Freqüentemente, os representantes brasileiros apontavam aopinião pública como propulsora de tal pretensão, mas como as potências européiasiam repetidas vezes protelando a decisão, caiu um pouco o interesse sobre a questão.Por vezes levantaram-se vozes propondo um debate sobre a conveniência de oBrasil pertencer àquele organismo51, mas grandes eram as dificuldades do país emconseguir seu intento. Cogitou-se, assim, da saída pura e simples, mas ArturBernardes alegava que a questão atingia a dignidade do sentimento nacional52.Quando a Alemanha pleiteou sua entrada na Liga, o governo brasileiro resolveu,apoiado por parte da opinião nacional, propor o veto à entrada da Alemanha, aoque a Inglaterra reagiu com intimidações relativas ao crédito financeiro. Com todoesse desgaste da imagem do país, havia quem apoiasse a saída do Brasil da Liga.Foi essa a corrente que prevaleceu e influenciou a atitude do governo brasileiro.

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III. Política externa para o desenvolvimento: novos interesses eparticipação das massas

O jogo de Vargas com as correntes de opinião

A partir de 1930, o ponto crucial da política externa brasileira, o balizadorde todas as decisões, passou a ser o desenvolvimento. Essa tônica perpetuou-seem anos e governos posteriores, apenas variando a forma de conduzi-la de temposem tempos, ora pendendo para o nacional-desenvolvimentismo, ora para o liberalismoassociado. Quando Getúlio Vargas assumiu o poder, mantiveram-se os velhos atores,isto é, as antigas oligarquias regionais extrativistas, e foram agregados novos, quaissejam a burocracia militar, o empresariado industrial e comercial emergente. Osinteresses em jogo eram, portanto, cada vez mais contraditórios, mas a políticaexterna foi levada a cabo de modo a equilibrar as forças divergentes e recolhersua participação no processo decisório, mesmo em momentos de autoritarismo. Aimprensa passou ser a grande caixa de ressonância das vozes da sociedade, tendotambém o poder de influenciá-la e levantá-la sobre questões as mais diversas.

Durante o período do Governo Provisório, de 1930 a 1934, quando o Brasilenfrentava a depressão econômica mundial, as relações comerciais tiveram maiorpreponderância, dada a necessidade de se procurar um incremento às exportações.No campo político, seguiu-se a tendência dos governos anteriores, de buscar umaafirmação do país no continente. Não há registros bibliográficos de uma participaçãoativa da opinião pública na elaboração e controle da política externa, que ficavaconfinada ao Ministério das Relações Exteriores5 3.

Após 1934, a política internacional de Getúlio Vargas passou a refletir ascaracterísticas de sua política interna: para conseguir o desenvolvimento, Vargaspesava as várias forças internacionais e jogava com elas até a exaustão daspossibilidades, tentando agradar no plano interno às também diversas correntes deopinião. Pode-se dizer que as grandes diretrizes de sua política externa atenderam,cada uma, às aspirações de uma parcela da população5 4. E do mesmo modo queusava as relações internacionais para corresponder às aspirações de diferentescorrentes internas, Vargas mantinha o Brasil em uma posição de indefinição desuas relações preferenciais, oscilando entre os Estados Unidos e a Europa,especialmente a Alemanha, no intuito de abrir espaço a uma atuação internacionalmais autônoma do Brasil.

A opinião pública esteve presente em todo o processo político do governoVargas, tanto interno quanto externo. Diferentes correntes do pensamento nacionalprevaleciam em diferentes momentos. Como exemplo disso, podemos citar aassinatura do tratado comercial com os Estados Unidos, em 1935, a fim de obterfavores alfandegários para o café e o cacau, dentre outros produtos agrícolasbrasileiros. Em sua elaboração, prevaleceram os interesses das elites agrárias que,

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entretanto, nela não tiveram participação direta, tendo sido os debates e decisõesfeitos pelos órgãos burocráticos. Contudo, esse fato suscitou a reação dos industriaisque, aliados às classes empresariais, passaram a tentar mobilizar a opinião públicacontra a aprovação do projeto, para o que obtiveram grande repercussão naimprensa5 5. Alegava-se que tal tratado vincularia o Brasil ao livre-cambismoamericano e seria prejudicial à indústria nacional. O contra-ataque veio tambémem forma de campanha na imprensa e argumentava que o café deveria serprotegido, pois era a base de todo o comércio internacional do Brasil. A essacampanha, agregou-se a pressão norte-americana para que o governo contivesseo lobby antitratado; o projeto foi finalmente aprovado com base no argumento deque os interesses do café não poderiam simplesmente ser abandonados, e de quea indústria deveria estabelecer-se com base na própria competência, não apenasno protecionismo exagerado. De qualquer modo, os interesses da indústria nãoforam negligenciados, na medida em que acordos foram firmados com Alemanhae Itália para atendê-los.

Os grupos internos sociais e políticos envolvidos na questão do comércioantagonizavam-se entre protecionismo e livre-cambismo; assim, na política externado governo Vargas, tenta-se um compromisso com as duas orientações, orafavorecendo uma, ora a outra, sem que se excluíssem mutuamente. Exemplo dissofoi o acordo comercial firmado em 1936 com a Alemanha, no qual prevalecia aidéia da compensação, ao contrário daquele com os Estados Unidos. Vargas captouas divergentes tendências da opinião nacional e as mesclou com o cimento de suaprópria definição do interesse nacional; baseado nisso, entabulou uma política externaque era, ao mesmo tempo, instrumento do desenvolvimento e fruto dos embatesinternos.

O período de 1934 a 1937 foi de “ampla liberdade de opinião”5 6, o quefacilitava que também o país se tornasse um receptáculo de ideologias advindas deoutros países, muitas das vezes conflitantes entre si. As diplomacias de váriospaíses tinham no Brasil campo fértil para sua propaganda e, com isso, democratas,fascistas, nazistas, comunistas, pessoas pertencentes às mais diversas correntesde pensamento podiam registrar suas idéias e inseri-las no objetivo dodesenvolvimento. A Itália, por exemplo, disseminava o ideal fascista subvencionandosutilmente a Ação Integralista Brasileira e procurando uma forma de dissociar ointegralismo do nazismo. Do mesmo modo, conseguia incutir na opinião brasileira aidéia de que o fascismo estava absolutamente dissociado do militarismo, de queMussolini tinha intuitos pacifistas. Assim foi que, quando se instaurou o EstadoNovo, em 1937, a reação italiana foi muito positiva, como que tendo a sensação dodever cumprido. E mesmo tendo sido extinta a AIB, o novo governo era maisconforme com o Estado fascista5 7, o que representava uma vitória da diplomaciaitaliana e de sua propaganda.

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O Brasil mudou seu regime de governo em 1937, mas não alterou ascaracterísticas básicas de sua política externa. Vargas utilizava-se do debate internopara fortalecer suas decisões no campo internacional. Fechou o Congresso, masmantinha uma equipe de governo heterogênea, na qual estavam representadasdiversas tendências da opinião nacional, basicamente polarizadas entre americanistase simpatizantes do Eixo. A maior parte da imprensa brasileira era favorável aosaliados, mas mostrava certa simpatia à Itália, principalmente quando Mussolinivinha a público declarando-se pacifista5 8. É fato que o nazismo tinha um apelomuito negativo na opinião nacional, influenciada, principalmente, pela imprensa eopinião norte-americanas, mas havia correntes no Brasil que apoiavam o Eixo,principalmente devido à boa imagem que a Itália tinha no Brasil. Além disso, apesarde que a opinião pressionasse o governo a pender pelo lado dos aliados, este jogavacom a própria falta de coesão dos grupos de interesse para conseguir um equilíbriode interesses. No momento em que tomou corpo no Brasil a idéia de aproveitar asjazidas de minério de ferro por uma usina siderúrgica genuinamente brasileira, emterritório nacional, Vargas pôde mais claramente utilizar seu poder de barganhainterno e externo. Havia um consenso em torno da necessidade de modernizar oexército, de acordo com o ideal pan-americano de defesa hemisférica, e a indústria,para tornar o país mais competitivo e colocá-lo em pé de igualdade com as potênciassub-regionais. Baseado nesse consenso, Vargas fez do desenvolvimento siderúrgicoe industrial e do reaparelhamento do Exército brasileiro seus objetivos prioritários5 9,e para alcançá-los utilizou-se da política externa oscilante entre as potências alemãe americana. Ao mesmo tempo que fazia declarações de que não se afastaria dopan-americanismo, discursava em favor do Eixo no porta-aviões Minas Gerais, em1940. Assim, necessitados do apoio do Brasil como base avançada na América doSul, os Estados Unidos apressaram-se em impulsionar as negociações sobre odesenvolvimento da siderurgia brasileira. Aliada à iniciativa americana, havia apressão nacional e internacional para que o governo optasse por aliar-se a um paísamericano. Essa pressão foi tão expressiva que, com o declínio das relações coma Alemanha em guerra, o Brasil buscou a regionalização e aumentou o comércionão só com os Estados Unidos, mas também com a Argentina.

Quando ocorreu o ataque a Pearl Harbor, grande parte da opinião nacionalo repudiou e isso provocou a declaração do governo brasileiro em favor dos EstadosUnidos6 0. De qualquer maneira, o Brasil continuava não se definindo completamentepelo lado dos aliados, ainda tentando aproveitar a utilidade da indefinição até oúltimo momento. Apenas quando ocorreram os ataques alemães aos naviosbrasileiros, governo e opinião uniram-se em torno da necessidade de uma reação.O povo passou a demonstrar, em atos públicos e grandes manifestações, seu apoioà causa dos aliados. E até mesmo a opinião militar, tida como pró-Eixo, passou aapoiar a reação brasileira para defender a “honra nacional”6 1, mesmo porque,influenciada pela incisiva ofensiva do americanófilo Osvaldo Aranha6 2, convencera-

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se da propriedade de uma cooperação militar Brasil-Estados Unidos para a defesacontinental6 3.

Passada a grande discussão sobre a viabilidade de se empreender umareação contra a Alemanha, passou-se a buscar um consenso sobre a entrada ounão do Brasil na guerra. Tanto organizações nacionalistas, como a Liga Nacionalde Defesa e o Clube Militar, quanto organizações de esquerda, como o PartidoComunista e os remanescentes da ANL, pregavam a ida à guerra para liquidaçãodo nazismo6 4. O grupo contrário restringia-se à corrente anticomunista, que seopunha à participação do Brasil nas Nações Unidas, o que decorreria da participaçãono conflito, para não ter que estabelecer contatos com a União Soviética. O maiorempecilho seriam, então, as restrições dos Estados Unidos a que se desenvolvesseuma força militar na América Latina. Mas nem isso foi suficiente para conteraquela que era uma aspiração do governo e de grande parte da opinião nacional, eassim foi desenvolvida a FEB, cuja proposta de atuação incluía o compromisso deuma cooperação militar efetiva entre o Brasil e os Estados Unidos. Os americanosavaliaram o apoio popular à participação brasileira no conflito e perceberam queVargas havia obtido um grande consenso, e que seria melhor política se os EstadosUnidos aceitassem a cooperação brasileira, mesmo porque poderiam aumentarsua influência nas Forças Armadas brasileiras depois da guerra.

Finda a guerra, as constantes manifestações em favor da democracia,devidamente influenciadas pelos ideais democráticos norte-americanos, resultaramem grave crise para o autoritarismo de Vargas. Nos Estados Unidos, temia-se umaaliança de Vargas e Perón, que poderia ameaçar a hegemonia norte-americana naAmérica do Sul. Por isso, o embaixador daquele país, Berle Jr., passou a atuarabertamente no processo político brasileiro, defendendo a realização de eleições ea transferência do poder; essa ingerência, considerada natural, por ter sido invocadapelos próprios opositores a Vargas6 5, ajudou a aumentar as críticas ao presidente,minando o seu poder, e levando, posteriormente, ao golpe que o depôs.

O embate entre nacionalistas e liberais

Após o golpe, assumiu Eurico Gaspar Dutra, de cuja política externa aslinhas mestras foram o combate ao comunismo internacional e o alinhamento aosEstados Unidos6 6. Entretanto, diferentemente de Vargas, Dutra empreendeu umalinhamento incondicional, ao qual atribuía a propriedade de angariar um grandeprestígio internacional ao Brasil que nem sempre correspondia à realidade.

Dutra creditava ao comunismo a causa de qualquer agitação política ocorridaem seu governo. Para combatê-lo, empreendeu forte perseguição à chamada“infiltração soviética”, tendo arregimentado uma expressiva parcela da opiniãonacional em seu apoio. O aguerrido sentimento anticomunista foi agravado quandoLuís Carlos Prestes declarou que, caso houvesse uma guerra imperialista, os

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comunistas brasileiros lutariam ao lado da União Soviética; tal declaração serviucomo pretexto para o governo denunciar a ingerência da URSS nos negócios internosbrasileiros. Declinaram, assim, as relações com aquele país, o que culminou com orompimento das relações diplomáticas entre os dois países, em 1947. É importantenotar que a situação interna brasileira contribuiu decisivamente para as decisõesde política externa. Não fosse a forte corrente anticomunista, possivelmente ogoverno não teria a possibilidade de tão veementemente opor-se a qualquer paísde tendência comunista ou socialista, a exemplo do que fez, também, quando votoucontra a entrada da China Popular na ONU e fechou sua embaixada naquele país.

Quando Vargas voltou ao poder, tomou corpo o debate interno sobre comoo Brasil deveria relacionar-se com o exterior a fim de solucionar o problema nacionaldo desenvolvimento6 7. Esta luta interna de correntes de opinião teve claros reflexosna elaboração da política externa. As vertentes de opinião variavam quanto àforma de se definir o interesse nacional, polarizando-se basicamente entre os“nacionalistas”, contrários à penetração do capital internacional como veículoimperialista, e os “entreguistas”, partidários da utilização do mesmo para odesenvolvimento. E mais uma vez, Vargas jogava com essas tendências da opiniãonacional, na medida em que dava margem a investimentos estrangeiros, mas, aomesmo tempo, delimitava os setores da economia que considerava estratégicos eque demandavam maior controle do Estado.

Continuava priorizando as relações com os Estados Unidos, procurandoum acordo militar e econômico que resultasse em impulso ao desenvolvimentobrasileiro, mas estava ciente da posição estratégica do Brasil e não procedia a umalinhamento impensado. A questão era que os Estados Unidos davam baixaprioridade ao Brasil naquele momento6 8 e, ademais, exigiam a participação brasileirana guerra da Coréia para que fizessem as concessões pleiteadas. Ocorreu queVargas não conseguiu um consenso interno em apoio à participação do Brasil namencionada guerra, e isso enfraquecia ainda mais a possibilidade de acordo. Oassunto gerou tal polêmica na opinião nacional que recrudesceu o embate entrenacionalistas e entreguistas, e isso atravancava ainda mais as negociações. OsEstados Unidos propuseram um acordo militar secreto, assim dissociando o aspectomilitar do econômico e do político; tal proposta acabou por gerar ainda maioresembates na opinião que, durante a tramitação do mesmo no Congresso, levou odebate a um âmbito nacional. E com base nesse debate, outras discussões surgiam:assim como os entreguistas conseguiram, em 1952, a vitória com a aprovação doacordo militar, os nacionalistas deveriam reafirmar a questão do petróleo, cujocontrole asseguraria ao Brasil uma autonomia estratégica. Vargas defendia a criaçãode uma empresa petrolífera estatal que conjugasse a participação nacional eestrangeira, assim buscando um desenvolvimento associado ao capital internacional,mas ao mesmo tempo com características nacionalistas. Com isso, procurava“canalizar para si o apoio popular que constituía seu maior recurso político”6 9,

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mantendo-se em posição de eqüidistância entre as opiniões divergentes. Quandose aprovou a criação da empresa petrolífera, em 1953, o pensamento entreguistasofreu uma derrota resultante do “trabalho dos partidos políticos, que galvanizaramgrande corrente da opinião nacionalista”7 0, pois a lei só foi sancionada quando omonopólio absoluto do petróleo e seus derivados foi garantido.

O evidente pragmatismo da política exterior empreendida por Getúlio Vargasgerou também a busca de um maior prestígio internacional para o Brasil, inclusivecom a tentativa de estabelecer novos parceiros econômicos. Foi com esse intuitoque surgiram os primeiros sinais de uma articulação política com os paísessubdesenvolvidos da América Latina, África e Ásia7 1. Nesse contexto, aconteceo ensaio de uma aproximação com a Argentina, resultante de entendimentosanteriores entre Vargas e Perón7 2. Entretanto, ainda que os governantesdemonstrassem ter pontos comuns quanto à unificação latino-americana, o maiorempecilho à aproximação entre Brasil e Argentina estava na disparidade das políticasexternas dos dois países em relação ao tratamento dado aos Estados Unidos, poiso Brasil apostava em uma aproximação efetiva, ao passo que a Argentina defendiaposições opostas. Assim foi que, quando o governo argentino propôs uma novacooperação ABC, o Brasil, não querendo perder o relativo poder de barganha quetinha com os Estados Unidos, recuou. Mas, outra razão, talvez ainda mais forte,contribuiu para isso: era tão expressiva a opinião brasileira antiargentina, contráriaa qualquer aproximação, que o governo daquele país chegava a creditar a ela amaior razão para que Vargas barrasse o projeto; dizia o embaixador argentino quequem realmente dirigia a política externa brasileira eram o Parlamento e aimprensa7 3. Após a assinatura do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, em 1952,a Argentina passou a estreitar entendimentos com o Chile e o Uruguai e se distancioudo Brasil, o que fez com que a opinião brasileira recrudescesse a animosidade jáexistente. As tensões atingiram seu ápice quando Perón, em discurso na EscolaSuperior de Guerra de seu país, atribuiu ao Itamaraty e à opinião brasileira a nãoconcretização do Pacto ABC. Foi grande a repercussão desse discurso na imprensae no Congresso brasileiros, e quando se tentou um acordo comercial com o governoargentino, em 1953, as reações foram fortemente contrárias, chegando ao pontode se considerar uma traição à nação caso ele se efetuasse. Assim foi que, após adenúncia de que Vargas e Perón estariam secretamente negociando oestabelecimento do Pacto ABC, a fim de contrabalançar a hegemonia norte-americana no continente, a imprensa e a oposição exploraram largamente o fatoque, certamente, contribuiu para a queda de Vargas, em 1954.

Avaliando a política externa do segundo governo Vargas, chegamos àconclusão de que ela foi, em grande parte, fruto do constante embate interno entreo nacionalismo e o entreguismo, bem como da tentativa de acolher as opiniõesdivergentes e atender às aspirações de um ou outro grupo, na medida em quefossem ao encontro do que se definira como interesse nacional: o desenvolvimento.

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Ela também lançou as bases para os governos posteriores incrementarem e levaremcada vez mais em conta a participação da opinião pública nos temas internacionais,cujo ápice ocorre com a Política Externa Independente dos governos de JânioQuadros e João Goulart. Certamente, o envolvimento das diversas correntes dopensamento nacional com os assuntos da política externa não teria sido tão evidenteno início dos anos sessenta se não tivesse acontecido essa escalada da participaçãodas massas que se iniciou com Getúlio Vargas, reforçou-se com JuscelinoKubitschek e culminou com Quadros e Goulart.

A política externa e o crescente envolvimento popular

Os objetivos mais evidentes da política externa no governo de JuscelinoKubitschek foram vencer o subdesenvolvimento e superar a pobreza; para tanto,considerava-se necessário buscar capitais e tecnologia estrangeiros pela via dacooperação internacional, ampliar os mercados brasileiros e lutar para que os preçosinternacionais das matérias-primas e produtos agrícolas acompanhassem os dosprodutos industrializados7 4. Isso significava que o meio mais eficaz de atingir odesenvolvimento seria a política externa, e Kubitschek procurou construir umconsenso em torno dela por intermédio da instrução da sociedade.

A América Latina vivia, então, a influência das idéias da ComissãoEconômica para a América Latina – CEPAL, segundo as quais caberia ao Estadoformular estratégias nacionais para a superação do subdesenvolvimento. Haviauma certa unidade de pensamento quanto à necessidade de buscar conjuntamenteessas estratégias. A isso aliou-se o fato de os Estados Unidos estarem voltadospara a reconstrução da Europa, e pouco interessados na América Latina onde,conseqüentemente, esquentaram-se os nacionalismos e o sentimento antiamericano;denunciava-se, com freqüência, o imperialismo norte-americano, ao mesmo tempoque, em conseqüência, esfriavam-se as relações com os Estados Unidos.

Percebendo a situação, e convicto da necessidade de rever as relaçõesdos Estados Unidos com a América Latina, Kubitschek propôs a Operação Pan-americana, a OPA; em carta ao presidente norte-americano, Eisenhower,demandava o restabelecimento do ideal pan-americano e uma cooperaçãohemisférica mais eficiente, em busca da superação do subdesenvolvimento. Navisão de Juscelino Kubitschek, a OPA seria a única maneira de deter o avanço docomunismo no continente americano, que ocorria à medida que a pobreza seestabelecia. A proposta da OPA e o ideal de recorrer à cooperação internacionalpara superar a pobreza tiveram grande apoio interno, mas sofreram restriçõesquanto à falta de resultados práticos. Sua conseqüência mais direta foi a criaçãodo Banco Interamericano de Desenvolvimento, mas, indiretamente, se lhe creditaa formação da Associação Latino-americana de Livre Comércio – ALALC, e aAliança para o Progresso, do presidente Kennedy. De fato, o maior mérito da

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política externa de Kubitschek foi atrair a atenção dos Estados Unidos para aAmérica Latina em um momento que se configurava tão desfavorável. Paraalcançar esse objetivo, o governo brasileiro contou com a anuência da opiniãopública, que estava informada sobre a atuação internacional do Brasil e lhe serviade sustentáculo. Juscelino Kubitschek procurava angariar o máximo de apoio tantode militares quanto de industriais, ruralistas, intelectuais e trabalhadores brasileiros,alegando que o desenvolvimento viria para todos7 5 e que não poderia empreendera política externa se ela não fosse “ditada pela consciência nacional”7 6. É fato queo governo tinha uma definição própria do interesse nacional e de que a opiniãodeveria atuar dentro do limite da ordem legal7 7, mas não interessava a Kubitschekatender aos interesses de qualquer grupo que não representassem os clamores deoutros grupos. Assim, soube arrebatar as diversas correntes de opinião com odesenvolvimentismo, procurando realizar o que fosse do interesse da sociedade7 8.As idéias do ocidentalismo e do anticomunismo, amplamente disseminadas, ajudarama manter o consenso em torno da política externa que o governo queria implementar.

Quando o Brasil estabeleceu negociações com o FMI, em 1959, os técnicosdo Fundo analisaram muito negativamente a política econômico-financeira, cambiale monetária do Brasil, e o Fundo impôs certos procedimentos para conceder linhade crédito ao país. Caso aceitasse as imposições, o resultado seria a impopularidadedo governo e da política externa por ele empreendida. Percebendo isso, JuscelinoKubitschek, apoiado pelas elites e pelas massas de tendência nacionalista, decidiuque ceder às imposições do fundo representaria uma afronta à soberania e aosinteresses nacionais e mandou que os negociadores brasileiros voltassem ao Brasil,rompendo com o FMI. Obteve, a esse respeito, manifestações de apoio de “fontesas mais insuspeitas”7 9.

Na busca pela estabilização dos preços dos produtos primários,especialmente do café, o maior item da pauta de exportações brasileiras, o governode Kubitschek reagiu contra a formação do Mercado Comum Europeu, de cujasvantagens apenas aproveitariam os países membros e suas ex-colônias, propondoa Conferência Internacional do Café, em 1958, cujo resultado foi a criação daOrganização Internacional do Café, a OIC. Mas a atuação de Kubitschek no âmbitointernacional não se resumiu à cooperação multilateral.

Buscou-se fundos para o desenvolvimento brasileiro também nas relaçõesbilaterais, especialmente com os Estados Unidos, mas isso não se deu sem embatesinternos entre entreguistas e nacionalistas, na medida em que os primeiros viamcomo imprescindível a injeção de capitais estrangeiros para a superação da pobreza,e os últimos acreditavam que isso poderia reforçar o imperialismo americano noBrasil.

Em decorrência da necessidade de estabilizar o preço dos produtosprimários, a iniciativa brasileira foi além da criação da OIC, e partiu para incrementaras relações comerciais com a União Soviética. Kubitschek observou com astúcia

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que o contexto internacional era de détente entre Estados Unidos e União Soviética,o que facilitava uma maior abertura do Brasil para o exterior e uma maiorparticipação do país nas decisões mundiais; o governo utilizou essa evidência paraaplacar a opinião liberal que temia a “contaminação ideológica”. Isso fez com quegrande parte da opinião nacional percebesse a necessidade de buscar novosmercados e arrefecesse o temor pelo reatamento comercial com aquele país.

Ainda em conformidade com o ideal de abrir o país a novos parceirosinternacionais, bem como com a luta contra o imperialismo e as novas formas decolonialismo, Juscelino Kubitschek deveria, na concepção de uma parte da opiniãonacional8 0, empreender esforços para aproximar-se dos países africanos que setornavam independentes. Entretanto, não foi isso o que ocorreu. Em termos políticos,a África não interessava ao governo brasileiro, e nem mesmo em termoseconômicos, já que as novas nações independentes figuravam mais comocompetidores na produção de bens primários que como mercado potencial. Aopinião expressa na imprensa via o Brasil como que “passando ao largo do processode libertação das nações africanas”8 1. Ocorreu que o Brasil desenvolveu a umapolítica externa ambígua, prestigiando os laços especiais com Portugal, mas aomesmo tempo reconhecendo a importância das novas nações, o que se demonstroupela busca do intercâmbio econômico, evidenciada pela troca de missões e contatos.

Outra questão que levantou a opinião pública no governo de JuscelinoKubitschek foi a dos acordos de Roboré, firmados com a Bolívia, em 1958. Algumasnotas reversais relativas aos acordos tratavam de matéria que, de acordo comautoridades jurídicas da época, ultrapassava sua competência: cessão de territóriopelo Brasil, abonamento de dívida boliviana e exploração brasileira do petróleoboliviano. Isso causou reações internas muito negativas, principalmente advindasdaqueles setores nacionalistas da população que acreditavam ser os acordos “sériosatentados aos interesses nacionais”8 2. A questão dos acordos foi tão ampla efortemente discutida internamente, no Parlamento e pela imprensa, que ficoususpensa até que o Executivo a submeteu ao Congresso em 1961.

Outra tentativa de aproximação bilateral empreendida pelo governobrasileiro foi com o Paraguai, mas aquele país já vivia sob a égide da ditaduramilitar, com Stroessner, e a opinião pública no Brasil não via com bons olhos asrelações com aquele país. Partiu-se, então, para tentar convencer a opinião brasileirade que as eleições programadas no Paraguai tinham como objetivo aredemocratização do país, mas a tática não funcionou na sociedade brasileira emplena democracia; a política externa foi, assim, duramente criticada. De qualquermaneira, a importância da aproximação com o Paraguai era muito mais política eeconômica que ideológica e permaneceu durante o governo de Jânio Quadros.

A partir da instituição da Política Externa Independente, que preconizavauma ação internacional universalista, mais descompromissada de ideologias, e maispragmaticamente voltada para a obtenção do máximo de vantagens para o Brasil,

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a opinião nacional foi levada a discutir com maior competência e a se dividir sobreos mais diversos assuntos internacionais. O governo passou a buscar ainda maisclaramente o apoio da opinião interna e a guiar-se de acordo com ela.

Este período merece atenção especial e deverá ser discutido em artigoposterior. De qualquer modo, vale ressaltar algumas de suas peculiaridades. Sãovárias as correntes de opinião expressas tanto no governo de Jânio Quadros quantono de João Goulart, seu sucessor após a renúncia; militares, tecnocratas, políticos,jornalistas, associações de mulheres, estudantes, trabalhadores, todos apresentavamsua parcela de discussão e reflexão sobre a política externa brasileira, chegando,até mesmo, a influir decisivamente sobre seus rumos. Pode-se afirmar que asopiniões a respeito da forma como o Brasil se inseriria no contexto internacionaltendiam a assumir, grosso modo, princípios direitistas ou esquerdistas8 3. Essapolarização das tendências da opinião expressa na imprensa, nas publicaçõesespecializadas, ou no Parlamento, levou a uma grande mobilização popular sobretemas internacionais; pode-se afirmar que o ápice do populismo no Brasil coincidiucom o período de maior popularização da política externa brasileira. Tudo leva acrer, ademais, que os grupos de maior influência no período teriam feito prevalecerseus interesses na formulação e controle da política internacional do Brasil, o queculminou com o enfraquecimento de João Goulart e com o golpe militar que odepôs.

É interessante notar, também, que, quando o populismo entrou em colapso,evidenciou-se apenas um refluxo da participação da opinião pública nos temas dapolítica externa, sem que isso representasse, necessariamente, o seu total alheamentosobre os temas internacionais.

Junho de 1999

Notas

1 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. SãoPaulo: Ed. Ática, 1992, p. 25.

2 CERVO, Amado Luiz. “Os primeiros passos da diplomacia brasileira”. Relações Internacionais.Brasília: 3:43-62, 1978, p. 49.

3 Idem, p. 494 CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,

Cia. Editora Nacional Brasiliana, Câmara dos Deputados, 1989, 3v., vol. I, p. 46.5 Idem, p. 253.6 Ibidem, p. 275. Uma nota de Brant e Gameiro, negociadores do reconhecimento junto à Inglaterra,

em resposta a uma nota de Stuart, o representante inglês, explicita os pontos principais danegociação.

7 MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1973,p. 144.

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8 CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,Cia. Editora Nacional Brasiliana, Câmara dos Deputados, 1989, 3v., vol. I, p. 297.

9 CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,Cia. Editora Nacional Brasiliana, Câmara dos Deputados, 1989, 3v., vol. II, p. 288.

10 CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826 – 1889). Brasília:EdUnB, 1981, p. 13.

11 Idem, p. 74.12 GOMES, Tânia M.P. “A opinião pública e as relações internacionais do Brasil – do Império a

Castelo”. Brasília: UnB, 1994, p. 30.13 CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826 – 1889). Brasília:

EdUnB, 1981, p. 74.14 GOMES, Tânia M.P. “A opinião pública e as relações internacionais do Brasil – do Império a

Castelo”. Brasília: UnB, 1994, p. 33.A opinião pública era favorável à abertura do Amazonas à navegação estrangeira, mas não nosmoldes americanos, considerados uma afronta aos interesses nacionais.

15 CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826 – 1889). Brasília:EdUnB, 1981, p. 63.

16 Já incomodava a passividade brasileira decorrente da voluntária neutralidade e o sentimentonacional passou a se exaltar contra as arbitrariedades a que eram sujeitos os brasileiros residentesna Banda Oriental.

17 CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,Cia. Editora Nacional Brasiliana, Câmara dos Deputados, 1989, 3v., vol. III, p. 263.

18 Idem, p. 262.19 GOMES, Tânia M.P. “A opinião pública e as relações internacionais do Brasil – do Império a

Castelo”. Brasília: UnB, 1994, p. 40.20 CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,

Cia. Editora Nacional Brasiliana, Câmara dos Deputados, 1989, 3v., vol. III, p. 322.21 CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826 – 1889). Brasília:

EdUnB, 1981, p. 153.22 Idem, p. 145.23 Ibidem, p. 164.24 LUZ, Nícia Vilela. “A luta pela industrialização no Brasil (1808 – 1930)”. São Paulo: Difel,

1978, p. 51.25 Idem, p. 26.26 CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,

Cia. Editora Nacional Brasiliana, Câmara dos Deputados, 1989, 3v., vol. I, p. 411.27 BUENO, Clodoaldo. A República e sua Política Exterior (1889 – 1902). Marília: Unesp, 1984,

2 v., p. 88.28 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São

Paulo: Ed. Ática, 1992, p. 150.29 BUENO, Clodoaldo. A República e sua Política Exterior (1889 – 1902). Marília: Unesp, 1984,

2 v., p. 150.30 Idem, p. 126.31 Ibidem, p. 112. Assim se referia à aproximação com os Estados Unidos o deputado Lamenha

Lins.32 ABRANCHES, Dunshee de. Rio Branco e a Política Exterior do Brasil. Rio de Janeiro: 1945,

2 v., vol. II, p. 38.33 BUENO, Clodoaldo. A República e sua Política Exterior (1889 – 1902). Marília: Unesp, 1984,

2 v., p. 195.

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34 LUZ, Nícia Vilela. “A luta pela industrialização no Brasil (1808 – 1930)”. São Paulo: Difel,1978, p. 126.

35 GOMES, Tânia M.P. “A opinião pública e as relações internacionais do Brasil – do Império aCastelo”. Brasília: UnB, 1994, p. 56.

36 BUENO, Clodoaldo. A República e sua Política Exterior (1889 – 1902). Marília: Unesp, 1984,2 v., p. 394.

37 Idem, p. 569.38 Ibidem, p. 536.39 Ibidem, p. 557.40 Ibidem, p. 565.41 CASTRO, Sertório de. A República que a Revolução destruiu. Brasília: EdUnB, 1982. p 145.42 BURNS, E. Bradford. The unwritten alliance: Rio Branco and Brazilian-American relations.

New York: Columbia University Press, 1966, p. 57. Tradução nossa.43 Idem, p. 54. Tradução nossa.44 Ibidem, p. 49. Sobre a demarcação de fronteiras e a grande aceitação das diretrizes da política

externa empreendida por Rio Branco, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, declarou:“Nenhum serviço tão grandioso poderia ter sido feito a uma nação”. (Tradução nossa)

45 GOMES, Tânia M.P. “A opinião pública e as relações internacionais do Brasil – do Império aCastelo”. Brasília: UnB, 1994, p. 75.

46 LINS, Álvaro. Rio Branco. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1945, 2 v., vol. II, p. 574/5.Este telegrama, interceptado por Zeballos, chanceler argentino, teve seu teor alterado paraincluir a idéia de que o Brasil tinha intenções imperialistas com a aliança ABC. Isso foi publicadona imprensa argentina, e culminou com a queima da bandeira brasileira em Buenos Aires.Entretanto, Rio Branco fez publicar o telegrama original, o que resultou na demissão de Zeballose no fortalecimento do chanceler brasileiro.

47 Idem, p. 575.48 Ibidem.49 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São

Paulo: Ed. Ática, 1992, p. 191.50 GARCIA, Eugênio Vargas. A participação do Brasil na Liga das Nações (1919-1926). Brasília:

UnB, 1994, p. 21.51 Idem, p. 79. O Jornal, dirigido por Assis Chateaubriand, reacendeu na opinião pública esse

debate e fomentou nela novamente o interesse sobre a questão.52 Ibidem, p. 100.53 GOMES, Tânia M.P. “A opinião pública e as relações internacionais do Brasil – do Império a

Castelo”. Brasília: UnB, 1994, p. 89.54 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São

Paulo: Ed. Ática, 1992, p. 134.A política externa de Vargas era baseada na “eqüidistância pragmática” e seus três pontosprincipais foram: angariar meios de segurança, correspondentes às aspirações das ForçasArmadas; desenvolver a indústria de base, principalmente a siderúrgica, no que atendia àsclasses urbanas burguesa e operária; procurar mercados para a produção agrícola e industrial,em favor das novas e antigas elites sociais.

55 MOURA, Gérson. Autonomia na dependência; a política externa brasileira de 1935 a 1942.Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980, p. 81.

56 CERVO, Amado Luiz. As relações históricas entre o Brasil e a Itália; o papel da diplomacia.Brasília: EdUnB, 1992, p. 134.

57 Idem, p. 148.58 Ibidem, p. 162.

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59 SEITENFUS, Ricardo A. S. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos (1930 –1942). São Paulo: Ed. Nacional, 1985, p. 253.

60 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. SãoPaulo: Ed. Ática, 1992, p. 239.

61 SEITENFUS, Ricardo A. S. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos (1930 –1942). São Paulo: Ed. Nacional, 1985, p. 413.

62 Este sugeria uma “arregimentação da opinião pública em favor da neutralidade brasileira” noconflito mundial, mas procurava, ao mesmo tempo, influir em todos os níveis do governo e dasociedade, e também no próprio processo decisório da política externa, para que o Brasil, emcaso de os Estados Unidos entrarem na guerra, apoiasse este país.CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. SãoPaulo: Ed. Ática, 1992, p. 228.

63 MOURA, Gérson. Autonomia na dependência; a política externa brasileira de 1935 a 1942.Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980, p. 263.

64 MOURA, Gérson. Sucessos e ilusões; relações internacionais do Brasil durante e após aSegunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1991 (1991), p. 27.

65 Idem, p. 53.66 Ibidem, p. 59.67 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São

Paulo: Ed. Ática, 1992, p. 250.68 HIRST, Mônica. “O pragmatismo impossível; a política externa do Segundo Governo Vargas

(1951 – 1954)”. Rio de Janeiro: FGV, 1990, p. 6.69 Idem, p. 46.70 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São

Paulo: Ed. Ática, 1992, p. 253.71 HIRST, Mônica. “O pragmatismo impossível; a política externa do Segundo Governo Vargas

(1951 – 1954)”. Rio de Janeiro: FGV, 1990, p. 21.72 Mesmo antes da deposição de Vargas, esses entendimentos já ocorriam, mas foram reforçados

com a sua volta ao poder. Idem, p. 29.73 Ibidem, p. 35.74 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São

Paulo: Ed. Ática, 1992, p. 256.75 CARDOSO, Míriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento; Brasil: JK – JQ. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1977, p. 212.76 MALAN, Pedro Sampaio. “Relações econômicas internacionais do Brasil”. In: FAUSTO, B.

(org.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1984, v. 11, p. 88.77 A ordem legal significaria aquilo que não contrariasse a definição governamental do interesse

nacional.78 CARDOSO, Míriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento; Brasil: JK – JQ. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1977, p. 224.79 MALAN, Pedro Sampaio. “Relações econômicas internacionais do Brasil”. In: FAUSTO, B.

(org.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1984, v. 11, p. 91.80 Oswaldo Aranha, Álvaro Lins, Gilberto Amado, José Honório Rodrigues, Adolpho Justo

Bezerra de Menezes, Tristão de Athayde, Eduardo Portella, entre outros representantes daintelectualidade e da diplomacia brasileiras preconizavam uma aproximação mais pragmática,progressiva e realista com a África do que desenvolvia JK.SARAIVA, José Flávio S. O Lugar da África: a dimensão atlântica da política externa Brasileirade 1946 a nossos dias. Brasília: EdUnB, 1996, p. 43.

81 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. SãoPaulo: Ed. Ática, 1992, p. 268.

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82 Idem, p. 271.83 Pode-se identificar, ainda, uma corrente que denominaremos neutral, que se situava exatamente

na encruzilhada entre os dois pólos. Os grupos de tendência neutral eram favoráveis a umainserção internacional do Brasil que seguisse moldes universalistas, sem peias ideológicas,buscando o desenvolvimento sem uma necessária adesão a qualquer dos blocos (comunista ouocidental), tendo em vista que estes próprios caminhavam rumo a um entendimento (advindoda coexistência pacífica). Entretanto, não raro, os neutrais eram tidos como pró-comunistas;em outras ocasiões, como a favor do imperialismo ianque.

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OPINIÃO PÚBLICA E POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL DO IMPÉRIO A JOÃO GOULART ... 61

Resumo

Este artigo avalia a relação existente entre opinião pública e política externano Brasil, desde o Império, em que se evidenciam os interesses das elites letradasenunciados no Parlamento, até a presidência de Jânio Quadros, quando se verificao apogeu do populismo no Brasil. Procura estabelecer quais eram as correntes deopinião expressa que representavam a política externa nos diversos períodos dahistoriografia brasileira de relações internacionais. Pretende, também, avaliar aextensão da repercussão que teria a política internacional brasileira sobre a opiniãonacional no mesmo período.

Abstract

The purpose of this article is to evaluate the rapport between public opinionand Brazilian foreign policy. It proposes a historiographic analysis of the periodgoing from the country’s independence to the apogee of populism under JoãoGoulart’s presidency. It also aims to determine the groups which most evidentlyrepresented public opinion in the various periods of Brazilian history of internationalrelations, as well as the importance of their expressed points of view in relation tothe foreign policy decision-making process. Also pertinent is the comprehension ofthe impact which international relations may have had in society in the same period.

Palavras-chave: Brasil. Opinião pública. Política exterior.Key-words: Brazil. Public opinion. Foreign policy.

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A participação brasileira emnegociações multilaterais e regionaissobre serviços financeiros1

MARCOS ANTONIO MACEDO CINTRA*

Face à nova inserção financeira do Brasil – investimentos de portfólio nasbolsas de valores domésticas, emissão de títulos, bônus, commercial papers eDepositary Receipts no mercado internacional e entrada de novas instituiçõesbancárias no mercado nacional –, procuramos investigar os diferentes processosde negociação multilateral e regional em que o país tem participado. Buscamosapreender se o processo de abertura e liberalização financeira foi condicionadopor pressões externas, consubstanciadas nos diferentes fóruns de negociaçõesmultilaterais e regionais.

Analisamos, então, as seguintes negociações sobre comércio de serviçosfinanceiros: a) o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (General Agreementon Trade in Services – Gats), que constitui um desdobramento da Rodada Uruguai(1986-1993) do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffsand Trade – Gatt); b) o Mercado Comum do Sul (Mercosul, 1995-2005) e; c) aÁrea de Livre-comércio das Américas (Alca, 1994-2005).

A. Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços

As ofertas sobre o comércio de serviços foram consolidadas no Gats, em12 de abril de 1994, quando a Ata Final da Rodada Uruguai foi assinada pelospaíses signatários, em Marrakesch (Marrocos). Foi estabelecido um conjunto deprincípios gerais e específicos para regular a atividade internacional de comérciode serviços com vista à sua expansão sob condições de transparência e liberalizaçãoprogressiva. Mais precisamente, o acordo foi constituído em duas partes, a primeiracom normas abrangentes e a Segunda, integrada por anexos, com regras específicaspara alguns setores (transportes aéreos e marítimos, serviços financeiros etelecomunicações). Foram listadas também as ofertas dos países, indicando ossubsetores que pretendiam desregulamentar e qual o grau de abertura que podiam

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 62-76 [1999]*Pesquisador da Fundação de Apoio Administrativo do Estado de São Paulo – Fundap e professor daUniversidade Ibirapuera (SP).

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imprimir. Dessa forma, o Gats estabeleceu uma estrutura normativa e ummecanismo multilateral para o comércio de serviços, ao mesmo tempo em queprocurou compatibilizar essas regras com a necessidade de os diferentes Estadospreservarem as condições de seus mercados internos.

Após inúmeras negociações sobre o conteúdo apresentado nas listas deofertas, em 12 de dezembro de 1997 foi concluído o Protocolo sobre os ServiçosFinanceiros, já no âmbito da Organização Mundial do Comércio – OMC (WorldTrade Organization), instituição que sucedeu o Gatt a partir de janeiro de 1995,consolidando-se o acesso a mercados já existentes e proporcionando tratamentonão-discriminatório às instituições financeiras já estabelecidas nos países membros.Além disso, em alguns países, o Acordo contemplou uma abertura adicional dosmercados de serviços financeiros à participação estrangeira.

Para cada setor de serviços negociado, cada país listou as restrições ediscriminações que foram anexadas ao Gats, no que se refere a tratamento nacional,acesso a mercados e exceções à cláusula de nação mais favorecida. Essas listasrepresentam compromissos que cada país assumiu, pois, a partir da entrada emvigor do Acordo, os seus membros não podem tratar os estrangeiros de formamais desfavorável do que o especificado. É por esse motivo que as listas sãotambém chamadas de ofertas (Pellegrini, 1997, p. 2). A oferta de serviços de umpaís na OMC consiste em listas contendo as exceções ao tratamento de naçãomais favorecida, se houver, e as restrições e discriminações aos fornecedoresestrangeiros de serviços existentes naqueles subsetores em que o país se dispôs aapresentar compromissos.

Pelo exposto, podemos observar que a não-discriminação não é automática,mas negociada, não é rígida, mas flexível. Os países participantes têm o direito denegociar isenções à aplicação da cláusula de nação mais favorecida para certasmedidas preferenciais e discriminatórias que concedem a determinados parceiroscomerciais. Os países participantes negociaram também as listas de compromissoscom relação ao acesso a seus mercados e ao tratamento concedido em seusmercados para setores específicos (Marconini, 1997, p. 53). Os compromissosespecíficos de cada país em relação às atividades de serviços financeiros estãoestabelecidos de acordo com as disposições do Anexo sobre Serviços Financeirosdo Gats. Esse Anexo apresenta a lista dos serviços financeiros cobertos pelo Gatse complementa as definições e regras básicas do Acordo, de forma a permitir queas características específicas do setor sejam levadas em consideração.

Em suma, o Protocolo sobre Serviços Financeiros constitui um conjuntode normas estáveis para regular o comércio de serviços financeiros. Estabelece,então, um arcabouço multilateral permanente para o comércio de serviçosfinanceiros, assumindo compromissos com base no princípio de nação maisfavorecida, dependendo do grau de liberalização em relação ao acesso a mercadose tratamento nacional. Representa, portanto, um conjunto de princípios e normas

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de conduta multilateralmente concertadas e acordadas pela comunidadeinternacional como um todo.

Conforme orientação do Gats, a oferta brasileira de serviços financeirosestá dividida em dois subsetores: os seguros e serviços relacionados, e bancos eoutros serviços financeiros, inclusive as atividades referentes aos mercados decapitais. De modo geral, a oferta brasileira incorporou os avanços verificados noprocesso atual de saneamento do sistema financeiro doméstico, respeitando sempreas limitações constitucionais (Art. 192 da Constituição de 1988). Ademais, o Brasilpermitiu somente o aumento ao acesso estrangeiro através da presença comercialno país, ou seja, mediante o investimento direto no sistema financeiro. Manteve-sea restrição aos serviços prestados de fora do país, em função das dificuldades debalanço de pagamentos que os mesmos poderiam gerar.

A oferta brasileira sobre o mercado de seguros, apresentada ao Comitêde Serviços Financeiros da OMC, assumiu o compromisso de garantir que asseguradoras estrangeiras poderão ter presença comercial no mercado domésticocom controle total do capital em vários mercados, tais como vida, fretes, propriedade,responsabilidade e saúde, condicionados à presença comercial, consagrandodefinitivamente a realidade atual. Assim, as seguradoras ficaram autorizadas aentrar no mercado doméstico, desde que cumpram os pré-requisitos fixados pelaSuperintendência de Seguros Privados (Susep).

A oferta brasileira incluiu ainda o seguro de casos de embarcaçõescadastradas no Registro de Embarcações Brasileiras (REB), inclusive no caso deoperações transfronteiriças, e o seguro de acidente de trabalho, apenas paramencionar que essa atividade constitui monopólio do Instituto Nacional de SeguridadeSocial (INSS). Neste último caso, assumiu novos compromissos relacionados àpresença comercial estrangeira em dois anos a partir da aprovação daregulamentação da atividade privada. Finalmente, flexibilizou a oferta em resseguros,citando o monopólio do Instituto de Resseguro do Brasil (IRB) como temporário, àespera da regulamentação da atividade privada do setor. Neste caso, também secomprometeu com novos compromissos relacionados à presença comercialestrangeira no setor durante dois anos a partir da aprovação da regulamentação daatividade privada.

Quanto aos bancos e outros serviços financeiros, a oferta brasileira tambémse baseou na realidade praticada internamente. Até 1995, a entrada de novasinstituições estava restrita aos casos de privatização das instituições financeiraspúblicas (Exposição de Motivos, No. 89). Uma maior flexibilidade, tomando comobase a definição do interesse nacional, foi incorporada à oferta brasileira. Asinstituições estrangeiras poderiam estabelecer novas filiais e subsidiárias, assumiro controle acionário, assim como aumentar a participação no capital das instituiçõesexistentes no país, desde que autorizadas, caso a caso, pelo Presidente da República,a partir de proposta do Banco Central (Exposição de Motivos, No. 311). Ou seja,

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a presença comercial foi admitida, embora condicionada à autorização caso a casopelo poder executivo.

No âmbito do mercado de capitais, a oferta brasileira acrescentouautorização de presença comercial estrangeira para fornecedores de alguns serviçosnão caracterizados como instituições financeiras pela lei brasileira. Foram eles:negociação por conta própria ou de terceiros de títulos sujeitos ao regime da LeiNo. 6.385/76 e dos derivativos, exceto swaps e opções de swaps; liquidação detítulos de qualquer espécie e de derivativos; serviços de assessoramento e declassificação, pesquisa de investimento e portfólio e análise de crédito; administraçãode fundo de investimento de títulos regulados pela Comissão de Valores Mobiliários(CVM); e oferta pública de títulos regulados pela Lei No. 6.385/76 no mercado debalcão. A oferta brasileira comprometeu-se, também, com a presença comercialestrangeira em novas atividades financeiras – factoring e cartão de crédito –desde que definidas como serviços financeiros, o que não é o caso atual.

Como afirmamos acima, o acordo sobre serviços financeiros no âmbito daOMC foi concluído em 12 de dezembro de 1997 e resultou na incorporação denovo Protocolo (o quinto) ao Gats. O acordo está previsto para entrar em vigor apartir de março de 1999, mas desde sua aprovação, os países signatários secomprometem a não recuar nos compromissos assumidos.2 Após aquela data,qualquer desrespeito estará sujeito às regras e sanções, tais como painel denegociação, multas, compensações e anulações de medidas restritivas que vierema ser adotadas pelos países signatários (como no comércio internacional de bens).

B. Mercado Comum do Sul

A partir de janeiro de 1995, entrou em vigor a União Aduaneira do Mercosul,entre a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, consolidando as preferênciastarifárias aos quatro países membros e dando início ao processo de construção deum mercado comum, compartilhando consumidores, produtores, tarifas externas,políticas macroeconômicas e fatores de produção, previsto para 2005. As exceçõesserão os setores de informática e telecomunicações, que devem se unir em 2006.

A partir do suporte técnico das comissões de trabalho permanente,abrangendo os sistemas financeiros, seguros, mercado de capitais, promoção eproteção de investimentos, e das negociações no âmbito do Grupo Ad Hoc sobreServiços, coordenado por Mário Marconini, em 15 de dezembro de 1997 foiassinado o Protocolo de Montevidéu sobre o Comércio de Serviços doMercosul, que estabeleceu princípios e disciplinas para promover o livre-comérciode serviços entre os países membros, tomando como base o Acordo Geral sobre oComércio de Serviços (Gats).

Dessa forma, o acordo deve assumir um caráter “Gats-plus” (ou Gats+).Isto é, ao basear o nível de compromisso de abertura do mercado sub-regional no

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Gats, deve negociar um instrumento que aprofunde o acordo estabelecido em âmbitomultilateral. Não faz sentido efetuar um acordo regional que não vá além do jáacordado no plano multilateral. Se os compromissos assumidos pelos quatro paísesnão forem maiores do que aqueles perante a OMC, fica difícil demonstrar que oprotocolo cumpre de fato o requisito de eliminar substancialmente as barreiras aocomércio de serviços no Mercosul.

As listas de ofertas sobre o comércio de serviços financeiros dos quatropaíses foram apresentadas em abril de 1998. Conforme estabelecido, a lista doscompromissos do Brasil em serviços financeiros segue aqueles assumidos no âmbitodo Gats. Entretanto, as negociações ainda não avançaram a ponto de atingir umconsenso que vá além de um esforço de harmonização das normas contábeis, dasregras sobre a lavagem de dinheiro e de acesso controlado de instituições financeirasao mercado brasileiro (Silva, 1999). Uma das dificuldades encontra-se no fato deque o Brasil é o único país do Mercosul que mantém restrições de acesso a seumercado, enquanto todos os outros fizeram ofertas ao Gats bastante abrangentese não deram nenhuma preferência ao Mercosul. Caso conceda acesso preferencialao Mercosul no setor de serviços financeiros, a Argentina, o Paraguai e o Uruguaipoderão transformar-se em plataformas de penetração no mercado internobrasileiro. Assim sendo, as regras de origem dos serviços beneficiados pelo processode liberalização sob o âmbito do protocolo de serviços do Mercosul precisam serbem definidas, determinando o nível de participação de capital estrangeiro permitidoem uma empresa para que seja considerada de origem brasileira, argentina, paraguaiaou uruguaia para fins desse Protocolo. Novas rodadas de negociações estãoprevistas para 1999.

C. Área de Livre-comércio das Américas

Na I Cúpula das Américas, realizada em Miami, em dezembro de 1994, ospresidentes de 34 países americanos, exceto Cuba, iniciaram o processo de formaçãoda Alca. Acordou-se que as negociações deverão estar concluídas até o ano de2005, quando se começará a eliminação progressiva das barreiras ao comércio eaos investimentos no continente americano.

Na II Cúpula das Américas, realizada nos dias 18 e 19 de abril de 1998,em Santiago do Chile, foi desencadeado o processo de negociação. O Brasil ficoucom a presidência do grupo de negociação sobre subsídios, antidumping e direitoscompensatórios. Além disso, dividirá a presidência com os Estados Unidos, naetapa final do processo negociador, entre 2002 e 2005. Os princípios norteadoresdas negociações são:

“a) o objetivo geral da negociação, que deverá concluir-se no mais tardaraté 2005, será estabelecer uma área de livre-comércio, por meio da diminuiçãoprogressiva das barreiras ao comércio de bens e serviços e aos investimentos;

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b) o acordo final sobre a Alca será equilibrado, abrangente, compatívelcom as regras e disciplinas da OMC e constituirá um compromisso único (‘nadaestará acordado até que tudo esteja acertado’);

c) a negociação será transparente e as decisões, baseadas no consenso;d) a Alca coexistirá com o Mercosul e os demais acordos de livre-comércio

e de integração do continente;e) a estrutura da negociação compreenderá a reunião de ministros,

responsáveis por supervisão e direção superiores; o Comitê de NegociaçõesComerciais, integrado pelos vice-ministros, que dará orientação permanente; enove grupos para negociar sobre: acesso a mercados, agricultura, subsídios,antidumping e direitos compensatórios, investimentos, serviços, direitos depropriedade intelectual, compras governamentais, políticas de concorrência, soluçãode controvérsias” (Lampreia, 1998).

Embora a idéia da Alca tenha sido proposta pelos Estados Unidos na ICúpula das Américas, realizada em dezembro de 1994 em Miami, o Brasil acabouassumindo a liderança dos países latino-americanos, ao rejeitar sistematicamentea idéia da criação imediata do livre-comércio no continente americano, por entenderque os países da América do Sul precisam de tempo para assimilar a nova etapa e,principalmente, alicerçar a sua economia e industrialização.

A amplitude da Alca não se limita, como sugere o nome, à formação deuma área de livre-comércio, mas representa um acordo global que pretende abrangeros serviços, inclusive os financeiros, as compras governamentais e os investimentos.Nesse sentido, procura aprofundar os processos de desregulamentação econômicae financeira, em um contexto de enormes assimetrias econômicas, financeiras etecnológicas entre os Estados Unidos e os demais países da região. A elevadaassimetria entre os países da Alca pode ser observada na magnitude do ProdutoInterno Bruto (PIB): o PIB dos Estados Unidos corresponde a mais de três vezesa soma dos outros 33 países (inclusive Canadá, Brasil, México e Argentina), isto é,75,65% do PIB da Alca, enquanto os demais países representam 24,35%. Aspequenas economias – onze dos 34 países da Alca tiveram em 1995 um PIBinferior a US$ 1 bilhão, sendo que oito destes nem sequer chegavam a US$ 100milhões de PIB anual – conseguiram um compromisso dos demais países de queterão tratamento diferenciado. A heterogeneidade também fica evidente secompararmos a renda per capita: entre os 34 países, o Canadá ostentava a maiorrenda per capita, no início da década, no valor de US$ 28,3 mil, nas Guiana, era deUS$ 250,00, menos do que o salário mínimo no Chile; já os pequenos países comoAntígua e Barbuda, Barbados e São Cristóvão e Névis, menos populosos do queas grandes cidades brasileiras, apresentavam renda per capita superior às daArgentina e do Brasil. A disparidade das riquezas nacionais pode ser aferida,também, pelas respectivas pautas de exportação. Uma análise superficial daeconomia dos 34 países demonstra que a maioria é exportadora de produtos agrícolas

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e matérias-primas, cujas cotações internacionais estão longe do valor agregadopelos produtos industriais. No que se refere aos serviços financeiros, a assimetriatambém fica patente: cada uma das novas instituições financeiras, produto dasmegafusões (Citicorp/Travelers, NationsBank/BankAmerica, BancOne/FirstChicago) que ocorreram nos Estados Unidos em abril de 1998, detém ativossuperiores à soma dos cinco maiores bancos privados brasileiros.

O Mercosul tem participado das reuniões do Grupo de Trabalho de Serviços(GTS) da Alca como um bloco, realizando reuniões de coordenação interna paraapresentar uma posição conjunta. Entre as posições acordadas está a de nãoavançar nas negociações de serviços antes de concluir o acordo de serviços intra-Mercosul.

Simultaneamente, o Mercosul vem ampliando seu espaço político eeconômico na região, visando a criação da Área de Livre-comércio Sul-americana(Alcsa), que está sendo chamada de Amercosul. Em primeiro lugar, o Mercosulassinou acordos comerciais com a Bolívia e o Chile, em 1995 e 1996,respectivamente. Em segundo lugar, os países do Mercosul e da ComunidadeAndina (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela) assinaram Acordo-quadropara a criação de uma zona de livre-comércio a partir de 1o de janeiro de 2000. OAcordo-marco para a Criação da Zona de Livre-comércio entre o Mercosul e aComunidade Andina prevê duas etapas de trabalhos. Até 30 de setembro de 1998,as duas partes deveriam negociar um acordo de preferências tarifárias sobre abase do patrimônio histórico, mas que poderia incluir produtos novos. Tal acordosubstituiria os de alcance parcial hoje existentes entre os países das duas regiões edeveria entrar em vigor em 1o de outubro de 1998, estabelecendo margens depreferências e incorporando as disciplinas comerciais vigentes no marco daAssociação Latino-americana de Integração (Aladi). Entre 1o de outubro de 1998e 31 de dezembro de 1999, o Mercosul e a Comunidade Andina deverão negociaro acordo de livre-comércio, abarcando o universo de produtos, para entrar emvigor no início do ano 2000.3 Mais do que um efeito econômico imediato, o acordotem grande importância política e representa o início da integração da América doSul. Além disso, a nova aliança fortalece a capacidade de negociação do bloco noprocesso de formação da Alca. Para o Brasil, esse acordo com os países andinoscristaliza a idéia que a integração hemisférica deve ser fruto de uma integraçãoentre os blocos regionais. Em terceiro lugar, durante a Cúpula de Santiago, oMercosul assinou também um Acordo-quadro de Comércio e Investimentos como Mercado Comum da América Central (Costa Rica, El Salvador, Guatemala,Honduras e Nicarágua).

Com o objetivo de ampliar seus laços com outros países ou blocoseconômicos, em dezembro de 1995, o Mercosul e a União Européia firmaram emMadri as bases de um Acordo-quadro a fim de constituir uma área de livre-comércioentre os dois blocos. A fase preliminar de negociações, iniciada com a assinatura

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do Acordo Marco Inter-regional de Cooperação, foi concluída em julho de 1998,quando a Comissão Européia terminou um levantamento de todos os aspectos dointercâmbio UE-Mercosul (comércio de bens, serviços, normas e disciplinascomerciais nas relações bilaterais).4 Esse acordo também exerceu uma importantefunção ao fortalecer politicamente os quatro países do bloco sul-americano nasnegociações com os Estados Unidos, em torno da criação da Alca.

Outra vertente constitui proposta da União Européia de realização daRodada do Milênio, ou seja, uma nova etapa de negociações multilaterais no âmbitoda OMC, que seria desencadeada no ano 2000, e procuraria aprofundar osresultados alcançados na Rodada Uruguai.5 Como declarou, Jório Dauster,embaixador do Brasil junto à União Européia na ocasião: “se a Rodada do Milênioassumir grande rapidez, pode esvaziar a negociação da Alca. A negociaçãomultilateral é prioritária para o país” (Marin, 1998).

Em suma, a estratégia diplomática brasileira parece encaminhar-se nosentido de que o livre-comércio nas Américas deve surgir como etapa final doprocesso de construção por blocos, ou seja, fortalecer o bloco sul-americano, aoincorporar o Chile, como país associado, e os países do Grupo Andino (Bolívia,Colômbia, Equador, Peru, Venezuela), seguido dos blocos da América Central.Procurar-se-ia, então, um fortalecimento regional para negociar em bloco, e emmelhores condições de barganha, com os Estados Unidos e o Nafta (North-AmericaFree Trade Area).

As resistências brasileiras nas negociações com os Estados Unidos naconstituição da Alca apóiam-se em uma visão crítica do “modelo de integração”derivado dos princípios e métodos da política comercial dos Estados Unidos noperíodo recente. A partir do início dos anos 80, a economia política da estratégiacomercial americana sofreu uma inflexão: cresceu a importância relativa dosmecanismos unilaterais e das relações bilaterais, enfraquecendo, conseqüentemente,a adesão ao multilateralismo. O menor comprometimento americano com omultilateralismo não se limitou a ampliar a disposição desse país em negociar acordosbilaterais e regionais, mas se fez acompanhar:

a) do aparato legal e institucional contra “práticas desleais de comércio”;b) e, a partir de 1988, de pressões a fim de que seus parceiros comerciais

se comprometessem com negociações com vistas à implementação de políticasem setores onde não havia obrigações contraídas no Gatt e onde os vínculos como comércio eram muitas vezes discutíveis.

Nesse sentido, a adesão dos Estados Unidos aos acordos regionaispermanece mediada pela funcionalidade desse movimento não só buscandoalternativas às negociações multilaterais, mas sobretudo aplicando um“unilateralismo agressivo” e “ameaças de retaliação” como metodologia denegociação. Isso significa que a legislação americana, os mecanismos unilateraisda sua política comercial e a composição política dos interesses domésticos

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supostamente afetados pelas negociações hierarquizam-se em uma escala superioraos compromissos assumidos nas negociações bilaterais ou regionais, mesmo quandoestas envolvam a constituição de uma área de livre-comércio. A imposição recentede medidas retaliatórias à Argentina por divergências quanto a sua Lei de Patentescorrobora essa proposição (Machado & Veiga, 1997).

Dessa forma, o “modelo” de tratamento das diversidades nacionais emtermos de regras e legislações, veiculado pelos Estados Unidos, apoia-se em uma“harmonização assimétrica” e reflete o primado do unilateralismo e da composiçãopolítica de interesses domésticos. Dado o forte desequilíbrio econômico e políticoentre os Estados Unidos e seus parceiros na integração hemisférica, essa assimetriapoderá traduzir-se nas características essenciais do modelo de integração. Ouseja, a estratégia de harmonização ou de “convergência institucional” poderá ficarreferida aos padrões e normas daquele país. No caso do Nafta, por exemplo, ficouevidente que os Estados Unidos impuseram uma metodologia de “harmonizaçãoassimétrica” de regras e legislações (Machado & Veiga, 1997).

Assim, as questões relacionadas à coesão econômica e social dos processosde integração e, em especial, os interesses dos países menos desenvolvidos poderãoreceber atenção secundária. As resistências por parte dos Estados Unidos à inclusãode temas relativos ao desenvolvimento econômico e à assistência aos setoresindustriais afetados pela integração durante as negociações do Nafta reapareceramno processo de implementação da Alca. Além disso, a evolução recente do Naftanão parece referendar as expectativas de que um arranjo de liberalizaçãopreferencial com os Estados Unidos preveja mecanismos de gestão dos custos detransição nos países menos desenvolvidos.

5. Considerações Finais

Apreende-se que as estratégias dos governos brasileiros recentes nasnegociações multilaterais foram defensivas, no sentido de ganhar tempo, a fim deconsolidar as reestruturações (produtivas e financeiras) internas. As negociaçõessobre o Protocolo de Serviços Financeiros no âmbito do Gats não fugiram àregra da diplomacia brasileira, pois os compromissos específicos assumidos pelogoverno brasileiro asseguraram um grau de liberalização equivalente às condiçõesexistentes no mercado financeiro doméstico. No caso dos serviços bancários, oestabelecimento de filiais e subsidiárias de instituições estrangeiras, bem comoaumento da participação estrangeira no capital de instituições brasileiras estãoassegurados tanto na oferta brasileira em conexão com o programa de privatizaçãode instituições financeiras públicas como pela cobertura do passivo de bancosbrasileiros em liquidação, de acordo com as Exposições de Motivos que procuramreestruturar o sistema financeiro nacional. Nas atividades de seguro, não há nalegislação brasileira qualquer regra que restrinja a participação do capital estrangeiro

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no mercado segurador doméstico. Além disso, a proposta também estabeleceu oIRB como temporário, aguardando regulamentação da atividade privada, ao mesmotempo em que reajusta sua situação financeira.

Assim, a oferta brasileira consolidou a legislação atual sem assumir novoscompromissos. Alguns serão revistos, mas nada ficou definido a priori. A ofertabrasileira prevê a introdução de compromissos relativos à participação do capitalestrangeiro em instituições financeiras, em um período de até dois anos após aadoção por parte do Congresso Nacional de legislação específica permitindo talparticipação (resseguro, cartão de crédito, factoring, seguro de acidentes detrabalho e seguro de embarcações inscritas no regime brasileiro).

Em suma, o Brasil consolida a política de liberalização do mercado deserviços financeiros (interna) e a transforma em um compromisso internacional,regulamentado pela OMC. Dessa forma, o regime multilateral de serviços financeirossob o Gats não deverá ter impactos significativos sobre a entrada de instituiçõesfinanceiras no Brasil. Embora o interesse estrangeiro no mercado doméstico deserviços financeiros tenha aumentado de forma considerável nos últimos anos,identificamos que os determinantes desse aumento inscrevem-se em um conjuntode fatores de ordem interna, tais como perspectiva de estabilização e de crescimentodo mercado doméstico, reestruturação do sistema financeiro, decisões de políticaeconômica etc., bem como nas estratégias de concorrência dos grandes bancosinternacionais e, em menor grau, no Acordo obtido sob os auspícios do Gats. Comoafirma Bevilaqua (1997, p. 74): “é difícil imaginar que compromissos que configuramum grau de liberalização como o subjacente à oferta brasileira no Gats possam serresponsáveis pelo substancial aumento do interesse de investidores estrangeirospelo mercado doméstico no período recente.”

No que se refere aos processos de integração regional, a liberalizaçãofinanceira no Brasil encontra-se em um estágio menos desenvolvido do que nosoutros países do Mercosul. Essa assimetria está refletida nos compromissosassumidos pelos países do Mercosul nas negociações sobre serviços financeirosno âmbito do Gats. A Argentina, por exemplo, desde o início da década dos 90, temconta de capital aberta. O processo de liberalização financeira foi mais intenso ebastante abrangente, sobretudo nos serviços bancários. Assim, a Argentina assumiucompromissos específicos que não prevêem nenhuma limitação de acesso aomercado no que diz respeito ao estabelecimento de presença comercial nos serviçosfinanceiros, exceto seguros. Além disso, o consumo de serviços bancários noexterior, que não é permitido no caso brasileiro, não tem nenhum tipo de restriçãono caso argentino. O mercado argentino de seguros está fechado a novasseguradoras, embora a compra de empresas por estrangeiros seja permitida(Bevilaqua, 1997, p. 82). O Uruguai também tem conta de capital aberta, desdemeados dos anos 70.

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72 MARCOS ANTONIO MACEDO CINTRA

Dada essa assimetria no grau de liberalização financeira, uma abertura demercado por parte do Brasil no âmbito do Mercosul, especialmente no setor deserviços bancários, seria equivalente a uma liberalização multilateral. O mesmoargumento se aplica às negociações no âmbito da Alca, que terão por base osacordos bilaterais e sub-regionais já existentes. Uma abertura de mercado para ospaíses do hemisfério corresponderia a uma liberalização em caráter multilateral.

Assim sendo, a liberalização financeira em âmbito regional está bastantelimitada pelas posições brasileiras no contexto da OMC, contando que o país consigaresistir às pressões americanas. Em caso afirmativo, avanços na liberalizaçãofinanceira deverão ocorrer mediante negociações multilaterais, com a convergênciada regulamentação brasileira aos padrões dos outros membros de comércioregionais. A curto prazo, poderá ocorrer também harmonização da legislaçãoprudencial, bem como serem levantadas outras questões que não envolvem acessoa mercado e tratamento nacional.

No setor de seguros, também há divergências importantes entre os membrosdo Mercosul, sobretudo em relação às exigências de capitalização e constituiçãojurídica das empresas de seguros. O padrão de capital mínimo requerido no Brasilé substancialmente maior do que nos outros países. Em relação à constituiçãojurídica, a forma societária admitida no Brasil é a das sociedades anônimas comações nominativas, já nos outros países aceita-se a forma de organização emsociedades anônimas com ações ao portador.

Finalmente, apreende-se que a diplomacia brasileira permanece, por umlado, bombardeada em vários fronts no sentido de ampliar as condições de acessoao mercado doméstico. As pressões por maior integração financeira são exercidasem diferentes fóruns: “Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços” na OMC,“Protocolo sobre Serviços Financeiros” no Mercosul, na Alca, no FMI para aberturada conta de capitais, no Acordo Multilateral sobre Investimento na OECD, noComitê Hemisférico de Assuntos Financeiros,6 etc. Por outro lado, adotou estratégiasemelhante ao atuar em diferentes blocos regionais: acordo com a ComunidadeAndina, com a Comunidade dos Países da América Central, com a União Européia,apoio à implementação da Rodada do Milênio, etc. O confronto dos interesses nasdiferentes instâncias de negociação, com as forças políticas e econômicas envolvidas,vai consolidando as transformações possíveis.

De maneira geral, cabe aos negociadores brasileiros continuar naresistência, defensivamente, a fim de consolidar o processo de reestruturaçãofinanceira e produtiva interna, sobretudo no que se refere às negociações paraimplementação da Alca, o que nada tem a ver com protecionismo. Além disso,como a Alca não constitui o único eixo de integração comercial da política americana,uma vez que os Estados Unidos estão desenvolvendo dois outros projetos, umvoltado para a Europa e outro para a Ásia (Asia Pacific Economic Cooperation –APEC), a opção mais vantajosa para o Brasil é a de perseguir, simultaneamente,

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A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA EM NEGOCIAÇÕES MULTILATERAIS E REGIONAIS... 73

uma política de integração multilateral abrangendo os três grandes blocos (Nafta,União Européia e Ásia). Essa estratégia poderia consolidar a posição do Brasilcomo um global trader com interesses diversificados e com preferência por umsistema de comércio multilateral e não-discriminatório. Para se ter uma idéia dadiversificação geográfica do intercâmbio comercial brasileiro, em 1996, 27% dasexportações se dirigiam aos países da União Européia, 20% aos países do Nafta(excluindo o México), 16% aos países da Ásia, 8% aos países da Aladi (excluindoo Mercosul) e 15% aos países do Mercosul.

Maio de 1999

Notas

1 Trata-se de um fragmento de uma pesquisa mais ampla intitulada Abertura Externa e ServiçosFinanceiros, coordenada por Maria Cristina Penido de Freitas, e que contou com a participaçãode Daniela Magalhães Prates. A pesquisa foi financiada pela Fundap e pelo Instituto dePesquisa Econômica Aplicada/Seplan. Sou grato aos comentários e sugestões de Paulo Robertode Almeida, Fernando Meirelles de Azevedo Pimentel, Benoni Belli, Mário Marconini, JosuéPellegrini, Carlyle Ramos Vilarinho e Luiz Afonso Simoens da Silva.

2 Devemos salientar, porém, que a crise dos países emergentes atrasou a ratificação do Acordo.Brasil, Indonésia, Filipinas, Malásia, África do Sul, Venezuela e México ainda não deramindicação na OMC de quando ratificarão os compromissos assumidos. A Austrália e a CostaRica sugeriram que a data de entrada em vigor do Acordo fosse transferida para o fim de junhode 1999 (Moreira, 1999).

3 Devemos ressaltar que o Mercosul e a Comunidade Andina ainda não conseguiram chegar a umentendimento conjunto para um acordo transitório de preferências tarifárias. Em abril de 1999,após o esgotamento dos prazos previstos, o Brasil decidiu unilateralmente prorrogar por 90dias o prazo de vigência dos antigos acordos bilaterais de comércio com os países andinos,impedindo o cancelamento das preferências tarifárias no comércio de bens e serviços existentes.Até 31 de junho de 1999, o governo brasileiro, individualmente, vai procurar unificar aspreferências tarifárias com os países andinos, formalizando um acordo para entrar em vigor emjaneiro de 2000. Segundo o embaixador José Alfredo Graça Lima, chefe da subsecretaria geral deassuntos econômicos do Itamaraty: “o Brasil tem interesse comercial claro nos países andinos,que são um mercado importante para o escoamento de nossas manufaturas”, o que justifica aefetuação do Acordo. Porém, afirmou que “o acordo entre o Brasil e a Comunidade Andina nãoexclui a possibilidade de, no futuro, o Mercosul negociar, em bloco, a redução de tarifas comPeru, Equador, Colômbia e Venezuela (Ferrari, 1999).

4 Está previsto um encontro de cúpula dos 15 chefes de governo e de Estado da União Européiae de 32 países da América Latina em 28 e 29 de junho de 1999 na cidade do Rio de Janeiro. Aparticipação de Cuba ainda não foi confirmada (Moreira, 1998).

5 Tudo indica que, na III Conferência Ministerial da OMC, que será realizada em dezembro de1999, na cidade de Seattle nos Estados Unidos, será lançada a Rodada do Milênio, com duraçãoprevista de três anos. Porém, os Estados Unidos ainda precisam obter no Congresso a aprovaçãode um fast track para participar ativamente das negociações. Ou seja, precisam obter umaautorização do Congresso para que o Executivo americano negocie acordos internacionais quenão poderão ser alterados pelo poder Legislativo.

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74 LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA

6 Foi criado, em dezembro de 1994, por iniciativa do Tesouro americano, com o objetivo deexplorar formas de desenvolvimento e integração dos mercados de capitais do continenteamericano. O Comitê está sendo impulsionado pelo subsecretário do Tesouro dos EstadosUnidos, Lawrence Summers, em fóruns que congregam os ministros da fazenda dos paísesamericanos.

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75O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

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Resumo

Face à nova inserção financeira do Brasil, procura-se investigar osdiferentes processos de negociação multilateral e regional em que o país temparticipado. Busca-se saber se o processo de abertura e liberalização financeirafoi condicionado por pressões externas, consubstanciadas nos diferentes fóruns denegociações multilaterais e regionais. Analisam-se, então, as seguintes negociaçõessobre comércio de serviços financeiros: a) o Acordo Geral sobre o Comércio deServiços (Gats); b) o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e; c) a Área de Livre-comércio das Américas (Alca).

Abstract

Having the new Brazilian financial insertion as its background, the articleinvestigates the different processes of multilateral and regional negotiation in whichBrazil has participated. It intends to understand if the process of financialliberalization was conditioned by outer pressure, concretized in different multilateraland regional fora. It analyzes, then, the three following negotiations of the financialservices trade: a) the General Agreement on Trade in Services; the South CommonMarket (Mercosul), and; c) the American Free Trade Area (Afta).

Palavras-chave: Brasil. Negociações financeiras. Serviços financeiros.Key-words: Brazil. Financial negotiations. Financial services.

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A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA EM NEGOCIAÇÕES MULTILATERAIS E REGIONAIS... 77

A vida longa das linhas retas:cinco mitos sobre as fronteiras naÁfrica Negra1

WOLFGANG DÖPCKE*

Introdução

As fronteiras dos Estados africanos modernos são um polêmico objeto deestudo. São apontadas, tanto no discurso acadêmico quanto na opinião pública2 ,como um dos principais culpados pela instabilidade política e pelos conflitos nocontinente. A maneira arbitrária pela qual as fronteiras foram impostas àssociedades africanas pelos colonizadores europeus, ignorando as realidades étnicas,geográficas, ecológicas e políticas existentes3 , teria criado as raízes de “one ofAfrica’s greatest problems that developed with the European conquest.”4 O ditofamoso de Lord Curzon de que “frontiers are indeed the razor’s edge on whichhad suspended the modern issues of war and peace,” parece ser verdadeiro tambémpara a África.5

O termo fronteira é aqui referido como a divisa internacional que delimitao território sobre o qual um Estado com status e papel internacional exerce soberaniae jurisdição. Esta noção de fronteira, ao contrário da frontier entendida na línguainglesa como uma zona6 , refere-se a uma linha, “described in words in a treaty,and/or shown on a map or chart, and/or marked on the ground by physical indicators[...]. A boundary has no breadth and a meeting of boundaries [...] involves a pointand not a zone of joint sovereignty.”7 A criação de fronteira na época modernaenvolve um processo histórico com três fases distintas: a) a alocação, sendo umadivisão “bruta” e inexata de território; b) a delimitação, sendo a descrição dopercurso da linha fronteiriça em um tratado, em um mapa ou em outro documento;c) a demarcação física da fronteira na paisagem.

Os atuais 54 Estados africanos8 estão divididos por 109 fronteirasinternacionais que medem no conjunto cerca de 50.000 milhas e, dentro destaperspectiva, a África é o continente mais dividido. As fronteiras modernas na

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 77-109 [1999]* Professor Adjunto em História Contemporânea do Departamento de História da Universidade deBrasília.

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78 WOLFGANG DÖPCKE

África são, em elevada proporção, consideradas como “artificiais”. Somente 26%delas segue linhas dadas pelo relevo natural (como montanhas, rios, linhas divisóriasde águas). Quase a metade das fronteiras corresponde a linhas astronômicas e30% a linhas matemáticas.9 As fronteiras também dividem o que antigamente foidenominado áreas tribais e o que hoje aparece mais como “áreas culturais”. Aindaque tenhamos em mente a complexidade e a impossibilidade de se atribuir limitesexatos a fenômenos tão flexíveis e fluidos como culture area ou denominaçãoétnica, podemos afirmar que, na África contemporânea, muito poucas fronteirascoincidem com as culture areas e que entre 131 e 187 destas culture areas,respectivamente “áreas tribais”, estão divididas entre um ou mais Estados.10

No debate sobre os conflitos políticos na África contemporânea, comumentedestaca-se o papel das fronteiras e suas origens coloniais como uma das principaisvertentes. Entretanto, este discurso, dominado por cientistas políticos, recorrefreqüentemente a estereótipos e mitos e se recusa a reconhecer a complexidadedo assunto, especialmente na sua dimensão histórica. É objetivo deste trabalhoconfrontar e discutir estes mitos sobre fronteiras na África. Ao contrária do discursopopular, será argumentado que na África pré-colonial existiam claras noções delimites dos espaços políticos e que, desta forma, o conceito de fronteira trazidopelos colonizadores europeus não representava muita novidade para as sociedadesafricanas. Será demonstrado, também, que o papel da Conferência de Berlim de1884/5 na delimitação das fronteiras foi muito limitado e que o respeito às fronteirascoloniais durante a transferência de poder político do sistema colonial para osEstados independentes na África não representou um automatismo, mas foi oresultado de um processo político complexo, que articulava várias alternativas eopções. Será argumentado também que, em vez de simplesmente ignorar asfronteiras ou de aceitá-las como barreira insuperável, a população africanafronteiriça tentou se aproveitar das fronteiras e manipulá-las para melhor serviraos seus interesses. Finalmente, será demonstrado que fronteiras, na África moderna,sejam elas “artificiais” ou não, não representam um fator importante nos conflitosentre os Estados, ou mesmo dentro deles.

Mito 1: O conceito de fronteira política é alheio às comunidades africanaspré-coloniais e foi “importado” do contexto cultural ocidental

Um aspecto importante do argumento de que as fronteiras modernas docontinente africano são “artificiais” é a afirmação de que ou as fronteiras políticasem si mesmas, ou o conceito de fronteira como linha reta, não existiam na Áfricapré-colonial. Uma fonte do argumento da diferença entre fronteiras pré-coloniaise modernas é a suposição de que, na época pré-colonial, o “bem escasso” não eraa terra mas o homem, e que a competição política e as guerras focalizavam acaptura de população e não de terras. Dominação política, jurisdição e construção

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A VIDA LONGA DAS LINHAS RETAS: CINCO MITOS SOBRE AS FRONTEIRAS NA ÁFRICA NEGRA 79

de identidades teriam se baseado nas relações entre pessoas e não estariamvinculadas a território. Zartman, por exemplo, argumenta que era o povo quemdemarcava a extensão geográfica de um Estado africano pré-colonial e que nãoeram os limites territoriais que determinavam a lealdade do povo.11

Mas este argumento, pressupondo uma contradição entre territorialidadee parentesco como base de poder político, é problemático. Por maior que sejam oslaços e lealdades entre a linhagem dos chefes e os seus súditos, as sociedadesafricanas precisavam de terras para sobreviver. Por isso, dominação sobre pessoase território coexistiam. J. Koponen, por exemplo, argumenta que, embora o sistemade parentesco constituísse a base da organização social e política na Tanzânia pré-colonial, o princípio da territorialidade – que implica fronteiras – também tinharelevância. Já no século XIX, talvez desde o século XVII, predominavam chefiascom fronteiras nitidamente esboçadas. Aspectos rituais de dominação política econstituição social (como, por exemplo, alguns cultos religiosos regionais e tambémo rainmaking) possuíam uma clara dimensão espacial. Na análise sobre aPondolândia na África do Sul, W. Beinart identifica um processo histórico dodesdobramento do domínio baseado em territorialidade. O poder dos chefes sefundamentava principalmente sobre as pessoas e se baseava em lealdade eparentesco, embora o princípio espacial de controle nunca tivesse estado ausente.Com a crescente permanência das estruturas de povoamento, a demarcação daschefias teriam alcançado maior importância.12

Existem, nas mais diversas fontes, fortes indícios de que sociedadesafricanas tinham uma clara noção de territorialidade, inclusive de fronteiras. JohnThornton enfatiza isso: “Anyone who reads the accounts of nineteenth centurytravellers is aware of the African concepts of boundaries before the colonial period.They frequently note that this or that point makes the border between the domainsof this or that ruler, and those who travel with trading caravans are reminded inmore tangible ways – they must pay taxes, transit tolls and the like upon makingthese crossings. [...] Political control was symbolized by these two powers, to taxand to give justice, and they were definitely confined within borders. Refugees,sometimes even whole villages could escape the jurisdiction of one authority bycrossing a river or a forest, and those fleeing justice might be harbored or extraditedby authorities who also had this consciousness.”13

Melhor documentadas são as fronteiras dos reinos e dos impérios pré-coloniais do século XIX. O Califado de Sokoto, por exemplo, demarcou o seuterritório e construiu cidades muradas nas suas fronteiras. Os Emirados de Bauchie Kano, que se localizavam também na região da atual Nigéria, seguiram a mesmapolítica.14 O império de Asante se caracterizava por uma organização territorial ecom clara identificação geográfica dos limites de poder político do Estado e doAsantehene.15 As divisas entre os reinos dos Yoruba foram identificadas atravésde elementos naturais ou foram marcadas artificialmente pelo homem. A

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80 WOLFGANG DÖPCKE

demarcação física de fronteiras é também relatada com relação a regiões daTanzânia pré-colonial e ao território da atual Uganda.16 Grupos que se sustentavamprincipalmente da caça ou da pecuária transumante, como os Khoikoi ou os Massai,também tinham territórios claramente delimitados.17

A segunda parte do argumento sobre o desconhecimento do conceito defronteira na África pré-colonial se refere ao tipo de fronteira. Argumenta-se, nestesentido, que não se conhecia na África pré-colonial o conceito de fronteira comolinha (imaginada ou não) e que, onde existiam fronteiras, estas não eram fixas erígidas como no século XX. Faz parte deste raciocínio a idéia de que a noção defronteira como linha não somente teria sido importada com a colonização, masque também era na própria Europa um conceito relativamente recente, resultantede um processo que havia substituído a fronteira tipo zona.18

Os exemplos citados acima e muitos outros que poderiam ser mencionadosmostram, todavia, que a noção de fronteira como uma linha não era desconhecidana África pré-colonial. Além de dividir as terras das famílias dentro das unidadespolíticas, delimitava também os limites de chefias ou reinos, muitas vezes rigidamente.Mas, provavelmente, isto não era a regra. Muitos autores argumentam que asfronteiras pré-coloniais entre as unidades políticas consistiam mais em zonas doque em linhas estreitas. As unidades políticas, sejam elas pequenas chefias oureinos de grande extensão, seriam cercadas por terras sem dono (Niemandsland)ou Grenzwilderniss. A fissão de sociedades estabelecidas, a migração e a conquistadeste espaço inabitado representaria, segundo Kopytoff, o ciclo eterno dareprodução e da ampliação geográfica do modelo africano da sociedade patriarcalque, por meio desta conquista da frontier (no sentido americano) se multiplicaria,mas contrariamente à idéia de Turner sobre a frontier americana não setransformaria.19

Sem dúvida, estas frontier zones existiam, mas só como uma possibilidadeentre outras. Regiões com povoamento mais denso não conheciam aGrenzwilderniss e mesmo regiões de floresta tropical virgem, sem cultivo, tinham“donos”. Por exemplo, a migração dos cultivadores de cacau de Akwapim para afloresta virgem de Akim Abuakwa (hoje Gana) a partir do final do século XIX, tãodetalhadamente pesquisada por Polly Hill, demonstra esta ausência de terras sem“dono”, assim como a inclusão de amplas regiões de terras inabitadas na jurisdiçãodas chefias.20 Nugent ainda identifica outros tipos de fronteira, dependendo daatividade econômica principal e do caráter político-militar da sociedade que afronteira delimita.21

Uma caraterística marcante de Estados na África pré-colonial, e sobretudodaqueles formados no século XIX, era uma espécie de soberania graduada, sendoabsoluta no centro do Estado e ficando mais fraca na periferia. Por exemplo, D.Beach sugeriu, para o Estado Mwene Mutapo e para aquele dos Ndebele, umadivisão da territorialidade em três zonas principais: a) o Estado nuclear; b) uma

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zona constituída por chefias que tinham que pagar tributos, mas que mantiveramuma certa independência; c) uma zona que regularmente era sujeita a saquesviolentos. A clareza e a eficácia das fronteiras diminuíam do centro para a periferiado Estado.22

Esperamos ter demostrado que o conceito de fronteiras políticas não estavatão alheio às comunidades africanas pré-coloniais como muitas vezes alegado. Foiexplicado também que um tipo de fronteira pré-colonial africana não existia. Ocaráter das fronteiras africanas pré-coloniais variava bastante, dependendo demuitos fatores, como o sistema político e econômico ou a proporção entre terra epopulação. Portanto, é importante sublinhar que, para o continente como um todo,a fronteira “importada” não representava uma novidade absoluta.

O que, então, as fronteiras pré-coloniais separavam? É essencialcompreender que elas separavam entidades políticas, de tamanho muito variado,e não entidades culturais, lingüísticas ou étnicas. Em regra, as entidades políticas,sejam elas pequenas chefias ou grandes impérios, eram menores ou maiores doque as identificações étnicas ou culturais. Para citar mais uma vez John Thornton:“But over and over again, we see that these borders were not ‘ethnic’. Mostly onesees that jurisdiction was local, held by a small polity that never had a prayer ofbeing dominant over a whole ethnic group, and to the degree that they aspired tocontrol other groups they did this with their immediate neighbors who might ormight not be linguistically or culturally similar. Even large polities, however, usuallyexercised their control by taking these smaller jurisdictions and agglomerating theminto a larger polity over which they might appoint officials or station garrisons, butrarely did they interfere too much.”23

Assim, as pequenas chefias se espalharam em um contínuo cultural semlimites perceptíveis, como no planalto zimbabueano. Também, as fronteiras dosgrandes Estados ou impérios nunca englobaram apenas uma etnia, língua ou grupocultural. Eram máquinas de integração de grupos, sociedades, chefias de diversasorigens, tradições, línguas etc. Os grandes Estados, seja Old Oyo, Ashanti, Songhaina África Ocidental, os chamados impérios secundários de século XIX na ÁfricaOriental, os Ndebele, Zulu ou Sotho na África Austral, todos estes Estadosintegravam grupos diferentes em termos de descendência, cultura, língua etc. Aetnicidade poderia ter tido uma certa importância, mas não para definir a “identidade”do Estado, que era definida politicamente, e sim para estruturar a hierarquiainterna.24

Mito 2: As fronteiras coloniais – e, por conseqüência, modernas – foramdelimitadas na Conferência de Berlim de 1884/85. Naquela Conferência,as potências coloniais concordaram, também, em estabelecer regras fixase consensuais que depois orientariam a chamada Partilha da África

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A Conferência de Berlim sobre a África Ocidental de 1884/525 está entreos acontecimentos históricos mais bem explicados.26 Mas, apesar disso, estaConferência é mitificada tanto junto à opinião pública quanto em trabalhos científicose lhe é atribuído, erroneamente, um significado absoluto para a Partilha da Áfricaentre as potências coloniais européias. A visão popular sobre a Conferência temas suas origens, em parte, na encenação do acontecimento: os delegados, emnúmero de 15, e Bismarck como anfitrião, reuniram-se na residência oficial deBismarck na Wilhemstrasse, junto a uma mesa em forma de ferradura sob umenorme mapa do continente africano. As idéias populares e públicas de que naConferência foi realizada a Partilha da África, e de que os delegados desenharamno grande mapa com uma régua as linhas retas que delimitaram as esferas deinfluência entre as potências européias foram influenciadas por esta encenação.27

Esta imagem popular da Conferência foi reproduzida em publicações sérias e emalgumas obras científicas. Kwame Nkrumah, ex-presidente de Gana e pensadorpan-africanista declara, por exemplo, que “the original carve-up of Africa [was]arranged at the Berlin Conference of 1884”28 . Basil Davidson, talvez o maisconhecido historiador africano da atualidade, argumentava que “in 1884-5, at aconference in Berlin [the European powers] agreed to invade and take Africawithout fighting each other. They marked out ‘spheres of interest’”.29

Mantém-se, ainda, um outro mito acerca da Conferência, este ainda maisforte do que o anterior: o de que foram ali estabelecidas regras e princípios clarospara a Partilha da África que se condensariam no chamado princípio da “ocupaçãoefetiva”. Este princípio significaria que nenhuma potência colonial poderia fazervaler suas reivindicações coloniais (junto às outras potências coloniais) sem tercontrole efetivo do território reivindicado. Somente um acordo com chefes ou reisafricanos, os assim chamados tratados de proteção, não bastaria para fundamentaras reivindicações territoriais. Esta interpretação estende-se pela literatura comoum fio condutor sem, porém, corresponder às resoluções da Conferência.30

O que realmente foi decidido na Conferência de Berlim e qual a suarelevância para a Partilha da África? A Conferência foi inaugurada por Bismarckno sábado, dia 15 de novembro de 1884, e encerrou-se no dia 26 de fevereiro de1885. As 15 nações participantes, a maior parte delas sem interesses coloniais oucomerciais na África, estavam representadas pelos seus embaixadores.31 A razãoinicial da Conferência foi a recusa da França e da Alemanha em reconhecerem oacordo anglo-português de junho de 1884. Neste acordo, que foi precedido poruma disputa entre a França, Portugal e a Associação Internacional da África doRei Leopoldo II sobre a região do rio Congo e a sua foz, a Inglaterra reconheceuas antigas e constantes reivindicações de Portugal de exercer hegemonia históricasobre a região do Congo. Por meio deste acordo, a Grã-Bretanha intencionavacolocar Portugal como barreira contra possíveis investidas coloniais de outrosEstados, sobretudo da França. Bismarck, profundamente cético a respeito da idéia

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colonial e partidário do livre comércio na África, viu na desavença entre a Inglaterrae a França uma oportunidade de aproximação com a França. Embora ele tenhaaprovado um limitado engajamento alemão na África, ele pensava exclusivamentena dimensão estratégica européia. Para ele, as aquisições na África, assim como aConferência, somente serviam para impedir o surgimento de um campo inimigo naEuropa dirigido contra a Alemanha.

Bismarck definiu claramente no seu discurso de abertura as três metas daConferência: a garantia de liberdade de comércio e da navegação nos rios Congoe Níger e a conclusão de um acordo sobre os critérios de futuras anexações naÁfrica. Bismarck procurou deixar claro que a Conferência não trataria de questõesde soberania, isto é, da partilha territorial da África ou de reivindicações territoriais.Os dois primeiros pontos de discussão, podemos argumentar, eram mais anticoloniaisque coloniais. Procediam do liberalismo comercial e se destinavam contra omonopólio do comércio colonial. O terceiro ponto criou uma resolução contraditória,que abaixo abordaremos, que foi ultrapassada pela realidade, já na época daConferência.

A Conferência aderiu à pauta encaminhada por Bismarck. Não foramdiscutidas reivindicações territoriais, muito menos foi decidida a Partilha da África.Em um único caso, os delegados se dedicaram a reivindicações territoriais, porémde forma informal e fora das reuniões. Fecharam uma série de acordos bilateraiscom os representantes da International Congo Association, que reconheceram oCongo (Belga) como um Estado livre, independente e soberano.

As resoluções mais claras adotadas pela Conferência fortaleceram o espíritoliberal e se referiram à garantia do livre comércio na bacia do Congo, uma enormeregião, que se estendia pela parte central do continente africano, bem como àgarantia da livre navegação, mesmo em caso de guerra, nos rios Congo e Níger.32

O tema mais debatido, isto é, o assunto verdadeiramente político e polêmico, foi aformulação de critérios para justificar reivindicações coloniais. A Alemanha e aFrança defenderam a diferença entre “anexação” e “proteção” e formularam oprincípio da “ocupação efetiva” como condição para o reconhecimento de domíniocolonial. Com a imposição deste princípio, assim pensavam ambos os Estados,poderia a hegemonia colonial da Grã-Bretanha ser contida, já que esta semprepreferiu fechar tratados de proteção mais flexíveis, em vez de anexar as colôniasformalmente. A Grã-Bretanha recusou o princípio da “ocupação efetiva” porprotetorados e fez prevalecer suas idéias na Conferência. Após longa discussão,Bismarck uniu-se à posição da Grã-Bretanha e formulou o famoso capítulo VI daAta Geral da Conferência, que mais tarde deu motivo para interpretaçõescontraditórias.33 O Artigo 34 da Ata Geral estabelecia o dever de informar osoutros Estados signatários em caso de uma ocupação de território colonial e oArtigo 35 formula o domínio efetivo como pré-condição para o reconhecimentodas reivindicações coloniais – porém, somente em relação à possessão futura de

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territórios nas costas da África. Com esta restrição, a formulação do princípio da“ocupação efetiva” torna-se insignificante porque, no momento do encerramentoda Conferência, a costa africana já se encontrava partilhada entre as potênciascoloniais européias. As formulações do Artigo 35, portanto, não se adequaram àsreivindicações coloniais no interior da África ou no Hinterland da costa. O chamadoconceito de Hinterland, considerado pela literatura como um ilimitado direito sobreos territórios do interior atrás da linha costeira depois da ocupação do litoral, nãofoi sequer discutido, muito menos sancionado na Conferência.

Qual, então, a importância da Conferência para a partilha do continenteafricano? A literatura pertinente assinala que o papel da Conferência é e foisuperestimado. Hargreaves mostra que as resoluções da Conferência tiverampequeno efeito prático sobre a futura partilha da África.34 Pakenham resume aimportância da Conferência com as seguintes palavras: “There are thirty-eightclauses to the General Act, all as hollow as the pillars of the great saloon. In theyears ahead people would come to believe that this Act had had a decisive effect.It was Berlin that precipitated the scramble. It was Berlin that set the rules of thegame. It was Berlin that carved up Africa. So the myths would run. It was reallythe other way round. The scramble had precipitated Berlin. The race to grab aslice of the African cake had started long before the first day of the conference.And none of the thirty-eight clauses of the General Act had any teeth. It had set norules for dividing, let alone eating the cake.”35

No entanto, a Conferência não ficou sem impacto. Popularizou a idéiacolonial junto à opinião pública e, assim, acelerou a corrida pela a África. O princípioda “ocupação efetiva”, que a Conferência limitou à costa, adquiriu certa importânciadurante a partilha do interior do continente. O princípio, portanto, não foi inventadopela Conferência. Há muito existia.36 No entanto, ainda que só houvesse sidoformulado para o litoral, a aplicação do princípio estendeu-se, na prática, ao interiorda África e aos protetorados. A Grã-Bretanha, que conseguiu impor na Conferênciasua recusa ao princípio, acabou adotando-o, e argumentava, por exemplo na disputacom Portugal, em 1890, sobre a limitação fronteiriça entre Moçambique e osterritórios britânicos da África Central (Malaui e Rodésia do Sul), que se tratavado Art. 35 da Ata de Berlim de direito internacional, que também seria válido parao interior da África. Humilhado, Portugal cedeu nesta luta, menos em função,porém, dos argumentos jurídicos britânicos, que pela imponência da armada britânicano Atlântico e no Oceano Índico.37

Em seu trabalho sobre a delimitação fronteiriça da Libéria, Gershoni mostracomo o princípio da “efetiva ocupação” foi usado pela França e pela Inglaterrapara questionar a soberania da Libéria no interior e para alargarem suas própriascolônias, em prejuízo da Libéria. Antes da Conferência de Berlim bastava aconclusão de um acordo com os chefes locais para constituir uma reivindicaçãoterritorial. Depois da Conferência, estes acordos perderam o valor e a França e a

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Inglaterra passaram a insistir no controle efetivo dos territórios disputados. Elasusaram o princípio não para fundamentar suas próprias reivindicações, mas comoprova da falta de controle efetivo por parte da Libéria. Embora o Estadoindependente da Libéria tenha pedido muitas vezes intermediação e intervençãodiplomática de seu protetor informal, os Estados Unidos, não pode conter totalmentea expansão territorial britânica.38

Em outras ocasiões, o princípio da ocupação efetiva não exerceu nenhumpapel ou um papel muito subordinado. A Grã-Bretanha, por exemplo, reconheceuo tratado de proteção concluído entre a Alemanha e os Duala como prova efetivapara as reivindicações coloniais alemãs sobre Camarões. A questão do controleefetivo, ou melhor, a falta desse controle, não foi levada em conta. Os inúmerosacordos bilaterais entre as potências coloniais européias, por meio dos quais foramestabelecidas, entre 1885 e 1898, as esferas de influência no continente, a troca deterritórios e a delimitação de fronteiras recorreram mais aos interesses e aoconsenso das potências do que ao princípio da ocupação efetiva. Isto demonstraque o princípio da ocupação ou controle efetivo não prevaleceu como princípiouniversal durante a Partilha da África. Foi usado, porém, para estabelecerreivindicações pontuais ou para recusar reivindicações de outros Estados. Foiutilizado, sobretudo, pelas grandes potências coloniais como argumento seletivo(atrás do qual se escondia uma ameaça política e militar), de forma a expandir osseus próprios territórios coloniais às custas dos Estados mais fracos.

Se na Conferência de Berlim não foi realizada a Partilha da África, nemforam estabelecidas as regras definitivas para a Partilha, quando e como foramestabelecidas as fronteiras coloniais?

A maioria das fronteiras entre as esferas de influência das diferentespotências coloniais e, com isso, as fronteiras entre os futuros territórios coloniais,foram estabelecidas consensualmente em acordos bilaterais após a Conferênciade Berlim. A maioria destes acordos foram concluídos nos anos 90. Entre eles,devem ser destacados: os acordos germano-britânicos de 1886 (sobre ÁfricaOcidental) e de 1890 (o chamado Acordo Helgolândia-Zanzibar), o acordo anglo-italiano (1891), o acordo franco-luso (1886), o acordo anglo-luso (1890) e aConvenção da Nigéria (Oeste da África) e a convenção franco-britânica do ano1898 (sobre o Egito e o Sudão), que foi fechado após a Crise Fashoda.39

Estes acordos delimitaram, em geral, o percurso fronteiriço entre aschamadas esferas de influência de forma superficial. Foram seguidos por váriascomissões bilaterais de delimitação e demarcação, que estipulavam o local exatoda fronteira, e cujos trabalhos se estenderam até as primeiras décadas do séculoXX. Em muitos setores de fronteira o trabalho de demarcação não foi realizado,sobretudo nas antigas fronteiras internas das federações coloniais francesas (AOFe AEF), o que provocou, no período pós-colonial, divergências na interpretação dadelimitação fronteiriça e, em alguns casos, levou a tensões entre os Estados africanos.

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Mito 3: As fronteiras coloniais foram transformadas automaticamente esem contestação em fronteiras dos Estados africanos independentes

Ainda que seja, com certeza, correto observar que o atual percurso daslinhas retas divisórias entre os Estados africanos tem origem colonial, atransformação das fronteiras coloniais em limites dos Estados independentes nãoocorreu sem contestação. Na realidade, resulta de um processo político que sedesdobrou principalmente entre 1956 e 1963, envolvendo a nova elite africana bemcomo as potências coloniais. Conceitos alternativos que rejeitavam a divisão colonialdo continente africano como um modelo para o futuro foram articuladosespecialmente durante este período chave da descolonização.

As contestações contra a utilização das divisões coloniais como fronteirasde uma África independente partiram de perspectivas diferentes. Em primeirolugar, os nacionalistas contestaram a delimitação das fronteiras coloniais comoalgo contrário aos interesses da população local, muitas vezes etnicamente divididapor fronteiras entre os Estados. Expressão específica deste sentimento foram asmanifestações irredentistas, baseadas ou em argumentos históricos (caso deMarrocos), ou étnicos (caso da Somália) ou em ambos os argumentos (caso dosEwe de Gana e Togo). Em segundo lugar, lutava-se em favor da preservação dasgrandes federações coloniais francesas na África (a África Ocidental Francesa ea África Equatorial Francesa) e contra a “balcanização” destes territórios emEstados separados. Em terceiro lugar, a tradição pan-africanista de unidade africana,representada principalmente por Nkrumah, lutava pela superação da divisão políticado continente e em favor de uma União dos Estados, na qual as fronteiras de entãosó teriam a função de divisões administrativas internas.

Antes da discussão dos aspectos principais da contestação do desenhocolonial das fronteiras africanas, é preciso ressaltar que, em certos casos, asfronteiras determinadas durante a corrida pela África foram mudadas na suadelimitação no decorrer da época colonial. Isto se aplica especialmente às fronteirasentre colônias adminstradas pela mesma potência (por exemplo, no caso de Quêniae Uganda). Estas fronteiras tinham status jurídico de fronteiras internas. Asfronteiras do Togo e de Camarões, que caíram sob a tutela da Liga das Naçõesdepois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, e as divisõesadministrativas nas federações coloniais francesas, estavam, também, sujeitas asubstantivas modificações.

A França modificou à vontade as divisões internas dos seus dois grandesblocos coloniais. Estabeleceu em 1890 o Mali (chamado de Sudão Francês) comoentidade administrativa distinta, abolindo-o nove anos depois. Em 1902, o territóriode Senegâmbia e Níger foi criado, mas perdendo a sua parte ocidental em 1904 ea sua região oriental em 1919 que foi juntada ao novo território de Alto Volta. Emseguida, o território que restou foi renomeado Sudão Francês. Em 1932, o Alto

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Volta foi abolido e seu território somado aos territórios vizinhos de Sudão, Níger eCosta do Marfim. Em 1947, a Mauritânia ganhou terra do Sudão e o Alto Volta foireconstituído. A criação do Alto Volta se deu, segundo Touval, devido às mudançasadministrativas introduzidas pela França em reação a uma revolta indígena noNíger. A abolição em 1932 se deu em função de pressões por parte de interesseseconômicos franceses oriundos da Costa do Marfim. Com o restabelecimento doterritório em 1947, os Franceses pretendiam impedir o crescimento na região doRassemblement Démocratic Africain (RDA), partido anticolonial com vínculoscom o Partido Comunista Francês.40

A administração de Camarões, ex-colônia alemã, foi dividida pela Ligadas Nações depois da Primeira Guerra Mundial entre a França e a Inglaterra. Amenor parte ocidental, sob administração inglesa, foi integrada à Nigéria, enquantoo resto da colônia virou território administrativo dentro da AOF, isto é, Camarõesfoi dividido e novas fronteiras foram erguidas. Em 1962, a região setentrionaldaquelas partes sob a administração britânica optou por sua permanência na Nigéria,enquanto o sudoeste britânico retornou para os Camarões. A outra ex-colôniaalemã, o Togo, sofreu um destino parecido: foi dividida depois de 1914 entre aFrança, que juntou a sua parte à AOF, e a Inglaterra, que administrou o TogoBritânico como parte de Gana (Costa de Ouro). Mas, ao contrário de Camarões,esta divisão foi mantida durante as independências dos respectivos países e aregião constitui hoje uma parte de Gana.

A primeira grande contestação da continuidade das fronteiras coloniaispara uma África independente vinha do pensamento e da política pan-africanistaque influenciou profundamente os primeiros ativistas anticoloniais na África. OPan-africanismo, como filosofia e programa políticos, tem suas origens na diásporanegra, especialmente no Caribe e na América do Norte, já no século XIX.41 Foi,principalmente, um fenômeno do mundo anglófono, apesar de vínculos ocasionaiscom o Brasil ou com a África francófona. Não foi um movimento de massa, masreuniu uma pequena elite intelectual na diáspora, na Europa e nas colônias daÁfrica Ocidental. O Pan-africanismo tinha como um dos seus referenciais principaisa unidade dos africanos, seja “racial”, cultural ou no sofrimento como escravos,seres humanos discriminados ou súditos coloniais. Pensadores e ativistas, comoMarcus Garvey, consideravam a África como terra natal de todos os negros esonhava com a independência de toda a África e a criação dos “Estados Unidosda África”, um sonho que, profundamente, influenciou o líder nacionalista e primeiroPresidente de Gana, Kwame Nkrumah.

Enquanto as primeiras manifestações do Pan-africanismo, desde o PrimeiroCongresso Pan-africanista em 1900, referiam-se ao conjunto dos negros, seja nadiáspora, seja na própria África, o enfoque deslocou-se gradualmente para a África.O VI Congresso Pan-africano de 1945 em Manchester efetivamente quebrou otriângulo de influência e inspiração entre a diáspora, a África e a Europa e deu,

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pela primeira vez, aos assuntos do continente africano, uma importância maior.42

O referencial geográfico dos primeiros ativistas nacionalistas na África,particularmente na África Ocidental – que tinha uma tradição mais profunda, antigae maior de articulações anticoloniais – não era a colônia individual. Eles pensavame agiam em termos de unidade da região, ou em termos do conjunto das colôniasdo mesmo poder colonial na África Ocidental.

Formou-se, no ano de 1920, o National Congress of British West Africa ea West African Students Union. Durante os anos 30, quando o National Congressficou enfraquecido, a West African Youth League, liderada por Wallace-Johnson,articulou uma perspectiva decididamente pan-africanista e tentou também, nassuas atividades, integrar representantes das colônias lusófonas e francófonas. Depoisdo Congresso em Manchester em 1945, Kwame Nkrumah se tornou orepresentante mais expressivo do pensamento pan-africanista. Fundou, junto comWallace-Johnson, em 1946, o West African National Secretariat, cujo lema era de“For Unity and Absolute Independence”. O grupo tinha como objetivo a criaçãode uma África Ocidental unida e independente, uma “União de Repúblicas Socialistasda África Ocidental”, e propagava a luta contra as “divisões artificiais” da região.Tinha a perspectiva da África Ocidental como um todo, incluindo as colônias dalíngua não-inglesa, e teve contato com deputados negros no Parlamento francês.43

Mas, em torno de 1948, o movimento pan-africanista desintegrou-se emdiversos partidos nacionais que lutavam pela independência dos seus territórioscoloniais individuais. Mesmo Nkrumah, que sempre tinha condenado asindependências individuais como reacionárias, levou sua colônia nativa, Gana, àliberdade. No entanto, é importante ressaltar que, no seu país, que se tornouindependente em 1957, ele criou uma nova plataforma e base para a propagaçãodas idéias pan-africanistas no continente.

A trajetória dos movimentos anticoloniais, partindo de uma perspectivaregional e chegando aos territórios individuais, não era fundamentalmente diferentenas colônias francesas. A centralização da administração colonial francesa nasduas grandes federações (AOF e AEF) e a eleição de representantes para oParlamento francês entre a pequena comunidade assimilada nas federaçõesajudaram a orientação interterritorial do nacionalismo. Os partidos políticos tinhamcaráter interterritorial desde a fundação. O mais importante entre eles, oRassemblement Démocratique Africain (RDA), fundado em 1946 em Bamako,tinha representantes em todos os territórios administrativos. Mas a loi-cadre de1956 e o referendum de 1956/7, que gerou uma divisão profunda entre os líderesnacionalistas sobre a questão de federalismo ou territorialismo, fez desintegrar oRDA interterritorial.44 Sobrou o nacionalismo territorial.

Entre 1957, quando se deu a independência de Gana, e 1963, ano daformação da Organização da Unidade Africana (OUA), o Pan-africanismo entrouem nova fase. Estes cinco anos de relações interafricanas se caracterizaram por

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muita volatilidade, insegurança, tensão, múltiplas competições e ameaças àsegurança de Estados individuais. Os jovens Estados africanos chegaram a sedividir em três blocos, que podem ser chamados Estados radicais, moderados econservadores. Além da crise do Congo e da luta armada do FNL na Argélia,foram as questões de unidade no continente e do respeito às fronteiras herdadasdo colonialismo que dividiram os Estados. O resultado foi a derrota de conceitosradicais de unidade africana na tradição do Pan-africanismo e, com a fundação daOUA em 1963, a institucionalização do status quo territorial entre os Estados.

No início deste período, as idéias pan-africanistas ganharam novo fôlegocom a independência de Gana cujo presidente Nkrumah, junto com o caribenho G.Padmore, usava o palco do novo Estado e a sua política exterior para articular suavisão dos “Estados Unidos da África”. Nesse caso, as fronteiras de então sóteriam a função de simples divisões administrativas. Haveria um ParlamentoInterafricano, uma política exterior comum, um alto comando militar pan-africano,e um mercado africano comum, com moeda única e Banco Central.45

Gana apresentou seus objetivos pan-africanistas em uma série deconferências internacionais que circundaram as independências africanas. Em grausvariados, estes eventos foram influenciados pela postura radical de Nkrumah ePadmore. A All-African Peoples Conference, realizada em Acra, Gana, emdezembro de 1958, adotou uma posição extremista acerca das fronteiras coloniaise uma mais moderada acerca da forma da unidade africana. Declarou como seuobjetivo a criação de um “Commonwealth of Free African States.”46

A Conferência não somente propôs, seguindo a tradição pan-africanista,uma união dos Estados africanos, aliás vagamente definida, mas criticou tambémas fronteiras coloniais como não-legítimas e exigiu a sua revisão: “3) Whereasartificial barriers and frontiers drawn by imperialists to divide African peoples operateto the detriment of Africans and should therefore be abolished or adjusted...”47

A questão do respeito ao status quo das fronteiras coloniais e, maisespecificamente, sobre a postura irredentista de Marrocos, que reivindicou partesda Argélia, o território do Saara Espanhol e a Mauritânia como parte do seu territórionacional, aprofundou também as divisões entre os três grupos de Estados que seformaram a partir de 1960. Inicialmente, um pequeno grupo de Estados radicais, ochamado grupo de Casablanca (Gana, Guiné, Mali e os Estados norte-africanosexceto Tunísia), enfrentou um maior conjunto de Estados conservadores. Estegrupo consistia nas 12 recém-independentes ex-colônias francesas que se firmaramsob o nome da instituição de cooperação funcional que eles formaram (UnionAfricaine et Malgache, UAM), e também sob o nome da cidade (Brazzaville)onde foi realizada a segunda conferência deste grupo. Os pontos principais dadissensão entre os dois grupos era a política acerca da crise do Congo e da lutaarmada pela independência da Argélia. Mas, atrás destas divergências aparentesna política, existiam diferenças mais profundas sobre o caráter de inserção

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internacional dos novos Estados africanos e sobre suas relações com as ex-potênciascoloniais.

Os Estados do grupo de Brazzaville seguiram uma política colaboradora,que se baseava nos laços políticos, econômicos e culturais entre a França e asnovas classes dirigentes da África. Esta elite desejava a continuação da presençae influência da França no continente e visava trocar o alinhamento com a Françapor cooperação e assistência financeira. Estes Estados propagaram uma visãoconservadora, para não dizer reacionária, não só em relação à política internacionalmas, também, a respeito da organização política e social interna das suas sociedades.A rationale da unidade africana deste grupo era colaboradora, destinada a facilitara cooperação com a ex-potência colonial e a aumentar o poder de barganhainternacional para conseguir igualdade com as elites mundiais.48 Unidade africanapara este grupo significava a cooperação entre Estados soberanos, o respeitoabsoluto ao status quo territorial e a adesão ao princípio da não-interferência napolítica interna dos países vizinhos. Acusavam os Estados mais radicais,especialmente Gana, de desrespeitar estas normas do direito internacional e deminar a integridade nacional dos Estados africanos, questionando a legitimidadedas fronteiras e se envolvendo em atividades subversivas contra governos vizinhos.Mas, na prática política, a ideologia conservadora das elites destes Estados fezcom que eles ferissem os mesmos princípios. Eles não somente de fato tomarampartido da França na luta anticolonial na Argélia mas, também, foram eles quequestionaram a integridade do Congo, mostrando uma atitude mais conciliatóriajunto ao regime secessionista, mas pró-ocidente, de Tshombe em Katanga, ehesitando dar apoio inequívoco ao Primeiro Ministro Lumumba, e, depois, ao seuvice Gizenga.49

Os Estados de Casablanca tinham uma postura mais radical, sejainternacional ou internamente. Eles confrontaram a ordem internacional, rejeitarama influência contínua, direta ou indireta, das ex-potências coloniais que Nkrumahdenunciou como neocolonialismo50 e argumentaram que obediência irrestrita àsfronteiras coloniais traria graves conflitos entre os Estados porque estas fronteiraseram artificiais. Eles queriam unidade africana para poder afastar a interferênciadas grandes potências e das ex-potências coloniais do continente.51 Mas, assimcomo o grupo de Brazzaville não obedeceu estritamente aos seus princípios, ogrupo de Casablanca era composto de elementos bem diversos. Marrocos, umEstado internamente conservador e com uma orientação pró-ocidente, se juntou aeste grupo, em uma barganha de favores políticos. Em troca de tácito apoio aoirredentismo marroquino pelo grupo, este Estado tomou partido dos Estados maisradicais na crise do Congo. Nesta ocasião, o grupo de Casablanca, que por princípioquestionava a rationale das fronteiras coloniais, empenhou-se em favor da defesada integridade nacional, nas fronteiras coloniais do Congo.

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Os Estados radicais ficaram até mais isolados quando, em maio de 1961,os Estados moderados (entre eles Nigéria e Libéria) se juntaram à UAM, formandoo chamado Grupo de Monróvia.52 O respeito ao status quo territorial e à não-interferência na política doméstica (Gana foi acusado por eles de ter desrespeitadoambos os pontos) eram os elementos principais de consenso entre estes Estados.A Nigéria, que se projetou como um dos maiores adversários do radicalismoganense53 , liderou o movimento contra a revisão das fronteiras coloniais, umaposição bem compreensível, considerando a heterogeneidade étnica e cultural desteque é o maior país africano.

Na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1960, o Primeiro Ministronigeriano, Sir Abubakar Talawa Balewae, explicou a posição do seu país: “Thecolonizing powers of the last century partitioned Africa in a haphazard and artificialmanner and drew boundaries which often cut right across the former groupings.Yet, however artificial those boundaries were at first, the countries they have createdhave come to regard themselves as units, independent of one another [...]. It istherefore our policy to leave these boundaries as they are at present and to discourageany adjustment.”54

Nkrumah ficou crescentemente isolado. A posição pan-africanista quepropugnava pela rendição de parte da soberania dos Estados em favor de umgoverno em comum no continente, não recebeu apoio nem dos Estados mais radicaiscomo a Guiné. Mencione-se, ainda, a irritação cada vez maior, causada pelasambições pessoais de Nkrumah – autodenominado salvador da África (Osegyefo),pelo irredentismo de Marrocos, e pelas reivindicações territoriais do próprio Ganacontra os seus vizinhos.

O isolamento do Pan-africanismo radical, junto com o encaminhamentodos conflitos na Argélia e no Congo, e uma mudança na política do Ocidenteacerca da secessão de Katanga, contribuiu para uma reconciliação e umrapprochement entre os Estados africanos que culminou na formação daOrganização da Unidade Africana (OUA) em 1963. O novo consenso sacrificouos últimos resíduos da tradição pan-africanista. Nkrumah apresentou mais umavez a sua idéia de um Union Government, mas recebeu apoio somente de Uganda.Ao contrário de afirmações românticas e da retórica da própria OUA, que inserema organização na tradição do pensamento pan-africanista55 , o sucesso dareconciliação entre os Estados e da formação da OUA dependia da rejeição dosprincípios pan-africanistas e da mútua reafirmação dos Estados africanos comoautônomos, independentes e iguais membros do sistema internacional de Estados.Neste sentido, Walraven argumenta que a OUA não surgiu das idéias do Pan-africanismo em si, mas “expressed the drive for inter-African reconciliation andaspirations to a world role and equality of status with other state elites.”56

A formação da OUA, assim como a sua Carta, representou não somenteuma clara rejeição à revisão das fronteiras coloniais em favor da integração, mas

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mostrou também uma oposição à revisão pontual destas fronteiras com base emreivindicações históricas e étnicas. No debate geral na Assembléia da Cúpula deEstados africanos, em maio de 1963, em Adis Abeba, ocasião em que a Carta daOUA foi aprovada, muitos representantes manifestaram-se contra revisões dasfronteiras existentes, que consideravam representar um perigo à paz. Alertaram,também, para a impossibilidade de se encontrar critérios racionais e práticos parauma nova divisão do continente.57

Embora a Conferência tenha atingido quase unanimidade sobre a questãoda manutenção das fronteiras coloniais (somente a Somália, que reivindicou partesdo Quênia e da Etiópia para construir uma Greater Somalia, discordou e oMarrocos não participou da Conferência), sua Ata Final e a Carta não contêmreferências explícitas às fronteiras. Indiretamente, porém, a formulação dosprincípios de respeito à soberania e à integridade territorial dos Estados comoprincípios básicos das relações interafricanas reafirma o status quo territorial.58

A intensificação de conflitos fronteiriços, após a aprovação da Carta daOUA, fez com que a cúpula dos Estados africanos tratasse da questão das fronteirasmais uma vez no seu encontro no Cairo, em Julho de 1964.59 Nesta oportunidade,aprovou-se uma resolução que condenava explicitamente as políticas de revisãoterritorial e reafirmava o status quo territorial declarando que “the borders ofAfrican States, on the day of their independence, constitute a tangible reality: ...”60

Esta resolução, que na literatura é comparada ao princípio de uti possidetis jurisque governou as independências da América Latina aplicou-se originalmente aosconflitos sobre fronteiras e território entre Estados. Mas, no decorrer do tempo, foitacitamente estendida para não reconhecer tentativas de secessão que, na visão dealguns Estados africanos, expressariam um legítimo direito de autodeterminação.61

Assim como a política pan-africanista no quadro da diplomacia continental,as tentativas mais modestas de superar as fronteiras coloniais a nível regionalfracassaram visivelmente. A união de Gana e Guiné, formada em 1958, emboratenha salvado a dissidente Guiné do ostracismo infligido pela França e pelos paísesfrancófonos conservadores, não saiu do papel. Mesmo a inclusão do Mali nestaUnião, renomeada The Union of African States, não a salvou do rápidodesaparecimento.62

A segunda tentativa de rejeição do desenho colonial das fronteirasaconteceu no âmbito francófono. Trata-se da luta pela manutenção das duas grandesfederações, a AOF e a AEF, e da descolonização destas como entidades, emoposição à política francesa de “balcanizá-las” em 14 pequenos Estadosindependentes, cuja maioria foi considerada incapaz de sobreviver sem assistênciapermanente da França.

A política francesa de centralização chegou ao seu fim com as reformasda loi-cadre de 1956/7. Estas reformas concederam um tipo de autogoverno internoe (quase) sufrágio universal, mas não para as federações, e sim para os territórios

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individuais. Visava-se a instalação de uma “Comunidade Franco-Africana”, comonovo framework das relações entre a metrópole e as suas antigas colônias, agoraentituladas “repúblicas autônomas”. O referendum de 1958 terminou com asestruturas federais, abrindo o caminho para as independências individuais, obtidasfinalmente com o colapso da “Comunidade” em 1960.

A balcanização do império colonial francês na África gerou muitacontestação.63 Os sindicatos, o RDA e os outros partidos com expressãointerterritorial, e políticos influentes como Senghor e Sékou Touré eram a favor dofederalismo. Do lado oposto, o movimento antifederal foi liderado por Houphouët-Boigny da Costa de Marfim, então, o mais influente político africano junto a Paris,auxiliado por Léon M’Ba do Gabão.64 Já nas vésperas da passagem da loi-cadre,Houphouët-Boigny, junto com altos funcionários da administração colonial,empenhou-se com muito êxito contra a manutenção das federações. O motivo era,além de ideológico, de natureza econômica. Ele não estava a fim de compartilhara relativa riqueza da sua Costa do Marfim com os seus vizinhos pobres e rejeitavaqualquer arranjo constitucional que lhe obrigasse a considerar os interesses dosoutros integrantes da federação. Os motivos de Léon M’Ba eram semelhantes.Alguns autores consideraram a influência de Houphouët-Boigny imprescindível nadecisão acerca do futuro das federações. “Il est écouté de Gaston Defferre [Ministrede la France d’outre-mer] [e] obtient même la mort de la fédération d’AOF”,argumenta Valette.65

Houphouët-Boigny torpedeou, também, as tentativas regionais decooperação que considerava ameaçadoras à hegemonia da Costa do Marfim entreos países francófonos na região. Durante as negociações sobre a formação deuma federação entre Senegal, Sudão (Mali), Alto Volta e Daomé, ele ameaçouAlto Volta e Daomé de tal forma que estes se retiraram da união. Assim, foifundada somente a Federação entre Mali e Senegal em janeiro de 1959 (Federaçãode Mali), com duração até agosto de 1960. Para conter as idéias federativas (eprogressivas), Houphouët-Boigny fundou o Conseil d’Entente entre Costa doMarfim, Alto Volta, Daomé e Níger. Aquele Conselho não era uma entidadesupranacional, mas só uma forma de cooperação entre Estados independentes.66

A terceira maneira de rejeitar as fronteiras coloniais para a Áfricaindependente refere-se a três casos concretos de reivindicações territoriais,baseados em irredentismo histórico e/ou étnico (Marrocos, Somália, os Ewe), e àspoucas tentativas de secessão. Em todos esses casos não se logrou êxito.

Mito 4: Por causa da sua artificialidade, as fronteiras modernas sãoignoradas na vida cotidiana e na consciência dos homens comuns. Ou,alternativamente: as fronteiras modernas inibem, efetivamente, omovimento das pessoas e, assim, acabaram com a tradição pré-colonial demigração, contato e intercâmbio das populações

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Existem avaliações bem diversas, e mesmo contraditórias, relativas àsseqüelas trazidas pelas fronteiras modernas para as populações africanas. De umlado, argumenta-se que as fronteiras internacionais obstruíam os movimentos dapopulação. Por exemplo, Fanso sublinha que: “The disregard for the relevancy oftraditional political divisions during the establishment of colonial boundaries hascontinued to obstruct the movement of people and goods between neighbouringAfrican States even after the attainment of independence. Today, the divided peoplesacross the inherited boundaries continue to constitute the major and, in manyinstances, the only source of strained relations between neighbours.”67

De outro lado, afirma-se que as novas fronteiras não teriam tido nenhumimpacto sobre a vida cotidiana das populações fronteiriças: “Despite all these divisiveinfluences, partitioned Africans have nevertheless tended in their normal activitiesto ignore the boundaries as dividing lines and to carry on social relations acrossthem more or less as in the days before the Partition. [...] Judged, therefore, fromthe viewpoint of border society life in many parts of Africa, the Partition canhardly be said to have taken place.”68

Certamente, a última citação está mais próxima à realidade, tanto em relaçãoà época colonial como à pós-colonial. Claramente, as modernas fronteiras nãoinibiram muito os movimentos da população. Às vezes, até provocaramdeslocamentos de grande número de habitantes. Mesmo assim, é problemáticoafirmar que a população simplesmente ignorava as fronteiras. Seria mais corretodizer que os africanos se apropriaram das novas fronteiras, já que pouco separavame ofereciam diversas oportunidades.

O impacto das fronteiras sobre o cotidiano pode ser abordado por doisângulos. Em primeiro lugar, pode ser estudado o impacto das fronteiras sobre aspopulações fronteiriças, isto é, aquelas populações que vivem nas proximidadesdas fronteiras e que, muitas vezes, foram divididas entre duas colônias. Estaabordagem focaliza as border regions, representando um enfoque que,recentemente, experimentou bastante inovação paradigmática, especialmente nocontexto da história das regiões fronteiriças da Europa.69 Os estudos mais recentesdentro desta perspectiva de história social tendem a mostrar que para as pessoascomuns as fronteiras na África não representavam nem representam (com a notávelexceção da fronteira da África do Sul que é, em parte, protegida por uma cercaeletrificada) barreiras significantes às atividades cotidianas. As 50.000 milhas defronteiras eram e são insuficientemente policiadas e, na sua maioria, não sãodemarcadas. Além da incapacidade de implantar a fronteira, na realidade devido àminúscula força policial, militar e administrativa de que o Estado colonial dispunha,muitas vezes faltava, também, a vontade de insistir na obediência às fronteiras.Além disso, em alguns casos, os governos coloniais garantiram e legalizaram osmovimentos permanentes além das fronteiras, resultantes de atividadestransumantes, ou permitiram migração em casos da partilha de uma região étnica.70

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As fronteiras africanas eram e são permeáveis para a população local.71

Conseqüentemente, argumenta Griffiths, “people whose culture group is dividedby an international boundary normally pay little attention to the boundary in thecourse of their everyday lives. They regularly visit across the border, marry spoucesand, as a result, reside across the border for long periods and attend all manner ofceremonies, social occasions and family celebrations. These activities do not normallyconcern governments and the cross-border movements involved are seldomhampered.”72

No entanto, as fronteiras permeáveis não são simplesmente ignoradas mastêm significados importantes para a população local. Em primeiro lugar, apesar daforça de identificação étnica além das fronteiras, a fronteira – e as nacionalidadesimplicadas – integra o mapa mental e as identificações das pessoas. Milesargumenta, por exemplo, que, na região fronteiriça entre a Nigéria e o Níger, isto é,na Hausalândia cortada pela fronteira, a identidade nacional deve ser no mínimotão importante como a identidade étnica (ou seja, a identidade Hausa), e concluique “recent reports of the death of the African state are indeed premature.”73

Nugent observa a mesma relevância da identidade nacional entre os Ewe, divididospela fronteira entre Gana e Togo.

Além desta relevância das fronteiras pelas identidades das populações, asfronteiras entram no dia-a-dia de maneira importante, com impacto nas relaçõessociais. No seu estudo de caso, Nugent demostrou que através da situação fronteiriça“lesser chiefs could enhance their status, aspirant cocoa farmers could lay claim tothe farm lands of their neighbours, and smugglers could make themselves rich.”74

Outro exemplo de apropriação da fronteira pela população e fornecido de umaregião bem diferente: do triângulo fronteiriço entre Malaui, Moçambique e Zâmbia,dividindo os Chewa e os Ngoni entre estes três Estados modernos. As pessoas,assim divididas no seu espaço cultural, não somente se moviam livremente naregião fronteiriça, mas também selecionavam criticamente as “ofertas” que cadaEstado fazia. Zambianos atravessam a fronteira para se aproveitar das boas eabundantes terras em Moçambique, mas deixam os seus filhos nas escolas deZâmbia, que são consideradas melhores. Residentes em Moçambique e Malauitambém mandam os seus filhos para a escola em Zâmbia. São utilizados, também,os serviços médicos no lado da fronteira daquele país pelas três nacionalidades,uma vez que em Malaui eles não são gratuitos e, no lado moçambicano da fronteira,não existe hospital. Além disso, agricultores de Moçambique usam os serviços deextensão agrícola de Zâmbia e também vendem os seus produtos neste país.75

O segundo ângulo da discussão sobre o impacto das fronteiras modernasno cotidiano das pessoas comuns dirigiria-se à alegação de que as fronteiras coloniaise pós-coloniais impediriam a migração das comunidades africanas que tantocaraterizava a situação pré-colonial. Tudo indica, porém, que o contrário aconteceu:em vez de inibir a migração, o Estado moderno e as suas fronteiras provocaram

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deslocamentos de população em grande estilo. Estes movimentos populacionaistinham como causa dois fatores principais: de um lado, as novas desigualdadeseconômicas, criando novo pólos de crescimento e desenvolvimento com as suasoportunidades, junto às exigências do sistema colonial quanto ao pagamento deimpostos e a crescente comercialização da vida cotidiana dos africanos; de outrolado, as fugas de grandes populações de um regime repressivo colonial ou deguerras ou distúrbios civis na época pós-colonial.

As migrações econômicas, iniciadas com o colonialismo, tinham o maiorimpacto em duas regiões: África Austral e África Ocidental. Na África Austral,as minas e as fazendas dos colonos brancos na África do Sul e na Rodésia do Sul(Zimbábue) atraíram migrantes temporários de Tanganyka (Tanzânia), Nyasalândia(Malaui), Moçambique, Rodésia do Norte (Zâmbia), Angola, Betchuanalândia(Botswana), Swazilândia e Basutolândia (Lesoto). As minas de Zâmbia, do CongoBelga e as minas e fazendas de Botswana foram, também, alvos de migração.Enquanto a migração na África Austral era principalmente de mão-de-obraassalariada, na África Ocidental, as correntes migratórias tinham composição socialmais diversa e têm uma tradição que começou bem antes do colonialismo. Alémde mão-de-obra agrícola, a migração nesta parte da África inclui, também,cultivadores e comerciantes. A principal região de origem é o cinto de Savana naÁfrica Ocidental, especialmente os países Mali (Sudão), Guiné, Alto Volta e Níger.Têm quatro rotas principais: uma para o oeste (para as regiões de cultivo deamendoim na Senegâmbia), uma para o sul (para as cidades portuárias na costa epara os centros da agricultura comercial na zona da floresta tropical), uma para onorte da Nigéria (região de produção de amendoim e algodão) e para o Planalto deJos (minas de estanho), e a última para o leste, levando os fiéis muçulmanos paraMeca. Estas migrações variavam entre as estritamente de estação (por exemplo,dos navétanes para o Senegal)76 e a permanente (no caso dos cultivadores decacau no cinto da floresta tropical).

Uma outra oportunidade econômica que as fronteiras oferecem,essencialmente para as populações locais, é a do comércio, seja ele legal oudenominado contrabando. Mas os africanos não atravessaram as fronteirasinternacionais somente na busca de oportunidades econômicas. As fronteirasofereciam, também, a possibilidade de fuga dos excessos de repressão durante ocolonialismo. Especialmente o caráter predatório do sistema colonial francês naÁfrica Ocidental, com altas taxas de tributação, mão-de-obra forçada, cultivoobrigatório e serviço militar obrigatório, fez fugir populações inteiras para o domíniocolonial inglês. Foi estimado que, por exemplo, só em 1939, para escapar do cultivocompulsório de algodão, migraram 100.000 Mossi de Alto Volta para Gana.77

A possibilidade de atravessar a fronteira, para fugir da repressão racial epara organizar a luta armada contra os colonialismos e os regimes racistas na

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África Austral (no caso de Angola e Moçambique, Zimbábue, Namíbia e Áfricada Sul), alerta também sobre o potencial histórico das fronteiras na África.Finalmente, é importante sublinhar que, na atualidade, as fronteiras representampara milhões de africanos a única chance de sobreviver às guerras civis nos seuspaíses. Só em 1995, aproximadamente sete milhões de refugiados tinhamatravessados fronteiras internacionais e viviam em um país vizinho.78

Demonstramos nesta parte que as fronteiras modernas na África nãorepresentaram na época colonial, nem representam hoje, barreiras efetivas paraos movimentos de população. Eram e são permeáveis, são mais zonas de contatodo que de exclusão. Porém, não estão ausentes da mente e da identificação dospovos. As fronteiras representam uma realidade na vida das pessoas. Elas sãoapropriadas, utilizadas e, no seu significado, permanentemente renegociadas, emvez de simplesmente ignoradas.

Mito 5: A delimitação “artificial” das fronteiras na África representa umadas principais causas de conflito entre os Estados e dentro deles

Virou clichê explicar a instabilidade política da África em parte em funçãodo impacto das fronteiras herdadas do colonialismo. As fronteiras seriam“artificiais”, argumenta-se, por isso causam conflitos entre os Estados ou dentrodeles. Esta suposição será discutida de duas maneiras. Em primeiro lugar, seráquestionada a utilidade do conceito de “artificialidade” na caraterização das fronteirasafricanas. Posteriormente, será mostrado que disputas e conflitos fronteiriços nãorepresentaram um problema grave nas relações internacionais dos Estados africanosindependentes.

O conceito de artificialidade é muito problemático, uma vez aplicado àsfronteiras. Tradicionalmente, foram os geógrafos que deram cunho a esta palavra,denominando as fronteiras que seguiram os elementos naturais na paisagem comonaturais e as fronteiras baseadas em linhas astronômicas ou geométricas comoartificiais.79 Mas esta definição é contestável porque a atividade humana raramentese orienta na divisão natural da paisagem. As barreiras naturais não representamfronteiras no espaço cultural, político ou econômico, criado pelas sociedadeshumanas mas, pelo contrário, muitas vezes, vias de comunicação e interligação.

Por isso, é necessário relacionar a caracterização de uma fronteira comas articulações das atividades humanas no espaço. Neste sentido, é comumenteargumentado que as fronteiras africanas são artificiais porque elas foram delimitadas,desrespeitando os espaços culturais, políticos e econômicos criados pelas sociedadesafricanas na época pré-colonial. Este argumento apresenta problemas por doisângulos. Em primeiro lugar, há fortes indícios de que os colonizadores muitas vezestentaram considerar realidades existentes no desenho das fronteiras. Em segundolugar, existem dúvidas de que este fato serve para caracterizar uma singularidade

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das fronteiras africanas. Cada fronteira moderna, argumenta-se, teria violado osespaços anteriormente criados.

Embora a alta porcentagem de linhas retas entre as fronteiras e a divisãode muitas áreas culturais, mencionada acima, sugiram uma política de desrespeitoàs realidades pré-coloniais na delimitação das fronteiras coloniais, existem tambémcasos de correspondência entre as antigas e as novas fronteiras. Brownlie lista emtorno de quatorze fronteiras (ou parte delas) nas quais a tribal distributioninfluenciou o percurso.80 O desdobramento da Partilha da África também mostrauma certa orientação nas divisões políticas autóctones. Muitos dos tratados deproteção, celebrados entre chefes africanos e representantes dos Estados europeus,referiram-se aos espaços políticos e de jurisdição daqueles dirigentes africanos.Depois, às vezes, a divisão das esferas de colonização entre as potências européiasseguia as linhas esboçadas pelos tratados de proteção.

Nos anos 60, como parte da revisão nacionalista da historiografia africana,argumentava-se que, por meio destes mecanismos e da negociação direta, osdirigentes africanos teriam influenciado a delimitação das fronteiras. Por isso,argumenta Touval, “African borders in toto were not arbitrarily drawn. [...] Atleast some of the treaties concluded between Europeans and African rulers weregenuine...”81 Anene, que examinou detalhadamente o processo histórico deformação das fronteiras internacionais da Nigéria, conclui que “as far as the boundaryarrangements for Nigeria are concerned, unqualified suggestions of arbitrarinessand subjective criticism are misleading and dangerous.”82 Estudos mais recentesreafirmam esta conclusão.83 Alguns autores notam uma diferença nesta políticaentre a França, que teria ignorado a situação pré-colonial, e a Grã-Bretanha, queteria se mostrado mais adaptável.84

Para nos referirmos ao segundo momento do argumento acima exposto,podemos destacar que alguns autores alegam que a divisão dos espaços culturaise étnicos pelas fronteiras não torna o continente africano excepcional, mascaracterizaria todas as sociedades humanas. Touval argumenta, por exemplo, que“there is no reason why, in Africa, the border between Ghana and the Ivory Coast[...] should be regarded as more artificial than, for example, the border betweenHungary and Yugoslavia [...]”.85 Uma diferença entre a Europa e a África seria,segundo alguns autores, que, na África, esta divisão veio de fora, enquanto naEuropa se tratava do resultado “d’un équilibre des violences autochtones.”86

Asiwayu nega esta diferença e argumenta que, pela perspectiva das populaçõeslocais, o processo teria sido o mesmo e que, por exemplo, para os catalães, osEstados da França e da Espanha, entre os quais sua região cultural foi dividida,teria sido uma força tão distante e usurpadora como a França e a Inglaterra forampara os Yoruba, que se encontraram de repente nos dois lados da fronteira entreDaomé e Nigéria. Baseando seu argumento nos resultados da pesquisa de PeterSahlins sobre a Cerdanya, região histórica nos Pireneus dividida por Espanha e

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França87 , Asiwaju afirma que “politically, socially and economically the boundariesof modern national states, in Europe first and then in Africa and elsewhere, whereknown to have intruded into and strongly impacted on local community life.”88

Na perspectiva do processo histórico, a comparação entre a Europa e aÁfrica é muito instrutiva. As semelhanças são impressionantes entre, de um lado,as experiências dos cerdões e as suas visões, estratégias, manipulações enegociações face à linha reta dividindo a sua região, e as de africanos vivendo nasborder areas coloniais e pós-coloniais. Lê-se quase como relato sobre a Áfricaquando Sahlins afirma, que “in the first two centuries after the division of thevalley, the Cerdans created their own national identities in other ways. One wasinstrumental, through the use (and abuse) of the nation, whether France or Spain.The Cerdans developed a rhetoric of national identity that masked their own interestsand appealed to the ideals of government officials.”

Contudo, a continuação da citação aponta para uma diferença importanteentre a África e a Europa, que coloca em dúvida o valor explicativo das semelhançasno processo histórico para a situação de hoje: “Yet over the course of two centuries,the Cerdans ended up convincing themselves of their affiliation to France or toSpain ....”89 Aqui, não é negado que a identidade nacional teria importância nasidentificações das populações fronteiriças na África, talvez o contrário fosse ocaso. Mas o fator de tempo deve ser considerado como importante neste processo.O fato de que as identidades nacionais se formaram nestas periferias da França eda Espanha no percurso de séculos, e eram firmes já no final do século XIX, deveser um elemento-chave na comparação das situações fronteiriças entre a Europae a África de hoje. Mas, conclui-se, o termo “artificial” talvez seja impreciso eambíguo demais para adequadamente explicar a diferença entre essas duassituações fronteiriças.

Outra maneira de se refletir sobre a suposta artificialidade das fronteirasafricanas modernas seria comparar o modo de composição dos Estados coloniaise pós-coloniais com a situação dos Estados pré-coloniais. Demonstra-se que asfronteiras dos Estados modernos cortam áreas culturais e os Estados são, emregra, compostos por uma multidão de etnias e culturas diferentes. Mas, como foiacima demostrado, este fato em si não representa uma inovação na política africana.Os Estados pré-coloniais tinham, na sua composição e estrutura, as mesmascaraterísticas: cortavam, através de suas fronteiras, grandes regiões culturais elingüísticas e não se distinguiram por homogeneidade étnica. Neste sentido, afronteira moderna na África parece até menos “artificial”. A multietnicidade e asculturas e etnias politicamente divididas representam uma forte tradição africanadesde a época pré-colonial, sobrevivendo até os dias atuais.

A segunda parte do mito acima citado se refere à relação entre aartificialidade das fronteiras e os conflitos na África contemporânea. Em relação àfreqüência de conflitos, podemos afirmar que, desde a época da descolonização, a

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África foi o continente com o maior número de conflitos armados. Desde 1955,apenas um quinto dos países africanos foi poupado de um conflito armado: Tunísia,Costa do Marfim, Benin, Guiné Equatorial, Gabão, Botswana, Malaui eMadagascar.90 Deste grande número de conflitos armados, a esmagadora maioriaé de conflitos internos dos países, principalmente de guerras e levantes contra oregime no poder. Embora muitas destas guerras internas tenham uma forte dimensãoregional em termos de simpatia e apoio de combatentes por países vizinhos,raramente aconteceu um pleno confronto militar entre dois Estados africanos. Atémais raramente, isto é, somente em dois ou três casos (Marrocos – Argélia eSomália – Etiópia, e, mais recentemente, o conflito entre Eritréia e Etiópia) umadisputa sobre fronteira evoluiu para uma plena guerra (veja quadro 1).

O quadro demonstra que a maioria das 30 disputas fronteiriças na Áfricaentre aproximadamente 1958 e 1995, em torno de 25 casos, não envolveu nenhumtipo de violência. Nas outras ocorrências, com a exceção dos casos de guerraacima mencionados, a violência foi limitada (tratava-se, em geral, de incidentesfronteiriços menores) e/ou não partiu da ação de Estados. O quadro também revelaque a grande maioria das disputas fronteiriças foi resolvida por acordo. As causasdestas disputas raramente são de origem étnica e, na sua maioria, são resultantesde interpretações adversas das delimitações feitas durante a época colonial. São,assim, conseqüências das imperfeições técnicas e da maneira fortuita com que aspotências coloniais demarcaram os seus domínios. Irredentismo étnico ou nacionalé a causa dos conflitos fronteiriços entre Marrocos, Somália e seus respectivosvizinhos.

Algumas das reivindicações territoriais difusas, feitas por Malaui, tambémse baseiam em noções do passado. Mas, já o caso dos Ewe, que é muitas vezesigualmente citado como caso clássico de irredentismo étnico, é multidimensional.91

Boyd, em um estudo empírico sobre as causas de conflitos fronteiriços na África,chega à mesma conclusão e argumenta que a “artificialidade” das fronteiras nãorepresentaria um fator importante.92

Mas, mesmo se as culturas divididas não representassem uma causaimportante de conflito entre os Estados, a agregação de etnias diferentes, e muitasvezes antagônicas, em um Estado só, não seria causa de conflitos? Certamente, asidentificações étnicas e regionais muitas vezes representam as linhas divisóriasentre as frações em conflitos na África. Podemos mesmo alegar que a maioria dosconflitos tem esta dimensão, entre outras. Contudo, etnicidade e identificação étnicaem si não podem ser responsabilizadas pelos conflitos. A própria tradição multiétnicados Estados africanos pré-coloniais e os exemplos de coexistência pacífica dediversas etnias demonstram que não existe automatismo entre multietnicidade econflito. Mas, etnicidade e regionalismo são suscetíveis de politização em conflitopelo poder ou por recursos econômicos devido às imperfeições do processo políticoem muitos países africanos.

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A VIDA LONGA DAS LINHAS RETAS: CINCO MITOS SOBRE AS FRONTEIRAS NA ÁFRICA NEGRA 101

Apenas em casos raros as lutas com expressão étnica questionam asfronteiras e a persistência dos Estados. Os exemplos mais pertinentes deste tipode conflito são as poucas tentativas de secessão que ocorreram na Áfricaindependente. O conflito de Biafra, a secessão temporária de Katanga, a guerracivil no Sudão no seu início, a independência da Eritréia, a divisão da Somália e astentativas de separar os enclaves de Cabinda de Angola e da Casamance do Senegalsão os exemplos principais de tentativa de secessão na África pós-colonial.Interessantemente, as únicas duas tentativas bem sucedidas de secessão (aindependência da Eritréia, cultural e etnicamente muito heterogênea, em 1993, e adeclaração unilateral de independência da “República Somalilândia” no norte daSomália, que era culturalmente o Estado africano mais homogêneo) reergueramas divisões coloniais como fronteiras dos seus novos Estados.

Conclusão: enfim, porque as linhas retas sobreviveram com tanto sucesso?

Agora, podemos unir os argumentos e explicar porque as fronteirasmodernas da África exibiram, apersar de todas as suas imperfeições e defeitos,tanta resistência a mudanças. Mostramos, em primeiro lugar, que as fronteirasmodernas na África têm a sua origem no processo da Partilha do continente entreas potências coloniais européias mas que o papel da Conferência de Berlim de1884-5 foi muito limitado nesta divisão. Em segundo lugar, foi demonstrado que aaceitação das fronteiras coloniais durante a descolonização não era automática,mas o resultado de um processo político complexo, que articulava várias alternativase opções. No final deste processo conflituoso de posicionamento entre os Estadosafricanos recém-nascidos, temos a ampla confirmação do status quo territorial ea quase universal adesão ao princípio de uti possidetis juris, isto é, um consensoentre os Estados, simbolizado e reforçado pela formação da Organização da UnidadeAfricana em 1963.

Com isto, apontamos uma primeira razão da estabilidade das fronteirasafricanas. A OUA e os Estados africanos, com poucas exceções, mantiveramesta fixação no status quo e deslegitimaram qualquer mudança nas linhas retassacrossantas, posição que já rendeu muitas críticas. O Presidente Nyerere, porexemplo, criticou a OUA como “sindicato” dos dirigentes africanos, garantindo-lhes os espaços políticos e, assim, a sua sobrevivência.93 Outros autores comparama OUA com a Santa Aliança na Europa no início do século XIX.94 Este consensoconservador das novas elites africanas sobre a mútua preservação das fronteiras,contudo, não só reflete a preocupação com a instabilidade interna e a fracalegitimidade que as elites têm mas, também, a possibilidade de potencialmentedesequilibrar qualquer país africano questionando suas fronteiras. Oconservadorismo sobre fronteiras corresponde, também, às normas e à lógica dosistema internacional que criou os Estados africanos durante o processo de

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102 WOLFGANG DÖPCKE

descolonização. De maneira semelhante à garantia das fronteiras coloniais da Áfricapelas potências européias, o sistema internacional, com as suas normas de soberania,reconheceu os novos membros da comunidade internacional como Estados,independentemente da capacidade destes Estados de se realizarem como Estadospela própria força. As qualificações empíricas do exercício de soberania interna ede suas relações com outros países (empirical statehood), que teriam caracterizadoas normas internacionais até então, foram substituídas por um único critério, o doreconhecimento pelos outros Estados. Jackson chama isso de “soberania negativa”e denomina estes Estados como quasi states.95 A lógica e o sentido profundo dasrelações internacionais africanas mantêm esta “ficção” como consenso e, assim, oprocesso político na África baniu o questionamento das linhas retas.

Certamente, as normas internacionais, a política da OUA e o consensoentre os Estados africanos no sentido de manter o status quo a qualquer custoexplicam em parte a dureza das fronteiras. Mas o argumento acima desenvolvido,acerca da função de fronteiras na África pré-colonial e do caráter das entidadespolíticas antes da chegada dos europeus, é igualmente importante. Mostramosque, para as sociedades africanas, fronteiras políticas não eram desconhecidas eque o processo de colonização neste sentido não trouxe muita inovação e os africanoschegaram a se apropriar das fronteiras. Mostramos que, nas estruturas formais eno modo de composição existiam semelhanças marcantes entre os Estados pré-coloniais e coloniais/pós-coloniais. Em ambos os casos, o espaço político nãocorresponde ao espaço étnico ou lingüístico. O Estado pré-colonial, bem como seusucessor colonial e pós-colonial, era ao mesmo tempo multiétnico e dividia culturalareas. Assim, foi mantida uma tradição africana que, em si mesma, gerainstabilidade. A correspondência entre etnia única e Estado foi uma invenção daEuropa Ocidental do final do século XIX e não representa a única forma para seconstruir um Estado estável. Assim, em vez de lamentar a multietnicidade comouma inevitável causa de conflito, temos que reconhecer sua longa tradição (nãosomente na África) e o seu potencial como forma para compor sociedadescomplexas.

Um último elemento de explicação deve ser integrado. Refere-se à faltade alternativas às fronteiras existentes. Uma vez que a África decidiu se integrarà comunidade internacional na forma de Estados soberanos, foi inevitável, devidoao grande número de etnias, que estes Estados fossem compostos por várias etniase culturas. Pela mesma razão, e pelo fato de que é impossível delimitar culturalareas por fronteiras fixas, foi simplesmente impossível evitar que as novas fronteirascortassem os espaços culturais. Neste sentido, as fronteiras atuais, bem como ascoloniais, representam uma resposta racional à necessidade da África de participarno sistema internacional do século XX.

Junho de 1999

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A VIDA LONGA DAS LINHAS RETAS: CINCO MITOS SOBRE AS FRONTEIRAS NA ÁFRICA NEGRA 103

Quadro 1Disputas sobre fronteiras na ` frica, de ca. 1958 a ca. de 1995(a)

N” Estados envolvidos ` rea disputada Per odoSitua ª oem1972(b)

Situa ª oem1995(b)

ViolŒncia?(c)

1 Marrocos - ArgØlia Partes do Saara da ArgØlia colonial1956-

R R S

2 Marrocos - Mali Nordeste do Mali 1956-61 R (?) R N3 Tun sia- ArgØlia Grande Erg Oriental 1956-64

1966R R N

4 Gana - Togo a) R reivindicou Ærea do Togob) Togo reivindicou Æreas do R.povoadas por Ewe

19581957-621974-78

RRR

RRR

N

5 Gana - Costa do Marfim(1) R. reivindicou Sanwi Ærea 1959 R R N6 Gana - Alto Volta (Burkina Farso) Pequena Ærea na fronteira comum 1963 R R N7 Mali - Alto Volta (Burkina Farso) a) Fronteira no Oudalan

DitoDito

19631974-751985-86

R R

R

NSS

8 N ger - Alto Volta Fronteira comum 1963-64 R R N (?)9 NigØria - Chade Ilhas no Lago Chade 1983 R S10 NigØria - DaomØ (Benin) ` rea dos Yoruba em DaomØ 1960 R R N11 DaomØ (Benin) - N ger Ilha Lete no Rio N ger 1963-65 R (?) R N12 Mali - Mauret nia a) Fronteira comum no Hodh

b) Regiª o de Djel Maael atØ Queneibe1961-631958-63

RR

RR

(S)

13 LibØria - GuinØ Regiª o de Mount Nimba 1958 R R N14 LibØria - Costa do Marfim ` rea entre os rios Cess e Cavally 1960 R R N15 Egito - Sudª o ` rea de Wadi Halfa; Jabel Bartazuga-

Korosko ret ngulo; Sarra tri ngulo1958

1992- P

N

(N)16 SomÆlia - Eti pia(2) Haud e Ogaden 1955 - 60

1960-78 P (?) P (?) S17 SomÆlia - QuŒnia(2) Northern Frontier District 1960

1963-67R R (N)

18 SomÆlia - Eti pia(2) Djibuti 1960 ? ?19 SomÆlia - Djibuti(2) Djibuti 1976- R N20 QuŒnia - Eti pia Regiª o fronteiri a de Gadaduma Wells 1963 R R N21 QuŒnia - Uganda(3) fronteira comum 1962

19761987

RRR

N

S22 Mo ambique - Malaui margem oriental do Lago Shirwa 1962 R R N23 Congo (Braz.) - Gabª o Regiª o de minas de ouro ao sul de

Franceville1962- R; S R N

24 Gabun - GuinØ Equatorial Ilhas na baia de Corisco 1972 R R N25 Camarı es - NigØria a) ex Camarı es do Norte

b) Fernando Poc) Bakassi Pen nsula

1961-61

1960-611981;1993-

D RRRP

NNNS

26 Nam bia-` frica do Sul Walvisbay 1977-1994 P R N27 Tanz nia - Malaui Fronteira no Lago Nyasa 1962, 1967 ? ? R ? N28 Chade-L bia ` rea de anexada por L. annexed Aozou

em 19731973 - 1994 R S

29 Malaui - Z mbia M. reivindica Prov ncia Oriental d. Z. 1981 - 86 R (?) N30 Z mbia - Za re Fronteira comum no Lago Mweru 1980-1986 R (S)

Notas(a) Estas disputas se referem a disputas sobre a posi ª o de fronteiras, entre Estados africanos. Nª o sª o inclu dos conflitos de secessª o e divisª odesintegra ª o de territ rio de Estados (Bakongo; Katanga; Biafra; EritrØia; Somalil ndia; Casaman e; Sudª o, Uganda); nem sª o inclu das asdisputas mais recentes (depois de 1995) (Z mbia - Botswana: EritrØia - Eti pia) ou disputas entre Estados africanos e europeus (por exemplo, oconflito entre Madagascar, Mauritius e Fran a sobre as Ilhas Tromelin).(b) R = resolvido; P = pendente; S = suspenso; D = dormindo(c) OcorrŒncia de violŒncia no conflito: N = nª o; S = sim: (S) - sim, mas nª o de Estados(1) duvidoso se Gana comunicou oficialmente uma reivindica ª o.(2) A situa ª o acerca das reivindica ı es da SomÆlia nª o estÆ clara devido a desintegra ª o do Estado unificado da SomÆlia.(3) Nª o estÆ claro se Uganda oficialmente, e via os meios diplomÆticos, fez reivindica ı es.

Fontes

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Notas

1 O autor agradece à Norma Breda dos Santos, à Olinta Pereira Teixeira Döpcke, ao FlávioSombra Saraiva pelos indispensáveis comentários feitos ao texto, e ao CNPq pelo apoiofinanceiro dado a esta pesquisa.

2 Um recente exemplo é o artigo de Howard W. French no New York Times de 16 de janeiro de1999 (“Europe’s Legacy in Africa: Domination, Not Democracy”).

3 BOAHEN, A. A. African Perspectives on Colonialism. Baltimore: Johns Hopkins UP, 1987,p. 96.

4 BAH, M.A. “The Nineteenth Century Partition of Kissiland and the Contemporary Possibilitiesof Reunification.” Em: Liberian Studies Journal, 12, 1, p. 38, 1987.

5 CURZON OF KEDLESTON, Lord. “Frontiers: the Roman Lectures.” Oxford: OUP, 1907,citado em: PRESCOTT, J.R.V. Political Frontiers and Boundaries. London: Allen & Unwin,1987, p. 43.

6 Sobre os conceitos de frontier e boundary nas línguas européias veja: KRISTOF, L.K.D. “TheNature of Frontiers and Boundaries.” Em: Ann. of Ass. of Americ. Geographers, vol. 49, 1959,p. 269-282.

7 BROWNLIE, I. African Boundaries: A Legal and Diplomatic Encyclopaedia. London: C.Hurst, 1979, p. 3.

8 Atualmente, em 1998/9, a África conta com 55 Estados universalmente reconhecidos e aRepública Democrática Árabe Saara (DAR Saara).

9 GRIFFITHS, I. “Permeable Boundaries in Africa.” Em: NUGENT, P. & ASIWAJU, A.I.(orgs.). African Boundaries. Barriers, Conduits and Opportunities. London & New York:Pinter, 1996. BARBOUR, K.M. “A Geographical Analysis of Boundaries in Inter-TropicalAfrica.” Em: BARBOUR, K.M. & PROTHERO, R.M. (orgs.). Essays on African Population.London: Routledge & Kegan Paul, 1961, p. 305.

10 O número de 187, compilado por Barbour no início dos ano 60, refere-se à lista das “tribos”divididas por fronteiras internacionais. Veja: BARBOUR. Op. cit. O número de 131 refere-sea culture areas e é dado por Asiwaju. Veja: ASIWAJU, A.I. “Partioned Culture Areas: Achecklist.” Em: ASIWAJU, A.I. (org.). Partitioned Africans. Ethnic Relations across Africa’sInternational Boundaries 1884-1984. London/Lagos: C.Hurst & Company/University of LagosPress, 1984, p. 252-259.

11 ZARTMAN, I.W. “The Politics of Boundaries in North and West Africa.” Em: Journal ofModern African Studies, III, 2, 1965, p. 155-73.

12 KOPONEN, J. People and Production in late pre-colonial Tanzania. History and Structures.Finnland, 1988. BEINART, W. The Political Economy of Pondoland 1860-1930. Cambridge1982, p. 18. DÖPCKE, W. “O significado de fronteiras na história de Zimbábue – reflexõesiniciais.” Em: Textos de História, Revista da Pós-Graduação em História da UnB, Vol. 3, núm.5 (1995).

13 John Thornton, Millersville University: Contribuição na discussão sobre fronteiras coloniais,na Africa Net, 21 Jan. 1999.

14 Veja: NUGENT. “Colonial Boundaries.” Op. cit., p. 36.15 WILKS, I. “On mental mapping Greater Asante: a study of time and motion.” Em: Journal of

African History 33, 1992.16 ASIWAJU, A.I. “The Concept of Frontier in the Setting of States in Pre-colonial Africa.” Em:

Presence Africaine, Paris, 1983, p. 45-6. ALLOTT, A.N. “The changing legal status ofboundaries in Africa: a diachronic view.” Em: INGHAM, K. (org.). Foreign Relations ofAfrican States. London: Butterworths, 1974, p. 111.

17 ASIWAJU. “Concept.” Op. cit. BEACH, D.N. The Shona and Zimbabwe 900 – 1850. Gweru,1984, p. 91.

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A VIDA LONGA DAS LINHAS RETAS: CINCO MITOS SOBRE AS FRONTEIRAS NA ÁFRICA NEGRA 105

18 Veja, por exemplo, ASIWAJU. “Concept.” Op. cit. FANSO, V.G. “Traditional and ColonialAfrican Boundaries: Concepts and Functions in Inter-Group Relations.” Em: Presence africaine,137-8, 1986, p. 58.

19 KOPYTOFF, I. (org.). The African Frontier: The Reproduction of Traditional African Societies.Bloomington: Indiana University Press, 1987. TURNER, F. J. The Frontier in AmericanHistory. New York, 1963.

20 HILL, P. The Migrant Cocoa-Farmers of Southern Ghana. Cambridge, 1963.21 Veja: NUGENT. “Colonial boundaries.” Op. cit.22 BEACH. Op. cit. Para os Ndebele veja: BEACH, D.N. “The Shona and Ndebele Power, 1840-

1893.” Em: BEACH, D.N. War and Politics in Zimbabwe, 1840-1900. Gweru, 1986, p. 29.23 THORNTHON, J. Op. cit. Veja também: BLEY, H. “Grenzen und Staat. Die Bedeutung

der kolonialen Grenziehung für das heutige Afrika.” Em: epd-Entwicklungspolitik 18, 1997,p. 31-34.

24 Veja: HAMILTON, C.A. & WRIGHT, John. “The Making of the Amalala: Ethnicity, Ideologyand Relations of Subordination in a Precolonial Context.” Em: South African Historical Journal,22, 1990, p. 3-23. Muito importante para o contexto da África Austral: HAMMOND-TOOKE,W.D. “Decent Groups, Chiefdoms and South African Historiography.” Em: Journal of SouthernAfrican Studies, Vol. 11, No. 2, 1985.

25 A Conferência é designada muitas vezes como Conferência de Berlim sobre a África ou(principalmente na imprensa contemporânea) como Conferência de Berlim sobre o Congo.

26 O estudo clássico de Crowe (The Berlin West Africa Conference, London, 1942) representa,ainda, o trabalho melhor fundamentado sobre a Conferência. Como trabalhos novos e importantessobre o tema merecem menção: AUSTIN, D. “Goodbye to Berlin? The Partition of AfricaReconsidered.” Em: SESAY, A (org.). Africa and Europe. From Partition to Interdependence orDependence? BECKENHAM, Kent: Croom Helm, 1986. KATZENELLENBOGEN, S. “Itdidn’t happen at Berlin: Politics, Economics and Ignorance in the Setting of África’s ColonialBoundaries.” Em: NUGENT, P. & ASIWAYU, A.I. Op. cit. ROGER LOUIS, WM. “TheBerlin Congo Conference.” Em: GIFFORD, P. & ROGER LOUIS, WM. (orgs). France andBritain in África. Imperial Rivalry and Colonial Rule. New Haven and London: Yale UP, 1971.Com uma análise excelente sobre a Conferência em português: BRUNSCHWIG, H. A Partilhada África Negra. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.

27 ROGER LOUIS, WM. Op. cit., p. 193.28 Nkrumah, K. Challenge of the Congo, New York, 1967, p. X.29 DAVIDSON, B. Modern África. A Social and Political History. London & New York: Longman,

1994, p. 5.30 Ver, por exemplo: AJALA A. Op. cit. CASTRO, T. de. África, Geohistória, Geopolítica e

Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979. TOWNSON, D. Dictionary ofModern History 1789-1945. London, 1994, p. 72. Outros documentos literários ver:KATZENELLENBOGEN, op. cit.

31 Os seguintes Estados participaram da Conferência: Alemanha (anfitrião), França, Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Itália, Países-Baixos,Portugal, Rússia, Suécia, Noruega e Turquia.

32 Cf. Ata Geral da Conferência reproduzida e traduzida em BRUNSWIG. Op. cit., p. 78.33 “Ata Geral Redigida em Berlim em 26 de Fevereiro de 1885, entre os 15 Estados participantes

na Conferência para regulamentar a liberdade do comércio nas bacias do Congo e de Níger,assim como novas ocupações de territórios sobre a costa ocidental da África”, reproduzido etraduzido em: BRUNSWIG. Op. cit., p. 78.

34 HARGREAVES, JD. Prelude to the Partition of West Africa. London: Macmillan, 1963, p. 338.

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35 PAKENHAM, Th. The Scramble for África, 1872-1912. Johannesburg: Johanathan Ball Publ.,1991, p. 254. S. Crowe argumenta de forma idêntica no seu clássico estudo sobre a conferência.

36 Veja: KATZENELLENBOGEN. Op. cit.37 Veja: AXELSON, E. Portugal and the Scramble for Africa. Johannesburg 1967. ALLOTT. Op.

cit. Para Mashonalândia Oriental, veja: BEST, J. & ZINYAMA, I. M. “The evolution ofnational boundary of Zimbabwe.” Em: Journal of Historical Geography, 11, 4, p. 419 – 432,1985.

38 GERSHONI, Y. “The Drawing of Liberian Boundaries in the Nineteenth Century: Treatieswith African Chiefs versus Effective Occupation.” Em: The International Journal of AfricanHistorical Studies, 20, 2, 1987, p. 293-307.

39 Para ver uma lista dos acordos e o conteúdo da maioria deles: BROWNLIE. African Boundaries,op. cit.

40 TOUVAL, S. The Boundary Politics of Independent Africa. Cambridge (Mass.): Havard UP,1972, p. 12-3.

41 Veja: ASANTE, S.K.E. & CHANAIWA, D. “Pan-Africanism and regional integration.” Em:UNESCO General History of Africa, vol. VIII, cap. 24, p. 724-744, Paris: UNESCO 1993.GEISS, I. The Pan-African Movement. London: Methuen 1968. LEGUM, C. Pan-Africanism:A Short Political Guide. New York: F.A. Prager, 1962. WALLERSTEIN, I. The Politics ofIndependence: an Interpretation of Modern African History. New York, 1971.

42 Cf. as resoluções do Congresso em: LEGUM. Op. cit., p. 135.43 Veja GEISS. Op. cit.44 Veja SCHACHTER MORGENTHAU, R. & BEHRMAN, L.C. “French-speaking tropical

Africa.” Em: CROWDER, M. (ed.). The Cambridge History of Africa, Vol. 8, from c. 1940 toc. 1975. Cambridge: CUP, 1984, p. 611.

45 Veja, entre outros: NKRUMAH, K. Africa must Unite. New York, 1963. WALRAVEN, K.van. Dreams of Power. The Role of the Organization of African Unity in the Politics of Africa,1963-1993. Netherlands, 1996. THOMPSON, W. S. Ghana’s Foreign Policy 1957-1966.Princeton: Princeton UP, 1969.

46 Resulutions adopted by the All-African Peoples Conference, Accra 5-12.12. 1958, em: LEGUM.Op. cit., p. 248.

47 Ibid.48 Veja WALRAVEN. Op. cit.49 TOUVAL. Boundary Politics. Op. cit., p. 72.50 Veja seu livro: NKRUMAH, K. Neo-Colonialism: The Last Stage of Imperialism. London:

Panaf. Books, 1965.51 WALRAVEN. Op. cit., p. 108.52 Cf. as resoluções dos encontros dos blocos em: “Apendix documentário”, em LEGUM. Op.

cit.53 Veja ALUKO, O. Ghana and Nigeria 1957-70. A Study in Inter-African Discord. London: Rex

Collings, 1976.54 “Speech delivered by the Prime Minister of Nigeria, Sir Abubakar Talawa Balewa at the

General Assembly of the United Nations in New York (...)”, citado em AJALA. Op. cit., p.183.

55 Veja, entre outros: TOUVAL. Boundary Politics. Op. cit.56 WALRAVEN. Op. cit., p. 148. Walter Rodney, conceituado historiador da África, alerta sobre

o fato de que a OAU representa a continuação do sistema colonial da divisão do continenteafricano: “The existing African régimes have helped create the illusion that the OAU representsthe concretisation of Arrican unity. The OAU is the principle instrument which legitimizes the40-odd mini-states visited upon us by colonialism.” Citado em DUFFIELD, I. “Pan-Africanism

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A VIDA LONGA DAS LINHAS RETAS: CINCO MITOS SOBRE AS FRONTEIRAS NA ÁFRICA NEGRA 107

since 1940.” Em: CROWDER, M. (org.). Cambridge History of Africa, vol. 8, from 1940 to ca.1975. Cambridge: CUP, 1984, p. 117.

57 Veja: “Proceedings of the Summit Conference of Independent African States, Addis Ababa,May 1963”, citado em: AJALA. Op. cit., p. 184.

58 “Charter of the O.A.U.”, citada em: BROWNLIE, I. (org.). Basic Documents on AfricanAffairs. Oxford: Clarendon Press, 1971.

59 Estes conflitos eram a guerra entre Argélia e Marrocos, o aumento de tensões entre Somália eEtiópia sobre o Haud e o Ogaden respectivamente, Quênia e Somália sobre o Northern FrontierDistrict do Quênia, e o surgimento de novas disputas fronteiriças: Gana vs. Alto Volta e Daomévs. Níger.

60 “OAU Resolution on Border Disputes made on the Assembly of Heads of State and Governmentat its First Ordionary Session, held in Cairo, U.A.R., from 17 to 21 July 1964”, em: BROWNLIE.Basic Documents. Op. cit., p. 360.

61 Veja KAMANU, O.S. “Secession and the Right of Self-Determination: an OAU Dilemma.”Em: Journal of Modern African Studies, 12, 3, 1974, p. 355-376. GOVERNMENT OFTANZANIA. Case for Recognition of Biafra: statement by the Government of the UnitedRepublic of Tanzania. Dar es Salaam, 1968.

62 Para as declarações oficiais e a Carta da União dos Estados Africanos, veja: LEGUM. Op. cit.,p. 160 e p. 183.

63 Embora quase se trate de uma visão conspiradora da história, existe um tipo de consenso entreos especialistas acerca da intencionalidade da política francesa de enfraquecer os Estadosafricanos e buscar sua conseqüente dependência da França. Veja, entre outros: ANDEREGGEN,A. France’s Relationsship with Subsaharan Africa. Westport, Conn.: Praeger, 1994. BRÜNE,St. Die französische Afrikapolitik. Hegemonialinteressen und Entwicklungsanspruch. Baden-Baden: Nomos, 1995. VALETTE, J. La France et L’Afrique. L’Afrique subsaharienne de 1914à 1960. Paris: SEDES, 1994. SCHACHTER MORGENTHAU, R. & BEHRMAN, L.C. Op.cit. BENOIST, J.-R. de. La Balkanization de l’Afrique occidentale française. Dakar: NouvellesEditions africaines, 1978.

64 Sobre o caráter das futuras relações entre a África independente e a Europa, especialmente aFrança, veja as visões bastante distintas dos políticos mais influentes da África francófona:HOUPHOUET-BOIGNY, F. “Black Africa and the French Union (1957).” Em: QUIGG, P.W.(org.). Africa. A Foreign Affairs Reader. New York: Praeger, 1964. TOURÉ, S. “Africa’sFuture and the World (1962).” Em: Ibid.

65 VALETTE. Op. cit., p. 200.66 Veja: ANDEREGGEN. Op. cit.67 FANSO. Op. cit., p. 74.68 ASIWAJU, A.I. “The Conceptual Framework.” Em: ASIWAJU, A.I. (org.). Partitioned

Africans. Op. cit., p. 3-4.69 Segundo Strassoldo, as pesquisas sobre fronteiras na Europa mudaram de enfoque: da fronteira

em si mesma, como ato político e legal, para a região fronteiriça, os pesquisadores deslocaramsua atenção para a região fronteiriça, focalizando as populações fronteiriças que nela vivem emvez do Estado nacional, e deixaram de abordar a fronteira como uma linha que só divide,considerando-a, também, como agente de integração, intercâmbio e contato. Cf. STRASSOLDO,R. “Border Studies: The State of the Art in Europe.” Em: ASIWAJU, A.I. & ADENIYI, P.O.(orgs.). Borderlands in Africa. A Multidisciplinary and Comparative Focus on Nigeria andWest Africa, Lagos: University of Lagos Press, 1989. O melhor exemplo desta nova abordagemao estudo histórico das borderlands é: SAHLINS, P. Boundaries. The Making of France andSpain in the Pyrenees. Berkeley: Uni of California Press, 1991 (1989). No contexto africano,por exemplo, as contribuições nos livros organizados por Nugent e Asiwaju e os trabalhos de

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108 WOLFGANG DÖPCKE

Miles se localizam nesta nova tradição da história social das border regions. Cf. NUGENT, P.& ASIWAJU, A.I. (orgs.). Op. cit. ASIWAJU, A.I. (org.). Partitioned Africans. Op. cit. MILES,W.F.S. Hausaland Divided: Colonialism and Independence in Nigeria and Niger. Ithaca &London: Cornell University Press 1994.

70 Veja: PRESCOTT, J.R.V. Political Frontiers and Boundaries. London: Allen & Unwin, 1987.71 Veja: GRIFFITHS, I. “Permeable Boundaries in Africa.” Em: NUGENT, P. & ASIWAJU, A.I.

(orgs.). Op. cit., p. 72.72 Ibid, p. 74.73 MILES, W. & ROCHEFORT, D. “Nationalism versus ethnic identity in sub-Saharan Africa.”

Em: American Political Science Review 85, 2, 1991, p. 391, citado em: NUGENT. Op. cit., p.60.

74 NUGENT. Op. cit., p. 61.75 PHIRI, S.H. “National Integration, Rural Development and Frontier Communities: The case

of the Chewa and the Ngoni astride Zambian boundaries with Malawi and Mozambique.” Em:ASIWAJU, A.I. (org.). Partitioned Africans. Op. cit., p. 105-126.

76 Navétane vem da palavra navète em Wolof que significa a estação chuvosa. Veja: SURET-CANALE, J. French Colonialism in Tropical Africa 1900-1945. London: Heineman, 1971, p.244.

77 Veja: SPITTLER, G. Verwaltung in einem afrikanischen Bauernstaat. Das koloniale Französisch-Westafrika (1919-1939). Wiesbaden: Steiner, 1981. SURET-CANALE. Op. cit., p. 246.ASIWAYU, A.I. “Migrations as Revolt: The Example of the Ivory Coast and Upper Voltabefore 1945.” Em: Journal of African History, XVII, 2, 1976.

78 UNHCR. “The State of the World’s Refugees 1995", citado em: VON BARATTA, M. (org.).Der Fischer Weltalmanach 1997. Frankfurt a. Main: Fischer, 1996, p. 879.

79 Veja BARBOUR. Op. cit.80 Ibid., p. 7.81 TOUVAL, S. “Treaties, Borders and the Partition of Africa.” Em: Journal of African History,

VII, 1966, p. 279.82 ANENE, J.C. The International Boundaries of Nigeria, 1885-1960: the Framework of an

Emergent Nation. London: Longman, 1970, p. 287-8.83 Veja, por exemplo, NUGENT. Op. cit.84 PERSON, Y. “L’Afrique noire et ses frontières.” Em: Revue française d’études politiques

africaines, 1972, p. 18-43.85 TOUVAL. “African Frontiers.” Op. cit., p. 641.86 PERSON. Op. cit., p. 21.87 SAHLINS. Op. cit.88 ASIWAJU, A.I. “Borderlands in Africa.” Op. cit., p. 257.89 SAHLINS. Op. cit., p. 269.90 BAECHLER, G. “Hintergründe der Kriege und bewaffneten Konflikte in Afrika.” Em: ENGEL,

U. & MEHLER, A. (org.). Gewaltsame Konflikte und ihre Prävention in Afrika. Hamburg:Institut für Afrikakunde 1998, p. 2.

91 Veja: BENING, R. B. “The Ghana-Togo Boundary, 1914-1982.” Em: Afrika Spektrum 83,1983, p. 191-209.

92 BARRON BOYD, J. Jr. “African Boundary Conflict: An Empirical Study.” Em: AfricanStudies Review, XXII, 3, 1979.

93 J. Nyerere, então Presidente de Tanzânia, citado em: HERBST, J. “The creation and maintenanceof national boundaries in Africa.” Em: International Organization, vol. 43, No. 4, 1989, p. 676.

94 PERSON. Op. cit., p 18.95 JACKSON, R.H. Quasi-States: Sovereignty, International Relations, and the Third World.

Cambridge: CUP, 1990. Veja, também, CLAPHAM. Op. cit.

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A VIDA LONGA DAS LINHAS RETAS: CINCO MITOS SOBRE AS FRONTEIRAS NA ÁFRICA NEGRA 109

Resumo

Este trabalho estuda as fronteiras políticas na África Negra nas suasdimensões históricas e atuais. Discutindo e criticando as suposições estereotipadasno discurso popular e acadêmico sobre as fronteiras na África, visa explicar porqueelas exibiram, apesar de todas as suas imperfeições e defeitos, tanta resistência amudanças.

Abstract

This article studies the political borders in Black Africa in their historicaland modern dimensions. Discussing and criticising the stereotipical suppositions inpublic and academic discourse, this study intends to explain why, in spite of all theirsupposed imperfections, modern African borders display such a great deal ofresistence to change.

Palavras chave: África. Fronteiras.Key-words: Africa. Frontiers.

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O mar territorial brasileiro de200 milhas: estratégia e soberania,1970-1982

GUSTAVO DE LEMOS CAMPOS CARVALHO*

Introdução

No ano de 1970, o governo brasileiro tomou a decisão de ampliar o seumar territorial para 200 milhas marítimas. Essa decisão foi calcada no fato de quenão havia norma de Direito Internacional em vigor, convencional ou costumeira,que determinasse aos Estados até que limite poderiam eles estender seu marterritorial. Prevaleceu, no entender do governo, a opinião de que o Estado costeiroé livre para determinar a própria largura de sua fronteira marítima, dentro de limitesrazoáveis e atendendo a suas condições e interesses particulares. O Brasil, à época,afirmou sua soberania sobre a questão e não vacilou em levar a efeito, durante operíodo que vai de 1970, quando da expansão para 200 milhas, até 1982, ano daconclusão da III Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, umaestratégia de consolidação do interesse nacional em relação a esse assunto.1

A adoção das 200 milhas marítimas de mar territorial pelo governo doBrasil decorreu de um conjunto de fatores ou forças que funcionaram comopropulsores do interesse governamental do país, no sentido da adoção de um marterritorial brasileiro mais extenso e que melhor se coadunasse com os interessesde então, ou seja, 200 milhas marítimas, tentando afirmar, dessa maneira, a autonomiadecisória da política exterior brasileira, no quadro do “Brasil Grande Potência”,almejado pelos militares.

Parte-se do pressuposto que as medidas do governo brasileiro, para ampliaro seu mar territorial até o limite de 200 milhas, embora tendo encontrado resistênciasde grandes potências, foram tomadas em decorrência de circunstâncias propícias– tanto a nível interno, como no contexto internacional.

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Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 110-126 [1999]* Advogado. Mestre em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

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O MAR TERRITORIAL BRASILEIRO DE 200 MILHAS: ESTRATÉGIA E SOBERANIA, 1970-1982 111

1. O mar territorial brasileiro de 200 milhas

1.1. A ponderação sobre 200 milhas

No final da década de 60, observava-se, no governo brasileiro, umatendência no sentido da ampliação do mar territorial para 200 milhas marítimas.2

Seria difícil identificar o “Homem de Estado” autor da iniciativa de formação desseconsenso, de que participavam o Itamaraty, a Marinha e, evidentemente, aPresidência da República.

O presidente Garrastazu Médici examinou a questão dentro de três níveisde prioridade: soberania, economia e segurança. Na movimentação da máquinafederal, realizaram-se inúmeros estudos simultâneos. O Serviço Nacional deInformações (SNI) levantou toda a faixa de interesses internacionais que podiamser envolvidos pelo aumento do mar territorial.

No “processo decisório”, os dossiês carimbados com a palavra confidencialeram analisados, enquanto ainda não havia uma opinião final sobre o número demilhas a ser decretado. Cem, cento e cinqüenta ou duzentas? Pelos interessespesqueiros, 100 milhas bastavam, mas uma série de pesquisas geológicas realizadaspela Petrobrás no litoral leste, próximo ao Rio de Janeiro, revelou a existência delençóis petrolíferos, em torno das 150 milhas. A imprecisão na localização desseslençóis fortaleceu a corrente que defendia as 200 milhas.3

Essa medida cobria toda a plataforma continental brasileira, chegando aultrapassá-la em alguns trechos do litoral. No entanto, as sondagens da Petrobrásrepresentaram um bom exemplo da estratégia das 200 milhas: com 12 de marterritorial, o Brasil não teria maiores direitos sobre as jazidas. E parece mais oumenos lógico que companhias internacionais poderiam adquirir técnicas sofisticadase aplicar sólidos investimentos na sua exploração, antes que o país tivesse condiçõesde fazê-lo.

A tarefa de redação do texto legal pelo qual se efetuaria a ampliação domar territorial foi confiada a um pequeno grupo de redação, que elaborou umprojeto de lei, posteriormente transformado em projeto de Decreto-lei. Após suaaprovação pelo grupo de trabalho e, em seguida, pelos Ministros das RelaçõesExteriores e da Marinha, o texto foi submetido à consideração do Presidente daRepública, em 9 de março, com a exposição de motivos conjunta DNU/56/502.72.4

O Presidente da República encaminhou o projeto de Decreto-lei aosmembros do Conselho de Segurança Nacional, que o aprovaram por unanimidade.No dia 25 de março, assinou o Decreto-lei n.º 1.098, que “altera os limites do marterritorial e dá outras providências”. Submetido ao Congresso Nacional pelaMensagem n.º 56, de 9 de abril, acompanhado da Exposição de motivos n.º 011/70,do Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional, o Decreto-lei recebeu a

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aprovação do Poder Legislativo, após exames nas Comissões competentes daCâmara dos Deputados e do Senado Federal.5

Portanto, o decreto das 200 milhas, que pode parecer um ato deagressividade ou de expansionismo, foi, sobretudo, a resultante de uma fraqueza.A esquadra brasileira possuía 57 embarcações pesadas. A americana alcançavaesse número só com os seus submarinos atômicos e porta-aviões, e a russa possuía75 submarinos nucleares, à época.6

Aparentemente, o Brasil assumiu um compromisso impossível de sercumprido, ou seja, patrulhar 8.500 quilômetros de costa e uma superfície de3.200.000 quilômetros quadrados de mar territorial.

Na realidade, essa dúvida era uma conseqüência da confusão entre acapacidade de vigilância e extensão da soberania. Para a Marinha, o argumentode que o Brasil não possuía força naval ou aero-terrestre que garantisse a soberaniabrasileira sobre essa área marítima foi facilmente contestado, pois o Governobrasileiro também não possuía força terrestre capaz de policiar toda a imensafronteira terrestre e, nem por isso, tese de qualquer ordem propôs que a fronteirafosse recuada para a região centro-oeste-sul do país com o propósito de assegurarmelhor defesa.7

1.2. O decreto-lei n.º 1.098

O Decreto-lei n.º 1.098, datado de 25 de março de 1970, foi o instrumentolegal utilizado pelo governo para a ampliação do mar territorial brasileiro para 200milhas, continha cinco artigos e afirmava que: “o mar territorial do Brasil abrangeuma faixa de duzentas milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha debaixa-mar do litoral continental e insular brasileiro”.

O Decreto-lei assegurava um regime de liberdade de navegação entre afaixa de doze e duzentas milhas de distância da costa. Entretanto, o último parágrafopreambular fazia referência expressa às necessidades de “segurança e defesa”,como fator determinante da fixação dos limites do mar territorial8 . E o artigo 3ºdefinia o regime de navegação para navios estrangeiros nas duzentas milhas como“direito de passagem inocente”, tradicionalmente considerado como elementoessencial do instituto do mar territorial.9

É mister notar que o Decreto-lei visou proteger, também, outros interessescomo o econômico, a pesca, o meio ambiente e o controle das atividades estrangeirasde investigação científica e econômica em áreas próximas às costas brasileiras.Registre-se, ainda, a declaração do artigo 2º do mesmo: “A soberania do Brasil seestende no espaço aéreo acima do mar territorial, bem como ao leito e subsolodeste mar”.

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O MAR TERRITORIAL BRASILEIRO DE 200 MILHAS: ESTRATÉGIA E SOBERANIA, 1970-1982 113

1.3. Repercussão da medida

A repercussão interna da assinatura do Decreto-lei n.º 1.098, que instituíao mar territorial de 200 milhas, foi positiva. Excetuadas poucas manifestaçõescontrárias, da parte de setores como o jornal O Estado de São Paulo, as reaçõesnos meios políticos e de comunicação foram de franco apoio à medida.

No Congresso, os representantes do partido político MDB uniram-se, pelaprimeira vez, aos seus opositores da ARENA para ratificar com entusiasmo umato do governo.

E “Esse mar é meu”, título do samba de João Nogueira,10 logo se incorporouao elenco de expressões ufanistas que marcaram o ano de 1970, como lembraMorris,11 foi o ano dos verbetes propagandistas do governo militar, a exemplo daTransamazônica, do “ninguém segura este país”. Aquele ano foi, também, o daconquista do título mundial pela seleção brasileira de futebol, fato que se juntou àsexpressões ufanistas em curso.12

No plano externo, as repercussões do Decreto-lei n.º 1.098 também ficaramno limite previsto. Não tardaram a chegar as notas pelas quais governos de outrospaíses registraram seu protesto, seu não reconhecimento ou suas reservas quantoao ato unilateral de ampliação do mar territorial brasileiro. Os arquivos do Itamaratyregistram onze notas desse teor, todas recebidas de países industrializados: Bélgica,Estados Unidos da América, Finlândia, França, Grécia, Japão, Noruega, ReinoUnido, República Federal da Alemanha, Suécia e União Soviética.13

1.4. Conflitos relacionados ao mar territorial

A falta de consenso sobre a extensão das águas territoriais gerou, vez poroutra, graves incidentes entre países que mantinham boas relações. Em 1956, ogoverno norte-americano apreendeu barcos pesqueiros peruanos, sob alegação deque estavam dizimando cardumes junto às costas do Oceano Pacífico. Tal episódioficou conhecido como “Guerra do Salmão”. Logo, outro conflito repetiu-se combarcos pesqueiros japoneses.14

No ano de 1958, Inglaterra e Islândia travaram a “Guerra do Bacalhau”,que culminou com troca de tiros de canhão. Logo seguiu-se a “Guerra do Arenque”,onde a Guatemala reclamava pela incursão em suas águas de barcos noruegueses.15

O Brasil não escapou das investidas de pescadores profissionaisestrangeiros. Presenciou-se, em 1963, a “Guerra da Lagosta”, acontecida com aFrança. Iniciou-se aquela contenda com conversações de gabinete, com trocas denotas e até complicadas interpretações a respeito da maneira das lagostascomportarem-se em seus habitats naturais. Todo o episódio centrou-se em tornoda seguinte discussão: franceses argumentavam que estavam pescando fora do

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mar territorial e brasileiros contra-argumentavam que, embora nosso mar territorialfosse de 3 milhas marítimas, eles estavam pescando na plataforma continental.

Em 1971, O Brasil foi acusado de atacar oito barcos pesqueiros americanosem seu mar territorial de 200 milhas. O deputado americano Sam Gibbons disse tersido informado por representantes de companhias de pesca americanas, de Tampa,Flórida, que um navio de guerra brasileiro começou a disparar contra as oitoembarcações a aproximadamente 75 milhas da costa brasileira, dentro, portanto,do limite de 200 milhas.

O Ministério da Marinha desmentiu as notícias. Foi ressaltado que, naeventualidade de um apresamento, não haveria necessidade de emprego deviolência, mesmo porque os pesqueiros não dispunham de meios de reação contraos barcos brasileiros.

A única conseqüência positiva de todos os conflitos que ocorreram foi aconscientização mais acelerada da necessidade de se esclarecer em definitivo aquestão da largura do mar territorial.

As contendas em torno das 200 milhas não envolviam tão somente aquestão do livre trânsito nos mares, mas o domínio e posse de riquezas mineraissubmarinas, assim como, da exploração do espaço aéreo.

De qualquer forma, afirmando sua soberania a 200 milhas da costa, oBrasil e os países em desenvolvimento ganharam, de início, uma nova carta paranegociações internacionais. Habilitavam-se, inclusive, a participar de fóruns edebates sobre o domínio dos mares e do seu espaço aéreo.

Assim, o Brasil e outras potências menores ofereciam resistência àsposições hegemônicas das potências mundiais; desafiavam aquelas potências eaumentavam seus poderes de barganha nos fóruns delineadores do “sistemainternacional”.

2. Forças que contribuíram para a extensão do mar territorial brasileiroem 1970

2.1. Componentes da ação governamental

A ampliação do mar territorial no Brasil não foi decisão exclusiva de umúnico elemento; naturalmente, foram incorporados e ponderados à decisão dogoverno brasileiro, vários fatores que suscitaram a cobiçada extensão da fronteiramarítima.

2.2. Fatores econômicos

Ao delimitar o novo espaço marítimo, observou-se franca importância dosfatores econômicos. A significação econômica do mar territorial brasileiro

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O MAR TERRITORIAL BRASILEIRO DE 200 MILHAS: ESTRATÉGIA E SOBERANIA, 1970-1982 115

determinou a necessidade de resguardar o interesse brasileiro na exploração útil eeficiente de suas possibilidades econômicas.16

O Brasil não poderia permitir, generosamente, que outros países seapoderassem gratuita e desordenadamente dos seus recursos biológicos do maradjacente às suas costas.

As proclamações unilaterais de duzentas milhas feitas pela Argentina em1966 e pelo Uruguai em 1969 possuíram o efeito de singularizar o Brasil comoúnico país da costa atlântica da América do Sul com regime de pesca limitado àsdoze milhas. Os pescadores do Sul viram-se, assim, impedidos de continuar pescando,livremente, nos mares desses dois países. Enquanto o país não adotasse igual medida,não haveria sequer a perspectiva de se negociar um regime especial de pesca,baseado no princípio da reciprocidade. E não haveria como impedir que ospescadores de longa distância se deslocassem das águas argentinas e uruguaiaspara o alto-mar próximo ao litoral brasileiro.17

A conveniência de uniformizar a extensão do mar territorial brasileiro coma de número crescente de países latino-americanos, sobretudo Argentina e Uruguai– que já haviam adotado as 200 milhas – era fator importante a exigir medidasemelhante do governo do Brasil, até mesmo para efeito do traçado da fronteiramarítima meridional do país.18

Constatou-se, também, a necessidade de se assegurar total domínio sobreos recursos do solo e subsolo do mar, adjacente às costas brasileiras.

Outros interesses foram, também, considerados como fatores econômicosde importância capital para o país, como:a) controlar as pesquisas nas águas e nos fundos da área de duzentas milhas e a depreservação do meio ambiente marinho;b) evitar a poluição das águas e danos aos recursos marinhos;c) assegurar a jurisdição do Estado costeiro sobre o estabelecimento e a utilizaçãode instalações e estruturas, na área das duzentas milhas(interesse econômico e desegurança).

2.3. Fatores de segurança

Houve, no Decreto-lei n.º 1.098, intenção em dar proteção jurídica ainteresses que eram vinculados a objetivos de segurança nacional e de defesa. Nopassado, segurança tinha sido definida em termos de reações a ameaças ao Estadoe aos interesses nacionais19 ; e a definição convencional militar cristaliza-se emtermos geopolíticos como “a exclusão espacial de ameaças.”20 Em tais condições,“segurança estatal” ou “segurança nacional” tornaram-se palavras-chave parasalvaguardar um regime político e sua elite social. Tradicionalmente, portanto,segurança tem quase, exclusivamente, envolvido questões militares e ameaças aoEstado.

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Mesmo que distante a possibilidade de uma agressão naval de tipo clássicocontra as costas brasileiras, havia interesse em impedir que as águas próximas aolitoral fossem singradas, livremente, por embarcações estrangeiras para atividadesde espionagem ou de pesquisa marinha para fins militares. Entendia-se, também,que seria desejável poder evitar a colocação por outros Estados de artefatos militares,nas áreas do fundo do mar, adjacentes às costas do país, tema que adquiria relevânciaà luz das negociações que então se realizavam no Comitê de Desarmamento deGenebra e que resultaram na aprovação de um Tratado sobre a proibição dacolocação de armas nucleares e outras armas de destruição em massa no leito domar e em seu subsolo.21

Havia, ainda, preocupação em razão da conturbada situação política internavivenciada pela Nação brasileira naqueles anos, de que potências estrangeiraspudessem tentar levar, clandestinamente, pelo mar, meios de apoio às atividadesde guerrilha que se desenvolviam no território nacional.22

2.4. Fatores político-diplomáticos

O governo brasileiro desenvolveu uma ação unilateral para proteger osseus interesses econômicos e de segurança que foi facilitada pela congruência,naquela conjuntura, de fatores político-diplomáticos que justificavam a medida.Vinha formando-se, na América Latina, a partir da segunda metade da década dequarenta, clara tendência, no sentido da ampliação para duzentas milhas das áreasmarítimas sob a soberania ou a jurisdição dos países da região. A sucessão deproclamações latino-americanas, no curso desses anos, foi criando uma práticaregional que adquiria validade própria e já servia de inspiração para atos análogosda parte de alguns países de outras regiões.23

Ao mesmo tempo em que se empenhava para substituir os Estados Unidose as potências industriais da Europa, aproveitando as brechas comerciais na AméricaLatina, Oriente Médio e África, o Brasil lutava pelo reconhecimento do seu statusde potência emergente. A ampliação do limite do mar territorial, que Médicidecretou, em 1970, por proposta do Chanceler Gibson Barbosa, apoiada pelo Ministroda Marinha, Almirante Adalberto de Barros Nunes, decorreu, inter alia, daquelanecessidade política de demonstrar a vontade nacional, com um ato de afirmaçãoda soberania, pelo qual o Brasil tanto se identificava quanto se diferenciava, comopotência emergente no sistema internacional.24

O Brasil, além de suportar pressões bilaterais (dos Estados Unidos,principalmente), teve que fazer um esforço suplementar nos foros internacionaispara obter o reconhecimento dessa pretensão. Desenvolveu, para isso, uma açãoconcertada com aqueles países latino-americanos que tomaram idêntica medida,no referente ao mar territorial.25

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O MAR TERRITORIAL BRASILEIRO DE 200 MILHAS: ESTRATÉGIA E SOBERANIA, 1970-1982 117

A extensão do mar territorial brasileiro para duzentas milhas, objetivoestratégico do país para o Atlântico, foi também incluída no pacote de aproximaçãobrasileira para a África. A decisão era envolver os países africanos da costa atlânticano apoio à decisão do governo Médici. A solidariedade africana à decisão unilateralbrasileira era um importante trunfo junto aos organismos multilaterais.26

2.5. Fatores de política interna

É mister que se faça uma referência, mesmo que sucinta, à conjunturainterna da política brasileira, para que se complemente o conjunto de forças quecontribuíram de forma preponderante ao alargamento da fronteira marítima nacional.

O governo enfrentava, às custas de sério desgaste político, situação internaconturbada e particularmente difícil. O ato institucional n.º 5 vinha completar seuprimeiro ano de vigência. O Congresso Nacional, posto em recesso no final de1968, havia sido recentemente reaberto, para a eleição do Presidente EmílioGarrastazu Médici, que sucedeu os três Ministros militares que governaram o país,após a enfermidade de que foi acometido o Presidente Costa e Silva. Um dosprimeiros atos do Congresso em 1970 foi a ratificação do Decreto-lei que instituiua censura prévia em livros e periódicos.27

O governo estava ciente de seu interesse político em adotar, com certaurgência, medidas que tivessem impacto positivo sobre a opinião pública. Estapreocupação com a imagem do governo e com a necessidade de melhorar seusíndices de popularidade refletiu-se na adoção de medidas como a criação de umaassessoria presidencial, especificamente dedicada às relações públicas e nolançamento de campanha publicitária para a divulgação de aspectos mais positivosda ação governamental e de temas de apelo popular e nacionalista.28

Houve, então, a previsão que uma eventual ampliação do mar territorialbrasileiro para duzentas milhas marítimas por parte do governo teria um impactopolítico positivo sobre a população. Previa-se, ainda, que até mesmo osrepresentantes da oposição não poderiam deixar de dar apoio a uma medidagovernamental tão nitidamente nacionalista.

3. O Brasil e a III Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar

3.1. Os preparativos para a III Conferência da ONU sobre o Direito do Mar

A Assembléia Geral das Nações Unidas, no término de 1970, iniciou umdos mais complexos, mais abrangentes e mais longos processos de negociaçãointernacional de todos os tempos.

Através da Resolução 2750-C (XXV), foi convocada pela Assembléia,para o ano de 1973, a III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar,

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que atribuiu mandato amplo, o que equivalia à elaboração de um novo regime paraa utilização de mais de dois terços da superfície do globo terrestre. Foi umempreendimento sem precedentes na história da diplomacia multilateral; além deavançar na preparação, iniciada no final de 1967, de um regime para a áreainternacional do fundo do mar, a Conferência viria a tratar da redefinição doslimites e do regime jurídico de todos os diferentes espaços marítimos, bem como,da regulamentação dos mais variados tipos de atividades no mar.29

Nos termos do parágrafo 2º (segundo) da Resolução, a Conferência teriapor objetivo “o estabelecimento de um regime internacional eqüitativo, inclusiveum mecanismo internacional para a área e os recursos dos fundos marinhos eoceânicos e seu subsolo, além dos limites da jurisdição nacional, uma definiçãoprecisa da área, e uma ampla gama de questões conexas, inclusive as relativas aosregimes do alto-mar, da plataforma continental, do mar territorial30 e zona contígua,da pesca e conservação dos recursos vivos do alto-mar,31 da preservação do meiomarinho32 e da investigação científica”.

No começo da preparação para a III Conferência das Nações Unidassobre o Direito do Mar, os países que haviam ampliado suas jurisdições marinhasaté duzentas milhas eram em número bastante reduzido. Aos Estados latino-americanos, minoritários, dentro de seu próprio grupo regional, somavam-se,somente, os poucos outros países, sobretudo afro-asiáticos, que tinham proclamadodireitos, além das doze milhas marítimas. Notava-se que o restante dos demaisEstados costeiros no mundo mantinha suas fronteiras marítimas de até, no máximo,doze milhas de extensão, como a maior parte dos países do terceiro mundo, aindapouco conscientes da importância econômica e política do controle sobre as áreasmarítimas adjacentes às suas costas. Havia, ainda, os países desenvolvidos e emdesenvolvimento, que não possuíam litoral e que diretamente nada teriam a ganharcom a ampliação das fronteiras marítimas nacionais.33

3.2. O conceito de zona econômica exclusiva

O que se verificou, no período de 1971 a 1972, foi a consolidação de umconceito inovador que veio a ser o elemento central de todo o processo recente denegociações sobre o direito do mar: a definição de mar patrimonial ou, como veioa ser chamado definitivamente, de zona econômica exclusiva.34

Reconhecia-se ao Estado costeiro o direito à manutenção de um marterritorial clássico, até o limite de doze milhas e de estabelecer, entre esse limite eo das duzentas milhas, uma zona na qual se exerceriam direitos de soberania ejurisdição exclusiva sobre os recursos vivos e não-vivos do mar, sem prejuízo daliberdade de navegação de que continuariam a gozar, nessa área, os outrosEstados.35

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3.3. Os grupos de interesse

Ao iniciar-se, em Caracas, em 1974, a III Conferência das Nações Unidassobre o Direito do Mar,36 já estava praticamente definida a formação das aliançastáticas e dos grupos de interesse, bem como, sua composição e sua linha de atuação.Esses grupos não coincidiam com os agrupamentos geográficos tradicionais dasNações Unidas, e viriam a influenciar os rumos da Conferência durante quaseuma década.37

Em um dos lados estavam os países que, como o Brasil, defendiam odireito do Estado costeiro de ampliar sua fronteira marítima além das doze milhase até um máximo de duzentas milhas. Esse grupo era chamado de territorialista.Dele viriam a participar vinte e três países, sendo seis latino-americanos,38 dezesseisafricanos39 e um asiático.40

O grupo não era uniforme em suas opiniões, porém, manteve-se coeso eciente de que suas posições extremas não poderiam chegar a constituir a base parauma solução de aceitação universal; os territorialistas procuraram – e de certa maneiralograram êxito – fazer com que os elementos essenciais das posições do “grupocentral majoritário” fossem mantidos e reforçados, no curso das negociações.

Os defensores de uma zona econômica exclusiva ou de um mar patrimonialaté duzentas milhas formaram outro grupo que ocupou, rapidamente, a posiçãocentral no processo de elaboração do futuro regime para as áreas marítimas sob asoberania ou Jurisdição do Estado costeiro. Este grupo era chamado de “zonista”.41

É interessante ressaltar que havia, ainda, os seguintes grupos:tradicionalistas42 , mediterrâneos, geograficamente desfavorecidos, Estadosarquipelágicos43 (que defendiam um regime especial para as águas arquipelágicas)e o grupo dos Estados ribeirinhos de estreitos internacionais44 (que defendiam aaplicação do regime de passagem inocente nos estreitos com menos de vinte equatro milhas de largura).

Por iniciativa da delegação mexicana, os que defendiam o mar patrimonialou zona econômica exclusiva formaram um grupo amplo ao qual se juntaram osterritorialistas. Foi o chamado grupo de Estados costeiros, que reuniu a maioria dospaíses que participaram da Conferência. Não participaram nem as potênciasmarítimas tradicionais, nem os Estados costeiros geograficamente desfavorecidos.Esse grupo foi o principal responsável pela articulação do regime de zona econômicaexclusiva, dentro dos parâmetros em que foi adicionado ao texto do projeto deConvenção.

3.4. As negociações

As regras adotadas pela Conferência em Caracas, determinavam que asdecisões sobre questões de procedimento seriam tomadas por maioria simples e as

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relativas a questões de substância por “uma maioria de dois terços dos representantespresentes e votantes, desde que essa maioria incluísse pelo menos o maior númerodos Estados que participam da sessão da Conferência”. Antes de se chegar a umvoto, fazia-se necessário percorrer complicado e demorado processo, que incluíaprazos de cooling-off, destinado a assegurar que “foram esgotados todos osesforços no sentido de alcançar um acordo geral”.45

Nenhuma Conferência diplomática multilateral contemporânea terárecorrido tanto a negociações informais, sem atas, fato que, certamente, dificultaráa tarefa dos futuros estudiosos dos travaux préparatoires mas que foi essencialpara o prosseguimento dos trabalhos da Conferência. Tanto no âmbito da comissão,quanto no de inúmeros grupos de trabalho, grupos de contato e grupos de redaçãosobre os mais variados aspectos da temática do mar, oficialmente constituídos ouespontaneamente reunidos para resolver problemas específicos e, à primeira vista,insolúveis, trabalhou-se, quase sempre, informalmente. E quando era mais difícil oproblema a resolver, a representação informal cedia lugar à ficção da participação“a título pessoal”.46

3.5. Comentários gerais ao projeto da convenção

Em agosto de 1981, ao término de sua décima sessão, a III Conferênciadas Nações Unidas sobre o Direito do Mar conferiu a seu Presidente e aos demaisPresidentes das Comissões a tarefa de elaborar o texto de um projeto de Convençãosobre o Direito do Mar. O projeto, distribuído no documento A/CONF. 62/L. 78,incorporou o resultado de negociações realizadas, naquele ano, sobre diversospontos específicos, bem como modificações de linguagem recomendadas pelaComissão de Redação; é o último da série de textos básicos de negociação, geradospor meio da metodologia especial utilizada pela Conferência. Constitui-se no primeirodocumento caracterizado formalmente como projeto de Convenção.47

O agrupamento de forças nas negociações realizadas, na Conferência,resultou em um projeto de Convenção dentro do qual:

a) a largura do mar territorial é limitada a um máximo de doze milhasmarítimas;

b) são reconhecidos os direitos de soberania e jurisdição do Estado costeirosobre a plataforma, além das duzentas milhas, até o limite exterior damargem continental;

c) existe o direito do Estado costeiro estabelecer uma zona contígua aomar territorial, até a distância de vinte e quatro milhas;

d) prevê-se um regime especial de navegação pelos estreitosinternacionais, o direito de passagem em trânsito;

e) prevê-se um regime especial para as águas arquipelágicas;f) observa-se o direito de acesso ao mar para os Estados sem litoral;

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g) alude-se, ainda, ao direito de participação no aproveitamento dosrecursos vivos da zona econômica exclusiva para os Estados semlitoral, ou geograficamente desfavorecidos.

De acordo com o aludido projeto, a área do fundo do mar e a de seusubsolo, além dos limites da jurisdição nacional e seus recursos, são patrimôniocomum da humanidade. Foi criada uma Autoridade Internacional para os FundosMarinhos, cujos principais órgãos serão a Assembléia, o Conselho e o Secretariado.A Autoridade é responsável pela organização e o controle das atividades na áreae a administração de seus recursos em benefício da humanidade.48 Está, ainda,prevista, no projeto, a distribuição igualitária aos Estados-parte dos benefíciosauferidos pela Autoridade das atividades realizadas na área, a promoção daparticipação de países em desenvolvimento em atividades e seu acesso à tecnologiade exploração e aproveitamento dos recursos da área, bem como dos mecanismosde controle de produção destinados a salvaguardar, com certos limites, os interessesdos produtores terrestres dos minerais extraídos da área internacional.

3.6. A Conferência e os interesses brasileiros

A atuação da delegação brasileira, durante quase uma década e meia dedeliberações, contribuiu, significativamente, para que fosse elaborado um regimeeqüitativo para a área internacional do fundo do mar e, em particular, para assegurarum regime relativamente forte no que toca aos direitos do Estado costeiro, nasáreas marítimas próximas às suas costas.49

No tocante aos limites da plataforma continental, as disposições do projetode Convenção confirmaram os direitos que foram reivindicados pelo Brasil, nofundo do mar, até o limite de duzentas milhas, embora, em boa parte do seu litoral,nem a plataforma continental, em seu estrito sentido geomorfológico, nem mesmoa própria margem continental (que não é mencionada em textos legais brasileiros)se estenda até essa distância. O projeto, por si só, vai além do que foi reivindicadopela legislação brasileira: reconhece ao Estado costeiro direitos soberanos, no fundodo mar, além das duzentas milhas e até o limite exterior da margem continental.

Os direitos brasileiros, nas duzentas milhas, em torno das ilhas de Fernandode Noronha e da Trindade, foram reconhecidos pelo artigo 121 do projeto daConvenção. No caso dos penedos de São Pedro e São Paulo – “rochedos que, porsi próprios, não se prestam à habitação humana ou à vida econômica”, nos termosdo parágrafo 3º do artigo supramencionado – o Brasil haveria de se limitar a ummar territorial de doze milhas e, eventualmente, a uma zona contígua até o limite devinte e quatro milhas. A situação do Atol das Rocas (foi proclamada reservabiológica nacional em 1979) e da ilha de Martim Vaz, de situação menos clara,mas, de qualquer forma, o primeiro estaria dentro da área de jurisdição marítimade Fernando de Noronha e a segunda na da ilha da Trindade.50

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Em termos práticos, não existiu, de maneira geral, conflito entre o regimebrasileiro e as disposições da Convenção. Existiu conflito apenas no plano conceituale terminológico e no plano hipotético de medidas efetivas de implementação que,embora não adotadas no curso do Decreto-lei n.º 1.098, o Brasil poderia,eventualmente, julgar necessário adotar no futuro.

A aceitação brasileira à Convenção das Nações Unidas sobre o Direitodo Mar, implicaria, como conseqüência, o fato de que o país teria o direito departicipar do regime para a área internacional do fundo do mar e receberia aproteção jurídica, segura e incontestável, para os direitos que, unilateralmente, temreivindicado e efetivamente exercido desde 1970, nas duzentas milhas adjacentesa seu litoral.

3.7. O encerramento Da III Conferência das Nações Unidas sobre oDireito do Mar

O processo de ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direitodo Mar revelou-se mais lento do que se previa. Praticamente, não se contesta ofato de que, mesmo antes de sua entrada formal em vigor, já representava umaconsolidação desse novo Direito Internacional, aplicável aos usos do mar, ao menosno que tange ao regime de direitos e deveres do Estado costeiro e de outros Estados,nas áreas marítimas adjacentes a seu litoral.51

A sessão de encerramento da III Conferência ocorreu em dezembro de1982, em Montego Bay, na Jamaica, abrindo-se a Convenção à assinatura no dia10 do mesmo mês e obteve um total de 119 assinaturas, contando, inclusive, com ado governo do Brasil.

Nenhum Estado foi obrigado a assinar a Convenção. Cada país foi livrepara que decidisse, soberanamente, a respeito de seus interesses nacionais emaceitar, ou não, as obrigações jurídicas de tal acordo internacional. Em momentoalgum das negociações do projeto da Convenção, os representantes brasileirosassumiram o compromisso de aceitar a futura Convenção ou alguma de suasdisposições. Ficaram sempre claras as dificuldades, por parte do governo brasileiro,em relação a importantes artigos do projeto, em especial aos que não eramfacilmente compatíveis com os termos da legislação adotada pelo Brasil em 25 demarço de 1970.52

Em mensagem, datada de 5 de março de 1985, o governo brasileirosubmeteu o texto da Convenção, com parecer favorável, à aprovação do CongressoNacional. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar foi aprovadapelo Congresso, em 9 de novembro de 1987, através do Decreto legislativo n.º 5,que foi publicado no Diário Oficial do dia seguinte. Sabendo-se que a Convençãoregula matéria de natureza constitucional, decidiu-se esperar que a novaConstituição fosse promulgada, em outubro de 1988, para que se concluísse o

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processo de ratificação. O Presidente José Sarney assinou, em 28 de novembro de1988, o instrumento de ratificação que foi depositado junto ao Secretário-Geral dasNações Unidas, em Nova York, em 22 de dezembro de 1988.53

A Convenção somente entraria em vigor anos mais tarde, exatamente,doze meses após a data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação ouadesão, em 16 de novembro de 1994, conforme o que foi estabelecido no artigo308, parágrafo 1º, do Tratado.

Assim, verifica-se que a “Nova República” dos civis assume a posturareconsiderada pelos militares ao adotar as 12 milhas relativas ao tema.

Conclusão

A ampliação do mar territorial brasileiro, de doze para duzentas milhasmarítimas, foi um ato que visou resguardar interesses do país e que, em determinadomomento da política externa brasileira, foi importante, como afirmação da soberaniae vontade nacionais.

Tal medida colocou o Brasil em consonância com os demais países latino-americanos que, da mesma maneira, agiram com relação a suas fronteiras marítimas,constituindo importante frente de Estados que lutavam por seus interesses:configurou-se uma tendência no contexto regional latino-americano.

Por seu turno, a estratégia encetada pelo governo brasileiro possuía, comoobjetivo, defender os seus interesses e os de seus nacionais, soberanamente, nafaixa das 200 milhas marítimas de mar territorial, durante o período compreendidoentre 1970 e 1982.

As teses do mar patrimonial e da zona econômica exclusiva foramqualificadas como uma clara indicação da tendência irreversível para uma novaordem jurídica dos oceanos, que encontrou sua expressão mais simples, lógica ecoerente, na adoção de um mar territorial de 200 milhas.

A assinatura da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Marrepresentou para o governo brasileiro, a limitação de seu mar territorial em 12milhas marítimas, sendo-lhe, porém, reconhecidos e assegurados os seus direitossoberanos e a sua jurisdição, em uma faixa marítima, denominada zona econômicaexclusiva, que se estendia até 200 milhas de suas costas e prolongava-se, sobre osolo e o subsolo do fundo do mar até o limite exterior da margem continental.

Registre-se que a Convenção assegurou ao Estado litorâneo direitossoberanos, no fundo do mar, além das 200 milhas e até o limite exterior da margemcontinental. Tais disposições, além de confirmarem as reivindicações brasileiras,foram, até mesmo, superiores ao que havia sido requerido.

Conclui-se que a decisão do governo brasileiro de ampliar o seu marterritorial para 200 milhas decorreu de um conjunto de fatores: político-diplomáticos,econômicos, de segurança e internos que se constituíram em forças profundas

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que, fatalmente, contribuíram para a expansão da fronteira marítima, afirmando,dessa maneira, a autonomia decisória do governo, por meio de um ato soberanoque repercutiu no contexto internacional, à época, e que se coadunava com oquadro “Brasil Grande Potência”, vislumbrado pelos militares.

O governo brasileiro logrou êxito, durante o período de sua expansãomarítima, em março de 1970, e na estratégia de defesa de seus direitos sobre as200 milhas, durante todo o processo de negociações da III Conferência das NaçõesUnidas sobre o Direito do Mar, que prolongou até 1982.

Maio de 1999

Notas

1 Este artigo é uma síntese da dissertação de mestrado do autor, O Mar Territorial Brasileiro de200 Milhas: Estratégia e Soberania, 1970-1982, apresentada à Universidade de Brasília emmarço de 1999.

2 Em meados do século XIX, o governo brasileiro havia fixado o limite de três milhas para alargura do seu mar territorial. Aos 08 de novembro de 1950, pelo Decreto n.º 28.840, foiintegrada a plataforma submarina ao território nacional. Pelo Decreto-lei n.º 44, de 18 denovembro de 1966, o mar territorial brasileiro era fixado em 6 milhas e em 25 de abril de 1969,pelo Decreto-lei n.º 553, a fronteira marítima brasileira foi, novamente, ampliada para 12 milhasmarítimas, legislação que não chegou a completar 12 meses de vigência.

3 Veja, São Paulo, 09/06/71, p. 27.4 CASTRO, Luiz Augusto de Araújo. O Brasil e o Novo Direito do Mar: Mar Territorial e Zona

Econômica Exclusiva. Brasília: FUNAG, 1989, p. 29.5 Idem, Ibidem.6 Veja, São Paulo, 09/06/71, p. 24.7 Idem, Ibidem.8 CARREÑO, Edmundo Vargas, in: América Latina y el Derecho del Mar (México: Fondo de

Cultura Económica, 1973, p.37) assinala que “esta referencia a la defensa y seguridad constituela primera manifestación explícita en una legislación latino americana referente a 200 millas enla que se consigna este tipo de preocupación”.

9 CASTRO, op. cit., p. 16.10 “Esse mar é meu/ leva seu barco pra lá desse mar/ vá jogar a sua rede/ das duzentas pra lá/

pescador de olhos verdes/ vá pescar noutro lugar.”11 MORRIS, Michael A. International politics and the sea: the case of Brazil. Boulder: Westview

Press, 1979, p. 36.12 CASTRO, op. cit., p. 30.13 Idem, Ibidem.14 RASSELI, Luiz Antônio. Mar Territorial de 200 Milhas. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,

1976, p. 28.15 Idem, Ibidem.16 Idem, p. 34.17 Idem, p. 19.18 BARBOSA, Mário Gibson. Na Diplomacia, o Traço todo da Vida. Rio de Janeiro: Ed. Record,

1992, p. 152.

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O MAR TERRITORIAL BRASILEIRO DE 200 MILHAS: ESTRATÉGIA E SOBERANIA, 1970-1982 125

19 DU PISANI, André. Security and Peace in Post-Apartheid South Africa. International AffairsBulletin, 16 (3), 1992: 5, apud: VENTER, Denis. “Segurança na África do Sul, Brasil e AtlânticoSul: em direção a uma zona de paz e cooperação no Atlântico Sul”, in: GUIMARÃES, SamuelPinheiro (org.). Brasil e África do Sul riscos e oportunidades no tumulto da globalização. Riode Janeiro: CNPQ/IPRI, 1996.

20 DALBY, Simon. Security, Modernity, Ecology: The Dilemmas of Post-Cold War SecurityDiscourse. Alternatives, 17, 1992: 98, idem.

21 United Nations – Resolutions – General Assembly, Twenty-Fifth Session, Suplement N.º28(A/8028), p. 12-13, in: CASTRO, op. cit., p. 23.

22 CASTRO, op. cit., p. 23.23 Idem, p. 24.24 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil-Estados Unidos: a Rivalidade Emergente. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, p. 200.25 BUENO, Clodoaldo. “A política multilateral brasileira”, in: CERVO, Amado Luiz (org.). O

desafio Internacional. Brasília: EdUnB, 1994, p. 107/108.26 SARAIVA, José Flávio Sombra. O Lugar da África: a Dimensão da Política Externa Brasileira

(de 1946 a nossos dias). Brasília: EdUnB, 1996, p. 135.27 CASTRO, op. cit., p. 40.28 Idem, Ibidem.29 Idem, p. 35.30 Inclusive a questão de sua largura e a questão dos estreitos internacionais.31 Inclusive a questão dos direitos preferenciais dos Estados costeiros.32 Incluso, também, a prevenção da poluição.33 CASTRO, op. cit., p. 36.34 Idem, p. 40.35 Eram antecedentes do conceito de mar patrimonial ou zona econômica exclusiva às extensões

da soberania ou jurisdição marítima, adotadas por países latino-americanos, a partir do final dadécada de quarenta. A Declaração de Santiago de 1952 é freqüentemente apontada como textoprecursor do conceito que veio a se firmar no curso da III Conferência das Nações Unidas sobreo Direito do Mar.

36 Tal Conferência foi, formalmente, aberta em Nova York, ao final de 1973, em breve sessão comfins organizacionais.

37 CASTRO, op. cit., p. 45.38 Estes eram: Brasil, El Salvador, Equador, Panamá, Peru, Uruguai.39 Benin, Cabo Verde, Congo, Gabão, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Líbia, Madagascar, Mauritânia,

Moçambique, São Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Somália, Togo e, como observador,Angola.

40 Iêmen Democrático.41 Faziam parte: Argentina, Chile, Islândia, Noruega, Espanha, Canadá, Austrália, Nova Zelândia

e a maioria dos Estados costeiros da região asiática.42 Liderados pelos Estados-Unidos, União Soviética, Reino-Unido e Japão.43 Indonésia, Filipinas, Fiji, Cabo Verde e outros.44 Espanha, Marrocos, Iêmen, Indonésia e outros.45 CASTRO, op. cit., p. 50.46 Idem, p. 51.47 Idem, p. 53.48 As atividades de exploração e de aproveitamento econômicos dos recursos da área internacional,

que é, particularmente, rica em manganês, cobre, níquel e cobalto, serão realizadas, querdiretamente, por uma empresa a ser criada pela Autoridade, quer por Estados-parte (ou entidadescom a nacionalidade e o patrocínio de Estados-parte) em associação com a autoridade.

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49 CASTRO, op. cit., p.66.50 Idem, p. 67.51 Idem, p. 08.52 Idem, p. 65-66.53 Na ocasião, foi apresentada declaração de acordo com o artigo 310 da Convenção, que reproduz

os termos dos itens (iii), (iv) e (v) da declaração feita no momento da assinatura.

Resumo

O artigo procura analisar e identificar o conjunto de forças que contribuíram,decisivamente, no alargamento do mar territorial brasileiro para 200 milhas marítimas,em março de 1970. Procura, ainda, demonstrar a estratégia empreendida pelapolítica externa brasileira, em defesa de seu mar territorial de 200 milhas, duranteo período que compreende a extensão marítima, em 1970, até a conclusão dostrabalhos da III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em 1982,avaliando a Conferência e seus resultados principais no âmbito dos interessesbrasileiros.

Abstract

The main purpose of this article is to analyse and identify the forces thatcontributed decisively to the expansion of the Brazilian territorial sea to 200 miles,in March 1970. Another purpose is to demonstrate the strategy undertaken byBrazilian Foreign Policy in defence of the 200 mile territorial sea, during the periodthat goes from the maritime expansion, in 1970, until the conclusion of the works ofthe III United Nations Convention on the Law of the Sea, in 1982, evaluating theConvention and its main results in the area of Brazilian interests.

Palavras-chaves: Brasil. Mar territorial.Key-words: Brazil. Off-shore border.

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127O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

Segurança e defesa: uma única visãoabaixo do Equador1

DARC COSTA**

Inicialmente, antes de entrar na discussão do tema que nos foi proposto:“Defesa e Segurança: As Posições Brasileira e Argentina”, cumpre ressaltar queprocuraremos construir, como o próprio título do artigo adianta, uma visão quecontemple mais além do que o simples olhar atual, individual e compartimentado dasegurança e da política de defesa nacional do Brasil e da Argentina. Buscaremosimaginar uma visão de segurança comum no Mercosul e uma política comum dedefesa, para ambos os países.

Esta postura nos parece ser a resposta correta ao processo de transformaçãorecente da economia mundial, descrito como de globalização, mas que maisapropriadamente se colocaria, em nossa opinião, como polarização e que está sendocorrespondido no campo político pela criação de pólos de poder, como a UniãoEuropéia. Existe uma polarização econômica travestida de regionalização. Hoje, terpoder e ser centro exige escala; e países pequenos, ou se unem em mercados maiores,Megaestados, como é o caso da União Européia, ou estão fadados a se tornar oupermanecer periféricos.

Acresce-se a esta colocação uma outra constatação, presente neste texto,de que o Brasil e a Argentina, juntos, devido a sua atual posição periférica nocampo político no cenário mundial, estão geograficamente destinados a subpolarizare a liderar a formação de um pólo de poder na América do Sul, fruto da cooperaçãosul-americana.

Antes de avançar no tema proposto, é sempre bom lembrar que segurançaé um estado e defesa é um ato. Por isso, as questões relativas à segurança devemsempre preceder ao estabelecimento de uma política de defesa. Esta, também,deveria ser a ordem proposta para o tema: segurança e defesa e não defesa esegurança. Primeiro, é preciso estabelecer as bases sobre as quais se possa assentara segurança da nação, ou das nações e de seus cidadãos. Depois, pensar em comose defender, caso estas bases sejam ameaçadas de rompimento.

Outra questão preliminar reside no fato de que a segurança e a defesa dequalquer país são, antes de tudo, uma questão de natureza estratégica. Não são,

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 127-156 [1999]* Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Escola Superior de Guerra.** Texto cedido para publicação pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IBRI, Ministériodas Relações Exteriores

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128 DARC COSTA

portanto, do tipo de temas capazes de ter uma apresentação livre de metodologia.Existe, consagrada, uma metodologia para a avaliação de uma situação estratégico-militar que, pela sua própria natureza, se aplica, perfeitamente, ao estudo de questõesque dizem respeito à segurança e à defesa. Esta é a metodologia que nosacompanhará e seu desdobramento metodológico é o que se segue:• interpretação e avaliação da missão que, no caso proposto, consiste em uma

política de defesa para o Brasil, para a Argentina, logo, também, para oMercosul;

• explicitação e análise das ameaças que pesam ou pesarão sobre o Brasil,sobre a Argentina e sobre o Mercosul;

• análise dos meios para a defesa, disponíveis ou mobilizáveis;• escolha de uma estratégia para a defesa de ambos os países e de espaços

comuns de interesse; e• conclusões e recomendações .

1) Interpretação e avaliação da missão

Ao iniciarmos o estudo, devemos entender qual o objetivo do mesmo, queé o de prover segurança e política de defesa a um amplo espaço abaixo do equador,que engloba muito mais que o território continental das duas nações: o Brasil e aArgentina.

Fixar os contornos da segurança para este espaço; buscar o estabelecimentode política de defesa para cada um e conjunta, para ambos os países; envolveassinalar as principais características que venham a influenciar a dinâmica política,econômica e psicossocial dos dois países, diante dos desafios mundiais. Para tanto,é de fundamental importância avaliar a evolução, tanto da conjuntura mundial, apartir do quadro atual de poder, quanto se apresentar, em sua real dimensão, aabordagem atual da segurança e da defesa no Brasil e na Argentina.

1.1) O quadro atual de poder e a provável evolução da conjuntura mundial

Iniciemos analisando o atual quadro de poder e sua provável evolução.Como sempre, este quadro traz em si a permanente dualidade: o centro e a periferia.O centro composto de três atores, o núcleo hegemônico, que conceituamos comoos EUA, e os núcleos não hegemônicos, composto, na nossa visão, pelo Japão epela União Européia. A periferia imaginamos como sendo todo o resto, mas tambémdividida entre periferia polarizadora e periferia polarizada, como veremos adiante.Tanto o Brasil, como a Argentina fazem parte da periferia.

Como premissa inicial da conjuntura que vivemos, afirmamos que, com otérmino da Guerra Fria, há dois processos em marcha:

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• o primeiro processo decorre de que se voltou a priorizar, como partedeterminante da equação política, as questões econômicas internacionais (como fim da bipolaridade, a segregação das questões econômicas ou asubordinação delas ao campo ideológico deixou de existir, assim comodesapareceu a estranha urdidura que as colocava como praticamenteapolíticas. Os homens lutaram por questões econômicas no passado e tudoindica que voltarão a lutar por essas questões no futuro);

• o segundo processo, que decorre da regionalização da vida econômica, é aemergência de potências políticas regionais como forças que procurarão,crescentemente, a independência e que se posicionarão, permanentemente,em busca de uma melhor posição mundial.

Estabelecidos estes pressupostos, cabe-nos apresentar a atual situaçãomundial, o que faremos, de forma resumida e simplificada, por um modeloesquemático. Este modelo compõe-se de um centro, como já colocamos, compostode três núcleos, que se movimentam na busca da dominação – onde um exerce ahegemonia, como também já foi colocado – cercado de diferentes e diversasperiferias, também móveis e atuantes, que buscam de forma conflitiva fazer partedeste núcleo. Este centro encontra-se em expansão, por uma progressiva polarizaçãoem torno do núcleo hegemônico: os EUA, via NAFTA, e dos dois outros núcleosnão hegemônicos: a Alemanha, pela constituição da União Européia, e do Japão,pela constituição de um círculo de interesses na Ásia, que batizaremos de ComplexoAsiático. Na periferia, alguns movimentos de articulação se processam, dentreestes, a formatação de subpolarizações, como a que une Brasil e Argentina noMercosul.

Analisaremos neste modelo a sua possível evolução futura. Para tanto,dividimos nossa análise em cinco visões: a do núcleo hegemônico, a dos núcleosnão hegemônicos, a da periferia, a que eles todos têm de nós, Brasil e Argentina, ea nossa visão de nós.

1.1.1) A visão do núcleo hegemônico

Alguns analistas afirmam que não existe, hoje, um Estado claramentehegemônico. Contudo, para nós, a posição americana no mundo é de centro e denúcleo hegemônico. Não só os Estados Unidos detêm um poder militar incontrastável,como exercem a liderança econômica do mundo, decorrente de deterem a moedainternacional, o dólar, e uma posição competitiva favorável. Como os estrategistasdos Estados Unidos olham o futuro?

Existe quase um consenso, ao final do século XX, no pensamento estratégicodos EUA, de que a sua situação hegemônica indiscutível é uma situação passageirae que em 15, 30, ou, no máximo, em 50 anos, a estrutura de poder mundial voltaráa um clássico modelo multipolar. É quase consenso entre os maiores pensadores

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em estratégia norte-americanos que haverá, no futuro, uma perda progressiva depoder dos Estados Unidos, na arena mundial. Estes maiores pensadores, diferem,contudo, profundamente, no modo pelo qual os americanos se defrontarão com onovo contexto.

Três são as correntes que tratam deste reposicionamento, melhor dizendo,do trato dessa futura decadência:

A primeira, que nomearemos como a dos fatalistas, que coloca que nadapoderá ou deverá ser feito e encontra a sua formulação mais forte na obra TheRise and Fall of the Great Powers, de Paul Kennedy. Partindo de uma visão quese apoia em uma análise pretérita histórica, os fatalistas colocam que a própriaposição hegemônica norte-americana conduz a imensos gastos para a manutençãodesta situação, em especial, gastos militares, e isto, progressivamente, comprometeráas finanças públicas americanas e conduzirá à perda crescente de poder dos EstadosUnidos no panorama mundial.

A segunda, que nomearemos como a dos ativistas, que coloca que algopoderá ser feito e encontra sua melhor versão na obra Diplomacy de HenryKissinger, que afirma ser possível uma postura ativa que, aceitando a inexorabilidadeda queda, postula-a como passível de ser controlada com ações de curto prazo,algo que melhor seria traduzido como participar quando puder e do melhor jeitoque puder.

A terceira, que nomearemos dos articulistas, que defende que muito poderáser feito e que tem seu melhor texto na obra Out of Control: Global Turmoil onthe Eye of the Twenty-First Century, de Zbigniew Brzezinski, antigo membro doGoverno Carter, e que afirma que, dada a não possibilidade de evitar a queda, osEstados Unidos precisam fazer uma retirada estratégica, procurando organizar omundo, para uma era pós-Pax Americana, que teria como seu grande legado umsistema global de equilíbrio geopolítico auto-sustentável.

É verdade que a primeira destas visões está muito mais próxima que asdemais da idéia da guerra como o ato final da ruptura. Sua própria característicapressupõe um progressivo esvaziamento de poder decorrente do esforço econômico;todavia, o próprio final, a ruptura, resulta, como a análise histórica pretérita procedidademonstra, de um esforço de guerra.

As outras visões repõem, de forma nova, a clássica dicotomia presente navisão americana de mundo, em que se opõem, há cem anos, os intervencionistasaos isolacionistas. Seria muito primitivo atribuir-se a Kissinger uma visãointervencionista no modelo do walk softly and carry a big stick (ande suavementee carregue um grande porrete), mas é indubitável a sua inteira subordinaçãoideológica ao que os alemães chamam de realpolitik, ou seja, a idéia que os EstadosUnidos têm de ser fortes e atuantes e que sua política deverá ser global e pautadapelo interesse nacional. Assim, também, poderia parecer despropositado vincular-se Brzezinski àqueles que defendem a tese de que a política externa norte-americana

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deve ser exclusivamente baseada em princípios morais. Entretanto, é óbvio, notexto deste autor, que é do exemplo que a democracia americana tira sua principalforça. Contudo, essas visões são análises próprias, de nossa época, das duascorrentes que dividem o modo de ver o mundo dos estadunidenses e que, apesarde se apoiarem em premissas diferentes, não afastam a hipótese de guerra ejustificam a necessidade de generosas despesas militares no orçamento dos EstadosUnidos. Aliás, é bom lembrar que os Estados Unidos, mergulhados no passado,nos ditames de uma ou de outra corrente, caminharam, diversas vezes,inexoravelmente, para situações de guerra.

Contudo, uma das análises publicadas, presente na obra The Clash ofCivilizations and The Remarking of World Order de Samuel Huntington, queteve ampla divulgação nos círculos intelectuais norte-americanos, rompe com oquase consenso da inexorabilidade da decadência, ao apresentar a possibilidade damanutenção da hegemonia norte-americana como o centro de um esquema depoder dominante, composto basicamente pelos Estados Unidos e pela UniãoEuropéia. Nesta visão prospectiva, o conceito da guerra encontra-se, também,claramente presente e opõe o que o autor conceitua como efetivamente civilizado,os europeus e os norte-americanos, a uma ou a várias barbáries, que se estruturamcomo outras formas de civilização. Apesar de destoante da maioria dos pensadores,a proposta de Huntington, pela sua posição otimista, é a que merece o maior apreçoe destaque da mídia e da opinião pública norte-americanas.

Encontramo-nos, portanto, e aí existe um total consenso de todas ascorrentes formadoras da estratégia dos Estados Unidos, muito longe das visõesirreais de inação do Estado Nacional postas por Immanuel Kant em PerpetualPeace ou por Karl Marx em Withering Away of State, e mais recentemente porLord Williams Rees-Mogg, em sua obra The Sovereign Individual. Nesta obra,este autor chega a afirmar que os Estados Nacionais perderão sentido e que osconflitos deixarão de ser guerras nacionais e se darão no âmbito de relações nointerior da sociedade civil. O conceito da guerra entre Estados Nacionais é umaconstante na visão da geopolítica, do trato do poder e da estratégia norte-americana.

Posta a inevitabilidade do conflito armado, cabe-nos questionar quais seriamos interesses vitais dos Estados Unidos que os mobilizariam a ponto de sedefrontarem, militarmente, com competidores, cujo tempo, inexoravelmente, faráaumentar em número e em poder. Será vital o controle das principais passagensmarítimas do mundo? Será fundamental o suprimento de petróleo? O controle domercado asiático é uma questão de prioridade estratégica?

Para responder estas perguntas cabe observar quais os desdobramentospassados da bem sucedida estratégia nacional dos Estados Unidos, pois elesconfiguram o círculo de interesses que arquitetou a sua hegemonia atual. Qualquerestudioso verifica que a estratégia perseguida pelos norte-americanos foi aquelatão brilhantemente sintetizada na obra The Coming War with Japan, de George

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Friedman e Meredith Lebard, que estabeleceu como os seguintes os patamaresestratégicos perseguidos pelos norte-americanos desde a sua independência:• “que o poder e o exército dos EUA dominem de forma completa a América

do Norte;• que não exista nenhuma potência ou grupo de potências no hemisfério ocidental

capaz de contestar a hegemonia dos EUA;• que a marinha dos EUA seja capaz de manter as potências do hemisfério

oriental fora do hemisfério ocidental, através do controle do Atlântico Norte edo Pacífico Leste;

• que nenhum poder do hemisfério oriental possa desafiar o domínio norte-americano dos oceanos, desviando suas energias para ameaças terrestres.”2

Esta macroestratégia, tão bem resumida e explicitada, é totalmenterespaldada na leitura da obra central da formulação da ação norte-americana, aolongo da II Grande Guerra, America’s Strategy in World Politics, de NicholasJonh Spykman. Conforme se depreende da leitura desta obra, o desafio estratégiconorte-americano esteve e está posto a nível global.

Assim sendo, aonde estarão os possíveis contestadores? Quais serão suasações? Qual é a ação preventiva dos EUA e quais suas possíveis reações?

Comecemos respondendo à última destas questões. Em recente artigopublicado na revista Foreign Affairs, intitulado How America Does It, Josef Joffefaz uma detalhada análise que responde qual tem sido a ação estratégica preventivanorte-americana e que pode ser assim resumida: os EUA, hoje, prioritariamentecolocam como objetivo central de sua ação política internacional manter seu atualsistema de alianças e o regime de livre comércio como sistema permanente decontrole internacional. Isto poderá vir a ser feito, até mesmo, através datransformação de seu sistema de alianças em um sistema imperialista, usando seupoderio atual, inclusive o militar, para manter sua hegemonia, tanto no seu sistemade alianças, como no antigo bloco soviético e, também, no antigo terceiro mundo.

Entretanto, os EUA poderiam ter, amanhã, outro posicionamento e vir adar prioridade a isolar-se em seu hemisfério, criando um bloco político e econômicono hemisfério ocidental, utilizando a sua marinha para manter o domínio dos oceanos,evitando intervenções francas no hemisfério oriental, a menos que uma únicapotência ameace esta hegemonia, e usando o seu controle dos oceanos paramanipular o comércio marítimo mundial, de forma a evitar que tal potência venhaa surgir.

Ambas possibilidades devem ser merecedoras de total atenção para osformuladores da segurança e de política de defesa no Brasil e na Argentina.

Contudo, há um ponto que nos parece óbvio e tem figurado, explicitamente,nas análises dos interessados em prever o comportamento futuro dos EstadosUnidos. Este ponto é o fato dos EUA não se imaginarem contestados no própriocontinente americano. Aqui está um ponto central deste trabalho. Todos os seus

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possíveis contestadores sempre são vistos no hemisfério oriental. Para os norte-americanos, a sua hegemonia incontestável no continente americano é algofundamental, acima de todos os demais interesses, como já o foi no passado (queos digam as suas diversas intervenções militares no continente americano, nesteséculo) e é, e será, certamente, o mais forte motivo para um novo engajamentomilitar em uma nova guerra, por parte dos Estados Unidos. Repetimos, esta é umafortíssima questão presente ao se abordar aspectos de segurança e de política dedefesa para o Brasil, para a Argentina e para o Mercosul.

Dado o peso dos Estados Unidos no comércio mundial, é interessante,também, fazermos algumas considerações quanto à sua política comercial, cujasdiretrizes estão claramente expressas na sua Lei de Comércio e Tarifas, de outubrode 1984. Essa lei procura ser abrangente, já que tenta integrar objetivos diversos,relacionados ao comércio de bens, serviços, investimentos externos e transferênciasde tecnologia. Envolve processos de negociação, bilateral e multilateral, consultase retaliações. Cabe ressaltar que um dos objetivos da lei é dar, ao presidente dosEUA, poderes para impor restrições de acesso ao mercado norte-americano debens, mesmo que a questão que tenha gerado contencioso diga respeito ainvestimento, tecnologia e serviços. Neste campo, também, a estratégia do governonorte-americano tem sido de buscar a liberalização completa nas transações ondesua economia aparentemente tenha vantagens comparativas. Seu posicionamento,em diversos foros e, em particular, na Rodada Uruguai do GATT, e agora naOrganização Mundial do Comércio, consubstancia essa formulação, decorrenteda filosofia econômica que adota. Está claro que, mesmo antes daquela rodada denegociações, os EUA passaram a exigir mais esforços dos países emdesenvolvimento, que tiveram perda significativa do tratamento especial de que sebeneficiavam. Tal ação se faz sentir com maior reflexo sobre a América Latina,que tem procurado, de forma tíbia, adequar suas políticas econômicas à novarealidade do comércio internacional.

No campo político, estratégico e militar, os EUA buscam consolidar suaárea de poder, para influir em soluções condizentes com seus interesses nos conflitosque se deflagram no mundo. Buscam, ademais, ações diretas para evitar o acessoa terceiros das chamadas armas de extermínio de massa. Esta é, em resumo, aestratégia do país dominante no centro atual.

1.1.2) A visão dos núcleos não hegemônicos

Vários analistas admitem a ausência, no momento atual, de predomíniodos Estados Unidos no campo econômico e preferem ver a existência de umamultipolaridade econômica competitiva, que envolveria os Estados Unidos, aAlemanha e o Japão. Como afirmamos antes, o que fica claro é a existência de um

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processo de polarização econômica, tecnológica e financeira, que envolveria estestrês países, o centro, essa “tríade”, ou para alguns, a trilateral.

Todavia, tanto a Alemanha como o Japão não possuem a estatura políticacondizente com seu atual estágio econômico. Militarmente, tanto a Alemanha comoo Japão encontram-se ainda ocupados por tropas norte-americanas, passados maisde 50 anos do término da II Grande Guerra e dez anos do término da Guerra Fria.Politicamente, ambos os países continuam fora do condomínio político exercidopelos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas

Os objetivos centrais da ação estratégica nacional destes dois países é ode recolocar as suas estaturas políticas na verdadeira grandeza de suas estaturaseconômicas. Seguem estratégias diversas, mantendo, todavia, ambos os países,um sistema de poder nacional, em que enfatizam o relacionamento entre o grandecapital privado, o Estado Nacional, o desenvolvimento de tecnologia, as ForçasArmadas e a sociedade civil. Tanto um como outro não alteraram sua concepçãoestratégica básica, que se formatou no século passado.

A concepção estratégica da Alemanha era e é clara: o domínio da EuropaContinental, daí o domínio da Europa e da Ásia e do Mundo. O que mudou em suaestratégia foram os meios a serem utilizados, que de militares tornaram-seeconômicos. Foi economicamente que a Alemanha conseguiu a reunificação e éeconomicamente que a Alemanha tem buscado, com sucesso, o domínio da Europa.A União Européia é, antes de tudo, um projeto alemão. É, ainda, economicamente,que a Alemanha buscará dar seu maior passo estratégico, o euro, a contestação dodólar.

As prioridades alemãs em termos de política externa encontram-se naEurásia, em especial, na Europa Oriental. Os estrategistas europeus, especialmenteos alemães, advogam uma maior proximidade operativa com a Rússia, algo que sópoderá avançar com a consolidação da União Européia. Existe no imaginário alemão,no espaço europeu, uma outra figura, e esta figura tem assento permanente nocondomínio político: a Rússia.

Já o Japão, possui uma concepção estratégica limitada, que se resume aodomínio das margens da Bacia do Pacífico. A derrota militar da II Grande Guerramarcou profundamente a sociedade japonesa que, agora, busca exercer estedomínio, também, por meios econômicos. Os dois movimentos externos dominantesna política externa japonesa, a chamada política dos gansos voadores, ou seja, aconquista dos mercados do Leste Asiático, tanto pela implantação de indústriastradicionais neste espaço como pela reserva destes mercados para os produtosjaponeses, e a chamada política do tubarão amarelo, para a costa do Pacífico dohemisfério ocidental, que busca aumentar a presença econômica japonesa na costaoeste dos Estados Unidos, no México, no Peru e no Chile, reforçam esta colocação.Aqui, também, existe uma outra figura. Os estrategistas japoneses, entendem queo Japão só avançará efetivamente na busca de seu objetivo se fizer uma maior

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aproximação com a China, outro membro do condomínio político do Conselho deSegurança das Nações Unidas.

Daí porque é importante para as duas diplomacias, tanto a japonesa comoa alemã, a reforma do Conselho de Segurança que, antes de permitir o seu ingressono ambicionado condomínio político, é a demonstração cabal das composições daAlemanha com a Rússia e do Japão com a China, composições estas, necessárias,na visão de seus estrategistas, para repor estatura política aos dois países.

Há, em ambas as visões, a clara percepção de que, enquanto nãosolucionada a questão da estatura política, a melhor conduta no campo econômico,político e militar é de procurar não contestar, objetivamente, os desígnios dos norte-americanos. Daí o porque do apoio às iniciativas norte-americanas, no âmbito dasorganizações internacionais. O apoio a estas iniciativas tem se materializado nosforos como a OCDE e a OMC, na elaboração de normas, na aprovação domecanismo de “condicionalidades” imposto pelo FMI e pelo Banco Mundial aospaíses endividados e em crise e até nas sanções impostas pela ONU ao Iraque.

Pode parecer, contudo, que, subjacente a tudo isto, exista uma certaconcordância com o antigo esquema do geopolítico alemão Haushofer de divisãodo mundo, em que uma tríade assumiria oligopolisticamente o controle do podermundial, dividindo claramente seus mercados, algo que não tem mais tanto respaldoe perdeu conteúdo nesta virada do século XX para o século XXI. Esta concordâncianão existe, por parte dos americanos, nem por parte dos alemães, nem por partedos japoneses. Todos têm uma visão própria de mercado mundial.

1.1.3) A visão da periferia

A periferia no modelo apresentado é tudo que não pertence ao centro e seconstitui de Estados que, para simplificar, podem seguir duas possíveis classificações:quanto ao potencial e quanto ao comportamento.

Na classificação referente ao potencial, os Estados se dividem empolarizadores e polarizados. Os Estados polarizadores são aqueles que, por teremgrande população e uma economia emergente, são capazes de constituir mercadosdinâmicos, permitindo processos que levam à economia de escala, em especial,nas chamadas áreas de tecnologia de ponta. Os Estados polarizados são aquelesdesprovidos daquele atributo e destinados a compor, em decorrência de sua posiçãogeográfica, com outros Estados, e/ou com algum Estado polarizador dentro de umprocesso mundial de crescente regionalização um Megaestado. Os Estadospolarizadores mais evidentes são a China, a Rússia, a Índia, a Indonésia e o Brasil.

Na classificação referente ao comportamento, os Estados se dividem emEstados pertubadores e Estados subordinados. Os Estados perturbadores sãoaqueles que se insubordinam contra os ditames do centro e os Estados subordinadossão aqueles que seguem os ditames políticos do centro. Há diferentes graus de

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perturbação, mas, como perturbadores radicais podemos citar a Coréia do Norte,o Iraque e o Afeganistão. Toda periferia tem em si algum grau de contestação quese explicita em perturbação, mas é inegável que, atualmente, a Áustria ou o Méxicosão Estados subordinados.

A História Universal nos mostra que, para um Estado periférico chegar aocentro, ele tem de ser perturbador. Hoje, para se chegar ao centro, também, tem-se de ser polarizador. Estas duas condições criam a possibilidade de um Estadoperiférico vir a ser centro.

Na periferia, os Estados polarizadores com maior grau de liberdadeeconômica são, nessa ordem: a China, a Índia e a Rússia.

Na periferia, os Estados polarizadores que, geograficamente, possuemmaiores graus de liberdade são o Brasil, a Indonésia e a Índia, pois são os queestão mais espacialmente afastados dos atuais núcleos do centro. Destes, a Índiaé a que possui atualmente o maior grau de contestação. Contudo, a Índia, como aIndonésia, tem restrições geográficas ao papel de polarizador. A Índia, por sesituar em um pedaço restrito de um continente, a península indiana, e a Indonésia,por se situar em um arquipélago, têm sérias dificuldades na sua função de polarizador,ou seja, a constituição de um espaço geográfico único com demais Estados para aconstituição de um Megaestado. Este não é caso do Brasil, que detém condiçõesgeográficas excepcionais de polarizar, não tanto por ser um Estado dotado defronteiras com diversos outros Estados, em um subcontinente periférico, a Américado Sul mas, principalmente, por contar, nesse processo de polarização, com umparceiro e vizinho com o gabarito geográfico e demográfico da Argentina. Há,mesmo, na América do Sul, a possibilidade da formação de um binômio Brasil-Argentina de natureza análoga ao binômio Alemanha-França que constituiu o fulcrode articulação da União Européia, algo que pela sua grandeza, não se repete emnenhuma outra parte do planeta.

Cabe-nos apresentar aqui, e de forma rápida, a concepção estratégica dosEstados mais relevantes da periferia. A China tem como objetivo central de suaconcepção estratégica restaurar seu território nacional pela unificação com a Chinainsular: Taiwan. A concepção estratégica chinesa é muito limitada, mas vem sendotransformada, nos últimos anos. Já a Rússia, tem uma elaborada e complexaconcepção estratégica que pressupõe como estabelecido pelo seu formulador Pedro,o Grande, o domínio da Eurásia. Contudo, a Rússia de Yeltsin não é contestadora.É subordinada e apaziguadora como se pode ver pelo seu comportamento nasquestões relativas aos Balcãs. Sua estratégia tem sido a de procurar uma aliançacom a China, pois se sente ameaçada pela conjunção de interesses entre os EUAe a União Européia. Contudo, caso se consiga solucionar a questão balcânica,dadas a posição geográfica da Rússia e a concepção estratégica da Alemanha, ésomente uma questão de tempo a prevalência de um pensamento pró-europeu naRússia.

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Deve sempre estar presente, na formulação da estratégia nacional, naperiferia, o fato de que a montagem de alianças estratégicas de Estadospolarizadores entre si, ou com os núcleos não hegemônicos do centro, é o melhorcaminho a ser seguido para o exercício da função pertubadora à ordem internacionalno caminhar de um Estado para o centro.

1.1.4) A visão deles do “abaixo do equador”

O núcleo hegemônico, os EUA, tem consciência da realidade, ou seja, quenós, Brasil e Argentina, nos inserimos na sua mais importante área estratégica: aAmérica. Tem consciência que é fundamental para sua hegemonia a sua dominaçãosobre o espaço americano. Pode-se resumir que, no momento, a ação do núcleohegemônico é, no campo político, a de garantir que os governos Brasileiro eArgentino mantenham uma posição se não alinhada, pelo menos não contestatóriaaos seus desígnios para o hemisfério. Já no campo econômico, sua ação é a debuscar nos inserir, mediante a criação da Área de Livre Comércio para as Américas(ALCA), de forma plena e definitiva, em seu espaço de dominação, em suapolarização. Com isto o centro hegemônico pretende:

a) a permanência, no Brasil, na Argentina e nos demais países dasAméricas, de regimes políticos que melhor assegurem a defesa dos seus interessespolíticos e econômicos;

b) garantir a imposição de sua cultura sobre a cultura brasileira, a culturaargentina e a dos demais povos do Hemisfério Ocidental;

c) promover sua visão de mercado através de um sistema que articulesuas universidades como centros fornecedores de treinamento profissional paraprováveis integrantes das futuras elites dos demais países das Américas, em especial,do Brasil e da Argentina.

d) implantar um sistema econômico nas Américas, cujas normas garantammaior liberdade de circulação dos seus fatores de prevalência – o capital, bens eserviços –, mas que excluam o fator trabalho;

e) dar maior capacidade de proteção a setores da economia norte-americana ameaçados de competição dentro e fora do continente, pela adição demercados dos outros países das Américas ou mediante a criação de barreiras dedefesa de seu mercado;

f) induzir os demais Estados, nas Américas, a adotar procedimentos jurídicos,normas de atividade, instituições e políticas econômicas condizentes e semelhantesàs norte-americanas;

g) garantir o acesso americano diretamente às fontes de matéria-primaexistentes no continente, imprescindíveis ao desenvolvimento da economia norte-americana, em especial de bens energéticos;

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h) inibir o aparecimento no continente de pólos de tecnologia, fora do seucontrole, de modo a impedir o surgimento de competidores efetivos nos mercadosde ponta mais lucrativos.

O objetivo central do núcleo hegemônico para o Brasil, para a Argentina,bem como para os demais países da América, é conhecido como “Consenso deWashington” e tem como principal objetivo manter os mercados destes paísesabertos para as suas exportações através da defesa infatigável das teoriaseconômicas liberais, em especial das vantagens comparativas, de especializaçãoprimária agrícola e mineral, e do livre comércio.

Os núcleos não hegemônicos, Alemanha e seus parceiros da União Européiae o Japão, têm uma estratégia diferente do núcleo hegemônico para o Mercosul eos demais países da América. Apesar de, nos foros internacionais, fazerem coroao discurso dos EUA, buscam, em paralelo, construir na região uma base industrial,com filiais de suas empresas transnacionais, ou com seus capitais, capazes degarantir mercado para seus produtos ou sua tecnologia. O Mercosul, e dentrodeste o Brasil, é, neste esforço, o objetivo central da União Européia. Entendemque, nessa região, podem vir a desestabilizar o predomínio econômico mundialnorte-americano, pois imaginam que criando uma nova polarização no HemisférioOcidental estariam interferindo no espaço de maior interesse dos EUA. Para ambosnúcleos não hegemônicos, o Brasil, a Argentina e o Mercosul têm extremaimportância nas relações que eles podem vir a ter com os EUA, além de apresentarum enorme potencial.

A periferia vê o Brasil como um polarizador subordinado e vê a Argentinacomo um parceiro do Brasil na arena internacional, mas um parceiro que reforça apostura brasileira de subordinação. Contudo, como a China, a Rússia e a Índiacolocam nos seus centros de pensamento estratégico, para nós existe espaço parauma possível contestação, para exercermos a perturbação, algo que, na visão deles,nos daria as condições para rapidamente vir a ser centro. Será que o seremos nofuturo? Será que perturbaremos? Se o fizermos, imaginam ser possível o nossosucesso, ou, pelo menos, a minimização da hegemonia atual, algo que demonstramter grande interesse. Daí porque a vontade, em especial dos chineses, na montagemcom o Brasil e a Argentina de parcerias ou alianças estratégicas.

1.1.5) A nossa visão do “abaixo do equador”

A partir de meados da década de oitenta, gerou-se, abaixo do equador,progressivamente, um jogo de interesses cruzados, que, paulatinamente, conduzirama uma crescente interdependência entre: Brasil e Argentina. Esta interdependênciaprogressiva levou os atores privados e públicos a constituírem um mesmo cenáriopolítico, o Mercosul.

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O Mercosul, como instituição política, transformou-se institucionalmenteem um elemento de estabilidade e, pelos interesses que vem gerando, é um poderosoinstrumento de combate a qualquer possível fragmentação na região.

Criou-se, portanto, um novo contexto, onde a velha visão do vizinho comoadversário e ameaça a nossa segurança foi superada pela constatação de que osriscos do vizinho agora são nossos próprios riscos. O Mercosul transformou oBrasil e a Argentina em irmãos siameses, unidos pelos interesses de um mercadode escala e apartados, geograficamente, das rotas de comércio mundial. Não hámais caminho para o centro sem a união cultural, econômica, política, militar esocial que o Mercosul proporciona.

Acresce a essa constatação o fato de que foi e é necessário ir além,ampliando o espaço comum pelo envolvimento de outros parceiros no processo deintegração e cooperação, como foi o caso do Uruguai e Paraguai, em 1991 e doChile e da Bolívia, em 1996.

Nós somos mais que próximos. Somos vizinhos, além de estarmos ambosgeograficamente deslocados dos caminhos centrais do comércio mundial. Somosibero-americanos. Isto a hegemonia não alterará, pois se trata da própria naturezadas coisas e nos vemos assim.

Estas visões configuram o palco onde se apresenta nossa missão, ou seja,quais devem ser as posições brasileira e argentina em termos estratégicos e seusreflexos em termos de segurança e política de defesa? Interpretá-las é esquadrinharo palco apresentado nas suas duas vertentes centrais: o da submissão ao discursohegemônico e o da sua contestação. Planejar a defesa não é trabalhar comprobabilidades, é ir além, é trabalhar com possibilidades.

1.2) A subordinação à hegemonia: abordagem atual da segurança edefesa no Brasil e na Argentina

Estamos, hoje, muito mais próximos do quadrante da subordinação. Nomomento, as posições do Brasil e da Argentina são de Estados não perturbadores,algo que tem sua gênese na concepção econômica dos governos dos dois países.A situação não contestadora conduz a que os textos oficiais que tratam sobre adefesa de ambos os países deixem antever posições comportadas e conjugadasaos chamados princípios gerais dominantes (intervencionismo, globalização, direitoshumanos, questões ecológicas, etc.) e, portanto, alinhadas à chamada democraciarepresentativa e ao livre comércio. Contudo, estas posições são muito mais fortesna visão expressa no Libro Blanco de la Defensa Nacional de la RepublicaArgentina, editado em 1999, do que no texto da Política de Defesa Nacional,publicado pela Presidência da República do Brasil, em 1996. A posição brasileirase coloca de forma muito mais independente aos desígnios de Washington que aposição argentina. Contudo, ainda assim poderia ser colocada no quadrante da não

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contestação, não pelo seu discurso mas, muito mais, pela sua prática.Comecemos analisando a posição brasileira pelo seu discurso. As diretrizes

constantes no documento citado são as que se seguem:“a. contribuir ativamente para a construção de uma ordem internacional,

baseada no estado de direito, que propicie a paz universal e regional e odesnvolvimento sustentável da humanidade;

b. participar crescentemente dos processos internacionais relevantes detomada de decisões;

c. aprimorar e aumentar a capacidade de negociação do Brasil no cenáriointernacional;

d. promover a posição brasileira favorável ao desarmamento global,condicionado ao desmantelamento dos arsenais nucleares e de outras armas dedestruição em massa, em processo acordado multilateralmente;

e. participar em operações internacionais de manutenção de paz, de acordocom os interesses nacionais;

f. contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a solidificaçãoda integração regional;

g. atuar na manutenção de um clima de paz e cooperação ao longo dasfronteiras nacionais, e para a solidariedade na América Latina e na região doAtlântico Sul;

h. intensificar o intercâmbio com as Forças Armadas das nações amigas;i. manter a participação das Forças Armadas em ações subsidiárias que

visem à integração nacional, à defesa civil e ao desenvolvimento sócio-econômicodo País, em harmonia com sua destinação constitucional;

j. proteger a Amazônia Brasileira, com o apoio de toda a sociedade e coma valorização da presença militar;

l. priorizar ações para desenvolver e vivificar a faixa de fronteira, emespecial nas regiões norte e centro-oeste;

m. aprimorar a organização, o aparelhamento, o adestramento e aarticulação das Forças Armadas, assegurando-lhes as condições, os meios orgânicose os recursos humanos capacitados para o cumprimento da sua destinaçãoconstitucional;

n. aperfeiçoar a capacidade de comando, controle e inteligência de todosos órgãos envolvidos na defesa nacional, proporcionando-lhes condições quefacilitem o processo decisório, na paz e em situação de conflito;

o. aprimorar o sistema de vigilância, controle e defesa das fronteiras, daságuas juridicionais, da plataforma continental e do espaço aéreo brasileiros, bemcomo dos tráfegos marítimo e aéreo;

p. garantir recursos suficientes e contínuos que proporcionem condiçõeseficazes de preparo das Forças Armadas e demais órgãos envolvidos na defesanacional;

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SEGURANÇA E DEFESA: UMA ÚNICA VISÃO ABAIXO DO EQUADOR 141

q. fortalecer os sistemas nacionais de transporte, energia e comunicações;r. buscar um nível de pesquisa científica, de desenvolvimento tecnológico

e de capacidade de produção, de modo a minimizar a dependência externa do Paísquanto aos recursos de natureza estratégica de interesse para a sua defesa;

s. promover o conhecimento científico da região antártica e a participaçãoativa no processo de decisão de seu destino;

t. aprimorar o sistema de Mobilização para atender às necessidades doPaís, quando compelido a se envolver em conflito armado; e

u. sensibilizar e esclarecer a opinião pública, com vistas a criar e conservaruma mentalidade de Defesa Nacional, por meio do incentivo ao civismo e àdedicação à Pátria.”

O discurso, portanto, explicita, de forma clara, uma política comprometidacom os interesses nacionais tradicionais do Brasil. Contudo, a prática difere dodiscurso e demonstra uma mudança, nos últimos anos, que busca um alinhamentocom os ditames da hegemonia. Senão vejamos:

a) a recente criação do Ministério da Defesa, subordinando a política dedefesa a uma instância civil que faz a mediação dos interesses militares com aesfera executiva do Governo o que é perfeitamente compatível com o modelosugerido pela hegemonia nos chamados princípios de Williamsburg (1995). Destaforma, busca-se criar mais um mecanismo para afastar os militares brasileiros doprocesso decisório nos temas de Política Nacional;

b) a assinatura de diversos acordos, que se vinculam diretamente a umapolítica de defesa, que a diplomacia brasileira rejeitava, por ferir regras claras desimetria, como o TNP e o MCTR;

c) o sucateamento deliberado de uma promissora indústria de material dedefesa e a perda do objetivo primordial de autonomia tecnológica por parte dasautoridades governamentais;

d) a despreocupação com aspectos de logística e de mobilização ao longodo processo de privatização de empresas que formatam a infra-estrutura do país ea conexão deste processo a mecanismos de desterritorialização como o dispostono chamado Consenso de Washington;

e) a minimização orçamentária das Forças Armadas.Já a Argentina, em seu Libro Blanco de la Defensa Nacional, apresenta

de forma clara a sua quase inteira concordância com o discurso hegemônico aovislumbrar, na Parte I daquela publicação, o que coloca como seu cenárioestratégico. Ao estabelecer as ameaças, há uma perfeita coincidência com odisposto na cartilha do centro hegemônico: o narcotráfico, o crime organizado; oterrorismo, o fundamentalismo; a proliferação de armas massivas de destruição eseus vetores de lançamento; o contrabando de armas; as migrações decorrentesde limpezas étnicas ou por falta de espaços econômicos de sobrevivência. Acoincidência não se dá só na paridade da moeda, mas, também, no diagnóstico das

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ameaças. Há, contudo, uma clara e crescente tensão nos pressupostos no interiorda concepção estratégica argentina, que opõe o seu contexto continental aosubregional e que se tem mantido, ainda, sem ruptura, exclusivamente, pela práticasubmissa de seu maior parceiro o Brasil, como foi colocado, ao núcleo hegemônico.Isto se reflete, no entanto, na impossibilidade ainda observada de ambos paísesestabelecerem uma agenda comum de princípios nas questões vinculadas àsegurança.

1.3) A perturbação à hegemonia: outra abordagem da segurança e defesano Brasil e na Argentina

Imagine-se a possibilidade de um dos dois países, ou ambos, o que seriamais natural, fugirem ao controle de hegemonia e contestarem. Ou, então, o queteria a mesma conseqüência, a hegemonia, pela busca crescente da dominação noHemisfério Ocidental, estabelecer unilateralmente pressões insuportáveis queconduzam necessariamente à contestação. Esta hipótese não deve ser abandonadana avaliação do tema proposto e deve merecer especial atenção por parte daquelesque estudam a problemática da defesa e da segurança, no Brasil e na Argentina. Eisto agora deve ser feito em um ambiente pós-Kosovo, onde parece ter caído porterra o Artigo Segundo da Carta das Nações Unidas, que proíbe a ameaça do usoda força contra a integridade territorial e a independência política de qualquerEstado, e que estabelece o princípio da solução das controvérsias internacionaispor meios pacíficos.

Aqui reside o cerne da questão. Segurança e política de defesa são questõesde Estados e não de governos.

2) Explicitação e análise das ameaças

A maior das ameaças que pesa, hoje, sobre o Brasil e a Argentina é a dafragmentação do Mercosul, algo que representará a destruição do projeto comumde constituição de um pólo de poder na América do Sul com projeção mundial.Esta ameaça, se concretizada, seria um retrocesso para ambos os países, destruindoa perspectiva que eles têm de participar, de forma marcante, na arena mundial, eque os levaria para se perder em querelas entre si e questões internas dosubcontinente.

A esta ameaça juntam-se outras, decorrentes dos aspectos prevalentesdas ameaças detectadas, gestadas ou imaginadas pelo centro, tais como: crimeorganizado, narcotráfico, conservação dos silvícolas em seu estado primitivo,exploração predatória dos recursos naturais e tráfico ilegal de armas que, associadoao terrorismo ou a movimentos guerrilheiros, podem vir a criar as condições parasanções, inclusive militares, ações alienígenas nos nossos territórios ou em países

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vizinhos, ameaçando, portanto, a nossa soberania e a paz nesse espaço. Estaspossibilidades de instabilidade são fatores de risco e necessitam uma ação endógenade cunho policial, ou seja, de natureza interna e de uso do legítimo direito dosEstados imporem suas leis em seus territórios e incompatível, portanto, com aprática, que se quer generalizada, de ações intervencionistas do tipo OTAN, comopolícia do mundo. Segurança envolve tanto a prevenção e ação quanto aos choquesintra-estatais, a defesa interna – algo que se processa no âmbito das soberaniasdos Estados envolvidos – quanto a prevenção e ação aos choques interestatais,que visam defender soberanias e vontades nacionais e que se conceituam comodefesa externa. Misturar conceitos é atentar contra a ordem e a paz internacional.

Outra questão que permanece colocada é a questão da ocupação das ilhasdo Atlântico que, primitivamente, foram ibéricas como nós, Argentina e Brasil. É ocaso das Ilhas Malvinas, Geórgias do Sul, Sandwich do Sul, Tristão da Cunha,Santa Helena e Ascenção. Trata-se de focos permanentes de preocupação quantoao seu destino.

Outra preocupação diz respeito ao destino da Antártida, cuja proximidadee contato com o subcontinente sul-americano merecem especial atenção quantoao seu controle, soberania e segurança.

Portanto, as ameaças encontram-se em contenciosos que transcedem osubcontinente e alçam a questão estratégica para fora de seus limites no planomundial. A América do Sul, ao final do século XX, retira-se com o Mercosul deseu próprio espaço e projeta-se no mundo. As questões de insegurança são novas,como novas têm de ser as concepções de defesa.

3) Análise dos meios

Estabelecido o quadro maior, é bom lembrar que política externa e a políticade defesa são complementares e constituem dimensões fundamentais na vida doEstado. É através delas que o Brasil e a Argentina, como qualquer Estado, serelacionam com os demais Estados, explorando as possibilidades que se oferecem,no exterior, à satisfação das necessidades da nação. Ambas, política externa epolítica de defesa, se destinam à proteção dos próprios interesses do Estado e àdefesa de sua integridade, ou seja, diplomacia e força são duas faces da mesmamoeda que, ao longo da história das civilizações, sempre caminharam juntas, comprevalência, ora de uma, ora de outra. As políticas externa e de defesa são funçãode diversos fatores, onde se destacam os de caráter geopolítico e os de carátereconômico.

É interessante ressaltar, também, ao se abordar o binômio política externae política de defesa, que as conquistas ou a defesa de interesses vitais pela diplomaciasó se viabilizam quando há, por trás dela, uma força capaz de respaldá-las; isto é,

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no mundo, mesmo em um contexto de “paz e cooperação”, prevalecem os reclamosde países fortes e poderosos.

Cabe-nos aqui falar sobre as características passadas e presentes de cadaum dos países analisados.

As dimensões do país e sua importância no seu espaço geográfico deramà política externa e à política de defesa do Brasil condicionantes claros. A extensafronteira terrestre, a inexistência de questões fronteiriças, o caráter também ibéricode seus vizinhos, a meridionalidade de sua posição geográfica, a litoralidade atlântica,todos estes fatores se constituem em elementos mais proximamente indicadoresde uma atuação internacional do Brasil e, portanto, das suas políticas externa e dedefesa. Ao se debater estas políticas também devem ser acrescidos a esses fatoresde natureza geográfica outros, de natureza histórica e cultural, que se fizeramconstituir no corpo de idéias que lastrearam e lastreiam a inserção internacional doBrasil.

Para tanto, faz-se necessário observar a atuação pretérita do Brasil noplano externo e quais as características que o distinguem no campo internacional.

O grau de previsibilidade de nossa política externa é dos mais elevados.Apesar de flutuações que resultaram de diferentes visões governamentais,constituiu-se no Brasil um corpo doutrinário de política externa, que assimresumiremos:

a) o Brasil sempre teve um caráter não confrontacionista. Defende oprincípio da autodeterminação e seu corolário, a não-intervenção. Sempre foi afavor da solução pacífica de contenciosos e sempre condenou o uso da força paraa obtenção de resultados externos. Tem índole pacífica que se explica por fatoressócio-culturais, tais como a defesa do território, a abundância de recursos naturais,a heterogeneidade cultural, a tolerância social e a tranqüilidade diante dos vizinhos;o Brasil não é belicoso, nem belicista;

b) o Brasil sempre foi juridicista. Sempre sacralizou os tratados ou asconvenções, como se fossem manifestações irretocáveis da vontade nacional oumultilateral; e

c) o Brasil foi realista e tornou-se pragmático.As modificações decorrentes de seu crescimento exigem que se explicite,

agora, uma política de defesa para o Brasil, não só pelo pragmatismo mencionado,pelas ameaças acima mencionadas, mas, principalmente, por ter sido o país alçadoa um plano de poder mais alto do que os seus vizinhos, o que o colocou em umespaço menos tranqüilo da arena internacional.

Já a Argentina, teve, ao longo deste século, uma política externa queprivilegiava seus interesses mais imediatos. Nunca apresentou uma grandecontinuidade na sua política externa, culminando este imediatismo, que se refletianuma imprevisibilidade, no episódio da reocupação das Ilhas Malvinas. Contudo, a

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partir deste episódio, a Argentina tem, consistentemente, conduzido uma políticaexterna que privilegia seus vizinhos e tem buscado o diálogo e a estabilidadecrescente na busca do aumento da confiança mútua e da cooperação em torno dasegurança. A política externa atual busca transferir do âmbito regional para omundial as questões que requerem uma política de defesa, algo que só faz sentidose esta política for praticada através de sistema de segurança coletivo,compartilhado e cooperativo.

Tentaremos contribuir para estas políticas, a brasileira e a argentina, comalgumas proposições baseados, exclusivamente, nos meios de que dispomos. Éimportante para o entendimento das propostas, o conhecimento de algunspressupostos básicos, que resultaram de nossas reflexões e que dizem respeito aosnossos meios e às nossas disponibilidades:• primeiro, que, diferentemente do que tentam difundir, a alta tecnologia de

armamento só traz a vitória em situações muito especiais, como a guerra doGolfo. Mesmo assim, tem os seus limites, como pode afirmar Saddam Hussein.Ou nem a vitória fácil trazem, como afirma agora Milosevic. Armas de altatecnologia não trouxeram muita ajuda em lugares como o Vietnam ou aSomália, ou a agressão a Iugoslávia, onde diplomacia, resultante de umaliderança, nos parece que teria sido algo muito mais efetivo. Ao olhar a história,pode-se afirmar que o armamento sempre foi menos decisivo na guerra doque o moral das tropas. Isto sempre será verdade. O moral das tropas estácada vez mais associado a algo relativamente novo e que se conhece comoopinião pública. A conquista desse espaço se faz pela permanente identificaçãodo interesse público com o interesse nacional, algo que exige uma posturaativa por parte do beligerante. É bom sempre lembrar que, em clima de guerra,é o interesse nacional que estabelece o interesse público e não o contrário;

• segundo, que o desenvolvimento da tecnologia de armamento vinha sendovagaroso ao longo da história. Séculos se sucediam sem que houvesseprogressos significativos. Agora, isto se modificou. Novas famílias dearmamento aparecem a cada década. O que está acontecendo com todas asmudanças que vêm se processando no modo de guerrear não é algo novo.Nova é a velocidade com que se vêm materializando essas mudanças.Entretanto, os retardatários chegam aos mesmos resultados gastando mil vezesmenos, ou menos ainda. Olhando as últimas décadas, verifica-se que as naçõesricas gastaram trilhões de dólares em satélites espaciais, mísseisintercontinentais e explosivos nucleares. Hoje, para se atingir os mesmosobjetivos, gastar-se-ia mil ou mais vezes menos. Onde se gastou trilhões,gastar-se-ia bilhões, ou menos. Com o xerox, com o fax e com a Internet nãohá segredos. O que pode haver é mais falta de vontade política do que faltade recursos. Todavia, deve-se enfatizar que um mínimo de recursos financeiros

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é um fator chave para o sucesso. Sem ele não se pode ter tecnologia paramelhores armamentos ou tropas mais bem treinadas. Uma nação pobre temde fazer o melhor com seu parco orçamento, mas, em um confronto com umanação rica, cabe lembrar que o dinheiro tende a falar mais alto do que boasintenções. Além do mais, a história recente dos países poderosos demonstraque o orçamento de defesa é aquela parcela que, dos gastos governamentais,tende a ser a maior fonte de desperdícios e de corrupção. Contudo, também,sempre é a fonte de maior poder político. Deve-se ter em mente, observandoos orçamentos de defesa dos países ricos, que é comum, nesses países,armarem as tropas, não com o equipamento que necessitariam para cumprirseus objetivos, mas sim com aqueles dispositivos que foram julgados pelosinteresses políticos mais úteis. Este erro é imperdoável para um país pobre;

• terceiro, como as recentes guerras demostraram, as forças armadas, hoje,podem ser de duas naturezas: as que nomearemos de intensivas em pessoal eaquelas que nomearemos de intensivas em material. As intensivas em pessoalsão baratas, e mais adequadas aos países pobres, enquanto que as intensivasem material são caras, e mais adequadas aos países ricos. Também, forçasarmadas de índole ofensiva custam bem mais que forças armadas de índoledefensiva. Forças armadas de índole defensiva têm naturalmente o predomíniodas forças terrestres sobre as forças aéreas e navais, pois o caráter defensivoresulta da baixa capacidade de projeção de seu poder, por meios aéreos oumarítimos, para além de suas fronteiras. Contudo, não se pode prescindir demeios aéreos e navais que materializem o que se convencionou chamar deesforço combinado, tratando-se de países com as dimensões da Argentina edo Brasil que contam com teatros prováveis de operações que reúnemcondições peculiares de emprego desses meios, como claramente são os casosda Patagônia e da Amazônia. Lá, avultam a necessidade da adequação dasforças terrestres às suas condições peculiares, da modernização dos meiosnavais e do estabelecimento de sólidos e confiáveis sistemas de proteçãoaérea;

∗ quarto, dentro da força terrestre, a infantaria é a grande responsável pelosucesso de uma postura defensiva. O sucesso da infantaria reside em doispontos: primeiro, no grau de interação do combatente com a natureza que ocerca, e, segundo, com a adequabilidade de seu equipamento e de seuarmamento a este meio ambiente. A adequabilidade do equipamento em naçõespobres tem como um de seus maiores incentivadores a utilização crescentepor parte da população rural de bens industriais. A atividade rural deve serservida com uma indústria com capacidade de transformação para fins bélicos.

• quinto, em termos de guerra convencional, há uma revolução na guerra queainda está por vir. A última foi a mecanização. A próxima será a dosarmamentos antimecanização. Deve-se entender como armamentos

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SEGURANÇA E DEFESA: UMA ÚNICA VISÃO ABAIXO DO EQUADOR 147

antimecanização todos aqueles capazes de destruir, a um baixo custo relativo,os armamentos resultantes da mecanização tais como tanques, aviões e navios.Estes equipamentos já estão disponíveis com a atual tecnologia e, entre estes,destaque especial deve ser concedido aos mísseis guiados, em especial, àquelesportáteis e acessíveis ao infante.

• sexto, o binômio espaço-tempo sempre foi o elemento determinante para acondução da guerra. Hoje, o fator tempo está maximizado. O tempo éfundamental, tanto para quem defende, como para quem ataca. A luta tambémé contra o relógio. Nas áreas geoestratégicas críticas, como é a Amazônia,ou a Patagônia, o seu habitante deve estar habilitado para, prontamente,assumir as missões de defesa do território. Esta é uma vantagem: a defesanão pode abrir mão do profundo conhecimento do terreno;

• sétimo, os gastos com a defesa devem ser diretamente relacionados com ovalor das riquezas a serem preservadas. O Brasil e a Argentina figuram,hoje, como os detentores de riquezas construídas ou de riquezas naturais queos colocam entre os quinze mais ricos países do planeta. A média de gastosanuais destes quinze países, de acordo com dados colhidos no InstitutoInternacional de Estudos Estratégicos em Londres e no Instituto de RelaçõesInternacionais e Estratégicas de Paris, é de cerca de 3,5% de seus produtosinternos brutos (PIB). O Brasil gasta, de acordo com estas fontes, bem menosque a metade disto, cerca de 1,8% do PIB, a Argentina 1,6%, dados do anopassado, que nos parecem majorados; e

• oitavo, é falso o conceito difundido de que se processa, no momento, umabem sucedida revolução dos assuntos militares, baseado no princípio doconhecimento e que despreza o conceito de massa numérica, como elementodecisivo. Há uma glorificação mal-sucedida do conceito de softpower. Esteconceito, que se apoia em três vertentes – o conjunto de informaçõesestratégicas (o que explica a ênfase concedida a sensores não tripuladosmonitoradores de espaço); o processamento destas informações e a açãobaseada no conhecimento destas informações (através de armamentos tidoscomo de precisão cirúrgica) e que se conceitua no C3I2 (comando, controle,comunicações, inteligência e informática) –, tem levado a resultados medíocres.Isto acontece, mesmo sem que a principal ameaça a este trato das questõesmilitares (pelo viés único do princípio do conhecimento) tenha sido usada, ouseja, o ataque aos sistemas de informação que a suportam.

Observados esses pressupostos, verificamos deterem o conjunto dos doispaíses as condições necessárias e suficientes para prover os meios necessários asua defesa. A questão está na conscientização do problema a ser enfrentado e navontade para o emprego desses meios. Tudo converge para a vontade. Defesacomo qualquer ato requer vontade.

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4) Escolha da estratégia

Como fruto de nossas reflexões caberia agora fazer a escolha de umaestratégia militar de defesa para o Brasil, para a Argentina e para o Mercosul,baseada na avaliação das vulnerabilidades dos possíveis inimigos e no ajustamentodos meios com os fins e isto nos conduz, inexoravelmente, para a escolha daEstratégia de Dissuasão, tão bem apresentada e defendida também pelo generalMeira Mattos, no trabalho já referenciado para o Senado Brasileiro do qual retiramosos seguintes trechos, onde ela é mencionada: “A nossa estratégia de defesa maisaconselhada, em face deste tipo de ameaças, acreditamos será a de dissuasão. Nolivro Introduction à la stratégie, o general francês André Beaufre, prefaciadopor outro renomado estrategista, o inglês Liddell Hart, o autor conceitua a estratégiade dissuasão como aquela em que ‘o país visado procura evitar a ação bélicaimpondo uma ameaça que o agressor não possa ou não esteja disposto a pagar’”.

“Esta estratégia vem dando certo nos últimos conflitos em que paísespequenos e médios, como a Somália e grupos armados na dividida ex-Iugoslávia,querendo evitar a intervenção militar em seus territórios, apresentam uma capacidadede resistência que os governos dos ‘grandes’ não podem pagar, sem se submeterema um tremendo desgaste político perante a opinião pública de seus países. Há hoje,nas grandes democracias, uma verdadeira idiossincrasia ao envio de seuscompatriotas a guerras exteriores, para lutar por causas que o povo não entende.”

Ainda com respeito a mesma estratégia, mas mais vocacionado agorapara o teatro amazônico, algo perfeitamente aplicável também no teatro do extremosul do continente, assim colocava, no texto referido, o general Meira Mattos: “Anossa estratégia para a Amazônia, portanto, deverá se apoiar na constantemanifestação de firmeza do Governo e da diplomacia, repelindo qualquer intençãointernacionalista, venha de onde vier, e na existência, ali, de uma força militar dedissuasão dispondo de armas e equipamentos modernos e de alta capacidade detreinamento para as ações na selva. Diz o escritor francês André Gluksmann (Lediscours de la guerre) que a intenção da nação de resistir e a eficiência da forçamilitar devem ser constantemente reveladas, para que o efeito de dissuasão serealize.”

Apresentam-se, complementarmente, as seguintes recomendações para aexplicitação, em diretrizes, de uma estratégia de ação diplomática e de defesa, queserve tanto para o Brasil, como para a Argentina, como para ambos:

a) a participação em fóruns de poder, como o Conselho de Segurança daONU, faria muito mais sentido se os novos partícipes fossem dotados dos elementosde poder mais próximos daqueles com que contam os demais países que pertencema este fórum. Sem poder, corre-se o risco de não se ver o seu voto ou veto respeitado,ou pior, de ter o seu voto ou veto condicionado pelo poder alheio. Por isso, não sepode abrir mão de Ter-se o poder não convencional, a menos que os outros, que o

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detenham, abram mão dele, dentro de uma política de desarmamento nãoconvencional, plena e irrestrita;

b) o conhecido binômio segurança-desenvolvimento necessita sertransformado em um trinômio, pela anexação do conceito de justiça social. Emdecorrência do seu atual estágio de retardatários, está claro que, tanto o Brasilquanto a Argentina, ainda, deveriam priorizar seus gastos em desenvolvimento eassistência social, vis à vis de seus gastos com a segurança. Em função dessapriorização, devem possuir forças armadas baratas. As forças armadas de ambosos países devem, portanto, ser intensivas em pessoal, o que afastaria, por critériospuramente técnicos, o término do serviço militar obrigatório. Devem, também, serde índole defensiva o que prioriza claramente as forças terrestres e o equipamentoa ser desenvolvido, fabricado e utilizado. Entretanto, o avanço no projeto dedesenvolvimento de ambos os países tem de vir acompanhado, no campo doarmamento convencional, com uma progressiva capacitação de projeção de podere da maior participação orçamentária para desenvolvimento e construção conjuntade meios aéreos e navais, como adiante será apresentado;

c) a política de recrutamento deve privilegiar o conscrito da zona rural, emespecial, o morador da região amazônica ou patagônica, uma vez que deverão sercreditados a estas importantes áreas de ambos territórios, cerca de 50% das basesfísicas, as prioridades dos planejamentos militares. A este deve ser dado o serviçomilitar em condições especiais próximas ao antigo tiro de guerra. O conscrito dazona rural deve ser treinado em operar o equipamento bélico na sua região. Aretirada do conscrito da zona rural para o serviço militar em zonas urbanas ou sedede municípios tem sido responsável por parcela significativa do êxodo rural que,entre outras mazelas, diminui, inclusive, a capacidade de defesa territorial;

d) dentro das forças terrestres, ênfase especial deve ser concedida àsoperações na selva, principalmente, em razão do teatro amazônico. Neste espaço,a infantaria é que trafega com maior desenvoltura no teatro de operações e tambémé ali a de menor custo operativo e de melhor índice de custo-benefício;

e) deve-se considerar que é muito melhor para o defensor ter uma tropapermanentemente estabelecida na região a ser defendida, do que ter que deslocartropa para lá, por mais rápido que seja o seu deslocamento. O conhecimento doterreno é uma vantagem extremamente relevante. Daí porque é importante se teruma política de ocupação militar tanto para a Amazônia pelo Brasil quanto para aPatagônia pela Argentina;

f) é necessário conscientizar-se que, por mais barata que seja a linha deação adotada, ela, ainda assim, custa dinheiro. Se se objetiva mais segurança devese ter mais recursos. Deve-se aumentar os gastos com forças armadas na Argentinae no Brasil, em termos de participação no PIB, de forma progressiva, até 3,5%,que é o valor médio adotado pelos países de mesma grandeza relativa que a Argentinae o Brasil;

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g) a prioridade em termos de política industrial para a área de defesa, porum lado, deve estruturar, nos pequenos centros urbanos imersos na área rural,múltiplas indústrias voltadas para as necessidades de camping e do campo, e, poroutro, nas áreas urbanas mais desenvolvidas do país, de indústrias que desenvolvamatividades civis e militares vinculadas a mísseis guiados, como miniaturizaçãoeletrônica e mecânica, propulsores, explosivos, cartografia digitalizada e outrastecnologias. Só com autonomia estratégica, ou seja, com capacidade de produzirmoso necessário para nos defender é que tem sentido falar-se em política de defesa;

h) é de fundamental importância revalorizar-se no Mercosul a atividademilitar. O militar deve ser visto como o cidadão em armas, o defensor da pátria enão como o responsável pelo arbítrio, como parcela da mídia tenta ainda infundir.Nenhuma nação retira o mito e aura que cercam a função militar impunemente. Aopinião pública tem de entender e ver com bons olhos a função militar e a mídiatem um importantíssimo papel neste processo;

i) assim, também, é de fundamental relevância revalorizar-se a função dopolicial, defensor primeiro da ordem pública e da segurança interna e priorizar-se aaplicação da justiça; e,

j) finalmente, é preciso conscientizar o que foi colocado no início destamonografia: segurança é um estado, defesa é um ato. Segurança tem o culto, oeducado, frente ao inculto, pois sabendo mais, tem mais condição de se defendermelhor. Segurança tem o desenvolvido, pois tem mais meios para se defender.Segurança tem o mais rico, pois tem mais recursos para sustentar a sua defesa.Portanto, segurança é algo bem mais complexo e abrangente. Ao abandonar aterminologia, ao se envergonhar dela, tanto o Brasil como a Argentina cometemum grande erro, quaisquer que sejam as interpretações errôneas e exageros quepossam ter ocorrido em percursos conjunturais do passado.

5) Conclusões e recomendações

Compomos Brasil e Argentina e os demais países do Mercosul ampliado,no momento, e com os demais países da América do Sul, em futuro próximo, umpólo de poder, dentro de uma concepção multifacetada, que não privilegia,exclusivamente, o viés geográfico e econômico, mas que contempla, também, naaglutinação que realizamos, aspectos culturais, políticos e sociais e apresenta,também, compatilhamento de princípios e de concepção estratégica. Estacomposição, contudo, tem sido feita em época de transição do sistema mundial, oque tem aumentado o grau de imprevisibilidade na evolução da situação estratégica.É necessário, ao abordarmos o tema segurança e política de defesa, lembrarmosque a expectativa gerada por estes fatos e a vigília estratégica que se faz necessáriarequerem, também, uma polarização no campo militar. Esta polarização se daránaturalmente pela constituição de um pacto de defesa comum no âmbito do Mercosul

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SEGURANÇA E DEFESA: UMA ÚNICA VISÃO ABAIXO DO EQUADOR 151

ampliado e da América do Sul, no futuro. Urge, portanto, a montagem de ummecanismo comum de defesa: a Organização de Defesa do Mercosul.

Somos dois países pacíficos, mas somos grandes países que têm um projetocomum de constituição de uma ampla área de livre comércio e que querem cruzaro futuro vendo suas identidades nacionais e sua soberanias respeitadas. Se nãoassegurarmos um grau razoável de autonomia estratégica militar, não seremosmercedores do respeito dos aventureiros e ambiciosos que sempre existiram nomundo.

Em Ushuaia, colocou-se o Mercosul ampliado (Argentina, Bolívia, Brasil,Chile, Paraguai e Uruguai) como zona livre de armas de destruição massiva, já quea preocupação era de natureza endógena e esta colocação era vista como elementoessencial para a paz na região. Um pacto de defesa comum torna a questão dedefesa como exógena e possibilita a revisão da questão das armas de destruiçãomassiva, se a assimetria de poder, que a posse de tais armas traz, não for revogadado cenário mundial.

Ao sul do equador, tanto o Oceano Atlântico como o Pacífico são espaçosde interesse para o Mercosul e devem ser conceituados como zonas de paz.Portanto, devemos exercer claro controle nas passagens interoceânicas ao sul doequador. O Canal de Beagle, a passagem de Drake, o Estreito de Magalhães, oCabo da Boa Esperança, O Pacífico Meridional, o Atlântico Sul e o estrangulamentodo Atlântico, entre o nordeste do Brasil e o saliente da África, devem merecerespecial atenção de nossas forças aéreas e navais.

Com o amplo espaço a ser defendido, portanto, tanto o Brasil como aArgentina têm de possuir um eficiente sistema integrado de vigilância com radares.Uma força terrestre de vigilância de toda a fronteira e marítima das extensascostas do subcontinente e aérea em ambos os espaços se faz necessária, quedisponha de um sistema eficiente de apoio de comunicações e transportes, bemcomo uma massa de reserva, que contenha uma parcela estratégica de curtoemprego e de alta mobilidade e que esteja localizada em área central do nossoespaço continental e que deverá ter a capacidade de atender, rapidamente, a qualqueremergência.

Para o futuro próximo, os nossos compromissos com a ONU e a OEAobrigam-nos a manter forças adequadas e preparadas para as missões de paz, quetendem a ser cada vez mais freqüentes. A proteção de nosso espaço aéreo nãopode ser descuidada: a tendência é aumentarem as ameaças de violação. Istojustifica a montagem de programas conjuntos de desenvolvimento e fabricação demísseis e de aeronaves de combate e de transporte. Nosso imenso litoral e águasterritoriais exigem uma força naval eficiente. O espaço marítimo a ser controladorequer a montagem de um sistema que permita a projeção conjunta de poder sobreesta vasta área. O desenvolvimento de forças de superfície e de submarinos paraeste espaço justificam o aparelhamento de estaleiros em ambos os países de forma

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a prover autonomia estratégica.O nosso maior objetivo, repetimos, no futuro, deve ser o de aumentar a

nossa autonomia estratégica. Cumpre, portanto, reativar as indústrias de ambos ospaíses, voltadas direta ou indiretamente para a aplicação militar, e os centros depesquisas a elas vocacionados.

Finalmente, sintetizando tudo o que foi dito, a nossa prospectiva para adefesa do Brasil e da Argentina vê como ameaças principais, no futuro, asdecorrentes de pressões internacionalistas, de fora do subcontinente sul-americano,que se anunciam como cada vez mais intensas, abrigando idéias de desrespeito àsoberania nacional. Não se pode desprezar a preocupação que essas pressõesvenham a contar com o apoio militar ostensivo ou velado de uma ou mais potênciasdo chamado primeiro mundo, como ocorreu mais recentemente no episódio daIugoslávia. Esta ameaça é, pelos indícios de que dispomos, nossa maior ameaçaexógena. Endogenamente, todavia, existe a ameaça sempre presente de nosdividirem para nos submeterem.

Como diz o já mencionado estrategista francês André Gluksmann, a maiorvulnerabilidade dos chamados grandes está na opinião pública de seus países, querejeita, hoje, a hipótese de participação em guerras distantes, em terrasdesconhecidas, por causas que não entende. Contudo, para que esta vulnerabilidadeseja potencializada, é mister, que o país ameaçado de intervenção ofereça umavisível disposição de reagir pelas armas e revele possuir forças armadas capazesde vender caro sua derrota, desencorajando, assim, a expectativa de uma fácilvitória, sem sacrifícios de vida e de pesados ônus materiais. É a chamada estratégiade dissuasão ou dissuasão estratégica.

Todavia, para se manter um alto grau de ameaça dissuasória três coisassão indispensáveis:

— vontade nacional comum de defender a nossa soberania territorial;— a existência de uma convincente força militar combinada (terrestre,

naval e aérea); e— autonomia estratégicaA vontade nacional de resistir deve ser cultivada pelo estímulo à educação

cívica, em ambos os países. A juventude precisa ser reeducada no sentido de deterem alto grau orgulho nacional. Nossas diplomacias, em todos os fóruns, devemfazer ver e afirmar esta vontade.

A força militar combinada dissuasória terá de revelar sua capacidade dedurar na luta. Para isso, em termos de guerra convencional, teremos de apresentar,visivelmente, efetivos treinados e bem armados capazes de durar no combate,mesmo enfrentando adversários muito mais poderosos.

O armamento e o equipamento destinados a esta força dissuasória deverãoser fabricados nos dois países, tanto quanto possível, dentro de um planejamentoconjunto, a fim de evitar embargos internacionais ao cumprimento de sua missão

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SEGURANÇA E DEFESA: UMA ÚNICA VISÃO ABAIXO DO EQUADOR 153

de defesa. A força dissuasória, para ser efetiva e durar na luta, precisará dispor deautonomia estratégica, isto é, capacidade operativa e autonomia logística.

É bom lembrar que a disponibilidade de armas não convencionais fortalecerásempre a ação diplomática. Não faz sentido falar em desarmamento unilateral.Isto só faz sentido para aqueles que perderam o entendimento das questões mundiaise acreditam em terminologia e discursos fabricados, sem nenhum respaldo racional,e ditos como sendo politicamente corretos. Se acordos nos proíbem, individualmente,de deter armas de destruição de massa, nada nos impede de forma conjunta, ouseja no âmbito do Mercosul, de desenvolvê-las, caso o desarmamento pretendido,em âmbito mundial, fique, para sempre, na retórica.

Finalizando, face ao quadro internacional de incertezas que vislumbramospara o futuro, temos de mostrar, claramente, que somos capazes de vender caro anossa soberania. Se assim o fizermos, sem dúvida, seremos capazes de preservarincólumes nossos patrimônios nacionais e a nossa identidade ibérica.

Notas

1 O texto visa a trazer novos subsídios aos estudos sobre o tema e expressam exclusivamenteopiniões do autor, e não, necessariamente, as das entidades a qual pertence.

2 Página 23 da obra traduzida que teve como título em português EUA X JAPÃO Guerra à vista,Editora Nova Fronteira.

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Resumo

O artigo começa apresentando uma análise da atual configuração do poderno cenário internacional, dividido entre centro (hegemônico e não hegemônico) eperiferia (e suas diversas subdivisões), para, em seguida, traçar um panorama daspercepções estratégicas de cada uma das subdivisões do sistema internacional emsua relação com o Brasil, a Argentina e o Mercosul, em especial. Ao final, o artigoanalisa a situação corrente e prescreve iniciativas tocantes às políticas de defesa esegurança definidas como ideais para Brasil, Argentina e o Mercosul.

Abstract

The article presents an analysis of the current configuration of power inthe international scenario, divided between the center (hegemonic and nothegemonic) and the periphery (and its many subdivisions). At length, a panoramaof strategic perceptions of each of the subdivisions of the international system,especially in its relation with Brazil, Argentina and Mercosul, is traced. At the end,

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the article analyses the current situation and prospects for defense and securitypolicies of Brazil, Argentina and Mercosul.

Palavras-chave: Política de defesa. Política de segurança. Brasil. Argentina.Mercosul.Key-words: Defense policy. Security policy. Brazil. Argentina. Mercosul.

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SEGURANÇA E DEFESA: UMA ÚNICA VISÃO ABAIXO DO EQUADOR 157

Globalização, regionalismo e ordeminternacional

VALÉRIE DE CAMPOS MELLO*

Introdução

O panorama internacional ao final da década de 90 apresenta um caráterparadoxal. Por um lado, predomina a sensação de estarmos vivendo uma profundadesordem econômica internacional. Acontecimentos tais como a atual crisefinanceira, afetando a Ásia e a Rússia, geram novas propostas para aregulamentação do sistema financeiro internacional, e encontros internacionais taiscomo o Fórum Econômico Mundial tornaram-se foros de debate sobre a chamada“ordem internacional” e as possibilidades de uma reforma que viesse disciplinar opânico e o caos causados pela instabilidade dos fluxos econômicos internacionais.Sob tal ótica, o sistema mundial parece cada vez mais fragmentado e desregulado.Por outro lado, uma característica marcante do atual sistema internacional é aformação de blocos de integração regional. A integração regional se apresentacomo uma tendência contrária à desregulação e fragmentação: ela leva não só aum maior ordenamento e a uma institucionalização crescente das relaçõeseconômicas internacionais como também, em alguns casos, a um processo gradualde integração e cooperação política.

O exemplo mais claro de tal tendência é a União Européia, o processo deintegração regional mais avançado que existe e que, embora ainda não predomineum consenso sobre seu feitio futuro exato, cada vez mais assume a natureza deunião política. Nos últimos dois anos, o caráter político e supranacional da Uniãofoi reforçado com o estabelecimento de uma Política Externa e de SegurançaComum (PESC), que faz da União Européia um ator internacional único commecanismos efetivos de coordenação para a segurança. Embora ainda em umestágio pouco avançado, a PESC fornece a base necessária para que, cada vezmais, a União Européia “fale de uma só voz”. Com a PESC, a União Européiaadquire um peso político maior do que a soma do peso de cada um de seus Estados-membro e se afirma, portanto, como um ator central na diplomacia mundial. Faceà desordem econômica internacional e à desestabilização política por ela provocada,

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 157-181 [1999]* Professora e Pesquisadora da Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro.

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158 VALÉRIE DE CAMPOS MELLO

a unificação política européia vem fornecer um importante elemento de estabilidadeao sistema internacional, estabilidade que deve ser ainda mais consolidada com arealização da União Econômica e Monetária e a recente introdução da moedaúnica, o euro, em janeiro de 1999. A PESC representa, portanto, um caso único dejunção de objetivos econômicos, políticos e estratégicos, ilustrando ainterdependência entre as diferentes estruturas da economia política internacional.

Este artigo discute algumas destas transformações globais desde o pontode vista da disciplina de Relações Internacionais. Ele inicia considerando como asprincipais correntes teóricas em Relações Internacionais se posicionam face àquestão da globalização, e enfatiza a necessidade de uma análise inspirada naTeoria Crítica e baseada na perspectiva da Economia Política Internacional. Estase apresenta como a mais adequada para discutir a questão central do debate dasciências sociais hoje: a relação entre Estados e Mercados, entre Economia e Política,e a tensão entre uma economia cada vez mais internacionalizada e um sistemapolítico que segue baseado no Estado-nação.

Após tal introdução teórica, o texto examina as grandes transformaçõesem curso no contexto da globalização econômica, as reformas econômicas dosanos 80 e 90 no sentindo da liberalização das economias nacionais e da integraçãoregional e mundial, assim como seus efeitos sobre o papel do Estado e as relaçõesinternacionais. Em seguida, o significado da tendência em direção ao regionalismoé analisado, com o estudo do caso da União Européia e das novas áreas de integraçãopolítica. A União Européia se apresenta como evidência da relação entreestabilidade econômica e cooperação política.

I. Teoria internacional e globalização

I.1. As relações internacionais enquanto disciplina

A disciplina de Relações Internacionais, em sua curta história enquantodisciplina objeto de estudo acadêmico formalizado, foi marcada pela predominânciade duas correntes centrais, o Idealismo, hoje transformado em InstitucionalismoLiberal, e o Realismo, reconvertido em Neo-Realismo.1 O Institucionalismo Liberalenfatiza o papel das instituições internacionais e as possibilidades de cooperaçãoresultantes da interdependência crescente entre os países. O Realismo, por suavez, baseia sua análise sobre as estruturas de poder e segurança, o papel dosatores hegemônicos, a ordem e a estabilidade do sistema internacional.2

A história da disciplina de Relações Internacionais esteve intimamenteligada aos próprios desdobramentos do contexto internacional: as teorias foramelaboradas para responder às preocupações e problemas vividos em cada época.A primeira corrente teórica que surgiu, o Idealismo, correspondeu ao desejo deevitar conflitos que caracterizou o período após a Primeira Guerra Mundial. Na

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GLOBALIZAÇÃO, REGIONALISMO E ORDEM INTERNACIONAL 159

época, dominou o idealismo inspirado na visão da paz perpétua de Kant. Os “quatorzepontos de Wilson”, que serviram de base ao Tratado de Versalhes de 1919,proclamaram a elaboração de uma nova abordagem da diplomacia internacional,com negociações abertas e acordos públicos. Tal visão levou à criação da Sociedadedas Nações (S.D.N.), primeira tentativa formal de criar uma organizaçãointernacional baseada no princípio da segurança coletiva, visando a mediação deconflitos, com uma estrutura permanente e uma Carta codificada. A disciplina deRelações Internacionais surge em tal contexto, com o objetivo de, através o estudocientífico, estabelecer as condições para uma paz duradoura e uma cooperaçãocrescente entre as nações. A disciplina nasce, portanto, com um forte conteúdonormativo, baseada na crença de que a pesquisa deve ter como objeto o que deveriaser, e não o que é.

Após os horrores da Segunda Guerra Mundial e no quadro de formaçãodo antagonismo ideológico da Guerra Fria, o Idealismo encontra-se em um estadoquase moribundo. O Realismo afirma-se, então, como uma explicação convincentede um mundo dominado pela competição e pelo conflito. Inspirado na visão declássicos tais como Tucídides, Maquiavel, Hobbes e Rousseau, os autores realistas,como por exemplo Kenneth Waltz, interpretam a política internacional como umaluta sem fim pelo poder, com raízes na própria natureza humana. Esta foi a visãoque caracterizou todo o período da Guerra Fria, e foi cristalizada na ação de políticoscomo Henry Kissinger, Secretário de Estado dos Estados Unidos durante o governoNixon, que afirmava que a sobrevivência de uma nação não pode, de maneiraalguma, ser colocada em risco. Convictos de que cada Estado tem seus valores,prioridades e crenças, Realistas vêem o Estado como o bem supremo, e nãoacreditam na existência de uma “comunidade internacional”. A Guerra Fria e asituação de tensão que marcou o período do pós-guerra ilustravam com precisãotais princípios e suposições.

A breve história do desenvolvimento intelectual da disciplina de RelaçõesInternacionais indica, portanto, que esta parece ter sido em grande partedeterminada e guiada pelas exigências da realidade internacional. As preocupaçõesde ordem e de segurança acabaram prevalecendo sobre debates mais críticos eanálises das estruturas das relações nacionais e internacionais, do questionamentodas relações de poder, da formação do conhecimento, e outras questões tratadaspelas ciências sociais. A disciplina também não demonstrava muita preocupaçãocom a análise das relações econômicas internacionais, centrando-se quaseexclusivamente nas questões de segurança, política externa e diplomacia. A correnteque mais se preocupou com a análise da relação entre organização econômica eordem/desordem internacional foi a corrente marxista, que obteve algum respaldonas décadas de 60 e 70, sobretudo nos anos seguintes à elaboração da teoria dadependência e de sua visão do mundo em termos de centro e periferia. A teoria dosistema mundo, de Gunder Frank, Wallerstein e Arrighi, ganhou vários adeptos.

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160 VALÉRIE DE CAMPOS MELLO

No entanto, ela nunca chegou a ocupar um lugar central nas discussões da disciplinade Relações Internacionais. A maioria dos autores segue confinando-se adiscussões sobre a ordem política e instituições, deixando os temas da ordemeconômica aos economistas e teóricos da regulação. Tal tendência ficou aindamais forte quando a escola liberal reganha força a partir dos anos 70 e se reestruturaem torno no Institucionalismo Liberal. A Teoria Internacional parecia, de certaforma, legitimar e contribuir a perpetuar o sistema internacional vigente, falhandona tarefa de construção de uma reflexão crítica fundamental na área de ciênciassociais. Susan Strange demonstrou como a chamada “teoria dos regimes” queocupou boa parte dos debates da disciplina nos anos 80 acabou favorecendo ostatus quo, e permitindo que governos dominem a agenda acadêmica impondo apreocupação com a ordem como valor central, em detrimento de outros valorestais como a justiça ou a democracia.3

É nos anos 90 que uma reação ao mainstream surge de forma maisarticulada, com novas análises em Relações Internacionais, que se articularamformando a Teoria Crítica e os chamados “Reflectivistas”. A Teoria Crítica temsuas raízes no marxismo e se desenvolveu na Escola de Frankfurt nos anos 20,tendo como proponente principal desde 1945 Jürgen Habermas. A Teoria Críticase afasta da teoria tradicional positivista, que acredita na neutralidade da ciência.Para ela, a teoria não é neutra, ela é normativa, sempre elaborada para alguém ecom um objetivo. Não existe a teoria em si, divorciada do tempo e do espaço. Asciências sociais diferem das ciências naturais, e não são independentes de seusobjetos de estudo. A origem conceptual da Teoria Crítica pode ser melhor entendidaatravés da distinção que Cox elaborou entre Teoria Crítica e o que ele chama deabordagens de “resolução de problemas”.4

— A abordagem de resolução de problemas toma o mundo como dado, comoela o encontra, com suas relações de poder existentes e as instituições ondeestas se organizam, como marco dado para a ação. O objetivo é fazer comque estas relações e estas instituições funcionem melhor. No campo da CiênciaPolítica, a abordagem de resolução de problemas preocupa-se em analisar ofuncionamento e a eficiência de determinadas instituições, arranjos ou sistemaspolíticos, sem questionar a existência de tais instituições, suas origens, seupapel histórico, e o potencial de mudança. Em Relações Internacionais, estuda-se temas de política externa, as relações diplomáticas entre países, suasrelações econômicas, o funcionamento de instituições internacionais, problemasde defesa, estratégia, ou guerras. Mas não se questiona a ordem internacionalque deu origem a tais relações diplomáticas, estratégias ou instituições.

— A Teoria Crítica, em contraste, baseia-se em um questionamento da ordemvigente, no caso, a ordem internacional, mas também a ordem social e aordem econômica, um questionamento de suas origens e de sua legitimidade.O objetivo é considerar possibilidades de mudança em tal ordem. Ou seja, a

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GLOBALIZAÇÃO, REGIONALISMO E ORDEM INTERNACIONAL 161

Teoria Crítica está comprometida com a análise do potencial existente paramudanças e transformações estruturais na ordem internacional e com aconstrução de estratégias de mudança. Neste sentido, ela contém um elementonormativo a favor de uma ordem internacional distinta.

A Teoria Crítica resgatou a postura de questionamento que esteve ausentede boa parte da literatura de Relações Internacionais, com uma agenda de pesquisapós-positivista, que desafia o racionalismo das análises realistas e liberais-institucionalistas. A partir de então, alguns autores, entre os quais destaca-seAlexander Wendt, buscaram desenvolver uma abordagem que falasse tanto aosracionalistas quanto aos Reflectivistas, o que levou à formulação da corrente doconstrutivismo social.5 Sem adotar o relativismo imobilista que carateriza partedas análises ditas “pós-modernas”, o construtivismo social tenta conjugar osquestionamentos da Teoria Crítica com os ensinamentos da economia políticainternacional e elementos revigorados do estruturalismo. Assim, ele fornece umabase séria e sólida para, à luz das transformações que o mundo vive no fim destemilênio, elaborar um instrumental teórico que torne a teoria internacional uma teoriaà part entière e não mais uma mera produção de soluções para problemasinternacionais.

I.2. A economia política das relações internacionais

A economia política considera os quadros historicamente constituídos e asestruturas dentro das quais as atividades econômicas se desenvolvem. Ela partede um questionamento das atuais estruturas e examina como elas podem estar setransformando, ou como elas poderiam ser transformadas. Nesse sentido, aeconomia política é teoria crítica. Ela considera a mudança histórica enquantorelação recíproca entre estruturas e atores. A Economia Política Internacional,segundo a definição de Gilpin, se interessa pelas causas e efeitos da economiamundial de mercado, como, por exemplo, a existência de estruturas globais deprodução, distribuição e consumo, e pelas relações entre mudanças econômicas emudanças políticas. Com isso, ela possibilita a quebra da tradicional distinção entreo internacional e o doméstico, entre a política e a economia.6 As principais diferençasentre as correntes teóricas estão apresentadas na tabela da página a seguinte.

A Economia Política Internacional enquanto corrente teórica mantém umgrau de parentesco com o neo-estruturalismo, na medida em que ela considera ainfluência estrutural de forças globais sobre a política. Em vez de enfatizar asnegociações interestatais, como faz o institucionalismo liberal, há uma preocupaçãoem considerar a dinâmica do desenvolvimento no contexto do sistema internacionalcomo um todo. No entanto, ao negar a distinção entre níveis de análise, que separao nacional do internacional, a perspectiva crítica vai além do determinismoestruturalista, e estuda a interação entre estruturas sociais domésticas, o Estado e

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162 VALÉRIE DE CAMPOS MELLO

TEORIALIBERAL: IDEALISMO EINSTITUCIONALISMOLIBERAL

REALISMOECONOMIAPOL˝TICAINTERNACIONAL

Enfoque Interesses;Coopera ª o.

Poder;Seguran a.

Economia Pol tica;Potencial detransforma ª o.

PressupostosbÆsicos

Institui ı es enquantodeterminantes docomportamento coletivo;ExistŒncia de interesses evalores universais.

Racionalidade dosEstados;Busca do Poder;ExistŒncia de atoreshegem nicos.

Rejei ª o dauniversalidade;Rejei ª o da distin ª oentre n veis de anÆlise(pol tica/economia, einterno/externo).

N vel deanÆlise

Global ideologia domesmo barco .

Internacional, masrespeitando asoberania.

Local;Global.

Atoresconsiderados

Estados;Organiza ı esInternacionais;ComunidadesEpistŒmicas.

Estados. Estados;Corpora ı esTransnacionais;Organiza ı esInternacionais;Movimentos Sociais.

Tabela 1. As 3 abordagens teóricas em Relações Internacionais

a estrutura internacional como um processo dinâmico. No caso, considera-se comoa redefinição do modelo de desenvolvimento e as transformações que acompanhama globalização econômica afetam as reformas políticas nacionais e as estratégiasde definição de uma inserção favorável no sistema internacional. Mas, a análisecrítica também contempla como um Estado ou uma sociedade são afetados pelastransformações globais e pela sua participação no sistema mundial, quais são asimplicações da globalização para a sociedade nacional, e como esta sociedaderesponde a tais transformações globais. A ênfase é colocada no processotransformativo das relações Estado-sociedade enquanto um processo condicionadopela globalização econômica.

Uma visão crítica da Economia Política Internacional parte de duaspresunções. Primeiro, o sistema internacional é uma construção histórica e social,e, portanto, existem diferentes percepções e diferentes soluções. A busca desoluções universais pode ser problemática. Segundo, os Estados não são os únicosatores relevantes no contexto da política global, atores como Organizações Não-Governamentais (ONGs), Corporações Transnacionais e OrganizaçõesInternacionais, ligados através de redes transnacionais eficientes, têm um papelcentral. Em vez de começar a análise com a observação de como os Estadosreagem à mudança global, convém estudar como práticas sociais, econômicas,

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GLOBALIZAÇÃO, REGIONALISMO E ORDEM INTERNACIONAL 163

políticas e culturais em várias partes do mundo não só geram problemas estruturaistais como desigualdade, exclusão e destruição ambiental como também limitam asrespostas possíveis para reverter tais transformações. A partir de tais suposições,a abordagem crítica analisa as condições históricas que possibilitam o entendimentoda atual ordem internacional, as transformações estruturais da Economia PolíticaInternacional – mudança da ordem política, e mudança da ordem econômica – eseus significados políticos, tentando responder à questão básica colocada por SusanStrange, “quem obtém o que, e como?”7

II. Mudanças estruturais e relações internacionais

Uma discussão crítica da ordem internacional e de seus limites passanecessariamente, como ponto de partida, pela consideração da própria estruturado sistema internacional. Segundo Susan Strange, existem quatro estruturas daEconomia Política Internacional: produção, finanças, segurança e conhecimento.8

São estes quatro recursos, interligados entre si, que conferem poder aos Estados eatores no plano internacional. A primeira estrutura é a produção: a capacidade dedecidir o que deve ser produzido, como, por quem, com que métodos, com quecombinação de fatores de produção; é um recurso indiscutível de poder. A segundaé formada pelas finanças: o poder de controle do crédito. Este vai determinar emboa parte os três outros recursos estruturais. Na economia moderna, nãodependemos mais da acumulação de lucros para ter recursos financeiros: os recursosfinanceiros podem ser criados. Quem tem a capacidade de ganhar a confiança deoutros agentes em sua habilidade de criar crédito controla a economia. A terceiraestrutura é a da segurança: enquanto existir a possibilidade de conflito violento ede ameaça à segurança pessoal, o ator que oferece segurança ganha poder emoutros assuntos também. Por fim, o conhecimento: conhecimento é poder, acapacidade de produzir conhecimento ou controlar o acesso ao conhecimento temuma enorme influência sobre as outras estruturas da Economia Política Internacional.Hoje, o tipo de conhecimento mais requisitado é a tecnologia. Os centros detecnologia avançada no mundo são, também, os centros de poder político eeconômico.

Estas quatro estruturas da Economia Política Internacional, interligadasentre si, estão sofrendo transformações fundamentais neste final de milênio. Doisprocessos chaves merecem ser estudados com atenção. O primeiro é atransformação da ordem política internacional com a passagem a uma ordem dita“pós-wetsfaliana”, com a modificação do conceito de soberania. A segunda é atransformação estrutural da Economia Política Internacional causada pela crescenteglobalização econômica. Estes dois processos de transformação têm um impactofundamental sobre o papel e o significado do Estado e sobre a própria natureza dasrelações internacionais.

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II.1. As duas transformações chaves da Economia Política Internacional

II.1.1. A transformação da ordem política: passagem à ordem política pós-westfaliana

O Tratado de Westfália de 1648 é freqüentemente citado como o tratadoque jogou as bases do sistema de Estado-nação na Europa.9 Westfália marcou amudança da ordem política na Europa: da divisão por religiões que haviacaracterizado a Idade Média, passa-se a uma diversidade internacional baseadaem uma sociedade de Estados, e cada vez mais a autoridade política se distingueda autoridade religiosa. Reconhece-se a existência de Estados separados esoberanos, e a religião deixa de ser uma justificação legítima para a intervenção ouguerra entre Estados europeus. Os princípios de Westfália – não-intervenção esoberania – forneceram a base da ordem internacional dos últimos séculos,prevalecendo em todo o direito internacional e nos documentos das Nações Unidas.Porém, atualmente, há uma alteração nos padrões de regulação e de intervençãodo Estado, ligada a mudanças na ordem internacional. O peso crescente e o novocaráter das relações econômicas transnacionais criaram um contexto maisconstringente para a ação do Estado, e novos atores surgiram nas RelaçõesInternacionais. Três elementos compõem esse quadro de transformações.i) O desenvolvimento do direito internacional, que atualmente desafia a concepção

clássica de soberania. Hoje, existem acordos e regimes internacionais quelimitam a soberania dos Estados para proteger valores comuns, como os direitoshumanos, ou os chamados “bens comuns da humanidade” tais como o meioambiente. Cada vez mais, aceita-se missões internacionais ou ações combase no “direito de ingerência”, o direito de intervir diretamente nos assuntosinternos de outro país em nome de valores universais. É o caso das missõeshumanitárias e da assistência eleitoral levadas a cabo pela ONU ou pelaUnião Européia. Também prolifera a prática chamada de “condicionalidadepolítica”, na qual a ajuda e a assistência internacional estão ligadas a critérioscomo a democracia ou a realização de eleições livres. Por fim, surgemprogramas de cooperação internacional que vão muito além da soberania eenvolvem uma série de atores não somente estatais mas, também, nãogovernamentais. Um exemplo de grande porte é o PPG7 da Amazônia, oPrograma Piloto para a Preservação da Amazônia que funciona com fundosdo G7 e do Banco Mundial e com a participação de vários Estados, organismosinternacionais, organizações não-governamentais e setores da sociedade civil..

ii) O papel das grandes corporações internacionais, que não necessariamenterespondem a critérios nacionais: empresas como a Shell ou a Mitsubishi atuamcomo atores transnacionais e têm poder de influência comparável ou superiorao de alguns Estados. Certos Estados são, na verdade, Estados fantoches,

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dominados por outros Estados, com pouca autonomia política, como o Líbano,ou controlados por instituições internacionais. A atuação das grandescorporações pode ter um alcance bem mais amplo e uma influência maisconsiderável no curso das relações internacionais. As corporaçõestransnacionais se tornaram atores políticos fundamentais com relações denatureza política com a sociedade civil.

iii) O crescimento do número e da área de atuação das Organizações Não-Governamentais: as ONGs desafiam a noção clássica de soberania ao atuaremem áreas nas quais os Estados muitas vezes são deficientes, e ao formaremalianças transnacionais com outras organizações e atores. No Brasil, é bastantevisível a atuação de organizações de direitos humanos como a AnistiaInternacional, criticando o governo por casos como Carandiru, o massacre deEldorado dos Carajás, ou o papel de ONGs ambientalistas tais comoGreenpeace ou os Amigos da Terra na divulgação do assassinato de ChicoMendes e das queimadas na Amazônia. Cada vez mais, as relaçõesinternacionais são feitas pelos atores não-governamentais.

II.1.2. A globalização econômica

O outro processo de transformação que vem afetando de maneirafundamental as bases das relações internacionais é a globalização econômicaacentuada neste final de século. A globalização deve ser entendida como umprocesso, um padrão histórico de mudança estrutural, mais do que umatransformação política e social já plenamente realizada. Ela é um fenômeno aomesmo tempo amplo e limitado: amplo, por que ela cobre transformações políticas,econômicas, e culturais ; limitado, por que não se trata de um processo completo eterminado, e ele não afeta a todos da mesma maneira. O processo de globalizaçãoé caracterizado pela intensa mudança estrutural da economia internacional, com opeso crescente de transações e conexões organizacionais que ultrapassam a fronteirados Estados. Os principais componentes dessa mudança são:i) a globalização da produção e do comércio: A globalização da produção pode

ser entendida como a produção de bens e serviços em mais de um país esegundo uma estratégia global de vendas voltada para o mercado mundial .10

O processo de reestruturação da produção começou nos anos 70, no contextode crescente competição internacional e inovações tecnológicas, e ele foiacelerado nos anos 80 com a queda nas taxas de crescimento e a recessãoque muitos países conheceram. Hoje, nota-se uma mundialização daatividade empresarial, tanto na área industrial como na área de serviços,com o papel crescente das grandes corporações transnacionais (CTNs). Onúmero de CTNS cresceu de 3.500 em 1960 para 40.000 em 1995. 11

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Houve, também, uma mudança no caráter do comércio. Mais do que umatroca de produtos entre sistemas produtivos domésticos, o comércio hoje é cadavez mais um fluxo de produtos entre redes de produção que são organizadasglobalmente e não nacionalmente. As mercadorias são criadas através da integraçãode processos de produção levados a cabo em uma multiplicidade de territóriosnacionais. A inclusão ou exclusão de um território nestas redes de produção dependeda decisão de agentes privados. Os Estados podem tentar tornar seus territóriosmais atrativos, mais eles não podem ditar a estrutura destas redes de produçãoglobal. Hoje, uma grande parcela do comércio internacional, entre 25 e 40 %, é naverdade comércio intrafirma. Quando um bem ou serviço vai de uma a outra filialde CTN, a operação e contabilizada como comércio internacional. Na verdade,trata-se do movimento de uma economia global, na qual existem bens e serviçosglobais, vendidos no mundo inteiro.ii) a globalização das finanças: Os mercados financeiros globais têm

desempenhado um papel importante na construção da estrutura e da dinâmicada emergente ordem político-econômica. Alguns autores acreditam que é naárea financeira que a globalização tem sido mais intensa, e que esta é agrande novidade do capitalismo no final do século XX. Desenvolvimentostecnológicos nas comunicações também ajudaram a globalizar as finanças:hoje, existem moedas globais, bancos globais, assim como um sistema decrédito global. As transações de câmbio cresceram de uma média de US$600 bilhões por dia no final dos anos 80 a US$ 1 trilhão por dia em 1993. Ovolume de transações financeiras vale 40 vezes mais do que o volume decomércio de mercadorias. As finanças se tornaram separadas da produção,e são hoje um poder independente, o que significa a preponderância deinteresses financeiros imediatos sobre considerações de desenvolvimento alongo-prazo.

Os mercados financeiros estão adquirindo uma crescente autonomia emrelação aos Estados: o capital move-se de um país ao outro em busca do retornomáximo, afetando a capacidade de os Estados administrarem suas economias. Opoder de controle dos bancos centrais sobre o valor de suas moedas é reduzido, oque limita a eficácia das políticas monetárias e fiscais dos governos. Com os capitaisespeculativos, há menos controle sobre taxas de câmbio, e uma maior volatilidadecambial. Fred Block fala da “ditadura dos mercados financeiros internacionais”:todo Estado que iniciar uma política julgada inapropriada será punido peladesvalorização de sua moeda e pelo acesso dificultado ao capital.12 Os recentesacontecimentos na bolsa de valores e seu impacto imediato no Brasil são uma boademonstração desse fenômeno. Hoje, a globalização financeira tende a promoveruma crescente “internacionalização” dos Estados. Para O’Brien, é o “fim dageografia”: os movimentos de capital hoje têm uma autonomia geográfica total enão obedecem a critérios nacionais. 13

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iii) uma mudança no modelo de acumulação e de produção: Por fim, o modelo deacumulação e produção evoluiu com a passagem ao “pós-fordismo”. O modelofordista de produção era um sistema de acumulação baseado na produção eno consumo de massa. Ele foi criado nos anos 30 nos Estados Unidos e seespalhou pelo mundo após a Segunda Guerra Mundial. Ele se caracterizavapor uma aliança entre o Taylorismo como modo de organizar o trabalho, comuma nítida separação entre os aspectos manuais e intelectuais do trabalho, e,de outro lado, relações contratuais rígidas entre capital e trabalho – contratosde trabalho de duração indeterminada com diversas vantagens, convençõescoletivas, legislação de proteção social, e outros mecanismos asseguradospelo Estado de bem-estar social. O sistema fordista foi a base do crescimentodo após-guerra, garantindo ganhos de produtividade e aumento nos níveis devida, o que por sua vez assegurava um alto patamar de consumo e estimulavao crescimento.14

Este modelo foi chamado de capitalismo organizado, ou de liberalismoembebido (embedded liberalism): um sistema econômico com relativa liberdadepara o capital global estava embebido em um corpo social, de instituições, normas,regulamentações, que comprometiam os Estados industrializados a insular e protegeros seus cidadãos, ao menos parcialmente, do custo de tal sistema.15 Como vimos,tal ideologia deve muito ao contexto histórico em que foi elaborada: a SegundaGuerra Mundial e seus efeitos devastadores levaram os governos a pensar queuma melhor proteção social de seus cidadãos seria um meio de evitar os traumaspolíticos das décadas anteriores, assim como de afastar a tentação comunista.

No entanto, tal modelo começa a demonstrar sinais de fraqueza no finaldos anos 60, com um declínio no crescimento da produtividade e uma crise naorganização do trabalho. Aparece uma contradição entre a globalização da produçãoe dos mercados e o caráter nacional da regulação do trabalho. Nos anos 80, ossinais de crise estavam presentes: taxas mais lentas de crescimento da produção,diminuição das taxas de produtividade e crescimento do desemprego. O modelofordista começou a ser considerado excessivamente rígido. Com o movimento emdireção a uma economia mais baseada na informação e na tecnologia de ponta,outros modos de organização do trabalho surgem. O Fordismo tende a ser substituídopor modelos pós-fordistas, mais “flexíveis”, ancorados em informação, serviços ealta tecnologia, com os exemplos notáveis dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.

Hoje, estamos nos movendo do que autores chamam de capitalismoorganizado, no qual o Estado tinha um grande papel regulador, para um regime deacumulação flexível, no qual as políticas de emprego são flexíveis e toda a ênfaseé colocada na competitividade. Este atual modelo tem uma estrutura de produçãoque segue um modelo centro-periferia: um centro relativamente pequeno deempregados permanentes que são encarregados de tarefas como pesquisa, finançase organização tecnológica, e uma periferia que compõe o processo de produção e

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se ajusta às decisões do centro, com um uso constante do trabalho temporário. Talevolução questiona e ameaça as conquistas dos trabalhadores e as leis sociaiselaboradas nos tempos do Estado de bem-estar social, colocando sérios desafios àestabilidade social.

II.2. Os efeitos da globalização nas relações internacionais e no papel doEstado

II.2.1. Significado da globalização econômica para as relações internacionais

As transformações globais que redesenham a ordem política e econômicainternacional têm um impacto considerável tanto no papel do Estado quanto naprópria natureza das relações internacionais. Em primeiro lugar, há uma alteraçãonos padrões de regulação e de intervenção do Estado, ligada à mudanças na ordeminternacional. O peso crescente e o novo caráter das relações econômicastransnacionais criaram um contexto mais constringente para a ação do Estado.Hoje, a riqueza e o poder são cada vez mais gerados por transações privadas queacontecem além das fronteiras nacionais mais do que dentro delas. Com isso,torna-se difícil manter a imagem do Estado como o ator principal a nível global, eas relações internacionais distanciam-se da imagem de relações de poder entre osEstados, como enfatizavam os Realistas: cada vez mais, trata-se da lógica privadada economia global.

Nos tempos coloniais, a conquista de territórios, e a ação militar garantiamem parte o poderio econômico de um país. A expansão territorial era uma formade controlar novos recursos produtivos, matérias-primas, bens e mão-de-obra. Opoder econômico nacional era, de certa forma, a base do poder político e militar.Hoje, redes de produção globais tornam os ganhos ligados à conquista territorialpouco relevantes. O acesso ao capital e à tecnologia depende de aliançasestratégicas com os que controlam as redes de produção global, mais do que docontrole de algum território em particular. Em uma economia global, na qual existeuma superabundância de mão-de-obra, o controle de vastos territórios e populaçõespode até vir a representar um fardo mais do que um ativo.

Por outro lado, a globalização contribuiu para transformar o contextoideológico das relações internacionais. Durante as décadas de 50 a 70, odesenvolvimento era concebido como crescimento com redistribuição esolidariedade, ao menos no nível de discurso. O Estado ocupava um papel centralnas estratégias de desenvolvimento, sendo no Terceiro Mundo o motor dodesenvolvimento. Nos anos 80, com a crise da dívida e a recessão, um consensoliberal começa a emergir, com a chegada de Thatcher e Reagan aos governos daGrã-Bretanha e dos Estados Unidos. Os novos líderes conservadores criticam okeynesianismo, o papel excessivo do Estado na economia, e citam como evidência

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o fracasso econômico de países tradicionalmente intervencionistas. Eles divulgama idéia que o subdesenvolvimento é antes o resultado de políticas econômicasdistorcidas pela intervenção do Estado do que da estrutura do sistema internacional,como pretendiam os dependentistas ou os marxistas. Criticou-se as políticas desubstituição das importações e o intervencionismo do Estado. O Estado é vistocomo estruturalmente impróprio para as tarefas de, diretamente, produzir bensprodutivos e distributivos.

Tabela 2. Mudanças na Percepção do Desenvolvimento 1960-199016

Anos 60 e 70 Anos 80 e 90

Contexto Hist rico

OPEC e forma ª o de CartØis;Nacionaliza ı es;Solidariedade com o TerceiroMundo;Esfor os para implantar aNova Ordem Econ micaInternacional.

Recessª o e crise da d vida;Thatcherismo e Reaganismo;Monetarismo;Ajuste Estrutural promovidopor FMI e Banco Mundial.

Premissas BÆsicas doPensamento

ObstÆculos estruturais ligados desigualdade do sistema

internacional;Diferen as fundamentaisentre pa ses desenvolvidos epa ses em desenvolvimento.

ObstÆculos ligados Æ mÆadministra ª o do governo;Monoeconomia(monoeconomics).

Defini ı es doDesenvolvimento

Crescimento comdistribui ª o;Provisª o de necessidadesbÆsicas.

Crescimento com eficiŒncia;Infla ª o baixa, estabilidademonetÆria

Recomenda ı es Pol ticas

Estado desenvolvimentista;Acesso facilitado s finan asinternacionais;Substitui ª o de importa ı es;Acesso comercial preferencialpara pa ses emdesenvolvimento;Gastos governamentaiselevados;Regula ª o e controle deInvestimentos ExternosDiretos (IED).

Papel reduzido para o Estado;Privatiza ı es;Restri ı es monetÆrias;Liberaliza ª o do c mbio;Promo ª o de exporta ı es;Liberaliza ª o comercial;Disciplina fiscal;Liberaliza ª o dosInvestimentos ExternosDiretos (IED).

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John Williamson foi quem primeiro denominou essas idéias de Consensode Washington. O Consenso de Washington pode ser definido como um conjuntode políticas macroeconômicas, reformas estruturais liberalizantes, tais como aliberalização do comércio, a privatização das empresas estatais, desregulamentaçãodos mercados, reformas fiscais, promoção de investimentos estrangeiros, assimcomo regras de condicionalidade aplicadas de forma cada vez mais padronizadaem vários países e regiões.17 Após décadas marcadas pelo desenvolvimentismo evárias experiências de política heterodoxa, o clima internacional na década de1990, principalmente na América Latina, foi marcado pela adoção generalizada doConsenso de Washington e de políticas de ajuste estrutural, com o objetivo deobter o apoio dos países desenvolvidos e dos organismos internacionais. Hoje, esteconjunto de políticas tende a ser visto como sendo de validade universal, levando aum estreitamento das opções de política econômica. Parece haver poucaperspectiva até para governos de esquerda implementarem políticas econômicasdiferentes e independentes, o que restringe as estratégias nacionais autônomas.

II.2.2. Impacto da mudança do papel do Estado

Em segundo lugar, com a globalização, há uma perda da capacidade doEstado de conduzir seus objetivos políticos de maneira autônoma. O mercado pareceestar se libertando dos laços das sociedades nacionais. O Estado está cada vezmais subordinado às exigências da economia global . Hoje, o critério central naeconomia é a competitividade, e, em nome da competitividade, desmantelam-searranjos Estado-sociedade. Há um movimento em direção à desregulamentação, àprivatização, à restrição da intervenção pública nos processos econômicos. Comisso, os Estados deixam de ser um intermediário entre forças externas e forçasinternas para se tornarem, de certa forma, agências de adaptação das economiasdomésticas às exigências da economia global. Para Phil Cerny, o Estado de bem-estar social nos países desenvolvidos foi substituído pelo Estado competidor, umEstado que intervém para reestruturar indústrias, promover a pesquisa e odesenvolvimento, e liberalizar ou desregulamentar setores anteriormente protegidosda competição internacional.18

Face a esse cenário de globalização, a questão que se coloca é de saber seo Estado será capaz de regular, controlar, ou ao menos disciplinar de alguma formaestes fluxos econômicos globalizados. A reforma do Estado aumentará suacapacidade de promover políticas de desenvolvimento sustentáveis? Nesse pontoexiste, é claro, uma grande polêmica. No caso do Brasil, por exemplo, a reformado Estado tem como objetivo declarado central a transição de um Estadointervencionista para um Estado que se quer “coordenador”.19 Porém, no quadroda escassez de recursos, da crise fiscal do Estado, a tendência tem sido em direçãoa contenção dos recursos destinados as políticas sociais, de educação, saúde, meio

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ambiente .... A tendência foi acentuada com a influência da crise internacional queatingiu primeiro a Ásia, a Rússia, e, agora, o próprio Brasil, levando à adoção demedidas que afetam não só a política fiscal mas a capacidade do Estado de realizarpolíticas públicas, de promover o desenvolvimento sustentável e de investir nasáreas de bens públicos. Isso também deixa o Brasil ainda mais dependente dosrecursos externos e projetos internacionais. Além disso, a eficiência dos órgãos dogoverno, que já é limitada, poderá ser deteriorada com a reforma fiscal, pelo menosa curto prazo. Existem riscos de fraqueza institucional.

Uma outra área que demonstra a perda de controle do Estado sobre temasanteriormente de competência nacional é a questão dos critérios sociais e ambientais.Hoje, cada vez mais, temas como a proteção ambiental e os direitos dos trabalhadoressão discutidos em foros internacionais. Como diferenças nacionais no que diz respeitoas normas de proteção ambiental e nos custos envolvidos na proteção social têmum impacto evidente sobre a competitividade, existe um movimento crescente emdireção à tentativa de harmonização de tais critérios. Pressionados por seustrabalhadores e agricultores ameaçados pela concorrência internacional, governosdos países desenvolvidos condenam países como a China, cujos produtos são muitocompetitivos a nível internacional, por seus níveis salariais baixíssimos, pelo uso dotrabalho dos prisioneiros políticos, do trabalho infantil, e pelo não-respeito ao meioambiente. Tais práticas tornam os custos de produção bem inferiores àqueles dospaíses desenvolvidos com normas ambientais e proteção ao trabalhador maisavançada. Há um movimento progressivo em direção à consideração dos processose métodos de produção nas discussões internacionais sobre comércio, e não maisunicamente do produto acabado.20 O tema dos critérios sociais e ambientaispromete ser um item de controvérsia durante a “Rodada do Milênio” da OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC), a ser iniciada em novembro de 1999. O fato de quetemas como a proteção ambiental e os direitos dos trabalhadores sejam cada vezmais discutidos no âmbito de organizações econômicas internacionais mostra aperda de controle dos Estados em áreas que antigamente eram definidas segundocritérios exclusivamente nacionais.

III. Ordem econômica e estabilidade internacional

III.1. A estrutura da Economia Política Internacional

Esta breve análise mostrou que as estruturas da Economia PolíticaInternacional estão sofrendo modificações fundamentais e se encontram hoje emestágios bastante diferenciados de (des)organização e (des)regulação. No casodas finanças, os fluxos permanecem desregulados. Não existe uma verdadeiraestrutura que regule fluxos financeiros e o sistema monetário, apenas instituiçõescomo o FMI e Banco Mundial, muitas vezes acusadas de cumprir a função de

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assistir os Estados mais poderosos no controle e domínio do sistema. As finançassão mais do que nunca o laço mais frágil da economia internacional: fluxos decapital especulativos e voláteis representam uma fonte de instabilidade global, comconseqüências políticas diretas. No âmbito monetário, desde o fim da convertibilidadedo dólar em ouro, predomina o “não-sistema” das taxas flexíveis, um sistema instávelque acaba repercutindo sobre os fluxos de comércio e investimentos. Não existeum sistema monetário estável que possa oferecer liquidez, ajuste e confiança, astrês questões básicas que o sistema monetário se propõe de solucionar.21 Apenasno caso do comércio é que o sistema parece ter uma base verdadeiramentemultilateral e organizada. A Organização Mundial do Comércio (OMC), quesubstituiu o GATT em 1995, tem como objetivo liberalizar o comércio de acordocom regras multilaterais preestabelecidas, promovendo a harmonização das regrascomerciais. A OMC também possui mecanismos de resolução de disputascomerciais e métodos para forçar a implementação de suas decisões, e tende acobrir um número crescente de áreas: bens, serviços, propriedade intelectual,tecnologia e telecomunicações. O processo de integração comercial regionaltambém vem avançando firmemente, com a formação de blocos, uniões aduaneirase áreas de livre-comércio. No caso da União Européia, um processo de integraçãoque teve início como integração comercial, hoje, evoluiu-se para uma união política.

III.2. Liberalismo desembebido

Embora a estrutura do comércio esteja relativamente bem institucionalizadae regulada, as bases da Economia Política Internacional permanecem ameaçadaspelas incertezas geradas pelo caos financeiro e monetário. O fim do que Ruggiechamou de “compromisso do liberalismo embebido” trouxe conseqüências políticase estratégicas que ainda não estão plenamente claras, mas que evidenciam a ligaçãoentre segurança econômica e estabilidade da ordem internacional.

Na época do após-guerra, Bretton Woods representou a própriainstitucionalização da relação entre economia e segurança ou estabilidade política:a organização da economia internacional com base no compromisso do “liberalismoembebido” seria a base da segurança do campo ocidental. Tal compromisso era,na verdade, uma forma de multilateralismo, consistente com a manutenção daestabilidade doméstica, na qual as sociedades aceitavam as mudanças e evoluçõesrequeridas pela liberalização internacional. Em troca, os efeitos da liberalizaçãoeram amenizados através da ação social e econômica dos governos com oestabelecimento do Estado de bem-estar social. Havia a consciência da necessidadede um equilíbrio entre estabilidade doméstica e normas internacionais. O grandesucesso dos anos do após-guerra foi justamente o de construir uma ordeminternacional que também permitiu o alcance de maneira harmoniosa dos objetivosdos Estados de bem-estar social. Mas é claro que este trade-off foi possível, em

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grande medida, pelo contexto da Guerra Fria, que oferecia a ameaça externafundamental para harmonizar posições e alcançar compromissos.22

A situação atual é radicalmente diferente. Vivemos hoje em um mundoquase homogeneizado, com o sistema de mercado dominando totalmente as relaçõeseconômicas e com a adoção quase universal da democracia como sistema político,ao menos formalmente. Não existe mais uma ameaça externa capaz de operar taljunção dos objetivos econômicos com os objetivos politico-estratégicos a nível global.No entanto, a instabilidade política gerada por falta de regulação do sistemainternacional poderia resultar em ameaça à segurança do mundo como um todo. Acrise econômica da Ásia, cujas conseqüências ainda não realizamos totalmente,poderia estar na origem de uma desestabilização regional, que poderia ser acirradacom a corrida nuclear entre Índia e Paquistão. A onda de protestos que seguiu aadoção do pacote recessivo na Indonésia em 1997 e a subseqüente queda deSuharto demonstram a necessidade de privilegiar uma visão mais política da ordeminternacional, pois se os efeitos da volatilidade do capital podem abalar um regimetotalitário e repressivo, o contrário, a queda de regimes democráticos, tambémpode ocorrer.23

Nesse contexto, análises recentes enfatizam a necessidade de reformar aordem econômica internacional, de se pensar em um “Bretton-Woods II”. Umadelas aponta justamente, como prioridade absoluta, o reconhecimento pelopresidente Clinton da conexão entre segurança econômica e segurança nacional.24

No mundo de hoje, globalizado porém fragmentado, marcado por enormes injustiças,com instabilidade financeira, destruição do meio ambiente, migração em alta escala,desemprego e pobreza, a autoridade dos Estados parece não ter capacidade deresolver estes problemas de maneira adequada.25 Há uma necessidade de reforçara estrutura política internacional para possibilitar a resolução de questões que,cada vez mais, ultrapassam as fronteiras nacionais.

Com a crescente interdependência entre os países, a natureza da políticaeconômica mudou. Estados perseguindo objetivos políticos nacionais entram emconflito através dos mecanismos de ligação entre as economias nacionais. Quandomuitos Estados buscam realizar seus objetivos econômicos em um mundointerdependente e não coordenam suas políticas econômicas, estas podem estarem contradição. O problema é, portanto, um problema político de como chegar àcooperação internacional e construir um sistema econômico estável.26 Falta umarcabouço político que opere como controle sobre os fluxos econômicostransnacionais. Os próprios organismos internacionais que enfatizavam as reformasde mercado hoje tendem a destacar a importância da regulação estatal e dacooperação internacional. O relatório do Banco Mundial de 1997, Reviving theState, também coloca que “a ênfase atual sobre o papel do Estado lembra outraera, quando o mundo emergia dos estragos da Segunda Guerra Mundial”, com aimplicação de que estaríamos vivendo outro momento crucial na evolução da

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arquitetura internacional.27 No entanto, as tentativas de reestruturar a ordemeconômica têm tido pouco êxito, como demonstrou o recente fracasso da tentativade elaborar restrições aos movimentos de capitais especulativos.

Em tal contexto de incertezas e grande vulnerabilidade da fluidez dos fluxoseconômicos, com o sentimento dominante de que o mundo está fragmentado, aintegração regional parece ser o único processo de caráter unificador e estabilizador.A integração regional assume não só a função de garantia de mercados e parceriaeconômica: os blocos econômicos caminham também em direção a formas deunião política, respondendo à necessidade de garantir a estabilidade da ordeminternacional. É neste contexto que a União Européia se destaca como um processocom importantes implicações para a ordem internacional.

III.3. O regionalismo na ordem internacional: o exemplo da União Européia

Dentre os vários processos de integração em andamento, a União Européiase destaca por vários motivos. Primeiro, pelo seu caráter pioneiro e, nos seusprimórdios, na época da criação da Comunidade Européia para o Carvão e o Aço(CECA) em 1952, quase que revolucionário, significando uma ruptura com o passadode rivalidades e conflitos armados entre os seus dois principais iniciadores, Françae Alemanha. Segundo, pelo alto grau de integração econômica e monetária jáalcançado. A União Européia é o único processo de integração regional que incluia livre circulação de pessoas, constituindo um verdadeiro mercado comum. Orecente lançamento da moeda comum, o euro, e a adoção de uma política monetáriaunificada devem integrar ainda mais economias que já são altamenteinterdependentes e fortalecer o poderio econômico do velho continente. Finalmente,a União Européia se destaca pela natureza verdadeiramente política de seu processode integração.

A União repousa sobre instituições tanto supranacionais comointergovernamentais, entre as quais as principais são a Comissão, órgão executivo,o Conselho de Ministros, a Corte de Justiça e o Parlamento, que representa oscidadãos dos 15 países membros. Em várias áreas, tais como a política comercial,a política de cooperação, e, mais recentemente, a política interna, as políticas jásão, em boa parte, estabelecidas ao nível europeu. O nível mais avançado deintegração foi implantado em 1o de janeiro de 1999 com a introdução do euro, amoeda única européia, e a concretização da União Econômica e Monetária (UEM),que levará a uma convergência macroeconômica cada vez maior dos paísesmembros.28 Assim, a União adquiriu para si própria muitos dos atributos do Estado,em um processo avançado de “europeização” da vida pública.

O estabelecimento de uma política externa e de segurança comum (PESC)pelo Tratado de Maastricht vem reforçar tal dimensão.29 A experiência da PESCse insere claramente no âmbito dos esforços para estabilizar o sistema político

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internacional. Neste final de século, a grande questão que se coloca na agendainternacional é a possibilidade de desenhar uma arquitetura mundial que ofereçauma proteção contra os efeitos perversos do “capitalismo de cassino” denunciadopor Susan Strange.30 A atual crise internacional relançou o debate sobre o controlardos fluxos financeiros e de suas possíveis conseqüências políticas e estratégicas.

Uma hipótese que pode ser delineada é de que, na falta de uma maiorregulação dos fluxos econômicos internacionais, a União Européia poderá vir aprivilegiar, cada vez mais, o aprofundamento do processo de integração e o caminhoda união política plena como garantia da estabilidade e ordem que inexistem a nívelmundial. Para Cerny, uma característica central da nova ordem mundial serájustamente a desvinculação entre conflitos locais e regionais de um lado, e aestabilização do conflito no sistema como um todo.31 Assim, o regionalismo e aintegração não são somente meros instrumentos utilitários para reconciliar interessesdo Estado, resolver questões de segurança e defender identidades locais contradesafios e ameaças globais: na era após-Guerra Fria, tornaram-se mecanismosfundamentais de estabilização da ordem mundial.32 Afirmando sua influênciadiplomática e estratégica através da unificação da política externa de seus membros,a União Européia seguramente poderá expandir a relevância internacional que oseu peso econômico já lhe garante. Os recentes esforços para dotar a União Européiade capacidade militar de intervenção e de reforçar o papel da Europa dentro daOTAN, reafirmados pelos líderes europeus, poderiam, finalmente, pela primeiravez desde a Segunda Guerra Mundial, dar à Europa uma voz independente emquestões militares.33

A PESC representa, portanto, um desafio importante para a União Européia.Por seu peso econômico e seu papel histórico na diplomacia mundial, os países daEuropa têm a oportunidade, através da PESC, de reconquistar uma posiçãohegemônica no sistema internacional. Com a entrada em vigor do Tratado deAmsterdã em 10 de Maio de 1999, a União Européia passará, a partir de junho, acontar com uma espécie de Ministro do exterior da Europa, o Alto Representantepara a Política Externa e de Segurança Comum, reforçando a imagem de umaEuropa unida, “falando com uma só voz”. A PESC também possui implicaçõessignificativas para a ordem internacional, uma vez que ela reforça a estabilidadeno continente europeu e diminui as incertezas em um contexto internacional marcadopor fortes turbulências e pelo impacto político dos choques financeiros. O sucessoda PESC é ainda incerto, dependendo, em parte, das condições da realização daexpansão da União com a adesão dos países da Europa Central e Oriental. A“Agenda 2000” da União Européia, apresentada em Julho de 1997, apresenta aestratégia para reforçar o crescimento, a competitividade e o emprego, assim comopara estender as fronteiras da União até a Ucrânia, Bielorússia e Moldávia atravésda expansão de seus membros. De acordo com o calendário recentemente definido,Hungria, Polônia, Estônia, República Checa e Eslovênia, os países que mais de

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aproximam dos critérios estabelecidos, poderão ingressar à União já a partir de2003. Segundo Jacques Santer, a expansão da União Européia, que ele definecomo “uma oportunidade histórica para a Europa”, será financiada através de “umverdadeiro Plano Marshall para os países da Europa Central e Oriental”.34 Restaa saber se a União terá a habilidade de incorporar novos membros e,simultaneamente, reforçar a dimensão comunitária de sua política externa. Taltarefa será, certamente, dificultada caso a situação da Rússia continue sedegradando e afete seus vizinhos da Europa Central e Oriental. Uma posiçãoexterna comum aparece como ainda mais urgente no presente contexto de guerrana Iugoslávia e da intervenção da OTAN em Kosovo. Como a União Européiafalhou na elaboração de uma solução européia à questão de Kosovo, como haviajá falhado na Bósnia, agora resta-lhe o imperativo de assumir uma posição dinâmicano processo de reconstrução da região e de consolidação da paz.

Em todo caso, União Européia constitui um sistema único e complexo detomada de decisão, um laboratório dinâmico de experiências políticas supranacionaisque está redefinindo o caráter da política e do poder estatal. Majone chega a falarda União como um verdadeiro “Estado regulador”, cuja função central é corrigirfalhas de mercado e externalidades e suprir os bens comuns como leis, ordens ouproteção do meio ambiente, que, hoje, não dependem mais unicamente do podernacional. Para Majone, o Estado regulador europeu do futuro poderá vir a sermenos um Estado no sentido tradicional da palavra do que uma teia de redes deinstituições reguladoras nacionais e supranacionais ligadas por valores e objetivosdivididos e um estilo comum de fazer política.35 A experiência da adoção da PESCdeve ser considerada no âmbito deste contexto híbrido e inovador no qual asinstituições desempenham um papel interventor visando o equilíbrio em um processoque é mais que um regime internacional, mas menos que uma federação de Estadosunidos.

Por fim, deve ser assinalada a importância da experiência européia para oBrasil e para o processo de integração no âmbito do Mercosul. Por um lado, aintegração da UE pode ser vista como instrumento de medida para avaliar o Mercosul.Embora ainda seja caracterizado por um baixo grau de integração política, oMercosul, em virtude do desenvolvimento de sua inserção internacional, leva auma demanda crescente por um maior grau de coordenação, quer na arena sub-regional, quer na mundial. 36

A crescente presença de empresas européias nos países do Mercosulindica um desejo de fortalecimento dos laços econômicos por parte da UE.37 Arealização da Cimeira América Latina-União Européia em 28 e 29 de junho próximosno Rio de Janeiro contribuirá para reforçar os distintos diálogos institucionalizadoshoje existentes entre as duas regiões. O encontro de Chefes de Estado e Governo,precedido por uma Reunião de Ministros de Relações Exteriores ALC-UE.contemplará assuntos políticos, assuntos econômico-comerciais e assuntos culturais,educativos e humanos. O encontro poderia ser o primeiro passo em direção à

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negociação de uma zona de livre comércio entre a UE e o Mercosul, conformeanunciado pelo Chanceler alemão Gerard Schroeder, atual presidente da UniãoEuropéia. As bases para as discussões de uma zona de livre-comércio já estãoestabelecidas pelo acordo global da UE com o Mercosul firmado em 1995, cujoartigo 4 estabelece que ambas as partes prepararão uma associação política eeconômica.

Conclusão

Este texto tentou apresentar uma visão crítica do atual panoramainternacional. Baseado na abordagem da Economia Política Internacional e inspiradonos pressupostos da Teoria Crítica, ele definiu e analisou algumas das principaistransformações em curso no sistema internacional, ligando sempre fatores políticose fatores econômicos e questionando a relação entre Estados e mercados. Astransformações atuais estão redefinindo as próprias bases da política e da economia,modificando o papel do Estado e o significado da soberania. Na verdade, Estado esoberania são conceitos que foram construídos socialmente, em uma determinadaépoca histórica. Tanto Estado quanto soberania são conceitos dinâmicos, e nãoestáticos: é compreensível que eles evoluam acompanhando as mudanças estruturaisdos sistemas políticos e econômicos internacionais. Ademais, não há uma normauniversal que diga que os Estados são os únicos agentes da mudança política. Aglobalização vem justamente demonstrando a importância crescente de outrosatores na ordem mundial, sejam eles corporações transnacionais ou ONGs. Assim,o debate sobre a globalização é fundamental. Os países, as políticas, os povos, sãocada vez mais afetados por fatores internacionais e forças globais. No entanto,deve ser enfatizado que a globalização se dá de maneira desigual e heterogênea,marginalizando uma boa parte da população mundial que não é integrada naeconomia global. Se, por um lado, ela homogeneiza práticas econômicas, sociais eculturais, por outro lado, ela fratura e dualiza entre os segmentos integrados eglobalizados e os excluídos. Uma reflexão crítica sobre a ordem mundial devepartir do questionamento dos fenômenos supostamente globais.

Por fim, o reconhecimento da existência da globalização não diminui aimportância de se fixar metas políticas locais, regionais, nacionais. Há espaço paraa construção de estratégias alternativas de ação coletiva. Muitas vezes, o impactodo papel do Estado tende a ser exagerado.38 A ditadura das finanças denunciadapor Block na verdade se aproxima mais de uma situação de refém-mútuo. Aoperação do sistema financeiro internacional se tornaria caótica sem políticas fiscaise monetárias responsáveis por parte dos atores internacionais. As finançasinternacionais podem punir Estados que desviam seu comportamento da normapadrão, mas a longo prazo seus lucros e retornos dependem da existência de umsistema interestatal no qual as economias nacionais estão sob o controle de atoresestatais. O sistema financeiro internacional necessita de reguladores. A partir de

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um certo ponto, reduzir o poder de intervenção do Estado provoca o aumento daexposição coletiva a riscos mais do que a expansão das possibilidades de lucroindividual. Em tal contexto, a tendência em direção à integração regional aliada aoestabelecimento de mecanismos intergovernamentais de cooperação em matériade política externa, como é o caso da União Européia, pode vir a constituir umafonte importante de estabilidade para o ordem internacional. Não obstantedificuldades e obstáculos verdadeiros, a PESC, pelo seu caráter inovador e pioneiroem matéria de integração das políticas externas e de segurança, representa umavanço certo em direção à consolidação da estabilidade tanto econômica comopolítica da região e do sistema internacional como um todo.

Maio de 1999

Notas

1 A disciplina de Relações Internacionais surgiu formalmente em 1919, quando foi criado oDepartamento de Política Internacional na Universidade de Aberyswyth, no país de Galles.

2 Este artigo não pretende aprofundar-se na discussão teórica, mas apenas sublinhar a relevânciadas abordagens teóricas para o entendimento das transformações mundiais atuais. Para entendermelhor as teorias de Relações Internacionais, ver, por exemplo, A.J.R. Groom e Margot Light(1994).

3 Ver Susan Strange (1983).4 Robert Cox (1996:88).5 Ver, por exemplo, Wendt (1992).6 Robert Gilpin (1987: 11-4).7 Susan Strange (1988:18).8 Susan Strange (1988:22).9 Referência ao Tratado de Westfália (1648), considerado como fundador da sociedade internacional

Européia. O Tratado de Westfália pôs fim à Guerra de Trinta Anos (1618-1648), durante a qualos católicos Habsburgos, que controlavam uma dinastia de Estados que compreendiam territóriosdo que é hoje a Áustria, a Espanha, a Itália, a Holanda, a Hungria .. tentaram impor seu impériosobre todas estas comunidades, algumas católicas, outras protestantes. Os Habsburgos perderama guerra e a paz foi negociada em Westfália, levando à assinatura do Tratado de Westfália.

10 Ver Susan Strange (1994), capítulo 4.11 Fonte: UNCTAD (1996: ix, 4).12 Fred Block , seminário Instituições e Desenvolvimento Econômico. Uma Perspectiva Comparada

sobre a Reforma do Estado. CPDA/NUSEG. Rio de Janeiro, 12-14 de Novembro, 1997.13 Richard O’Brien (1992).14 Sobre fordismo e pós-fordismo, ver Alain Lipietz (1985).15 Ver John G. Ruggie (1995).16 Adaptado de Thomas Biersteker (1993).17 Sobre o Consenso de Washington, ver Williamson (1990).18 Cerny cita como exemplo a França e a Grã-Bretanha. Phil Cerny (1989).19 É o que afirma Bresser Pereira no livro que serviu de base à definição dos rumos da reforma. Ver

Luiz Carlos Bresser Pereira. Economic Crisis and State Reform in Brazil. Towards a NewInterpertation of Latin America. Boulder and London: Lynne Rienner, 1996.

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20 A Organização Mundial do Comércio vem tratando um número crescente de casos de queixasrelativas a estes temas. A questão está sendo estudada e definida por grupos de trabalho, comoo Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente, que trata do impacto dos critérios ambientaissobre a competitividade e da tentativa dos países desenvolvidos de dar uma dimensãoextraterritorial a suas próprias normas.

21 Robert Gilpin (1987:118).22 Ian Clark (1997:202).29 Sobre os efeitos perversos dos choques econômicos sobre a democracia ver, por exemplo, o

ensaio catastrófico de Viviane Forrester. L’Horreur Economique. Paris: Fayard, 1996.24 Ver James Chace (1998:115).25 Susan Strange (1988:242).26 Robert Gilpin (1987), capítulo 4.27 World Bank (1997).28 O ingresso à União Econômica e Monetária está condicionado ao respeito dos chamados

critérios de Maastricht, ou critérios de convergência, que estipulam que: a taxa de inflação nãopode ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três Estados-membrocom as menos elevadas taxas de inflação; o déficit público não pode ultrapassar 3% do PIB e adívida pública não pode ultrapassar 60% do PIB; e, por fim, a taxa de juros de longo prazo nãopode ser superior em mais de dois pontos percentuais à média dos três Estados-membro comas taxas menos elevadas.

29 Ver Commission of the European Communities (1992).30 Susan Strange (1986).31 Phil Cerny (1993:49).32 Fiona Butler (1997:427).33 A criação de um pacto de defesa foi um dos temas da Cúpula franco-britânica de Saint-Malo de

dezembro de 1998, que resultou na assinatura de uma carta de intenções entre os dois paísesvisando facilitar operações conjuntas entre as duas principais potências militares da UniãoEuropéia.

34 Ver http://europa.eu.int/comm/agenda2000.35 A moderna teoria do Estado distingue três formas principais de intervenção pública:

redistribuição, estabilização macroeconômica e regulação. Majone sustenta que, após décadasprivilegiando as funções de redistribuição e estabilização, hoje, após o reconhecimento da crisedo Welfare State, a Europa se aproximou dos Estados Unidos na idéia da necessidade deprivilegiar a função regulatória do Estado. Ver Majone (1994) e (1996).

36 Ver Marcelo de Almeida-Medeiros (1996:106) e Miriam Gomes Saraiva (1999).37 Sobre o significado da União Européia para o Brasil, ver Dauster (1998).38 Uma crítica séria e bem documentada à tese da “globalização forte” pode ser encontrada em

Hirst e Thompson (1996).

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Resumo

O artigo procura examinar a relação entre o processo de globalizaçãoeconômica e a estabilidade da ordem internacional desde a perspectiva crítica daEconomia Política Internacional. Sustenta-se que tal perspectiva apresenta-se comoa mais adequada para pensar a questão central do debate das ciências sociais hoje:a relação entre Estados e Mercados e a tensão entre uma economia cada vez maisinternacionalizada e um sistema político que permanece baseado no Estado-nação.O texto analisa as grandes transformações em curso no contexto da globalizaçãoeconômica, a instauração de uma ordem política pós-Wesfálica, assim como seusefeitos sobre o papel do Estado e as relações internacionais. Em seguida, o significadoda tendência em direção ao regionalismo é analisado, com o estudo do caso daUnião Européia e de suas novas áreas de integração política, com ênfase na PolíticaExterna e de Segurança Comum (PESC). O artigo conclui apresentando o sucessoda União Européia como evidência da relação entre estabilidade econômica ecooperação política.

Abstract

This article examines the links between the process of economicglobalization and the stability of the international order from the International PoliticalEconomy perspective. It argues that this perspective is the most appropriate toshed light on what is today the central issue in social sciences: the relation betweenStates and Markets, and the tension between an increasingly globalized economyand a territorially-defined political system. The paper discusses the ongoingtransformations in the context of economic globalization and the shift to a post-Westphalian political order, as well as its effects on the role of the state and onInternational Relations. It then turns to the analysis of the meaning of regionalism,with the case study of the new areas of political integration within the EuropeanUnion, in particular the Common Foreign and Security Policy (CFSP). The EuropeanUnion provides evidence of the links between economic stability and politicalcooperation.

Palavras-chave: Ordem internacional. Globalização. Regionalismo.Key-words: International order. Globalization. Regionalism.

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Errata

Esta tabela substitui a tabela publicada em Rev. Bras. Pol t. Int. 41 (2): [[[[1998]]]] p. 126.

TABELA 1PARTICIPA˙ ˆ O DE MEMBROS DA UIT

NA PRIVATIZA˙ ˆ O DAS COMUNICA˙ ES NO BRASIL

a. DTH (satØlite)

Empresas Origem ` rea geogrÆfica Parceiros Brasileiros

HughesNews CorporationTCITelevisa

Estados Unidos #AustrÆlia # $Estados UnidosMØxico

Brasil/A. Latina(satØlite)

Abril/DirectTVGlobo/SkyGlobo/SkyGlobo/Sky

b. Telefonia Celular de banda B

Empresas Origem ` rea geogrÆfica adquirida Parceiros Brasileiros

BellSouthDDI CorporationKorea Mobile TelecomMotorolaTelecom ItÆlia (Stet)

Telia

Estados UnidosJapª o # $CorØia do Sul #Estados UnidosItÆlia #

SuØcia # $

1 Grande Sª o Paulo5 ParanÆ e Santa Catarina3 - R. J. e Esp rito Santo5 ParanÆ e Santa Catarina4 Minas Gerais9 - Bahia e Sergipe2 - Sª o Paulo (interior)

Safra-OESP-RBS-Splice/BCPSuzano-Inepar/GlobaltelecomAlgar-Queiroz Galvª o/AlgarSuzano-Inepar/GlobaltelecomVicunha-Globo/Bradesco/MaxitelVicunha-Globo-Bradesco/MaxitelEvadin-Cr. Almeida /Tess

c. Telefonia Fixa e Celular de banda A (Telebras)

Empresa OrigemSubsidiÆria da Telebras

adquiridaParceiros Brasileiros

MCINTT Mobile Comunic.Portugal Telecom

Telecom ItÆlia

Telef nica de Espaæa

Estados UnidosJapª oPortugal #

ItÆlia #

Espanha # $

EmbratelTele Sudeste CelularTelesp/Telesp Celular

Tele Nordeste CelularTele Celular SulTele Centro Sul

TelespTele Sudeste CelularTele Leste Celular

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Notas

A Europa atual: questões desegurança coletiva e integraçãoeconômica

ARTHUR V. CORRÊA MEYER

I)

A Europa Ocidental do presente se defronta com importantes problemasde segurança coletiva e de integração econômica com o resto do continente. Aanálise dessas questões diz respeito não somente à problemática européiapropriamente dita, mas também à Aliança Atlântica, representada pela Organizaçãodo Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

A Aliança Atlântica, hoje com 50 anos de existência e abarcando dezessetepaíses da Europa Ocidental (todos, com exceção da Irlanda, Suécia, Finlândia,Suíça, Áustria e dos micro-Estados europeus), bem como os Estados Unidos daAmérica (EUA) e o Canadá, procura redefinir sua identidade no contextointernacional vigente após o término da confrontação Leste-Oeste. Passo importantenesse sentido foi a constituição, em meados de 1997, do Conselho de AssociaçãoEuro-Atlântico (CAEA), reunindo basicamente os membros da OTAN e os paísesintegrantes ou da esfera de influência direta da antiga União Soviética (convidadospelos EUA a formar o chamado Partnership for Peace).

Também em meados de 1997, ocorreu a primeira grande transformaçãoda OTAN (em termos de sua composição) na era pós-Guerra Fria, com o convitefeito a Polônia, Hungria e República Tcheca para ingressar na entidade, (o que seveio a consumar em março de 1999). A questão do alargamento da OTAN, porsuas profundas implicações sobre a paz e a segurança da Europa, ainda suscita, noentanto, várias controvérsias nos dois lados do Atlântico.

De modo geral, os países europeu-ocidentais consideram necessária aexpansão da OTAN com vistas a abarcar a região da Europa Central, que lhesparece, por razões geopolíticas, de importância crucial para sua segurança. Daídecorre a recente decisão de admitir na Organização Polônia, Hungria e República

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 183-201 [1999]

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184 NOTAS

Tcheca, com a perspectiva de adesão, em futuro relativamente próximo, de Romênia,Áustria e Eslovênia.

Por outro lado, mesmo entre países europeu-ocidentais membros da AliançaAtlântica, inexiste consenso quanto ao eventual alargamento da OTAN de modo aabarcar outros países balcânicos e os Estados do Mar Báltico, os quais não lhesapresentariam interesses vitais de segurança semelhantes aos região da EuropaCentral. Além disso, esses países do ocidente europeu ficariam temerosos deantagonizar ainda mais a Rússia (a qual já manifestou desagrado com a decisão,tomada em 1997, de admitir na OTAN Polônia, Hungria e República Tcheca) comessa possível expansão adicional da Aliança Atlântica, criando um foco maior detensão e atrito no continente.

Nos EUA, também, tem havido divergências sobre o mesmo assunto,manifestadas por correntes de opinião lideradas, de um lado, por George Kennan(o homem que contribuiu decisivamente para a formulação da política decontainment contra a ex-União Soviética, no início da Guerra Fria ) e pelo ex-Secretário de Estado Henry Kissinger. A primeira corrente é contrária à expansãoda OTAN, por achar que causará alarme na Rússia, aí fortalecendo suas forçasantidemocráticas; constituirá fator de dissensão no continente europeu; e, pelo seucusto financeiro, reduzirá a capacidade de a Organização cumprir eficientementesua missão primária. Por seu turno, a segunda corrente defende o alargamento daOTAN, invocando o argumento de que essa medida é essencial para impedirqualquer futura ameaça militar de uma Rússia ressurgente contra a Europa e aAmérica do Norte.

Essas divergências ficaram, em parte, refletidas no summit da OTAN,realizado em Madri, na Espanha, em julho de 1997, quando ocorreu marcadadiferença de pontos de vista entre os EUA e alguns países da Europa Ocidental(liderados pela França) acerca do alargamento da Organização. Nessa ocasião,como se viu, decidiu-se admitir na OTAN apenas três países novos (Polônia, Hungriae República Tcheca), mas a França e alguns países aliados propugnaram, tambémcom vigor, a admissão da Romênia e da Eslovênia, as quais, embora sem alcançarsua pretensão, receberam manifestações de encorajamento quanto à futurapossibilidade desse objetivo.

Na verdade, a questão do alargamento da OTAN envolve uma delicadacomposição de interesses entre os EUA, a Europa Ocidental e a Rússia. Na visãopredominante dos países ocidentais, a expansão da Organização é necessária paragarantir a paz e a estabilidade no continente europeu e dificultar ou impedir umaeventual ressurgência do expansionismo russo; ao mesmo tempo, entretanto, essealargamento deveria ser feito gradualmente (em razão, sobretudo, dos seus custosfinanceiros) e com cuidado, de modo a não alienar os países incapazes de seradmitidos a curto prazo e a não criar no Governo de Moscou uma sensação decerco e exclusão, estimulando o crescimento de tendências ultra-nacionalistas e

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belicosas naquele país, ainda muito poderoso militarmente (embora, no momento,enfraquecido economicamente).

Várias possíveis abordagens têm sido propostas para a estratégia daexpansão “gradativa e cautelosa” da OTAN. Todas elas procuram, em maior oumenor medida, “conservar a porta aberta” aos candidatos a ingressar naOrganização e, simultaneamente, manter boas relações com os países da ex-UniãoSoviética (sobretudo Rússia e Ucrânia) sem lhes dar direito de veto sobre as grandesdecisões da entidade.

A primeira linha de ação proposta, a qual tem constituído a política oficialdo presente Governo americano, consiste na chamada open door policy: o ingressona OTAN estaria aberto, em princípio, a todos os participantes do Partnership forPeace, agora agrupados no CAEA. Os pretendentes a ingressar na Organização(inclusive a própria Rússia) teriam de declarar explicitamente sua candidatura elutar pela sua aprovação junto aos países membros.

A segunda abordagem à questão do alargamento da OTAN poderia serdenominada de parallel expansion, consistindo em igualar a lista de candidatosao ingresso na OTAN àquela de pretendentes à admissão na União Européia (UE).Estariam enquadrados nessa categoria, além de países que já são membros da UE(Irlanda, Suécia, Finlândia e Áustria), a Suíça (Estado tradicionalmente neutro); aspequenas repúblicas bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia); países da Europa Central,balcânica e mediterrânea (Eslováquia, Eslovênia, Romênia, Bulgária, Macedônia,Albânia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Iugoslávia, Chipre e Malta); e, até mesmo,os micro-Estados (Andorra, Mônaco, San Marino e Liechtenstein).

A terceira alternativa, que se poderia chamar de “minimalista”, prega umalargamento da OTAN limitado exclusivamente a alguns poucos países, cuja posiçãogeográfica seria de vital importância para a defesa da Europa Ocidental. Dianteda recente decisão de admitir na Organização Polônia, Hungria e República Tcheca,poderiam, então, nela ingressar Áustria, Eslováquia e Eslovênia, bem como,eventualmente, Suíça, Finlândia, Suécia, Irlanda e, talvez (com menor probabilidade),as pequenas repúblicas bálticas.

A primeira linha de ação (e também, em certa medida, a segunda) teria oinconveniente de permitir uma expansão demasiadamente ampla da OTAN, a qualpoderia vir a sofrer um processo de virtual paralisia na tomada ou implementaçãode decisões. Nesse caso, a Organização ficaria ameaçada de perder eficácia porsua abrangência muito extensa, tal como ocorreria hoje, de certa forma, com aOrganização de Segurança e Cooperação da Europa (OSCE).

A segunda abordagem (a chamada parallel expansion), além depossibilitar um alargamento ainda relativamente amplo da OTAN, não é atraentepara os EUA (nem para alguns países europeu-ocidentais importantes) pelo fatode excluir abertamente a Rússia, bem como outros Estados que nasceram com ofim da antiga União Soviética. Essa exclusão, apesar de favorecer a eficácia interna

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186 NOTAS

da Organização com relação à primeira abordagem, poderia constituir um foco deatrito permanente, que não interessa ao Governo de Washington (o qual não deseja,tampouco, que a estratégia da OTAN seja dominada por critérios própriosunicamente à UE).

Por fim, a terceira alternativa básica para a expansão da OTAN (o enfoque“minimalista”), embora de mais fácil implementação, seria de difícil justificaçãopolítica, levando os países excluídos (sobretudo os balcânicos e os bálticos) a sesentir moralmente rejeitados. Isso poderia ensejar o surgimento de crises internasnesses países excluídos a priori com reflexos desestabilizadores para a paz e asegurança em todo o continente europeu.

Do ponto de vista da OTAN como um todo e, principalmente, do seumembro mais poderoso e influente, os EUA, nenhuma das três alternativas expostasanteriormente é inequivocamente a melhor. Dessa forma, nos próximos anos, aAliança Atlântica deverá, possivelmente, continuar adotando um meio termo entreconservar aberta a possibilidade de alargamento, manifestando aos países da ex-União Soviética e do antigo Pacto de Varsóvia intenções amistosas, e recusarnovas admissões em massa na Organização.

A linha de conduta descrita acima se discerne pelos resultados do summitda OTAN em Madri, em julho de 1997. Nessa ocasião, não somente se decidiuadmitir na Organização os três novos membros já referidos, como também foiassinado acordo de cooperação política e militar com a Ucrânia (semelhante ainstrumento firmado com a Rússia no mês anterior). Os referidos acordos com aRússia e a Ucrânia prevêem a manutenção de consultas regulares (pelo menos,duas vezes por ano) e cooperação na luta contra o terrorismo e o narcotráfico.

O gradualismo e a cautela na expansão da OTAN se explicam não apenaspelo desejo de “acalmar” os países da ex-União Soviética, como também pelosaltos custos financeiros envolvidos, em termos de ampliação da infra-estrutura detransportes e comunicações, adaptação e padronização de equipamentos militaresdos novos membros e preparação de novas rapid-reaction forces. A títuloexemplificativo, pode-se citar que, no início de 1997, um estudo elaborado peloPentágono americano calculou o custo da primeira rodada de alargamento da OTANem torno de US$ 30 bilhões ao longo de treze anos.

A OTAN se defronta ainda com o desafio de reformar sua estrutura militarpara adaptá-la à era pós-Guerra Fria, o que envolve, principalmente, uma redivisãodos seus comandos. Alguns países europeus, a começar pela França, têmreivindicado maior compartilhamento de poderes, nas esferas política e militar daOrganização, entre os EUA e a Europa. A questão do burden sharing, ou seja, dadivisão dos ônus financeiros, entre os EUA e os demais países membros, paramanter a OTAN, continua também importante.

A crise política e militar na província iugoslava de Kosovo, agudizada apartir de março de 1999, com o início dos bombardeios aéreos pelos países membros

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da OTAN, tornou ainda mais complexo o quadro anteriormente descrito. Aintervenção militar realizada na Iugoslávia pelos países da Aliança Atlântica,liderados pelos EUA, constitui iniciativa sem precedentes e cujo desfecho pode terconseqüências graves e imprevisíveis.

II)

À semelhança do que ocorre com a OTAN, sérios dilemas quanto a seufuturo hoje enfrenta a UE. O processo de integração econômica da EuropaOcidental, iniciado com a Declaração Schuman em 1950 e hoje envolvendo 15países, tem sido indiscutivelmente bem sucedido, mas observa-se dificuldade naformação de consenso quanto aos rumos vindouros da entidade.

O Tratado de Maastricht estabeleceu, há poucos anos, metas ambiciosaspara a integração política, econômica e social dos países agrupados na UE. Dentreessas metas estavam a Política Externa e de Segurança Comum (PESC), bemcomo a União Econômica e Monetária (UEM), com o estabelecimento de umamoeda única (o “euro”), iniciando-se em 1º de janeiro de 1999.

Reunidos em Amsterdã, na Holanda, em junho de 1997, os representantesdos Governos nacionais da UE aprovaram algumas revisões ao Tratado deMaastricht, em seguimento à Conferência Intergovernamental de Turim do anoanterior. As emendas então aprovadas foram, no entanto, de caráter e alcancereduzidos, em conseqüência das dificuldades já mencionadas sobre a formação deconsenso quanto ao futuro da UE.

No tocante à PESC, decidiu-se apenas que o Conselho Europeu procurarádefinir normas gerais e ações a serem tomadas em áreas onde os países-membrotêm interesses comuns importantes. As decisões nesse campo serão tomadas porunanimidade, mas se permitirá a um país-membro recorrer eventualmente a uma“abstenção construtiva” que o exclua de uma iniciativa, sem bloquear a atuaçãodos demais.

Foi ainda aprovado que o Conselho Europeu procure definir uma políticade defesa comum dentro de uma “perspectiva européia”. Diversas questõesficaram, porém, em aberto, entre elas, a do status da União da Europa Ocidental(UEO) – aliança militar que congrega os países-membro da UE (com exceção daÁustria, Suécia, Finlândia, Irlanda, Grécia e Dinamarca) em relação à UniãoEuropéia.

As dificuldades sentidas pela UE para fazer avançar a PESC são dediversas ordens. Em primeiro lugar, diferentes concepções se encontram emdiscussão e nenhuma delas encontrou ainda aceitação generalizada. O problemado relacionamento com os EUA também continua presente, uma vez que o Governode Washington tende a criticar a UE por, freqüentemente, não conseguir falar emuníssono em termos de política externa e de defesa e a não considerar seriamente

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188 NOTAS

manifestação da UE nesse campo, quando expressa pela Comissão Européia oupor algum Estado pequeno que ocupe a presidência (rotativa) do Conselho Europeu.

Desde a Conferência Intergovernamental de 1996, quatro diferentesalternativas para a PESC vêm sendo debatidas. A primeira, apresentada pelaFinlândia e pela Suécia, restringe as metas de defesa comum da UE a operaçõesde caráter humanitário (evacuações supervisionadas por militares, manutenção depaz e gerenciamento de crises): nesse caso, todos os membros da UE disporiamde iguais direitos para decidir e tomar parte nessas operações (a serempossivelmente executadas pela UEO), enquanto à OTAN caberia a responsabilidadepor missões de combate, caso necessário.

Uma segunda alternativa, proposta sobretudo pela França , consistiria emtornar a UEO o “braço armado” da UE, a qual poderia, então, implementar diretae plenamente sua política de defesa. Alguns países-membro da UE não fazemparte, entretanto, da UEO e, a curto ou médio prazos, essa alternativa necessitariado recurso à OTAN para a execução de missões de combate, enfraquecendo seucaráter de iniciativa genuinamente européia.

Outra alternativa para a PESC, que foi proposta pelo Reino Unido, seria ade manter inalterados os arranjos institucionais existentes. Nesse caso, a UE poderiatão somente solicitar à UEO a execução de ações militares, das quais poderiamparticipar qualquer país europeu membro da OTAN (a ser decidido caso a caso).

Igualmente conservador é o approach da quarta e última alternativa paraa PESC, a qual consistiria em fundir completamente a defesa européia na estruturada OTAN. Tal como a precedente, essa alternativa descaracteriza o aspecto europeuda política externa e de defesa da UE, sendo, por isso, pouco aceitável para aFrança e os “euro-entusiastas”.

Todo o debate acerca do PESC no seio da UE também envolve uma reflexãorenovada sobre as políticas nacionais de defesa dos países da Europa Ocidental,sobretudo alguns dos mais importantes, como o Reino Unido e a França, que sãomembros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Esses países hojeprocuram reorganizar suas forças armadas, dentro de uma concepção integradade defesa, visando a manter uma capacidade de atuação eficaz em teatros deoperação distantes.

É real a ameaça, cada vez mais sentida pelos países da Europa Ocidental,representada pela proliferação das tecnologias de mísseis balísticos e das armasde destruição em massa (nucleares, químicas e biológicas). Essas tecnologias vêm-se tornando disponíveis no mercado internacional, graças a exportações realizadassobretudo pela Rússia e pela China: alguns países da Ásia meridional, OrienteMédio e norte da África, cujo relacionamento com a Europa Ocidental épotencialmente conflituoso, têm adquirido essas tecnologias.

Em particular, para a Europa Ocidental, constitui motivo de especial a ecuidadosa atenção a Rússia, país hoje que se assemelha fortemente à Alemanha

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da “república de Weimar”, na década de 1920 (com democracia fraca, economiaabalada e insatisfação generalizada). A UE e a OTAN não se dispõem a dar aoGoverno de Moscou o reconhecimento de uma esfera de influência própria daRússia e esta, por sua vez, tende a considerar insuficiente o que lhe vem sendooferecido pelos países ocidentais (diálogos e parcerias de cooperação).

A subida ao poder da coligação de partidos social-democrata e verde(tradicionalmente pacifista) na Alemanha, liderada por Gerhard Schroeder, emoutubro de 1998, introduziu um elemento adicional de complexidade às questões dedefesa e de política externa na Europa Ocidental. Desenha-se a possibilidade deque a UE, dividida por opiniões diferentes quanto ao escopo da PESC, venha a sertentada a adotar uma mentalidade isolacionista em política externa, a qual, além deineficaz no mundo crescentemente globalizado, poderia torná-la caudatária dosEUA.

Por outro lado, a recente intervenção militar da OTAN na Iugoslávia, aindaem curso, se bem que contando com respaldo político da UE, não deixa de evidenciaruma certa fraqueza desta última. Com efeito, a UE continua sendo um “giganteeconômico” e um “anão político e militar”, “ainda necessitando do apoio (se não,da liderança) dos EUA para levar a cabo uma operação externa de grandesproporções envolvendo suas forças armadas.

III)

Se, no campo da PESC, há divergências sobre a concepção e dificuldadesde implementação, no campo econômico, também, existem problemas no seio daUE. A consecução da ambiciosa meta representada pela União Econômica eMonetária (UEM) é prejudicada pelo grave problema do desemprego que, hoje,afeta vários países europeus, a começar pela França e pela Alemanha (nos quaisa taxa é superior a 10%).

Para a instituição da UEM, com o estabelecimento da moeda única e deum Banco Central Europeu (já em funcionamento desde junho de 1998) foi requeridaa satisfação, por parte dos países membros da UE, dos chamados “critérios deMaastricht” de desempenho econômico. Esses critérios impõem, primeiramente, acada país que deseje aderir à UEM a apresentação de um déficit público total nãosuperior a 3% do seu Produto Interno Bruto (PIB) e uma dívida pública total de, nomáximo, 60% do PIB.

Os “critérios de Maastricht” também incluem outras metas de convergência,relativas a taxa de inflação, taxa de juros de longo prazo e taxa de câmbio. Porenquanto, 11 países da UE participam da UEM desde 1º de janeiro de 1999, ficandode fora (mais por vontade própria) o Reino Unido, a Suécia e a Dinamarca; e,também (por não satisfazer os “critérios de Maastricht”), a Grécia.

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Apesar de a maioria dos países membros da UE hoje satisfazerem oscritérios de convergência para o estabelecimento da UEM, existem percepçõesdiferentes acerca da linha de conduta a ser seguida pelo Banco Central Europeu(BCE) e do seu relacionamento com os Governos nacionais e seus bancos centrais(até 2002, quando o “euro” entrará fisicamente em circulação, substituindocompletamente as moedas nacionais dos participantes). A UEM se encontraameaçada pelo risco de que os Governos nacionais de seus países-membro recorrama políticas assimétricas para lidar com os sérios problemas do desemprego (járeferido acima) e da reforma dos sistemas de previdência social. A presenteconjuntura da economia mundial, caracterizada por estados de recessão na Rússia,na Ásia e, em certa medida, na América Latina, contribui para reforçar omencionado risco.

As considerações precedentes guardam especial relevância para a atuaçãodo BCE: os 11 países-membro da UEM deverão apresentar crescimento médio deapenas 2% em 1999 (estimativa de Deutsche Bank) e, no fim de 1998, o númerode desempregados na UE subia a 17 milhões. Isso deverá requerer umaadministração muito cuidadosa das políticas monetárias (coordenadas pelo BCE)e fiscais dos países-membro da UE.

A meta da UEM é indiscutivelmente ambiciosa, representando um estágiode integração econômica superior ao do mercado comum. A consecução desseobjetivo requer um grau ainda mais elevado de homogeneidade entre os paísesmembros e, portanto, maior esforço de coordenação de políticas econômicas. Seusbenefícios serão, por outro lado, consideráveis, reduzindo custos de transação eeliminando o risco das flutuações de taxas cambiais sobre o comércio e os fluxosde capitais, o que permitirá a criação de condições para um surto renovado decrescimento e prosperidade nas economias da Europa Ocidental.

Parece cada vez mais claro que, para a UEM poder ser plenamenteimplementada a curto prazo com sucesso, será necessário aos países da UE adotaramplas reformas conjuntas de suas legislações trabalhistas e de seus sistemas deprevidência social. A UEM retirará dos Governos nacionais os ajustamentos dastaxas cambiais como instrumento de política econômica, criando novas pressõessobre os (já relativamente pouco flexíveis) mercados de trabalho: daí decorre anecessidade de assegurar maior flexibilidade aos salários e contratos laborais nospaíses da UE, mas as iniciativas nesse sentido ainda são geralmente poucas e dealcance limitado.

De qualquer forma, a criação do “euro” deverá constituir a maiortransformação do sistema monetário internacional dos últimos trinta anos. Casobaseado em uma política monetária consistente, o “euro” se tornará a segundamais importante moeda de reserva do mundo, rivalizando com o dólar norte-americano. O grande peso econômico da UE, a qual, em 1996, detinha cerca de20% do PIB mundial (as participações dos EUA e do Japão eram, respectivamente,

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de 20% e de 8%,),bem como quase 15% do comércio mundial de mercadorias,dará condições ao “euro” de desempenhar papel semelhante ao dólar dos EUAcomo moeda internacional.IV)

A UE também enfrenta sérios desafios quanto à reforma de sua estruturainstitucional e à admissão de novos países-membro da Europa Central e Oriental.O problema do chamado “deficit democrático” (expressão usada para designarcerta deficiência de accountability dos órgãos executivos da UE, a começar pelaComissão Européia, em relação aos eleitorados dos países-membro) continuacausando mal-estar. As mudanças aprovadas a esse respeito na reunião de cúpulade Amsterdã, em junho de 1997, foram ainda reduzidas, especialmente no tocanteàs atribuições do Parlamento Europeu, cujos poderes continuam algo limitados.

Em março de 1999, ocorreu sério problema institucional dentro da UE,com a renúncia coletiva dos membros da Comissão Européia, após divulgação derelatório elaborado por técnicos e auditores contendo severas críticas à sua gestãoadministrativa e financeira. Esse fato inusitado pôs novamente em evidência oproblema do “déficit democrático” na UE: espera-se que a recente eleição a do exPrimeiro-Ministro italiano Romano Prodi (político de grande prestígio) para apresidência da Comissão Européia, sirva para o encontro de soluções para essaquestão.

No que se refere à admissão na UE de novos países membros, Polônia,Hungria e República Tcheca são os que apresentam maiores possibilidades a curtoprazo, uma vez que Suíça, Noruega e Islândia, por razões de política interna, nãodemonstram grande interesse no assunto. Considera-se, ainda, que a Estônia, aEslovênia e Chipre poderiam também formar, com os três países mencionadosacima, a primeira leva de novos membros da UE; a segunda leva seria formadapor Letônia, Lituânia, Eslováquia, Romênia e Bulgária.

É clara a necessidade de alargamento da UE, para fundar, em bases sólidas,a liberdade política e econômica no continente europeu. Apesar disso, o processode admissão de novos membros da Europa Central e Oriental tem sido prejudicadopor várias dificuldades, não somente na área do comércio (especialmente dosprodutos agropecuários, por causa da Política Agrícola Comum da UE), comotambém pelo fato de que isso acarretará diminuição dos recursos dos fundos dedesenvolvimento comunitário para os seus maiores recipiendários atuais (Espanha,Grécia, Portugal, Irlanda, Bélgica e Luxemburgo, os quais recebiam juntos em1998 cerca de ECU$ 18 bilhões anualmente).

Tanto no âmbito da OTAN, quanto no da UE, a Europa hoje se defrontacom dilemas e desafios. A incorporação dos países da antiga “cortina de ferro” aomainstream europeu parece estar caminhando mais rapidamente na área militar(esfera da OTAN) do que na área econômica (esfera da UE), quando o desejável

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pareceria ser o oposto, tendo em vista a situação relativamente instável que seobserva na ex-União Soviética, em geral, e na Rússia, em particular. Por outrolado, não há dúvida de que é ainda muito significativa a capacidade européia decontribuir positivamente à paz internacional e de influenciar sobre o crescimentoda economia mundial.

Abril de 1999

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O capitalismo pós-nacional e osriscos da inserção desigual do Brasil

JOSÉ VICENTE DA SILVA LESSA

Percebida neste final de século como a macrotendência histórica aconformar o futuro dos povos, a globalização econômica não chega a ser umfenômeno novo. Suas grandes linhas já se vinham prenunciando ao longo de todo oséculo XX, enquanto que algumas das suas raízes se pode facilmente buscar noséculo XIX. Nas últimas duas décadas deste último, a exacerbação da corridacolonial e imperialista das grandes potências já exprimia o “ímpeto” do capitalismopara integrar ao conceito de mercado áreas geográficas cada vez maiores.Remontam também ao século passado a formação de algumas corporaçõesmultinacionais, bem como um certo internacionalismo capitalista, expresso naproliferação de acordos comerciais, e socialista, que pretendia, desde então,“globalizar” a produção pela integração mundial da classe operária.

Duas grandes guerras marcaram, na centúria que ora termina, a exaustãodo velho sistema de economias fechadas, competindo por domínios coloniais, zonasde “co-prosperidade” e “espaços vitais”. Enquanto as fronteiras econômicas dasnações industriais tradicionais e emergentes coincidiram com suas fronteiras políticas,a expansão de mercados, condição essencial do empreendimento capitalista, impôsa essas nações uma política imperialista agressiva, formadora de zonasinternacionais de exclusão, seja pela posse de um império colonial, pelamanutenção de esquemas preferenciais com nações periféricas (dos quais é aCommonwealth britânica o exemplo mais completo), ou pelo recurso extremadoda guerra orientada ao estabelecimento de áreas de domínio ou influência.

Dos escombros da Segunda Guerra nasce, contudo, uma autêntica novaordem, onde o capital aos poucos se transnacionaliza e os espaços econômicos seintegram. A nova clivagem política do mundo em “esferas” de confrontaçãoideológica irá beneficiar a acumulação capitalista, à medida que permitirá justificarinvestimentos estatais maciços em tecnologias militares, cuja reversão para oemprego civil insufla, ainda hoje, a notável verticalização tecnológica deste século.

A globalização propriamente dita viria a completar-se no desmonte dobloco socialista e conseqüente “triunfo” dos princípios do mercado em praticamentetodos os quadrantes do planeta. O vago emprego cotidiano do termo, no entanto,dificulta avaliação mais precisa de seu alcance e de suas implicações. Por estarazão, optamos neste ensaio pelo termo capitalismo pós-nacional, que acreditamospossua propriedades heurísticas superiores. Trata-se de exprimir, em um conceito,

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a formação histórica sucessora dos “choques imperialistas” da fase anterior – e daqual é a Guerra Fria, em um certo sentido, desdobramento tardio.

O papel das multinacionais

A transição do capitalismo, por assim dizer, “imperial” para o “global” oupós-nacional tem como elo central as corporações multinacionais, várias das quaisjá despontavam como agentes privados das políticas nacionais expansionistas noséculo XIX. Datam da segunda metade do século passado, ou mesmo de antes, afundação de vários gigantes mundiais: Siemens (1847), Westinghouse (1869),General Electric (1882), AEG (ca. 1880), agentes de uma disputa transatlânticapela preeminência nos ramos elétricos, eletrônico e mecânico. O acirramento dasdisputas imperialistas nos anos que antecedem 1914 reforça, na atuação dessascorporações, práticas consentâneas com as políticas de governo. (A possívelexceção dos Estados Unidos, que já dispunham de legislação antitrust em fins doséculo XIX, se explica mais como defesa de interesses econômicos internos quecomo a tentativa de limitar a ação internacional de suas empresas).

O esforço produtivo das duas guerras mundiais beneficiou corporações jádominantes em áreas estratégicas, como as indústrias elétricas, eletrônica e detelecomunicações (beneficiária direta da tecnologia do radar), química, petrolífera,siderúrgica e outras menos estratégicas (mecânica, indústria naval e material detransportes). Como saldo da Segunda Guerra, inúmeras pequenas concorrentessão absorvidas pelas corporações maiores, do que resulta concentração semprecedentes da produção industrial. Investimentos tecnológicos da guerra alimentama disputa pelo controle de processos industriais (formação de pools de patentes),acentuando-se o caráter monopolista ou oligopolista das multinacionais, e dão inícioa novos e promissores ramos industriais.

No contexto da nova ordem, inaugurada com a Carta de São Francisco, osgovernos renunciam a todo tipo de expansionismo militar. Não obstante, suasempresas estão livres para perseguir, com maior eficácia, os efeitos econômicosdessa mesma política. Mudam as formas internacionais de atuação para dar vazãoao “ímpeto globalizante” do empreendimento capitalista. Ao transnacionalizar-se,emancipa-se o capital da proteção política dos governos. Seus interesses globais jánão precisam “contaminar” a ação política, o que permite um longo período de pazglobal. Persiste ainda a cultura ideológica da fase anterior – a era dos embatesimperialistas. A conseqüente percepção da “insegurança coletiva” reforça a idéiada “inevitabilidade” da guerra, ancorada na lógica mecanicista do “balanço depoder”. Na prática, essa cultura ideológica e sua expressão militar – a corridaarmamentista – favorecem o desenvolvimento de inúmeras novas indústrias,de que são a informática, a tecnologia do laser e os novos materiais algunsexemplos.

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O CAPITALISMO PÓS-NACIONAL E OS RISCOS DA INSERÇÃO DESIGUAL DO BRASIL 195

Atores centrais da ordem econômica global, as multinacionais avançaramnas últimas décadas sobre praticamente todos os ramos industriais, e têm participaçãocrescente no setor de serviços (comunicações, entretenimento, finanças) e de infra-estrutura. Seu modus operandi é amplamente conhecido. Alocam recursos decapital para produzir diretamente no mercado consumidor ou em área situada emfunção desse mercado, combinando mão-de-obra e outras facilidades locais. Aoproduzir diretamente no mercado consumidor, põem-se a salvo dos custos deexportação, de injunções burocráticas do comércio exterior, das flutuações docâmbio, da duplicidade de regimes fiscais e demais incertezas associadas aomercado internacional. Suas operações de comércio exterior processam-se,basicamente, entre suas próprias unidades, o que lhes permite controlar cadaoperação na origem e no destino. Ao colocar-se, por esta via, fora do modelotradicional de operação de comércio exterior, assumem essas empresas vantagenscompetitivas absolutas. Assim, apesar de a grande difusão de novas tecnologiaspermitir hoje margem de ação a pequenos empreendimentos, atuando de formaarticulada entre si, as zonas internacionais de exclusão formadas pelosconglomerados multinacionais em áreas produtivas nobres, persistem, como regra,no limiar do século XXI.

O componente tecnológico

Globalização, como hoje a entendemos, denota a maturação do capitalismopós-nacional que, com a abertura dos espaços econômicos do Leste europeu, daRússia e da China, assume o aspecto de uma vasta integração mundial de mercados.Assiste-se à “vitória” do liberalismo, enquanto mais e mais nações passam aprofessar os princípios da economia de mercado na Ásia e na América Latina.

O capitalismo pós-nacional é, contudo, mais que a ordem mundial globalizada.Igualmente determinante na nova formação histórica é a verticalização do progressotecnológico, princípio, por excelência, da acumulação do capitalismo pós-nacional,obtida com o decisivo apoio das políticas de governo. Essa verticalização se faz deduas formas: pelo progresso técnico (aperfeiçoamento continuado dos meiostecnológicos de produção) e pela incorporação tecnológica (inovação tecnológicapela agregação do saber ao produto final).

Nos anos 50 e 60, os países industriais vivenciaram vigorosa arrancadaeconômica, resultante da acelerada substituição de máquinas nas fábricas. Entre1952 e 1973, os meios de produção mais que duplicaram em relação à mão-de-obra disponível. Em grande parte, esse progresso decorre da conversão detecnologias militares à produção civil. Ao final do boom, a estrutura produtiva dospaíses industriais, como apontam Glyn et al (In Capitalism Since World War II.Fontana: Londres, 1984), pouca semelhança guardava com aquela de duas décadasatrás. Os gastos norte-americanos com a Segunda Guerra têm prosseguimento

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196 NOTAS

em sua renúncia à desmobilização militar após a Guerra da Coréia (1953), passando,ao longo dos anos 60 e início dos 70, pela Guerra do Vietnã e, desde então, até1990, no confronto direto com a União Soviética. Subsidiariamente, concorrem astecnologias desenvolvidas nos programas de exploração espacial.

O spin-off dos programas estatais de tecnologia intensiva acarretamvantagens extraordinárias aos agentes econômicos privados norte-americanos ede seus grandes parceiros da OTAN. Os governos investem, assim, maciçamenteem pesquisa militar e espacial, cujos produtos encontram, eventualmente, aplicaçãocivil e são repassados à indústria. A conveniência desse método de socializaçãodos custos de P&D enseja a formação de interesses constituídos nas grandescorporações que, mediante a compra de patentes, incorpora o conhecimento assimgerado como patrimônio seu. Pouca chance efetiva têm os países chamados “emdesenvolvimento” de acesso a essas tecnologias, senão sob contrato delicenciamento ou como componente de produtos finais.

Fim do ideal mercantilista?

Ao abarcar mais e mais áreas produtivas nobres, em virtude de suasuperioridade tecnológica e das facilidades operacionais de que desfrutam, tenderiamas multinacionais a consolidar e ampliar zonas internacionais de exclusão produtiva,com a conseqüente marginalização de produtores nacionais. A facilidade com quedirecionam seus fatores de produção para os mercados consumidores tenderia,ademais, a tornar obsoleto, em escala mundial, o “grande” comércio de manufaturas.Duas seriam as possíveis exceções: itens de consumo de baixo valor agregado,produzidos por países com mão-de-obra abundante que desejem aceder ao mercadomundial, e itens de alto conteúdo tecnológico (equipamentos e artigos de tecnologiade ponta, bens de capital e instrumentos especializados). Em uma grande faixaintermediária não se justificariam os custos associados ao comércio exterior, emface da concorrência estabelecida diretamente no mercado consumidor. A possívelexceção a esta regra seriam as zonas de integração de mercado, à medida quepossam elas executar políticas deliberadas de desvio de comércio. Na prática,essas áreas constituiriam um comércio “nacional” ampliado. No contexto mundial,no entanto, estreita-se o espaço disponível a exportação de manufaturas porempresas nacionais, frustrando-se, em parte, a promessa liberalizante daglobalização.

A ordem mundial globalizada é essencialmente diferente daquela quepoderia ter sonhado um livre-cambista vitoriano, inspirado nas teses da divisãointernacional do trabalho e das vantagens comparativas. É certo que a estratégiaexportadora continuaria a ser, no século XX, a origem da riqueza das nações –especialmente as asiáticas (Japão, Taiwan, Coréia do Sul e, mais recentemente, aChina). Mas essa política exportadora - de natureza às vezes agressiva - obedeceu

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O CAPITALISMO PÓS-NACIONAL E OS RISCOS DA INSERÇÃO DESIGUAL DO BRASIL 197

a um “plano” maior, deliberado ou não, que a história se incumbiria de revelar,voltado a uma espécie de “acumulação primitiva”, uma etapa do desenvolvimentoque, como tal, não se esgota em si mesma. O objetivo de uma tal política vai alémda constituição de um setor exportador competitivo. Trata-se da formação do“grande capitalismo” nacional - a formação de grandes holdings industriaisdestinadas a atuar mundialmente.

A ordem mundial globalizada do século XXI pode, portanto, conduzir acerta relativização da importância do comércio internacional de manufaturas. Oscustos de produção e conseqüentes vantagens relativas serão determinados, antes,pela capacidade de realocação espacial da produção, em escala global, que pelosganhos de eficiência de produtores nacionais isolados. A onipresença de unidadesindustriais interligadas sob a mesma matriz, associadas às tecnologias avançadasda informação já seriam suficientes para operar ampla revisão da relação empresa-mercado. Os processos automatizados de produção podem, por exemplo, ganhardimensão nova se lhes forem agregados os recursos de comunicação cibernética àdistância. Uma revolução na tecnologia dos materiais poderá, ademais, dispensarcertos insumos básicos industriais como o ferro e o aço, assim como no passado aresina sintética deslocou a borracha natural do mercado e a fibra ótica, o cobre. Odeslocamento físico de mercadorias pelos sete oceanos estaria, mais e mais, limitadoa algumas commodities sem substitutos, equipamentos e bens de capital de altaagregação tecnológica, cuja produção especializada não demande escala. Em umatal conjuntura, seria praticamente impossível a um país “exportador” diversificarou elevar qualitativamente sua pauta de produtos.

A ordem econômica global ou do capitalismo pós-nacional implicaria, nestahipótese, o fim do “grande” comércio mundial. O primado das trocas comerciaisdaria lugar à internacionalização da empresa e da produção, que se pode hojeadministrar à distância, e aos deslocamentos instantâneos de capitais, no ritmo dacomunicação cibernética. Em síntese, sendo o mercado “global” um só, exigir-se-iam empresas onipresentes.

Estratégias de inserção dos “emergentes”

Enquanto no Brasil se tem a corporação multinacional como anátema aosinteresses nacionais, países do extremo oriente e do sudeste asiático demonstraramser possível promover tais interesses pela adesão aos mesmos métodos de ação do“grande capitalismo”. A estratégia japonesa, por exemplo, dirigiu-se, em seusprimórdios, à formação desses consórcios. Outros fatores tiveram igual importância:a imigração de poupanças da China e da Indochina para o Japão e para os futuros“tigres”, em virtude da longa turbulência política e da proteção política, financeirae econômica americana (britânica no caso de Hong Kong). No entanto, sem umapolítica deliberada de promoção do “grande capital” é pouco provável que tal

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198 NOTAS

estratégia de desenvolvimento industrial tivesse frutificado.Taiwan merece consideração à parte. Em que pese à falta de dados

estatísticos, é sabido que a transferência do Kuomintang para a ilha se fez commaciça transferência de capitais que propiciaram a formação, em Formosa, deimportante praça financeira. Embora sem constituir grandes corporações, Taiwannotabilizou-se pelos investimentos no exterior e pela criação de uma rede demanufaturas de baixo custo para exportação. Tratava-se do mesmo princípio da“acumulação primitiva” observado no Japão. Superada essa “fase”, aproveita ailha essa mesma rede para montar produtos de consumo de elevada agregaçãotecnológica (computadores, material ótico e fotográfico, bens de capital etc.) pelaintegração vertical de pequenos produtores especializados. Como estratégia, afabricação de manufaturas de baixo custo para exportação serve hoje aos propósitosda China, a qual, seguindo o mesmo modelo, está reestruturando estataisselecionadas para atuar como corporações globais.

Em vista destes exemplos, restaria indagar: quais as possibilidades deinserção competitiva do Brasil às novas realidades da economia mundial no séculoXXI? Ou, talvez, a questão pudesse ser: que estratégia de articulação à economiamundial servirá melhor ao Brasil? Inúmeros fatores têm sido apontados como“empecilho” nas atuais circunstâncias (custo Brasil, taxas de juros, educação etc.)- condições que, por seu caráter conjuntural, ou que por se tratar de temas sobreos quais há elevado consenso, não serão aqui consideradas. Quatro fatores restritivosendógenos devem, contudo, ser destacados: a) o caráter patrimonialista da açãoempresarial; b) a ausência de tradição cientifica e de investimentos em P&D; e) opredomínio de um pensamento microempresarial; e d) a ausência de uma políticade desenvolvimento industrial de longo prazo.

O patrimonialismo na organização empresarial constitui traço culturalpróprio do Brasil e da América Latina. Nesse contexto cultural, a empresa é, antesde tudo, vista como um “negócio de família” e não como um agente produtivo deresponsabilidade social. Em uma economia desenvolvida de mercado, porém, ocomportamento empresarial obedece ao imperativo de estrita profissionalizaçãode seus quadros dirigentes, transformando a figura tradicional do capitalista na do“funcionário do capital”. As habilidades requeridas dessa burocracia privada incluema permanente busca de adaptação a injunções históricas, necessariamentecambiantes, de modo a colocar-se a empresa em competição ativa com o universoempresarial. A inovação e a internacionalização vêm a ser os imperativos básicosda competição de mercados, o que exige das firmas maiores taxas de formação decapital produtivo fixo, pela abertura de seu capital acionário e pela profissionalizaçãode seus quadros dirigentes.

O traço patrimonialista da empresa brasileira conspira, contudo, contraessas metas ou mesmo as exclui. Subjaz a este fenômeno uma questão conceitualcomplexa, ou seja, a de definir a empresa como entidade privada de

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O CAPITALISMO PÓS-NACIONAL E OS RISCOS DA INSERÇÃO DESIGUAL DO BRASIL 199

responsabilidade pública. À medida que mobiliza recursos da sociedade paraatender demandas dessa mesma sociedade, a empresa assume responsabilidadesque não cabem mais na esfera restrita do arbítrio pessoal. O empreendimento decapital aberto, a sociedade de participação por quotas, o gerenciamento profissionaldevem, à medida que o empreendimento cresça, garantir que os rumos da empresanão se submeterão incondicionalmente aos desígnios pessoais de seus “donos”,mas a uma perspectiva de interesse coletivo.

Inserido em um contexto social e histórico, o empreendimento capitalistadeve atentar para os efeitos de médio e longo prazos de sua ação sobre o conjuntoda sociedade e suas formas de condução precisam ser revistas e discutidas.Submetida ao controle exclusivo de seus fundadores, a empresa nacional tem sido,contudo, impedida de assumir dinamismo e latitude próprias ao empreendimentocapitalista. O empreendimento mantém-se nos estritos limites nacionais; oempresariado permanece provinciano, enquanto se desperdiçam oportunidadeshistóricas.

A ausência de tradição científica refletiria a base agroexportadora quedeu suporte à formação econômica do país, e cujas oligarquias, convencidas da“irrenunciável” vocação agrícola brasileira, privilegiaram formas bacharelescasde educação, acomodando-se à idéia de modernização passiva pela introduçãogradual de inovações industriais geradas em países industriais avançados. Nessecontexto, a educação tem sido citada como a “questão-chave” do desenvolvimento,embora sem os devidos cuidados e qualificações. Em verdade, a simplesuniversalização do ensino não garante a constituição de uma economia maisinovadora ou a formação de uma burguesia industrial cosmopolita. Para tanto,deve a educação estar primordialmente voltada “à livre busca do espírito” quecaracteriza a atividade científica, e medrar em um ambiente cultural e institucionalfavorável à inovação. Sem uma base cientifica sólida, exclui-se da culturaempresarial a inovação tecnológica, o interesse por produtos novos e a própriabusca de soluções rentáveis de baixo custo. O país se torna tributário de inovaçõesfeitas alhures, renuncia a importante mecanismo de capitalização e mantém ritmoreflexo de desenvolvimento.

A ascendência do pensamento microempresarial atrelado ao imperativoda geração de empregos conspira, igualmente, contra o fortalecimento da baseempresarial, à medida que desvia a ênfase das políticas brasileiras para unidadesprodutivas com baixa capacidade de investimento e pouca margem de atuação embases seguras e regulares no mercado mundial. A prevalecer essa tendência, resultalimitada a capacidade de a burguesia nacional investir na indústria pesada, emsetores de base e no desenvolvimento tecnológico. Não se trata aqui, decerto, denegar a importância do pequeno empresariado como provedor de empregos e comocontribuinte para a formação do PIB. Deve-se, entretanto, alertar para os riscosda adoção de um “modelo” microempresarial como base ou padrão de

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200 NOTAS

desenvolvimento nacional, em detrimento de uma desejável – ainda que poucocompreendida – “grande burguesia” nacional. (Note-se que a possível rejeiçãonacional a essa “grande burguesia” decorre do estilo patrimonialista de gestão daempresa nacional, que permite associar o “grande grupo econômico” diretamentea pessoas, e não a entidades de razão social.)

Uma alternativa a este quadro seria a integração horizontal de pequenas emédias empresas especializadas em cadeias produtivas maiores, ligadas a“montadoras” que possam oferecer produtos sob encomenda de alto valor agregado.Esse modelo de descentralização e de integração industrial, tal como adotado emTaiwan, não se encontra, aparentemente, em cogitação no Brasil. No contexto deuma política desarticulada de promoção da PME, em nome apenas do emprego,muito pouco se terá agregado ao imperativo de aumento da poupança interna e,menos ainda, ao da inserção competitiva no capitalismo global.

Essa observação conduz ao quarto fator restritivo endógeno, no Brasil, àinserção internacional competitiva: a ausência de uma estratégia de desenvolvimentoindustrial a longo prazo. A opção assumida nos anos 50 de fomento industrial pelaimportação de poupanças, aliada à crença nos poderes ilimitados do mercado,coibiu o desenvolvimento de uma política mais fecunda de planejamento queimplicasse a equiparação de seu parque industrial aos das economias maisavançadas. Nos exemplos asiáticos mencionados, sugere-se que a ascensão, aindaque tardia, ao “grande capitalismo” seja a forma mais consistente de inserçãomundial competitiva. Não obstante, ao “optar” por uma política que privilegia apequena e média empresa e a importação de poupanças, assume o país os riscosassociados a um “modelo” jamais testado com êxito no mundo.

Conclusões

No capitalismo pós-nacional, a realização do potencial econômico de umanação passa necessariamente pela questão da inserção externa. Será, porconseguinte, importante indagar o que precisamente é essa etapa histórica docapitalismo, quais as formas possíveis de “inserção” nacional e o que vem a serseu caráter “competitivo”. O conceito de capitalismo pós-nacional exprimeclaramente o fato de que o locus da atuação das firmas capitalistas não é mais,tipicamente, o espaço nacional, mas o mercado global. Não obstante, o conceitodeve também exprimir o conteúdo semântico de “capitalismo” enquanto categoriahistórica. Tal implica perceber que essa forma genérica de organização econômicados povos é, fundamentalmente, um sistema de relações dinâmicas em lenta maspermanente transformação. Sua essência está, sobretudo em sua atual fase “global”,na inovação tecnológica, que permite o progresso técnico, a incorporação de valore, em suma, a acumulação, a capitalização ou a formação da riqueza.Segue-se que a inserção internacional não será competitiva se não for dinâmica;

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O CAPITALISMO PÓS-NACIONAL E OS RISCOS DA INSERÇÃO DESIGUAL DO BRASIL 201

ou seja, deve ela recusar as condições mundiais de competitividade comopermanentes; e, para ser dinâmica, deve ela ser transformadora, capaz de criarfatos novos e de liderar certos processos. Sendo esta a essência da organizaçãocapitalista de produção, uma economia nacional que se articule com esse universomaior de forma estática, sob a premissa das vantagens comparativas permanentes,estará realizando uma inserção “imperfeita”, não competitiva. Na hipótese de umrelativo declínio, como aventado neste ensaio, do “grande comércio” mundial demanufaturas, a inserção almejada deve deixar aberta a possibilidade de se evoluirrapidamente do ideal de global trader para o de global investor.Em outras palavras, devem os agentes econômicos nacionais adquirir ascaracterísticas essenciais do modo histórico maior a que se pretende articular, oque supõe, como se viu, a adoção de uma nova cultura empresarial. Ao não satisfazerestas condições, a “parte” que se insere no universo maior terá aspectos de um“corpo estranho”, arrastada ao sabor das injunções e incapaz de promover seupróprio espaço.

Fevereiro de 1999

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202 RESENHAS

PANTOJA, Selma & SARAIVA, José Flávio S. Angola e Brasil nas rotas doAtlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, 254 p.

A obra organizada pelos dois historiadores das relações internacionais daUniversidade de Brasília traz o Atlântico Sul para o centro das preocupaçõesrelativas à inserção externa do Brasil neste final de século. Área privilegiada paraa articulação da política africana do Brasil, a porção atlântica ao sul do Equador éexplorada em sua dimensão histórica, em particular em seu conjunto de vínculos erelacionamentos que unem o Brasil a Angola dos tempos do grande comércio deescravos até os desdobramentos das atuais relações bilaterais entre os dois Estados.Os organizadores, no entanto, nos alertam, já na apresentação do livro, que a “riquezadas relações das duas margens do Atlântico” não se reduz à lógica do tráficoatlântico de escravos. Intercâmbios diversificados proporcionaram uma vidabastante mais arrojada e múltipla à convivência de angolanos e brasileiros noAtlântico Sul.

Os autores utilizam a brecha aberta pelos debates acadêmicos em tornodos quinhentos anos da chegada dos portuguesas ao Brasil para explorar o ângulodas motivações que tornaram brasileiros, portugueses e angolanos competidoresou colaboradores no espaço atlântico. Vereda de intensa movimentação comercialbem como de intercâmbio de idéias, experimentos políticos e culturais comuns, asrotas do Atlântico são apresentadas nos sete capítulos que compõem a obra comouma área de construção civilizacional. Reivindicam os autores a noção de umespaço de construção civilizacional como, em certa medida, acostumamo-nos aperceber o Mediterrâneo euro-africano.

Há, na obra, duas grandes contribuições à moderna reflexão das relações doBrasil com o continente africano. Em primeiro lugar, verifica-se um novo tratamentopara o próprio tráfico angolano de escravos, a partir das inquietações sugeridas noscapítulos escritos por Joseph Miller, José Curto, Rosa da Cruz e Silva e Roquinaldodo Amaral. Em segundo lugar, as sofisticadas análises interculturais, demográficas,urbanísticas e das relações internacionais são propostas nos capítulos produzidos porSelma Pantoja, Fernando Mourão e José Flávio Sombra Saraiva.

Joseph Miller, presidente da associação nacional de historiadores norte-americanos, reafirma sua grande erudição no primeiro capítulo. Autor de umaobra monumental sobre as relações entre Angola e Brasil no período colonial,

Resenhas

Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 202-216 [1999]

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RESENHAS 203

Miller explora, neste novo texto, a escalada da tensão entre os diferentes interessesque tornaram Angola, no século XVIII, centro da cobiça de mercadores eadministradores portugueses, luso-brasileiros e luso-africanos. Da conquista dosGovernadores, passando pela Era dos Contratadores e pela Era Pombalina, Millerdesfila o jogo da economia atlântica que leva ao próprio abandono da colônia.

José Curto, em capítulo nutrido de grande originalidade, aborda a luta entreo vinho e a cachaça na Luanda dos séculos XVII e XVIII. A cachaça brasileira, agerebita, associou comerciantes coloniais do Brasil contra os comerciantescapitalistas em Portugal em um intenso embate com conseqüências políticas paraLisboa e o Rio de Janeiro. Durante o século XVIII a cachaça foi o principal elementodas relações econômicas brasileiras em Angola. Introduzida por volta de 1650pelos comerciantes coloniais brasileiros que procuravam uma entrada no comérciode escravos no oeste da África Central, a gerebita se tornou objeto de competiçãocom o vinho, única bebida alcoólica estrangeira usada antes da primeira metade de1600, pelos comerciantes portugueses na região.

Selma Pantoja, no capítulo intitulado “Três leituras de duas cidades: Luandae Rio de Janeiro nos Setecentos”, analisa a obra do autor luso-afro-brasileiro SilvaCorrea, da História de Angola, em especial aquilo que ele chamou de uma grande“miscelânea” urbana. Pantoja parte dessa idéia para desenvolver estudo acercada configuração espacial e social dos espaços urbanos em Angola e no Brasil. Ahistoriadora angolana Rosa da Cruz e Silva analisa o mesmo século para reavaliar,a partir de documento recém-descoberto no Arquivo Histórico Nacional de Angola,as relações políticas e comerciais entre Benguela, em Angola, e o Brasil.

Dois capítulos da obra são dedicados ao século XIX. O de Roquinaldo doAmaral volta-se ao tráfico ilegal de escravos entre o Brasil e Angola entre 1830 e1860, com trabalho gráfico e interpretativo das fontes. O seguinte, do decano dosestudos africanos no Brasil, Fernando Mourão, acompanha a evolução de Luandanos oitocentos, com ênfase em seus aspectos sócio-demográficos em relação àindependência do Brasil e ao fim do tráfico.

No capítulo dedicado ao século XX, José Flávio Sombra Saraiva penetraum período particularmente fascinante do relacionamento do Brasil com Angola.Analisando as posições brasileiras diante da crise do colonialismo português emAngola e o polêmico reconhecimento precoce, por parte do governo militar brasileiro,da declaração unilateral de independência pelo movimento de libertação deinspiração marxista – o MPLA –, Saraiva demonstra o ponto culminante da políticaafricana do Brasil nos anos 1970 e prepara a explicação para a permanência deum relacionamento privilegiado que segue, até os dias atuais, entre as elitesbrasileiras e angolanas.

O grande mérito da obra organizada por Pantoja e Sombra Saraiva é a boaarticulação do tempo longo em torno de uma relação bilateral estratégica para o

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204 RESENHAS

Brasil. Um relacionamento de grande lastro histórico e que enfrentou ao longo dotempo uma série de dificuldades e desinteligências, e que alcança sua maturidade,apesar da guerra infindável em solo angolano, nos dias de hoje. Como lembraSombra Saraiva “o novo relacionamento com Angola foi consubstanciado nosintercâmbios comerciais e pela retomada das velhas rotas de convivência culturalque haviam animado a vida do Atlântico Sul em períodos anteriores”. Permanece,assim, a grande vocação atlântica do Brasil.

Amado Luiz Cervo

ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Brasil e o Multilateralismo Econômico. PortoAlegre: Livraria do Advogado,1999, 328 p.

Poucos são os trabalhos sobre política econômica externa do Brasil quedestacam o papel de entidades como a OCDE ou a UNCTAD no processo deinserção internacional do país. O diplomata e historiador Paulo Roberto de Almeidaapresenta neste trabalho um estudo inédito acerca da trajetória do Brasil em forosnormalmente negligenciados em obras do gênero, tais como a OCDE e a UNCTAD.O livro aborda, por meio de uma perspectiva histórica, o papel das organizaçõesmultilaterais no sistema econômico contemporâneo e como uma ativa interação doBrasil com essas entidades pode facilitar uma melhor inserção internacional dopaís no cenário da globalização.

Essas relações são vistas em uma perspectiva global e de uma maneiraevolutiva, tanto em busca do passado como em uma discussão sobre os problemasatuais da agenda econômica e política do Brasil. A análise faz-se ao abrigo danoção de interdependência, que é o conceito-chave para a compreensão da formaçãoda ordem econômica mundial contemporânea.

Dessa forma, o autor acredita que “... a inserção econômica internacionaldo Brasil far-se-á de modo mais consentâneo com as necessidades atuais da políticaeconômica externa do país, se plena aceitação da interdependência for incluída naplanificação de um futuro imediato...”(p.20). Nessa linha, não caberia ao Brasilbuscar sua inserção econômica internacional em um sentido primariamente“adesista”. Trata-se de um processo de maturação das responsabilidades globais,contemporâneo da própria emergência econômica do país e de sua participaçãonas grandes correntes da interdependência econômica global.

Para o autor, os ciclos de atividades das economias nacionais são, cadavez mais, determinados pelos equilíbrios externos e pelos vínculos deinterdependência que se estabelecem em escala planetária. Em conseqüência, osgovernos dos Estados nacionais não mais detêm, no âmbito da vida econômica, o

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RESENHAS 205

mesmo comando de decisões que eles ainda conservam no quadro do sistemapolítico. Mais adiante, Paulo de Almeida afirma que o conceito de indústria nacionaltornou-se um “mito”, na medida em que Know how, tecnologia, e, sobretudo,mercados consumidores apresentam-se atualmente em dimensões mundiais.

No que tange à divisão da obra, os capítulos enfocam diferentes aspectosdo multilateralismo econômico, com ênfase na inserção do Brasil e dos países emdesenvolvimento na economia mundial, tratando em especial das origens e primeirasetapas das instituições de Bretton Woods, da história de meio século do GATT e,mais recentemente, da OECE, OCDE, UNCTAD e OMC.

Nesse aspecto, a obra ressalta a ascensão da perspectiva desenvolvimen-tista nas agendas de alguns foros econômicos internacionais, afirmando que estaperspectiva veio à tona por meio da UNCTAD. Para o autor, o esgotamento daideologia desenvolvimentista não implicou, necessariamente, o abandono doproblema conceitual e prático do desenvolvimento econômico e social. Na verdade,uma agenda substantiva em prol do desenvolvimento apresenta-se como uma novacomplexidade analítica, combinando realidades condizentes com o mundo integrado,interdependente.

Nessa linha, a América Latina constituiu-se um continente relativamentemarginal no cenário estratégico internacional. Para o autor, tal característica éresultante de suas próprias opções, no decurso do pós-guerra, em matéria de políticaseconômicas desenvolvimentistas. No caso específico do Brasil, este passou adesempenhar um papel de primeira ordem nos processos simultâneos de formaçãode espaços econômicos integrados no continente, de busca de uma reinserção daregião na economia mundial e de reassunção de um novo papel na políticainternacional. Tendo iniciado a década de oitenta com um discurso diplomáticoafirmadamente desenvolvimentista e caracterizadamente “terceiro mundista”, apolítica externa do Brasil encaminhar-se-ía para uma aceitação refletida danecessidade de interdependência.

Atualmente, segundo o autor, a interdependência manifesta-se por doisprocessos complexos e complementares de transformação e de adaptação daseconomias nacionais às novas exigências e requisitos de desenvolvimento das forçasprodutivas. De um lado, a chamada globalização, isso é, a integração dos mercados,que resulta da internacionalização ampliada dos circuitos produtivos e dos fluxosfinanceiros. De outro lado, a regionalização, ou seja, a constituição de blocoscomerciais e agrupamentos econômicos, geralmente de vocação liberalizante. Essesdois processos não são inéditos em termos históricos e não representam rupturasfundamentais da ordem econômica mundial. Entretanto, cabe ressaltar que ofenômeno foi intensificado e desenvolveu-se com características novas nos últimostempos, havendo sido impulsionado pela unificação européia, pelo acordo de livre-comércio entre Estados Unidos e Canadá, pela associação do México ao NAFTA,

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pelo Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, pela maior participação políticados países em desenvolvimento no processo de normatização das relaçõescomerciais multilaterais no âmbito da OMC e, por último, pelo projeto de criaçãode uma zona de livre comércio no continente americano, a ALCA. Nesse caso, oautor afirma que é relevante na agenda internacional, do ponto de vista econômico,um pretendido “fim da geografia”, ou seja, a abertura das fronteiras do planeta aosistema universal da economia de mercado.

No caso específico do Brasil, diferentes temas econômicos passaram afreqüentar a agenda do país, denotando o caráter interdependente da agenda externae suas implicações para a organização da sociedade nacional. Caso seja preservadaa tendência à estabilidade nas políticas econômicas setoriais, o Brasil podeapresentar-se nos próximos anos com taxas positivas de crescimento econômico ecom elevados níveis de renda e de satisfação social.

Esse fato faz com que o Brasil apareça como uma presença obrigatóriano esquema de ordenamento internacional. Nesse particular, o Brasil é visto comocandidato natural à assunção de novas responsabilidades globais em diferentesforos decisórios mundiais. Nesse caso, cabe ressaltar a candidatura do Brasil aoConselho de Segurança das Nações Unidas. Dos quatro candidatos naturais,somente a Índia dispõe, reconhecidamente, da capacidade nuclear, muito emboraos outros membros potenciais tenham capacidade para desenvolvê-la. No caso doBrasil, este aderiu recentemente ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear,renunciando, de maneira definitiva, à opção atômica.

Nessa perspectiva, as opções de reforço na cooperação internacional ena coordenação de esforços em vista da paz e da estabilidade mundiais voltam-separa o foro econômico, ou seja, o G-7. Para o autor, o Brasil teria chances deingressar em um G-7 revisto e ampliado, já que parece ser do próprio interesse dogrupo dotá-lo de uma nova estrutura de representação política verdadeiramentemundial, convertendo-o em foro ágil de consulta e coordenação em torno dosproblemas mais importantes da agenda política e econômica internacional. Comefeito, são enormes os desafios colocados à política econômica do Brasil, na medidaem que as novas condições sob as quais passa a atuar a diplomacia multilateralapresentam limites reais ao desempenho de uma soberania econômica. Taiscondições dizem respeito à adaptação da diplomacia brasileira a uma nova ordemeconômica mundial, à elaboração de uma política comercial própria, face às novasexigências colocadas pela OMC, e à construção de um espaço econômico unificadono Cone Sul latino-americano. Em suma, para Paulo de Almeida, todos essesprocessos obrigam à revisão de alguns princípios de atuação da diplomaciaeconômica brasileira. Esta deverá trabalhar segundo um novo modelo dedesenvolvimento econômico, centrado na regulamentação das exportações e nadiminuição de barreiras técnicas protecionistas.

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O Brasil e o Multilateralismo Econômico é leitura indispensável paraestudiosos de história das relações internacionais por ser obra rica de informaçõese de novas interpretações.

Heloisa C. Machado da Silva

ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Estudo das Relações Internacionais. SãoPaulo: Unimarco Editora, 1999, 304p.

Estudantes e estudiosos das relações internacionais do Brasil e de suapolítica externa têm, a partir de agora, uma preocupação a menos. O lançamentode Paulo Roberto de Almeida expõe o estado do conhecimento e as tendênciasatuais da área de estudo das relações internacionais no Brasil. A obra, comcaracterísticas de manual prático e introdutório, preenche uma lacuna há muitoconstatada.

Em seu primeiro capítulo – “O Brasil no contexto econômico mundial:1820-1992” –, as relações econômicas internacionais do Brasil constituem o eixonorteador do rápido retrato traçado sobre as relações externas do país, em umaperspectiva comparada. Em termos de crescimento do PIB, a experiência brasileirafoi uma das de maior dinamismo do século XX, mas, no entanto, foi acompanhadapor uma alta taxa de crescimento demográfico, a “bomba demográfica”, responsávelpela diluição dos frutos da expansão do produto interno bruto. Nestes últimos anos,com o plano de estabilização, iniciado em 1994, os índices de crescimento econômiconão repetiram desempenhos anteriores e a inserção do país na globalização financeirageraram turbulências financeiras e uma certa inquietação em relação ao futuromais imediato.

A periodização das relações internacionais do Brasil é o assunto do segundocapítulo. Paulo Roberto de Almeida opta por aquela que tenta combinar o tratamentocronológico com a exploração temática de certos “momentos relevantes” noitinerário histórico das relações internacionais do país. Ou seja, procura mesclar ométodo histórico-linear com uma abordagem temático-evolutiva. Percebe-se, nesteponto, a aplicação de critérios variados, como um critério histórico-temporal (“Dosprimórdios ao processo de independência, 1415-1808”), um critério de base política(“Apogeu e declínio do Império, 1850-1889”), outro de caráter personalista-diplomático (“A era do Barão, 1902-1912”), ou, ainda, de fundo político-ideológicoe, neste caso, tipicamente oficial (“A política externa independente, 1961-1964”).

No terceiro capítulo – “A estrutura constitucional das relações internacionaisdo Brasil” –, analisa os problemas do relacionamento entre Executivo e Legislativona área temática das relações internacionais, a partir do texto constitucional de

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1988. Elabora, também, uma discussão a respeito das possíveis implicações dosdispositivos constitucionais sobre a orientação e o direcionamento das relaçõesinternacionais do país, na presente fase. Neste sentido, a Constituição de 1988conservou o modelo tradicional no que se refere ao Executivo, porém ampliou opapel fiscalizador do Parlamento. Por exemplo, de acordo com o art. 49, sobre as“Atribuições do Congresso Nacional”, o legislativo recebe a tarefa de “resolverdefinitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretemencargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, como também de“aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares”.

A produção brasileira em relações internacionais, assim como suastendências e perspectivas, constitui o objeto do capítulo 4, ponto alto da obra deAlmeida. O autor percorre o caminho trilhado por “historiadores-diplomatas”,cientistas sociais, historiadores acadêmicos e diplomatas de carreira, para escrevera história da produção na área de relações internacionais do Brasil. Inicialmente,destaca as obras dos autores “fundadores” do conhecimento na área, como a liçãodo primeiro grande “mestre”, Pandiá Calógeras; o esforço divulgador de HélioVianna; a sistematização da ação diplomática brasileira empreendida por Delgadode Carvalho e a análise histórica da inserção internacional do país desenvolvidapor José Honório Rodrigues. Em meio a uma produção que se ampliava a passoslargos a partir dos anos 1950, atribui um papel importante para o trabalho de HélioJaguaribe e de Celso Lafer, que deram uma grande contribuição para a área como conceito de permissibilidade (Jaguaribe), base de uma possível autonomia dasnações periféricas, e com a equação sobre a disjunção entre ordem e poder.Paulo Roberto de Almeida segue com um relato pormenorizado sobre a produçãona área das relações internacionais das últimas décadas, que contou com acolaboração de vários pesquisadores conceituados no âmbito da Universidade edo Instituto Rio Branco. Na área acadêmica vinculada à história e às relaçõesinternacionais, Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno preencheram uma grandelacuna com o livro “História da Política Exterior do Brasil” e também se destacaramRicardo Seitenfus, Gerson Moura, Moniz Bandeira, Paulo Vizentini. Nos quadrosda chancelaria brasileira, Araújo Castro, Ronaldo Sardenberg, Celso Amorim,Rubens Ricupero, Gelson Fonseca Jr., Paulo Roberto de Almeida. Uma análiseque certamente escapa aos limites de uma resenha.

Nesta mesma parte, apresenta uma reflexão sobre as tendências analíticaspresentes no Brasil e no mundo, particularmente a respeito das diferençasencontradas na produção de historiadores e teóricos das relações internacionais.Acredita ser possível realizar a tarefa, citada por Celso Lafer em 1977, de se criaruma coordenação intra-institucional e interdisciplinar com o objetivo de elaboraruma espécie de “câmara de compensação informativa”, capaz de dar conta dosmúltiplos enfoques possíveis nas relações internacionais.

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O quinto capítulo apresenta uma cronologia das relações internacionais doBrasil, dos primórdios das descobertas (1415) à atualidade (1999).

Vale destacar ainda as tabelas e os quadros analíticos que percorrem todaa obra (no final de cada capítulo) e que constituem uma fonte segura e extensa, emtermos de referência, para os pesquisadores das relações internacionais do Brasil.Por exemplo, o capítulo 4 fornece uma relação exaustiva, na medida do possível,dos cursos de graduação e de pós-graduação em relações internacionais no Brasil,dos cursos de pós-graduação vinculados à temática das relações internacionais,das instituições voltadas para o ensino e a pesquisa em relações internacionais.Oferece, ainda, informações sobre as revistas brasileiras de relações internacionaise sobre a produção brasileira em relações internacionais de 1945 a 1999.

Neste momento em que o mundo atravessa, com os processos deglobalização e de formação de blocos regionais, as relações internacionais ganhamespaço junto aos organismos nacionais e internacionais, aos setores organizadosda sociedade e ao público em geral. E com o crescimento da oferta de cursos degraduação e pós-graduação em relações internacionais e em áreas correlatas nopaís, as responsabilidades dos pesquisadores da área de relações internacionaistambém se ampliam, no sentido de buscar respostas rápidas e apropriadas em ummundo em transformação. Ou, no dizer de Paulo Roberto de Almeida, ao comentara controvérsia entre historiadores e teóricos, “A questão está em saber se novos e‘velhos’ pesquisadores saberão superar as dicotomias muito facilmente construídasnas academias – liberalismo vs. intervencionismo, nacionalismo vs. internaciona-lismo, autonomia vs. dependência, ou ‘interdependência’ – para fazer umainterpretação mais elaborada das relações internacionais do País, colocando emjogo não apenas os modelos teóricos fornecidos pelos intelectuais de gabinete mas,sobretudo, os limites impostos pela realidade à ação dos estadistas e diplomatas nafrente externa.”

Carlos Eduardo Vidigal

SUKUP, Víktor. Europa y la globalización. Tendências, problemas, opiniones.Buenos Aires: Corregidor, 1998, 386 p.

A nova obra do austríaco que se fez latino-americano, nas expressões deAldo Ferrer no prólogo de Europa y la globalización, evidencia o ângulo dequem, há mais de dez anos, trocou a Áustria pelo Extremo Ocidente. A Europa érevisitada por meio de uma linguagem solta, sem as amarras do excesso de rigorda pesquisa documental do historiador das relações internacionais e com adesenvoltura da tradição ensaísta da América Latina. O europeu converte-se às

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hostes daqueles que buscam, por intermédio da vontade integradora da explicaçãoe do uso de uma certa sociologia das relações internacionais, uma maneira todaespecial de ver a Europa na passagem do milênio.

O norte da obra é o da relação da Europa com o fenômeno da globalização.Encontrará a Europa um lugar próprio na ordem global? Vem a Europa explorandoas oportunidades abertas pelas novas rotas produtivas e financeiras mundiais? Háriscos para a inserção competitiva na Europa, particularmente diante da hegemonianorte-americana neste final de século? São essas algumas perguntas essenciais,abordadas por Sukup com elegância e vontade de intervir no espaço das decisõespolíticas do seu tempo.

Dividida em três partes que apresentam, simultaneamente, relativaidentidade própria, a obra tem unidade e consistência. Na primeira parte, discute-se os passos múltiplos que foram dados, em diferentes tempos, para a construçãoda Europa integrada econômica e culturalmente. A formação da União Européia,seus avanços e percalços, é abordada de forma evolutiva, desde os antecedentesdos Tratados de Roma, passando pelas crises do “euro-pessimismo” dos anos1970 e 1980, até os desdobramentos recentes e polêmicos acerca da difícil armaçãoda união monetária. Valioso balanço dos diferentes momentos dessa verdadeirasaga européia está apresentado nas cem primeiras páginas do livro.

A segunda parte é mais investigativa. Aborda Sukup as relações da Europaocidental com sua porção oridental, especialmente com a União Soviética. A quedado muro de Berlim e a desintegração da União Européia impõem desafios aoprojeto da União Européia. A tensão entre o aprofundamento das regras societáriasdo clube europeu ocidental e, de outro lado, a vontade política de imaginar umprojeto mais abrangente, mais amplo geográfica e culturalmente, que abarque todaa Europa, é questão que inquieta o autor. Sukup não sucumbe à sedução da soluçãofácil. Provoca e sugere nova abordagem para as relações entre a União Européiae a OTAN nas futuras relações entre a Europa Ocidental e Oriental.

A terceira parte da obra pode ser de interesse maior para o estudiosolatino-americano dos assuntos europeus. As relações da Europa com o mundo sãoinvestigadas em quase cento e cinqüenta páginas cheias de dúvidas e perguntas.Os subtítulos do capítulo são curiosos. Perguntam mais do que afirmam. OMediterrâneo é apresentado por meio de sua dimensão nova, assemelhada à dovelho Muro de Berlim dos tempos da Guerra Fria, separando os europeus dos“novos bárbaros” que cruzam o Gibraltar para “tomar a Europa”. A dimensãoneocolonial da presença européia na África Negra é discutida na perspectiva doembate conceitual entre as noções de “ajuda” e “dominação”. As relações daEuropa com a Ásia são abordadas sob prisma particular: o autor afirma que asvelhas histórias do passado colonial foram substituídas pelo diálogo da competição.

Há dois temas finais de particular interesse ao leitor brasileiro e latino-americano. O primeiro são as idéias de Sukup relativas às possibilidades de uma

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nova associação da América Latina com a Europa. Às vésperas da Cimeira daEuropa, da América Latina e do Caribe, a matéria é angustiante. A América Latina,agarrada às novas formas de dependência em relação aos mercadores de WallStreet e aos gabinetes de Washington, necessita de um alento ou brecha que aEuropa pode vir a oferecer. Sukup defende a nova associação, sustenta que elatem lastro histórico e eficácia contemporânea. Insiste no fato de que os lados sãosócios naturais no comércio internacional, apesar da assimetria e das flutuaçõesdos fluxos. Apesar de falar de “perspectivas inciertas” da associação, Sukup, nofundo, ironiza a manchete do jornal norte-americano que reclamava da sonolêncianorte-americana diante da “invasão silenciosa” dos europeus no Mercosul. Este éo lugar mais preciso para se perceber a conversão latino-americana do autor.

Um segundo tema de grande relevância da obra escrita por Sukup é aquelerelativo aos desafios para o exercício do poder neste mundo marcado por uma“única política”, quase monótona, que se contenta em reproduzir, sem vontadeprópria, os desideratos dos vencedores da globalização. Em muito bem concebidasvinte páginas, o autor manifesta certo alento diante das vitórias eleitorais da“esquerda” (nas suas palavras) na Grã-Bretanha e na França, em 1997. Para ele,uma maneira nova de fazer política poderia estar emergindo. Será que Tony Blairestá à frente de uma alternativa à Europa liberal-conservadora? Poucosacreditariam, inclusive os ingleses, nessa idéia. Em todo caso, há aqui um aspectobastante criativo, e de grande atualidade, nas preocupações de Sukup. Quais sãoas possibilidade da política diante dos ventos liberais que tomaram conta do mundo,não apenas da Europa? A pergunta permanece. As respostas ainda são tímidas.

As razões expressas nessa resenha sugerem a leitura do livro de Sukup.Obra de síntese, introdutória, mas escrita com um estilo arrojado e próprio; o autorsoube localizar os problemas, as tendências e opiniões que ajudaram e continuama contribuir à construção do projeto europeu.

José Flávio Sombra Saraiva

GADDIS, John Lewis. We Now Know: Rethinking Cold War History. NewYork: Oxford University Press, 1997, 425 p.

O ano de 1989 é considerado o ano do fim da Guerra Fria, devido aocolapso do mundo socialista, simbolizado pela queda do muro de Berlim, seguidada dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1991. Continuaram,no entanto, os debates a respeito desse fenômeno político singular, que perduroupor mais de meio século. O colapso do comunismo está permitindo aos historiadoresdo ocidente ter acesso aos arquivos orientais pela primeira vez. O conceituado

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historiador e especialista em Guerra Fria, John Lewis Gaddis, procura dialogarcom essas fontes em sua mais recente obra: We Now Know. Ele procura unir umasólida bibliografia no campo à pesquisa em novas fontes. Sua proposta seria a deapresentar uma nova história da Guerra Fria.

Segundo Gaddis, nós saberíamos agora que os países democráticospensavam de forma mais realista do que a URSS e seus satélites. Stalin acreditavaque o mundo capitalista jamais conseguiria destruir a revolução russa. Mao iludiu-se em acreditar que a URSS estaria ao lado da recém-criada República Popularda China. Kruschev, ao instalar os mísseis em Cuba, acreditava estar assegurandoa disseminação do comunismo pela América Latina. Estas posições, mais próximasdo romantismo revolucionário do que de uma realpolitick, dificilmente seriamadotadas pelos regimes democráticos, dotados de maior capacidade deautocorreção. A URSS, seus satélites e a China, segundo Gaddis, seriamsemelhantes às monarquias absolutas. A partir da análise dos recém-abertos arquivos do ex-bloco comunista, Gaddispretende escrever uma nova história da Guerra Fria. Ele nos diz que a velha históriada Guerra Fria muitas vezes apresentava o conflito bipolar como um resquício doAntigo Regime europeu, um choque clássico entre duas potências. Essa velhahistória baseava-se em análises sobre a capacidade material e militar das potências,negligenciando a ideologia de ambas. Nós agora saberíamos que os acontecimentosde 1989-91 se relacionaram diretamente à desilusão com a organização política eeconômica derivada das idéias marxistas-leninistas. A história da Guerra Fria, paraGaddis, seria o embate entre o expansionismo marxista-russo e o democrático-ocidental.

Gaddis procura mostrar que as práticas democráticas americanas foramas grandes responsáveis pela contenção do expansionismo soviético. Ele se mostrahorrorizado frente ao sistema autoritário soviético, principalmente no período deStalin. O autor, no entanto, não demonstra a mesma indignação com respeito aosregimes autoritários, em particular na América Latina, e à série de golpes de Estadofinanciados e planejados pelos Estados Unidos. Ele faz uma distinção entreautoritarismo benigno e maligno (p.35). O regime de Somoza na Nicarágua e osmétodos autoritários do General Douglas MacArthur durante a ocupação do Japãoseriam benignos. No caso de MacArthur, suas práticas autoritárias levaram o Japãoà democracia. O autoritarismo maligno se assemelharia ao autoritarismo daAlemanha e da URSS. O termo autoritarismo geralmente é usado para descreveruma prática política ou uma defesa filosófica da subordinação pela força dos direitosdos indivíduos em proveito do Estado. Segundo Noberto Bobbio, “nesse contexto,a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos são reduzidos à expressãomínima e as instituições destinadas a representar a autoridade de baixo pra cimaou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas”. Sua distinção a respeito do

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autoritarismo se mostraria equivocada, pois um regime autoritário suprime os valoresindividuais, essenciais à prática democrática.

No capítulo referente ao que Gaddis denomina terceiro mundo, incluindo-se aí a América Latina, o autor passa rapidamente por alguns pontos importantessem maior aprofundamento, talvez para excluir-se de um debate em uma áreaonde as ações coercivas norte-americanas se fizeram mais presentes. A Guatemalaem 1954 sofreu um golpe de Estado articulado pelos EUA para destituir o PresidenteJacobo Arbenz, devido a uma pretensa contaminação comunista sofrida pelogoverno guatemalteco. Utilizando-se dos principais autores sobre a questão, PieroGleijeses, Richard Immerman e Stephen Schlesinger, Gaddis nos diz que as novasfontes não indicariam nenhuma forte relação da URSS com a Guatemala. Contudo,Gaddis não afirma, ao contrário dos autores que cita, que o governo da Guatemalatentou provar de todas as maneiras que não era um país dominado pelo comunismo;que os Estados Unidos atuaram na Décima Conferência da OEA com o únicointuito de condenar os países envolvidos pelo comunismo, de forma a prepararuma possível intervenção na Guatemala; e que, segundo Gleijesess, os militares seomitiram durante o golpe por medo de uma ação militar americana aparentementepossível, vinculada pela imprensa aos apelos de congressistas norte-americanos edo próprio embaixador americano na Guatemala.A afirmação de posições tão tradicionais nos leva a prestar mais atenção sobre ametodologia do trabalho de Gaddis. Sua proposta de trabalhar com os arquivosrecém-abertos não se realiza de modo satisfatório. Em seu prefácio, Gaddis nosexplica que não trabalhou diretamente com as novas fontes, mas com osdocumentos, em língua inglesa, publicados pelo Cold War International HistoryProject – CWIHP no Woodrow Wilson International Center for Scholars deWashington. A questão sobre a divisão ou não da Alemanha após a Segunda Guerraé um bom exemplo desse problema. Gaddis afirma que “its clear now that Stalinnever wanted a separate East German state” (p.127), o que não encontraressonância nos documentos recém-revelados, provenientes de Moscou e Berlim,divulgados, também, pelo mesmo CWIHP. Esses documentos revelam que Stalinparecia decidido a manter a questão em aberto. Além disso, na maioria das vezes,Gaddis sustenta seus argumentos principalmente através do uso de fontessecundárias. Sua metodologia não parece corresponder à proposta e ao título desua obra.Gaddis, ao invés de lançar novas propostas e categorias de análise, acaba porreforçar posições conservadoras. No campo historiográfico, ele parece continuarseu debate contra os chamados revisionistas, e ligar-se cada vez mais aostradicionalistas. John Lewis Gaddis, historiador renomado, parece ter feito umaarriscada e prematura análise das novas fontes. A maioria das fontes, provenientedas ex-repúblicas socialistas e da China ainda está sob a guarda do Estado,

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classificada como secreta ou confidencial. O que pretende ser uma obra conclusivaou aglutinadora de posições, parece estar fadada a provocar tantos questionamentose acalorados debates quanto seu objeto de estudo, a Guerra Fria.

Roberto Baptista Júnior

ENGEL, Ulf & SCHLEICHER, Hans-Georg (unter Mitarbeit von Inga-DorotheeRost). Die beiden deutschen Staaten in Afrika: Zwischen Konkurrenzund Koexistenz 1949-1990. Hamburgo: Institut für Afrika-Kunde, 1988,463p.

Este livro sobre as políticas africanas dos dois Estados alemães entre 1949e 1990 pode ser considerado, por duas razões, uma agradável conseqüência dareunificação da Alemanha. Em primeiro lugar, só a abertura dos arquivos da ex-RDA permitiu, pela primeira vez, pesquisar e entender profundamente a políticaexterior deste Estado. Os dois autores tiraram bastante proveito desta extraordináriaoportunidade. Em segundo lugar, a cooperação entre os dois autores simboliza aruptura política na Alemanha. Ulf Engel, cientista político de Hamburgo, cuja áreaprincipal de trabalho são as relações internacionais na África Austral, atuou nesteprojeto com Hans-Georg Schleicher, historiador, ex-diplomata de carreira da RDAe ex-embaixador deste Estado em Zimbábue que, juntamente com a grande maioriados seus colegas, foi demitido no processo da reunificação. A pesquisa ganhousignificativamente com esta cooperação “desigual”, e com a formação acadêmicae política e as biografias e experiências profissionais tão variadas e distintas dosdois colaboradores.

O livro não traz nenhuma dramática reinterpretação das políticas africanasdas duas Alemanhas, nem revelou nenhuma novidade sensacionalista que, em outrasocasiões, acompanharam tanto o processo de abertura dos arquivos da ex-RDA.Em vez disso, representa um trabalho sério e muito bem fundado em fontesprimárias e entrevistas sobre os aspectos centrais destas políticas, identificando osparadigmas, os interesses, os atores, os processos de decisão, os determinantes eo impacto. Entretanto, o que surpreende mesmo os especialistas da área, e o queaparece como um dos resultados centrais da obra, é como a concorrência entre osdois Estados influenciou suas políticas africanas. De 1959 até 1973, o fator quaseunicamente determinante nas políticas africanas das duas Alemanhas tinha poucoa ver com o continente africano. O continente e os novos Estados foraminstrumentalizados pela política da RFA que inibia o reconhecimento internacionalda RDA como Estado soberano, e da Alemanha Oriental que, por sua vez, escolheua África como palco preferido para minar este ostracismo internacional. Com a

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formulação da Doutrina de Hallstein, uma espécie de orientação básica nestavariante alemã da Guerra Fria, a RFA condicionou boas relações diplomáticas e,mais importante, a concessão de apoio financeiro e de cooperação técnica ao não-reconhecimento da RDA. Esta política não somente às vezes causou profundosconflitos com os jovens Estados africanos, mas fez também com que as duaspolíticas africanas dependessem uma da outra e não existissem independentemente.Os autores chamam isso de “interação negativa” entre as duas políticas eargumentam, que, nesta fase, a política africana dos dois Estado representa nadamenos do que uma extensão da política alemã (Deutschlandpolitik) no continentenegro.

Depois de 1973, ano quando a détente, a nova Ostpolitik e a admissãodos dois Estados alemães na ONU chegaram a relaxar as relações bilaterais, umanova fase nas políticas africanas se iniciou, mas a instrumentalização do continentepor objetivos de política global permaneceu importante. Até o início dos anos 80,foram os conflitos na África Austral e sua inserção no cenário da Guerra Fria queinfluenciaram bastante a atuação dos dois Estados no continente. Finalmente, apartir de 1982, até o fim da RDA em 1989/90, segundo os autores, já é visível umatendência de marginalização da África na política exterior, especialmente por parteda RDA, com o continente sendo, cada vez mais, identificado com crises políticas,econômicas e ecológicas. Na RDA, esta mudança se deu acompanhada por umespaço maior do Ministério de Cooperação Econômica na formulação da políticaafricana. Como conseqüência, a política africana se torna crescentemente umapolítica de cooperação técnica e financeira e de ajuda emergencial. Entretanto, apolítica junto à República Sul-Africana representa uma exceção: naquela regiãoainda domina a primazia da política e da economia.

Os autores abordam a política africana dos dois Estados alemães por trêsperspetivas. Na primeira parte do livro, é analisado o processo histórico da evoluçãodas políticas dos dois Estados, com as suas principais etapas, rupturas econtinuidades. Depois é exemplificado o caráter das políticas africanas com estudosde caso: a Doutrina de Hallstein e a política exterior junto a Tanzânia e Gana, aquestão da autonomia das políticas africanas frentes às exigências dos respectivosblocos, a política acerca da questão da descolonização da Namíbia e com a Konrad-Adenauer-Stiftung e o Ministerium für Staatssicherheit, dois instrumentos dapolítica exterior na África. Na terceira parte, aspectos mais fundamentais esistemáticos são abordados, mostrando as semelhanças e diferenças nas políticasdos dois Estados. Inicialmente, é argumentado, os interesses na África eram quaseidênticos e tinham como referencial absoluto a competição internacional entre osdois Estados. Além deste interesse prioritário, a RFA seguiu vários interessessecundários (como o interesse econômico junto a África do Sul e Nigéria) e,crescentemente, interesses de caráter de valor, que não têm vínculo direto com

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questões econômicas, estratégicas ou de poder. Para a RDA, a África tinhaimportância, além da dimensão do combate à Doutrina de Hallstein, em fornecerlegitimidade interna para o regime através da projeção internacional dos valoresrepresentados pelas elites deste Estado, e, parcialmente, durante os anos 70, comoparceiro econômico. Os atores e os instrumentos da política africana na RFAeram mais diversificados e pluralistas que na RDA, um resultado que não surpreendeninguém. O espaço político dos dois Estados na formulação e execução das suaspolítica africanas no contexto dos blocos políticos era, segundo os autores, maiordo que se tem geralmente pensado.

Finalmente, tiveram sucesso os dois Estados na realização dos seusobjetivos na África? Os autores atestam resultados ambivalentes. Na realizaçãodos seus interesses políticos, a RFA teve um certo sucesso inicial: conseguiu atrasaro reconhecimento diplomático da RDA. No plano da política de cooperação e darealização de interesses de valor, a política da RFA mostrou, segundo os autores,haver atingido êxito maior. Entretanto, a política africana da RFA sofreu em parte,especialmente acerca da questão do colonialismo na África Austral e do sistemado apartheid, de falta de credibilidade e de uma brecha entre declarações e prática.A política da RDA, que sempre tinha que agir com recursos muito limitados, celebrouos seus maiores sucessos e seu impacto mais profundo junto aos movimentos delibertação da África Austral e na área de segurança em alguns Estados com sistemapolítico monopartidário.

Além da abrangência dos temas tratados e da profundidade da pesquisa, olivro deixa ainda algumas lacunas que, em parte, os autores reconhecem. Sentiu-se a ausência de uma maior conceituação teórica da obra e, ao nosso ver, o processode formulação da política africana da RFA, especialmente o papel da opinião públicae dos grupos extraparlamentares (como as igrejas e os movimentos de solidariedade)merece uma investigação mais detalhada.

Wolfgang Döpcke

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217O BRASIL E O MUNDO NO LIMIAR DO NOVO SÉCULO: DIPLOMACIA E DESENVOLVIMENTO

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