Revista Alabastro ano 1, v. 1, n1, 2013

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Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

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A ALABASTRO – Revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, é uma publicação de cunho científico, com periodicidade semestral, organizada por estudantes de graduação em Ciências Sociais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Sua finalidade é estimular a produção e a veiculação de conhecimento e aproximar os pesquisadores de diferentes instituições universitárias ao cotidiano das Ciências Sociais por meio de artigos, resenhas, traduções científicas, análise de material audiovisual e produções poético-literárias, com temas vinculados às Ciências Humanas.

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Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

1Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Comissão EditorialCORPO EDITORIAL / EDITORS:

Prof. Dr. Rafael de Paula Aguiar Araújo: Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP (2009) e Coordenador de Curso da Escola de

Sociologia e Política de São Paulo ([email protected])

Rafael Balseiro Zin: Bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e

Política de São Paulo ([email protected])

EDITORES ASSISTENTES / ASSISTANT EDITORS:

Bruno Teixeira Martins: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de

Sociologia e Política de São Paulo ([email protected])

Evandro Finardi Sabóia: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de

Sociologia e Política de São Paulo ([email protected])

Caterina de Castro Rino: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de

Sociologia e Política de São Paulo ([email protected])

Luis Sérgio Brandino: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia

e Política de São Paulo ([email protected])

Thiago Duarte de Oliveira: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de

Sociologia e Política de São Paulo ([email protected])

DIAGRAMAÇÃO / DIAGRAMMING:

Alessandra Felix de Almeida ([email protected])

A Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo tem por escopo a publicação científica de artigos acadêmicos. Os artigos são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo necessariamente a opinião da Comissão Editorial acerca do conteúdo dos mesmos.

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution 3.0 .

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Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

ALABASTROrevista eletrônica dos alunosda Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Sumário

Nota dos Editores

Nota dos editores 4 - 5Rafael de Paula Aguiar Araújo Rafael Balseiro Zin

Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto

7 - 11

Ana Magali Busko Rafael Lacerda Soares

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

12 - 28

Fabiana Nancy da Silva AraújoThiago Duarte de Oliveira

Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto

29 - 41

Fernando Morgato de OliveiraYasmim Nóbrega de Alencar

A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor

42 - 51

Marcella de Campos CostaKleber Aparecido da Silva

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Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

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Artigos

Curadoria de Artes, Micropolíticas Culturais para a América Latina 52 - 64Nirlyn Karina Seijas Castillo

Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do Republicanismo Clássico

65 - 85

Thiago Henrique Desenzi

Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as confusões entre público e privado

86 - 98

Tathiana Senne Chicarino

Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e reflexão dos fenômenos sociais

99 - 111

Alessandra Felix de Almeida

Ensaio Poético

O artesão 112Renato Moro Giannico

4Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Nota dos editores

A ALABASTRO – Revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, é uma publicação de cunho científico, com periodicidade semestral, organizada por estudantes de graduação em Ciências Sociais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Sua finalidade é estimular a produção e a veiculação de conhecimento e aproximar os pesquisadores de diferentes instituições universitárias ao cotidiano das Ciências Sociais por meio de artigos, resenhas, traduções científicas, análise de material audiovisual e produções poético-literárias, com temas vinculados às Ciências Humanas.

Alabastro é um tipo de vaso feito de cerâmica e que foi muito utilizado na Antiguidade para armazenar ou queimar determinados conteúdos, entre eles óleo e perfume. A primeira menção conhecida a estes “frascos de essências” vem de Heródoto, geógrafo e historiador grego, e está registrada no capítulo XX, do livro III, da obra Histórias, que cita o alabastro como um dos presentes enviados por Cambises, antigo rei da Pérsia, ao rei da Etiópia. Passada a sua época, a palavra foi utilizada tanto entre os escritores gregos quanto entre romanos, difundindo-se por todo o Ocidente e alcançando os nossos tempos.

Pensando nestes termos, nasce a ALABASTRO. Assim como os vasos que eram utilizados na Antiguidade, esse periódico, pensado e elaborado por alunos de graduação, assume a forma de um frasco de essências. A Revista quer, portanto, organizar, armazenar e tornar pública a produção acadêmica de jovens pesquisadores, contribuindo, dessa maneira, para o enriquecimento e maior qualificação na formação intelectual dos alunos. Vale destacar que a criação desta Revista ocorre em momento oportuno, como parte das comemorações dos 80 anos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.

ALABASTROrevista eletrônica dos alunosda Escola de Sociologia e Política de São Paulo

, p. 4-5.

4 5Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Nesta primeira edição, os textos selecionados versam sobre assuntos diversos, mas sempre relacionados ao universo das Ciências Sociais. Para melhor disposição do material, este número está estruturado em três eixos. O primeiro deles traz um dossiê a respeito de um dos mais importantes escritores brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto, a partir de sua obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicada pela primeira vez em 1909. A segunda parte apresenta artigos que problematizam questões referentes à sociedade, ao Estado, aos saberes cotidianos, às artes e ao pensamento social brasileiro. Na terceira e última seção, trazemos a público um breve ensaio poético que enaltece o papel dos artesões, enquanto importantes agentes culturais da sociedade brasileira.

Fundamentada em um processo colaborativo, capaz de promover a troca de conhecimentos e interesses entre os estudantes de graduação e pós-graduação, a comunidade acadêmica em geral e demais interessados, a comissão editorial da ALABASTRO oferece ao público leitor os trabalhos que compõem esta primeira edição da Revista. Esperamos que nossos leitores apreciem esta iniciativa e compartilhem esse novo espaço de trocas, contribuindo com as futuras edições. A ALABASTRO, como frasco de essências, quer armazenar conhecimento, mas, da mesma forma que é preciso abrir o frasco para que o perfume seja apreciado e se espalhe, queremos que os saberes aqui reunidos se multipliquem através dos leitores. Esperamos que gostem...

Boa leitura!Rafael de Paula Aguiar Araújo

Rafael Balseiro Zin

, p. 4-5.

Nota dos editores

7Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Ana Magali Busko Rafael Lacerda Soares

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.

Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de

Sociologia e Política de São Paulo

Resumo

Esse trabalho tem por objetivo analisar a obra de Lima Barreto Recordações do escrivão Isaías Caminha, de acordo com o ponto de vista político e social, visando uma historicidade que remonta à época do Rio de Janeiro no início do século XX. O conteúdo a seguir é enriquecido com as observações do historiador e professor José Murilo de Carvalho e sua obra Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi, escrito em 1987, em que demonstra o processo de formação do republicanismo em face da capital brasileira e discursa sobre a participação do povo carioca no processo democrático. Foi identificado através das leituras que o livro de Lima Barreto torna-se campo fértil para uma discussão sobre os aspectos da mudança política da época. No discurso de todo o enredo, Lima Barreto pontilha cada grupo e os sofrimentos destes, como no caso de seu contato com a Igreja Positivista (um dos pensamentos que mais influenciaram o

Palavras -Chave

Pensamento político brasileiro. Século XX. Lima Barreto. José Murilo de Carvalho.

Brasil) através de um amigo ou quando vai preso e é enquadrado como marginal, passando pela influente imprensa carioca e até observando as mudanças estruturais da cidade maravilhosa. Em suma, o ponto de partida deste trabalho são duas obras de extremo valor para uma boa compreensão sobre o início do século XX no Rio de Janeiro.

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Dossiê Lima Barreto

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Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909, Lima Barreto conduz o leitor a um passeio pelo Rio de Janeiro no início do século XX, em pleno estabelecimento da República e apresenta os relatos de uma cidade que foi palco de uma transformação política radical que deu rumos ao Brasil contemporâneo. Na obra, Lima Barreto pincela os aspectos sociais, políticos e ideológicos de uma população que ainda estava agitada pela decorrência do golpe que culminou em um novo sistema. O autor encontra-se em face de uma das maiores agitações políticas do cenário brasileiro e, nesse sentido, o povo do Rio de Janeiro assistia a metamorfose desse cenário esperançada.

Segundo o historiador José Murilo (1987) esse era o momento de trazer o povo para o proscênio da atividade política, o momento de o povo se engajar politicamente, afinal era o início de uma república em terras antes monárquicas. Apesar de o pensamento proposto pelos propagandistas da república de que os cidadãos participassem das decisões do Estado, o grosso da população brasileira, nessa época, presenciava todas as transformações aquém do poder. José Murilo em seu livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi, diz que, “embora proclamado sem a iniciativa popular, o novo regime despertaria entre os excluídos do sistema anterior certo entusiasmo quanto às novas possibilidades de participação” (CARVALHO, 1987. p.12).

De fato, este período da história brasileira foi de total conturbação. Nesta época o povo sofria com a falta de um sistema eficiente de saneamento básico e isto desencadeava frequentes epidemias, entre elas, a febre amarela, peste bubônica e varíola. A população carente, de moradias precárias, era a principal vítima destas epidemias. Ao analisar as condições sociais dessa época vê-se claramente que a instabilidade predominava. Já ao final do século XIX, o Rio de Janeiro passa por um crescimento

demográfico desenfreado, com um contingente populacional quase que dobrando entre 1872 e 1890, passando de 274 mil habitantes para 522 mil habitantes. Um dos motivos foi a abolição da escravatura, que nos anos anteriores impulsionou um contingente de trabalhadores que buscaram na capital da república um posto de trabalho. O outro fator foi a vinda de muitos estrangeiros oriundos da Europa para tentar uma vida no Brasil, como foi o caso do jornalista Ivã Gragoróvitch Rostolóff, citado por Isaías Caminha no decorrer da narrativa.

Nesse ínterim, cresceu o número de pessoas buscando emprego, consequentemente, de desempregados. A economia enfrentou índices inflacionários absurdos, por causa da especulação desenfreada em vários níveis, especialmente terrível para as classes populares.

A concepção de um povo “bestializado” surge quando, após a conquista da República, por falta de uma organização política pela sociedade, o poder é dado às pessoas envolvidas com o liberalismo imperial. O termo “bestializados” surge com a Constituição de 1891. O Estado não tinha a obrigação em fornecer educação ao povo e o direito de voto só ser dado àqueles não analfabetos, a grande maioria da população tornou-se excluída da participação na comunidade política. Como foi a primeira vez que o povo viu um modelo de república, houve um descontentamento generalizado, inclusive desejando o retorno da monarquia, devido à simpatia a D. Pedro II e a princesa Isabel. Desse modo, a falta de participação do povo no processo de consolidação da República, fez com que estudiosos chamassem o povo de “bestializado”. E assim são tratados até a Revolta da Vacina, em 1904 em que eclodiu um sentimento tão esperado pela defesa da honra e de seus direitos.

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares

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Dossiê Lima Barreto

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Portanto, durante a leitura do romance de Lima Barreto vê-se um jovem, Isaías Caminha, com muitos sonhos e desejos de ser reconhecido como “Um grande homem”. Queria ir para o Rio de Janeiro, obter o reconhecimento de todos em sua volta, da família e dos amigos como “Doutor”. Para ele, era um título mágico, tinha poderes e alcances múltiplos. Estudar na capital era querer ter as regalias e prestígios que somente um diploma pode fornecer. Entretanto, diante do contexto histórico e político seu desencantamento vem sem demora.

Entre os esforços de Isaías Caminha na procura por um emprego, na tentativa de provar sua identidade, é possível refletir a respeito da hipocrisia da sociedade vigente a época, sobre a importância de um diploma para sobreviver naquele período, sobre a miséria ser um empecilho para o sucesso.

Carvalho (1987) faz abordagem sobre a participação das camadas inferiores da sociedade, onde se encontrava o desiludido Isaías Caminha, durante o período da Proclamação da República. Segundo o autor, a economia enfrentou índices inflacionários absurdos, por causa da especulação desenfreada em vários níveis, que foi em especial, terrível para as classes populares. É no meio daquele fervilhar de ambições pequenas, de intrigas, de hipocrisia, de ignorância, que Isaías Caminha via todas as coisas majestosas, todas as coisas que ele amara, sendo diminuídas ou desmoralizadas. Conforme enfatiza Isaías Caminha em uma passagem:

Queria-me um homem do mundo, sabendo jogar, vestir-se, beber, falar às mulheres; mas as sombras e as nuvens começavam a invadir-me a alma, apesar daquela vida brilhante. Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo; sentia também que não

A título de ilustração, há na obra de Lima Barreto a seguinte passagem:

Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação quase não havia. Na Rua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondiam (...). Da sacada do jornal, eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno-burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância. (BARRETO, 2011, p.265)

Isaías Caminha, o protagonista da história, mostra as dificuldades de arrumar emprego e a certo ponto na narrativa é confundido com um ladrão e levado pelo dono do hotel onde residia à cadeia. Pelo fato de a cidade do Rio de Janeiro dessas décadas estar povoada por ladrões, prostitutas, ciganos trapaceiros e gatunos, ele foi obrigado a receber tal tratamento. E recebeu, não somente pelo fato de ser negro, mas também por fatores sociais que o deixaram a míngua pela cidade. Nesse sentido sofre com o desencantamento da cidade e com o preconceito constante. Segundo José Murilo, uma das consequências dessa desordem sociopolítica foi:

O acúmulo de pessoas em ocupações mal remuneradas ou sem ocupação fixa. Domésticos, jornaleiros, trabalhadores em ocupações mal definidas chegavam a mais de 100 mil pessoas em 1890 e mais de 200 mil em 1906 e viviam nas tênues fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, às vezes participando simultaneamente de ambas. (CARVALHO, 1987, p.17).

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares

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Dossiê Lima Barreto

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do jornal O Globo no palco político, e de fato as folhas cariocas foram de suma importância para o processo democrático. Foram fundados diários das mais variadas vertentes de pensamento para essa expressão. Jornais como o Não Matarás e o Baluarte representavam a Federação Operária do Rio; os anarquistas tinham os jornais: O Despertar, O Protesto, O Golpe, A greve entre outros. Os socialistas tinham o Echo Popular e muitos outros setores das massas procuravam seu lugar ao sol na política brasileira. Além disso, o personagem de Isaías Caminha conta no decorrer do enredo que parte desses jornais já estava corrompida pelos próprios donos do poder e ao analisar a história de muitos jornais cariocas nota-se que não sobreviviam por muitos anos.

É dentro desse contexto conturbado da historiografia nacional que Lima Barreto olha a sociedade carioca usando como janela o cotidiano do jornal O Globo que se mistura à sua vida privada. Ele fez de Isaías Caminha o protagonista, e assim aguça a intelectualidade do leitor na tentativa de fazê-lo entender o que foi narrado e sobre os fatos sociais decorridos. Será porque havia uma particularidade no fundo desta narrativa tão rica que explica todo o tema do livro? Pode-se dizer que sim, as relações entre os personagens são por si somente um elemento relevante no romance. E também o são as descrições geográficas, pois neste passeio sensorial pelo Rio de Janeiro do início do século XX criam-se as memórias afetivas, construindo uma moldura para todas as narrativas do enredo, no feixe de ligação entre os personagens, nas suas afinidades, nos seus olhares, nos seus desafetos e rancores, nos seus destinos.

me parecia com nenhum outro, que não era capaz de me soldar a nenhum e que, desajeitado para me adaptar, era incapaz de tomar posição, importância e nome. (BARRETO, 2011, p.295).

Conforme citação de Carvalho (1987): “A República que não era cidade, não tinha cidadão”. Além disso, diz o pesquisador, “O povo não se enquadrava nos padrões europeus”. Por essa razão, impossibilitada de ser “A República”, a cidade mantinha suas repúblicas particulares, ou seja, seus núcleos de participação social, nos bairros nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e nas rodas de capoeira, que se transformaram, ao longo dos anos, em estruturas comunitárias que não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante na política. A despeito disso, pode-se dizer que foi a evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, que se não perseguidas formou-se a identidade coletiva da cidade.

Foram nelas que se aproximaram povo e classe média, foram nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar a Europa. Foram o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem. Negros livres, ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média encontraram nessa resistência o reconhecimento que lhes era negado pela sociedade e pela política, que os marginalizava, restringindo o seu forte apelo cultural.

Durante todo esse período a voz das organizações era a imprensa, pois procuravam visibilidade dentro do cenário político carioca. Lima Barreto deixa saliente em sua história o papel

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Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares

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BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

HOUAISS, Antonio. Mini Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva/Moderna, 2008.

Referências Bibliográficas:

, p. 7-11.

Dossiê Lima Barreto

O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares

12Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Fabiana Nancy da Silva AraújoThiago Duarte de Oliveira

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

Resumo

O anarquismo, visto com maus olhos pelo senso comum devida sua fama equivocada de desordem e bagunça, é um pensamento político, social e econômico que contribuiu para a formação da sociedade atual, defendendo em seu cerne os interesses dos proletários, das mulheres, do meio ambiente e de todas as vítimas dos processos de industrialização e das relações de poder, a partir do final do século XIX. As obras do brasileiro Lima Barreto, autor à frente de seu tempo, são marcadas, entre outras coisas, pelo pensamento libertário e de inconformidade com o estado moral e social da época, anteriores à consolidação do pensamento anarquista brasileiro (a partir dos anos 30 do século XX). Começaremos esse trabalho pela tessitura e conceituação dos termos anarquia e anarquismo, explorando suas vertentes e difusão pelo Brasil a partir da abolição da escravatura e formação da classe operária. Posteriormente uma abordagem sobre a vida e obra de Lima Barreto e, em seguida, buscando identificar a presença de insigths anarquistas na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Palavras -Chave

Anarquismo, Lima Barreto, Literatura brasileira.

Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de

Sociologia e Política de São Paulo

, p. 12-28.

Dossiê Lima Barreto

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Nasce o anarquismo e o movimento anarquista: poder para quê?

Contra toda forma de autoridade, totalitarismo, absolutismos, hierarquizações e sistemas que oprimem a liberdade individual, no sentido mais geral e salvo do conceito popular do senso comum, está presente o anarquismo. Woodcock (2002, p. 7) introduz o livro citando uma frase de Sebastien Faure (famoso ativista libertário): “Todo aquele que contesta a autoridade e luta contra ela é um anarquista”. Podemos, segundo ele, considerar o fio condutor de toda história e surgimento do anarquismo essa questão de luta contra a autoridade e que é a doutrina que propõe uma crítica, de certa forma destrutiva para se tornar construtiva, ao estado da sociedade vigente, de forma que o anarquismo como um sistema de filosofia social, visando promover mudanças básicas na estrutura da sociedade e, principalmente – pois esse é o elemento comum a todas as formas de anarquismo – a substituição do estado autoritário por alguma forma de cooperação não governamental entre indivíduos livres (WOODCOCK, 2002, p. 11).

Segundo Costa (1980, p. 11), “os anarquistas, (…), têm em mira apenas o indivíduo, sem representantes, sem delegações, produtor, naturalmente em sociedade. Positivamente, eles preconizam uma nova sociedade e indicam alguns meios para isto”. O anarquismo, segundo a definição que Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 23) é uma

sociedade, livre de todo domínio político autoritário, na qual o homem se afirmaria apenas através da própria ação exercida livremente num contexto sócio-político em que todos deverão ser livres. Anarquismo significou, portanto, a libertação de todo poder superior, fosse ele de ordem ideológica (religião, doutrinas,

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías CaminhaFabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira

políticas, etc.), fosse de ordem política (estrutura administrativa hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos meios de produção), de ordem social (integração em uma classe ou num grupo determinado), ou até em ordem jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso geral para a liberdade [de onde vem o termo libertarismo].

Começamos este trabalho com a intensão primeira de desconstruir o conceito do senso comum do anarquismo como estado de bagunça, de caos instalado, da natureza humana malévola em si, do terrorismo e de ser o promotor da desordem. Este conceito popular tem uma razão histórica de ser, mas o conceito usado nesse trabalho é, conforme citado por Woodcock (2002, p. 8) “[o anarquista] como um homem que acredita ser preciso que o governo morra para que a liberdade possa viver”. É importante ressaltar que essa diferença causa uma confusão semântica e conceitual das teorias anarquistas com o uso popular do termo; mesmo porque, no surgimento dos termos ‘anarquia’ e ‘anarquismo’ que apareceram na Revolução Francesa de 1789 nos escárnios dos girondinos, principalmente Brissot, e posteriormente mais fortemente pelo Diretório, contra os jacobinos, liderados por Robespierre, acusados de serem detentores da desordem, criminosos hediondos, inimigos das leis, engordados de sangue, entre outros escárnios acusatórios.

Posteriormente, pensadores e militantes aguerridos contra o autoritarismo imposto adotaram o nome anarquia, primeiramente o individualista e violento Pierre-Joseph Proudhon, em 1840. Proudhon, inclusive, é o autor da célebre frase “A propriedade é um roubo”, contida em seu livro O que é a propriedade?, (PROUDHON apud WOODCOCK, 2002, p. 10)

É importante ressaltar que nem todos

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Dossiê Lima Barreto

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os grandes nomes anarquistas, como, por exemplo, Godwin, Stiner e Tolstói, este último sendo considerado pela crítica mundial um dos maiores escritores anarquista de acordo com Bezerra (2010), se utilizaram do termo em suas informações ante as relações de poder impostas criando, para isso, sistemas antigovernamentais. Mas, pela conceituação que estamos abordando aqui, esses nomes podem ser considerados como anarquistas por estarem alinhados no sentido de irem de encontro ao sistema social vigente e propondo novas formas de organização social e, também, política.

O que Proudhon deseja construir, conforme descrito por Woodcock (2002), é uma sociedade reunida em grandes federações de comunas e cooperativas operárias, tendo como base econômica onde indivíduos e pequenos grupos disponham de seus próprios meios de produção e ligados por contratos e permuta de créditos mútuos que asseguraria a todos o produto de seu próprio trabalho.

Desse ideal imaginado por Proudhon, surgem correntes de pensamento anarquistas que se diferenciam principalmente pela forma de organização econômica e pelo modo de militância, violenta ou não. Essa vertente de Proudhon, posteriormente adotada por Kropotkin, pode ser chamada de “mutualismo” e “coletivismo” respectivamente, tendo como base a ideia das comunas e cooperativas e a ênfase na ideia da propriedade em mãos de instituições voluntária que assegurariam aos trabalhadores o produto integral de seus trabalhos.

Surgira também o anarco-comunismo e, posteriormente, o anarcossindicalismo, duas correntes, por assim dizer, mais focada na situação da classe proletária da época, tendo como principal diferença a forma de manifestação ou

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías CaminhaFabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira

métodos revolucionários: esta última se utilizava da não violência e das greves como protesto. No anarco-comunismo seriam abolidos toda forma de propriedade privada e Estado e os trabalhadores tomariam o poder e se utilizariam da democracia direta para todas as decisões políticas. Os anarcossindicalistas acreditavam que a via da atuação nos sindicatos seria uma ferramenta para alterar a sociedade, mudando o capitalismo instalado e o Estado e fundando democraticamente uma nova sociedade, esta autogerida pelos próprios trabalhadores.

Há também o anarquismo individualista, onde pensadores e atuantes dessa vertente não acreditam na integridade de nenhuma forma de associação, mesmo cooperativista, exaltando o caráter individual; além dos anarco-pacifistas, representado ilustremente por Tolstói, e que, inclusive, influenciou as ideias de Gandhi, cogitavam a não-resistência. Para eles, sendo contrários a qualquer forma de poder, e acreditando ser a violência também uma forma de poder, eram avessos a tais manifestações.

Podemos constatar um perfil próximo ao positivismo em alguns ideais anarquistas, no sentido, conforme citado por Woodcock (2002), de entenderem que existe um progresso no desenvolvimento das sociedades proporcionado, entre outras coisas, pelos avanços científicos e pela questão das sociedades se firmarem quase que naturalmente, conforme descrito por Proudhon apud Woodcock (2002, p. 23) em que as sociedades se desenvolvem “estimuladas pelo progresso das ciências, por novos inventos e pela evolução ininterrupta das ideias cada vez mais elevadas”, onde tais homens não são governados por outros homens, mas em contínua evolução – tal como notado na Natureza. Porém, é com cuidado que nos arriscamos a considerar o anarquismo como

, p. 12-28.

Dossiê Lima Barreto

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uma vertente progressista, pois, não define tão claramente tal progresso e não define com exatidão um devir. Woodcock (2002, p. 25) menciona que:

a maioria dos homens de esquerda do século XIX falavam em progresso. Godwin sonhava com homens que se desenvolveriam indefinidamente, Kropotkin procurava diligentemente estabelecer ligações entre o anarquismo e a evolução e Proudhon chegou a escrever uma Philosophie du Progrés [Filosofia do Progresso].

Já os que se consideravam marxistas, utilizando um anacronismo neste termo, negavam a existência da evolução nos ideais anarquistas, pois, segundo eles, estes ‘flutuavam no ar’ sem nenhuma definição legítima ou concreta dos ideais anarquistas em relação à história.

Tais correntes anarquistas foram se espalhando por todo mundo, inclusive para o Brasil, onde se firmou mais claramente a partir das décadas de 30 do século XX, embora anteriormente a esse período já se mostrasse claramente presente na literatura e mídias da época, muitas censuradas pela polícia e pelo governo, mas que contribuíram enormemente para a difusão dos ideais anarquistas.

O anarquismo no Brasil: contra as forças produtivas hierarquizadas e a exploração do trabalhador brasileiro

“O anarquismo brasileiro, em sua origem não era força hegemônica no movimento operário, como era uma força política poderosa e que estava presente nas lutas operárias de forma intensiva” (DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 23). O pensamento anarquista no Brasil inicia-se junto à formação da classe operária, dada a partir da abolição da escravatura. Surge então o trabalho assalariado que desenvolve lentamente, porém

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ganhando impulso somente com a imigração. Sendo assim, o proletariado brasileiro é formado não somente por artesões e camponeses, como ocorrera na Europa na transição do feudalismo para o capitalismo, mas, sim, por indivíduos predominantemente estrangeiros.

O processo de industrialização no Brasil foi lento e concentrou-se quase que na sua totalidade na região sul do país. Há um aceleramento da industrialização a partir de 1880 provocando assim uma maior demanda por força de trabalho. A partir daí, a imigração cresce ainda mais.

A partir de 1890 em São Paulo e Rio de Janeiro a classe operária no Brasil já era formada em sua maioria por imigrantes. Tal como ocorrido na Europa, a industrialização foi sustentada a partir da exploração da mão de obra, assim “o proletariado nascente é vítima de uma exploração intensiva, com condições de vida e trabalho precárias, jornadas de trabalho extensas e uso da forca de trabalho feminina precoce com salários baixos”. (DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 27)

Os trabalhadores vivam em condições insalubres, tanto dentro como fora das fábricas, as violências praticadas dentro da fabrica contra mulheres e menores eram constantemente relatadas na imprensa operária. Não havia nenhuma representatividade da classe operária na política institucional, sendo esta vigiada e controlada pelo Estado. As associações tornaram-se cada vez mais urgentes, surgindo às ideias sindicalistas, socialistas e principalmente anarquistas brasileiros.

Segundo Deminicis e Filho (2006), grande parte dos imigrantes europeus que vieram pra região de São Paulo e Rio de Janeiro eram italianos, o que explica a hegemonia anarquista no movimento operário brasileiro, devido ao fato de que o movimento operário italiano era marcado

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fortemente pelo anarquismo.

O anarquismo cumpriu um papel importante na consolidação dos pensamentos sindicalistas no Brasil, tanto a partir da divulgação de suas ideias tanto por passar conhecimento referente às conexões das lutas do passado com as lutas do presente na Europa.

O anarquismo no Brasil não se limitou aos sindicatos, manifestações e ações grevistas. Em meados de 1890 a partir da doação de terras feitas por Dom Pedro II é fundada a Colônia Cecília, tentativa de anarquistas de fundar uma comunidade ‘desierarquizada’ onde os meios de produção fossem de todos para todos, e as ações, debatidas entre todos e realizadas sempre de comum acordo.

Tudo se resolvia em assembleias abertas, gerais, com a participação dos habitantes da comunidade (...). Não havia donos, superioridades culturais e profissionais nem figuras inferiores dentro da colônia (...). Cada membro da comunidade, adaptado a nova forma de trabalho, lutava lado a lado com seus companheiros, durante o dia de enxada na mão, e, à noite, trocavam ideias, debatiam interesses coletivos, sem esquecer o anarquismo, desafiado a viver na prática. Um homem, ali, valia um homem! (RODRIGUES, 1984 apud DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 35)

Os obstáculos encontrados pelos moradores da Colônia Cecília como: as individualidades relacionadas aos valores burgueses e as intempéries naturais que prejudicavam a produção agrícola, não foram suficientes para acabar com a colônia, porém outros fatores externos contribuíram para seu desfecho. Com o fim do império de Dom Pedro II os republicanos passaram a atacar a colônia, cobrando altos impostos e obrigando os colonos a trabalharem cada vez mais, inclusive em fazendas

e comunidades vizinhas. O sonho anarquista e sua magnífica experiência tiveram então seu fim – sob o pretexto de procurar um criminoso refugiado, destruíram a colônia.

No final do século XIX as associações e movimentos anarquistas cresciam cada vez mais, eles se associavam através de centros de estudos, centros culturais, escolas para alfabetização, grupos por afinidades, etc. Muitas associações se ramificaram: surgiram as associações dos sapateiros, vidraceiros, tecelões, assim o anarquismo passou a ser “a ideia mestra da luta de classes”. (RODRIGUES, 1984 apud DEMINICIUS e FILHO, 2006)

Neste período surgem os principais jornais e periódicos anarquistas. O anarcossindicalismo no Brasil desenvolve-se e em 1906 é realizado o primeiro Congresso Operário Brasileiro. Deste congresso resultou na COB (Confederação Operária Brasileira) que colocava como seus objetivos a defesa dos interesses dos trabalhadores, o estudo e a divulgação dos meios de participação, e a produção de um jornal intitulado A voz do trabalhador com o intuito de reunir publicações e informações acerca das questões operárias e denunciar as condições de trabalho em todo o país, neste jornal sob o pseudônimo de Isaias Caminha, Lima Barreto era um dos colaboradores (NASCIMENTO, 2010).

Os movimentos grevistas, tendo os anarquistas como os principais idealizadores, foram se desenvolvendo e em 1917 ocorre uma greve geral envolvendo milhares de operários. De longa duração, a greve é marcada por diversos conflitos, confrontos com policiais e mortes. As greves foram difundidas por todo o país, sendo que no Rio de Janeiros cerca de cinquenta mil trabalhadores cruzaram os braços.

A greve geral é, sem nenhuma dúvida, uma

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arma poderosa nas mãos do proletariado; ela é ou pode ser um modo e a ocasião de desencadear uma revolução social radical. Entretanto, eu me pergunto se a ideia da greve geral não fez mais mal do que bem à causa da revolução. (MALATESTA, 1989, p. 107)

Os movimentos operários foram cada vez mais se burocratizando, o Estado antes indiferente às causas operárias passou a interferir através de legislações reguladoras. A partir de 1919 os partidos políticos também passam a interferir, burocratizando ainda mais as associações e os sindicatos. O processo capitalista no Brasil e o aprofundamento das instituições estatais, também contribuíram significativamente para o enfraquecimento dos ideais anarquistas.

Lima Barreto: vida e obra

Nasceu em 13 de Maio de 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto, neto de uma negra escrava liberta e de um português que nunca reconheceu seu pai, sua mãe também era mulata. Lima nasceu sobre um “signo ruim”, numa sexta-feira 13 no dia de Nossa Senhora dos Martírios, assim, continua BASTOS (2010) “o martírio de Lima parece advir mais da época e local de nascimento (a retrógada sociedade brasileira de fins do século 19) que da data supostamente agourenta em que por acaso se deu”.

O pai de Lima era tipógrafo e sua mãe professora primaria, seu pai não media esforços para sustentar os filhos trabalhando dia e noite, era muito preocupado com a educação formal, já que não conseguiu realizar seu sonho de ser medico devido à necessidade de trabalhar para custear os gastos com a família, se esforçava para que seus filhos, em especial seu primogênito Affonso, se tornasse doutor e não passasse por todas as humilhações e privações as quais passou.

Dona Amália, mãe de Lima Barreto morreu quando ele tinha apenas sete anos, vitima de tuberculose. “A morte de Amália há de descer como uma sombra no coração do filho mais velho. Sombra que nunca mais se dissipará”. (BARBOSA, 2002, p. 50)

Lima guardou pra sempre a imagem da mãe morta, boa parte de sua revolta, violência e descrença no mundo virá da imensa tristeza que sempre o assombrará a partir desse triste episodio de sua vida. Talvez pela vida dura sem os carinhos de sua mãe e pelo peso de ser o irmão mais velho, Lima Barreto sempre “reagira com extremada violência, antes as injustiças do mundo e as incompreensões das pessoas quo o cercam, com violência às vezes desmedida e inconsequente”. (BARBOSA, 2002, p. 61)

Após a morte de sua mãe vai para escola pública, sendo sempre um aluno aplicado. Em 13 de Maio de 1888, dia do seu aniversario de sete anos ocorreu a abolição da escravatura, fato esse que passou despercebido, pois conforme Barbosa (2002), sendo um morador do Rio de Janeiro onde os escravos já rareavam, Lima Barreto nunca conheceu um escravo e desta forma não imaginava ser a escravidão uma “instituição vexatória” de “aspectos hediondos”. Sempre bom aluno e contando com o incentivo do seu pai, Lima conquistou boas notas na escola unindo seu desejo de estudar e o sonho do pai de vê-lo na Escola Politécnica.

Enfim em março de 1897, Affonso Henriques Lima Barreto era estudante da Escola Politécnica. Porém, era incapaz de se interessar por assuntos que não gostava e cada vez mais, foi mostrando que o fato de estudar na Escola Politécnica dava-se mais pelo desejo de seu pai do que por sua vontade, ele era um amante da filosofia e não conseguia ocupar sua cabeça com teoremas e

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conjugados, desta forma, e além das perseguições sofridas por um dos professores e a loucura de seu pai que o levou a se ver obrigado a assumir a função de arrimo de família, não tardou para que reprovasse em diversas matérias de exatas e fosse obrigado a abandonar a Politécnica. Em 1903 após prestar concurso público foi nomeado a um cargo na Secretaria da Guerra.

Desde a época da Politécnica, Lima Barreto já demonstrava sua inclinação aos pensamentos libertários e progressistas, havia sido colaborador de um periódico chamado A Lanterna que se intitulava de “órgão oficioso da mocidade de nossas escolas superiores” (BARBOSA, 2002, p. 106), ali neste jornal já despejava sua revolta contra as instituições, contra os professores e contra seus colegas, dos quais, praticavam comportamentos preconceituosos em relação a ele.

Como já dito anteriormente, por volta de 1900 através dos imigrantes italianos, chega ao país os ideais anarquistas, que contribuíram para o inicio de publicações tanto de romances quanto de contos com conteúdo social (BARBOSA, 2002).

Lima Barreto revelou simpatia pelo anarquismo em vários dos seus artigos, crônicas, romances e ensaios. Em Palavras de um snob anarquista, publicado em 1913, em A Voz do trabalhador, tenta mostrar plausibilidade dessa teoria política, no contexto social brasileiro, contrário aos grandes jornais, que a consideravam um movimento alienígena, sem raízes na ‘cultura brasileira’. Entre os vários títulos encontrados na biblioteca do autor, destacam-se as obras de Hamon, Ethz Bacher, Max Nordou, Malatesta, Elisée Reclus e, principalmente, Kropotkin. Suas fontes documentais dão conta da afinidade de Lima Barreto com o pensamento anarquista, através da utilização marcante das chamadas linguagens negadoras: paródia, ironia, sátira, etc. (DEMINICIS e FILHO, 2006 p. 147)

Lima chega a fundar uma revista Floreal a qual , permitia liberar ainda mais seus desejos de ser escritor/jornalista, nesta revista chegou a publicar dois capítulos do futuro livro Recordações do escrivão Isaías Caminha. Porém a revista não passa da quarta edição e tomado por sentimento de tristeza e depressão, passa a buscar na bebida alivio para seus tormentos.

Consegue publicar sua primeira obra literária Recordações... em Portugal devido a não ter localizado no Brasil quem a quisesse publicar, a partir daí, dado o conteúdo pessoal do livro e suas referências a figuras importantes da cena jornalista da época, seu caráter denunciante e desmoralizante acerca dos acontecimentos e pessoas, Lima já discriminado pela sua condição de mulato e pobre, passa a ser também um autor não quisto.

Além de Recordações... Lima escreveu simultaneamente Morte de M.J. Gonzaga de Sá e logo adiante sua mais famosa obra O triste fim de Policarpo Quaresma, segundo o documentário da TV Escola Lima Barreto – Vida e obra, só a partir de seus escritos é que a figura do pobre e do suburbano passa a existir no espaço elegante e nobre da literatura. Nas suas obras ele retrata temas como, preconceito, discriminação das mulheres, ecologia, desfiguração da paisagem, mostrando-se um escritor à frente do seu tempo, de modo que nos dias atuais podemos verificar facilmente a atualidade de suas obras.

Em 1911 seus três principais livros já estão publicados, os problemas com a bebida aumentam e assim pode-se traçar o começo de um declínio na sua produção literária.

A falta de estimulo e a hostilidade do ambiente, aliados ao forte complexo e a uma serie de outros fatores, dos quais não deve ser esquecido o da tragédia doméstica, transformaria o adolescente cheio de sonhos num pobre homem, viciado no álcool, que lhe consome

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não somente a saúde, como em grande parte lhe sacrifica a carreira de escritor. (BARBOSA, 2002, p. 223)

O uso exagerado da bebida matou Lima lentamente, passava dias nas ruas, não se alimentava, não tardou a começar a apresentar sinais físicos de seus abusos. (BARBOSA, 2002). Em 1914 ocorre sua primeira internação num hospício por causa de alucinações derivadas do excesso de bebidas.

Por volta de 1917 passa a contribuir mais ainda com o movimento anarquista, seus pensamentos libertários se expandiam, saiam cada vez mais da obra literária e “embora sem participar da ação direta, dá ao movimento, que cresce a olhos vistos, o melhor do seu esforço de escritor e jornalista” (BARBOSA, 2002, p. 268), o medo de perder seu emprego público não o atormenta mais, seus irmãos já eram adultos e trabalhavam tendo possibilidades de participar do custeio da casa e cuidar também de seu pai, há tempos, entregue a loucura. Assim, seus anseios de participar da luta social cresceram. Passa a denunciar tudo ferozmente, contribui ainda mais para a imprensa anarquista. Através desse sentimento de liberdade que o toma entrega-se cada vez mais a bebida, é internado novamente em 1919, continua contribuindo com a imprensa operária e devido a suas insanidades, é aposentado do serviço público.

Após a aposentadoria, passa a escrever para diversos jornais: Careta, A.B.C., Hoje, Tio-Jornal entre outros. “Nos últimos anos, como em toda a vida, Lima Barreto permanece fiel à sua vocação de escritor. Ao mesmo tempo em que luta para se libertar do vicio que o degrada, agarra-se à literatura como a um resto de náufrago” (BARBOSA, 2002, p. 320).

Lima Barreto foi vencido pelo alcoolismo e consequentemente pela doença, passou seus últimos momentos em casa, recluso, sem poder

sair, sem poder praticar suas andanças pela cidade nem compartilhar da companhia das pessoas simples as quais tanto gostava. Morreu em 1° de novembro de 1922 no seu quarto em meio aos seus livros e suas últimas palavras foram perguntar se seu pai estava bem, estava sentado abraçado a uma revista francesa. Seu velório foi disputado por “gente desconhecida dos subúrbios. Amigos humildes.” (BARBOSA, 2002 p. 358)

No seu leito de moribundo, João Henriques sentira que qualquer coisa diferente ocorrera na casa. Como que recobrando a razão por um instante, perguntara à filha, no dia seguinte: Que foi que aconteceu? Afonso morreu? Evangelina procurou acalmá-lo, mas em vão. João Henriques tinha os olhos secos e duros. Logo depois, entrava em agonia. Nada mais restava a esperar... Morreu quarenta e oito horas depois do filho. Foi enterrado na mesma campa. E, no túmulo humilde, eles repousam para sempre, novamente unidos, na morte como na vida. (BARBOSA, 2002, p. 360)

Ideais anarquistas na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

Tendo em vista que os ideais básicos da anarquia, conforme aqui conceituado, seja a liberdade individual como garantia indispensável para qualquer sociedade, e que muitos pensadores do anarquismo são aguerridos e munidos de críticas contra o status quo, alguns até mesmo com o pensamento de que se é preciso ‘destruir’ o estado atual da sociedade para se construir um novo estado, e entendendo também Lima Barreto como um artista literário dotado de tais características (BEZERRA, 2010), podem-se notar na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha a presença de algumas passagens que, ao nosso olhar, mesmo que sutilmente, perpassa pelas questões

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anarquistas. Em alguns trechos Lima Barreto, na voz da personagem Isaías Caminha, deixa claro seu pensamento de inconformismo perante as injustiças que ele presencia, algumas vezes justificando suas causas pelas relações exacerbadas de poder, rebeldia às leis e traços de personalidade que demonstram forte senso crítico.

Outra característica importante a ser observada na obra, conforme explorado por Bezerra (2010, p. 90), é a forma literária do autor. Segundo ela,

é necessário mostrar (…) [que] as ideias anarquistas e os problemas sociais da jovem República, foram filtrados pela visão do artista e se configuram na estrutura narrativa de sua obra, tornando-se muito mais relevantes como elementos estéticos do que como simples fatos sociais.

Bezerra (2010, p. 93) também afirma que

essa liberdade, essa rebeldia diante das leis, é um traço recorrente na obra de Lima Barreto, provavelmente consequência de sua simpatia pelas ideias anarquistas. Essa atitude não se limita à estética, como já se observa; trilha praticamente toda a vida do artista e acaba por se refletir em sua obra, principalmente em Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Lima Barreto inicia sua narrativa observando como foi a infância de Isaías Caminha. Ele se tornou um homem intelectualizando, comparando a simplicidade de sua mãe, sendo que esta não conseguia explicar as grandes coisas do mundo, com o sacerdócio e bom manejo das palavras de seu pai, dando a causa dessa característica como sendo os estudos. Seu pai também lhe contara certa vez sobre as aventuras do grande homem que fora Napoleão, arregalando-se os olhos e admirando-se pela postura desse grande guerreiro.

Com a ideia de se tornar um homem também intelectualizado, e movido também por um senso competitivo contra seu amigo de sala, menos intelectualizado, mas que se deu bem indo estudar no Rio de Janeiro, Isaías pede conselho a algumas pessoas, dentre elas o Tio Valentim. Importante ressaltar que o Tio Valentim era um antigo militante do Partido Liberal, ele sempre contava ao Isaías suas “façanhas, bravatas portentosas, levadas a cabo, pelos tempos que fora, nas eleições, esteio ao Partido Liberal” BARRETO (2010, p. 72). O Partido Liberal foi um partido político brasileiro do Período Imperial, tinha como bandeira a não simpatização do regime absolutista. Eram contrários às ideias do Partido Conservador no modo de lidar com a realidade social. Embora defendendo o monarquismo, foi umas das primeiras instituições contrárias às ideias absolutistas centralizadoras e conservadoras do poder nacional. É interessante notar também que, de acordo com Barbosa (2002), o pai de Lima Barreto era um dos colaboradores do Partido Liberal. Há esta evidência de que o Tio Valentim seria a figura do pai de Lima Barreto, mas que na narrativa se tornou o tio de Isaías.

Resolvendo tentar a vida no Rio, Isaías embarca no trem, onde sofre seu primeiro ato de preconceito. Sem saber exatamente a causa, se indigna com a situação, causando-lhe espanto e iniciando suas críticas posteriores. Lá conhece Laje da Silva, que será importante em sua estadia no Rio. Este o convida para os lazeres que a vida carioca pode proporcionar.

No botequim do teatro, Raul Gusmão pronuncia uma frase que fica marcada na mente de Isaías, uma frase que demonstra certa inquietude ante o rebuscamento efêmero das castas mais altas em prol de uma liberdade que só se encontra na Natureza:

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Os antigos bebiam pérolas dissolvidas em vinagre. Não eram lá de gosto muito fino e a extravagância nada significativa. Eu bebo a verde esmeralda sadia, emblema da mater Natureza, num copo de xerez. Em vez de pérola mórbida, doença de um marisco, no acre vinagre, bebo o verde dos prados, a magnífica coma das palmeiras, o perfume das flores, tudo que o verde lembra da grande mãe augusta! (BARRETO, 2010, p. 86)

Após alguns acontecimentos, dentre eles, a ida ao tribunal em busca do doutor Castro e o encontro com o Senador Carvalho no bonde, Isaías demostra apreço pelo que ele idealiza que seja a profissão de legislador, homens enormemente capacitados em julgar e determinar leis que sejam úteis e benéficas para todos. Posteriormente se indigna com a frieza e indiferença desses homens em seus ofícios e ante os problemas sociais que eles lidam todos os dias.

Conhece então o doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff, personagem que terá importância na narrativa. Gregoróvitch na história é um jornalista amigo de Laje da Silva. Em nota de rodapé da edição utilizada neste trabalho (BARRETO, 2010, p. 100, nota 21), este jornalista na vida real corresponderia ao Mario Cattaruzza, jornalista italiano radicado no Brasil e que fundou, “junto com Vitalino Rotteline, o jornal anarquista Il Fanfula, fechado pela polícia no ano seguinte”.

Em determinado momento, após esse encontro e estando sozinho subindo a rua, se sente de todo indiferente ante dois fatos. O primeiro a indiferença diante das vitrinas das lojas, onde criticou em seus pensamentos a petulância e a efemeridade dos artigos à venda:

(…) As botinas, os chapéus petulantes, o linho das roupas brancas, as gravatas ligeiras, pareciam-me dizer: ‘Veste-me, ó idiota! nós somos a civilização, a

honestidade, a consideração, a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós somos, além de tudo, a majestade e o domínio!’ (BARRETO, 2010, p. 103)

A segunda, a passagem do exército pela rua, como demonstrado do seguinte trecho, também se faz como uma característica que demonstra fortemente a presença de um pensamento anarquista do autor no sentido de ser indiferente ante as forças armadas como forma de estabelecer relações de poder:

Era talvez a primeira vez que eu vi a força armada do meu país. Dela, só tinha até então vagas notícias. Uma, quando encontrei, num portal de uma venda, semiembriagado civil e militar, um velho soldado; a outra, quando vi a viúva do general Bernardes receber na Coletoria um conto e tanto de pensões e vários títulos, que lhe deixara o marido, um plácido general que envelhecera em várias comissões pacíficas e bem retribuídas… O batalhão passou de todo; e até a própria bandeira que passara me deixou perfeitamente indiferente… (BARRETO, 2010, p. 104)

Conforme vai decorrendo a história, após as tentativas frustradas de encontrar o doutor Castro, e no receio de acabar seu dinheiro, Isaías, ao conversar com Laje da Silva, questiona sobre o que é o jogo do bicho. Laje então, pelo diálogo travado, se posiciona contra a forma da polícia agir, julgando-a como executora de vinganças. A polícia havia lhe pregado uma cilada, colocando notas falsas em seu chapéu. Sua posição fica clara de denúncia contra as autoridades, conforme diálogo a seguir:

Isaías: – Foi preso?Laje: – Preso, só?! Fui esbordoado, metido numa enxovia, gastei dinheiro… O diabo! E sabe por que tudo isso?Isaías: – Não.

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Laje: – Porque eu apoiava a oposição lá no meu município… É isto a polícia, no Brasil… Eu posso falar: sou brasileiro… A polícia no Brasil só serve para exercer vinganças, e mais nada. (BARRETO, 2010, p. 115)

Após descobrir em uma notícia que o doutor Castro, que tanto ele procurava, não estaria mais na cidade, começa a despertar em Isaías um enorme sentimento de revolta contra todos os joguetes que os homens poderosos fazem as pessoas humildes passarem. Barreto (2010, p. 122) cita um trecho bastante significativo e que vão ao encontro dos ideais anarquistas, é um momento que sofre um safanão de um sujeito e começa a refletir:

Esse incidente fez-me voltar de novo aos meus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento de opressão da sociedade inteira… Até hoje não me esqueci desse episódio insignificante que veio reacender na minha alma o desejo feroz de reinvindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, a servir de joguete, de irrisão a esses poderosos todos por aí. Hoje que sou um tanto letrado sei que Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres. O nome não me veio à memória, mas foi isso que eu desejei chegar a ser um dia.

A figura de Robespierre aparece aqui como sendo uma imagem a ser atingida pelos anseios de Isaías, uma figura de liderança em prol das causas populares e que no cerne da Revolução Francesa fora acusado de anarquista por Brissot e pelo Diretório, conforme mencionado por Woodcock (2002). Uma figura de inconformidade contra as causas absolutistas e de luta pelos seus ideais.

Ao final do capítulo IV, em reflexões que não deixa claro quem está falando, Lima Barreto ou Isaías Caminha, deixa evidentes seus desejos atuais

de vingança pelo que estaria prestes a acontecer.

Naquele dia, quebrou sua rotina, o que teria provocado posteriormente a intimação por suspeita de roubo. Saiu de casa mais cedo na tentativa frustrada de encontrar o doutor Castro. Na volta, foi almoçar com seu amigo Gregoróvitch. Nesse encontro, passou a conhecer-lhe mais. Gregoróvitch “tinha cinqüenta anos e sentia-se absolutamente sem pátria, livre de todas as tiranias morais e psicológicas que essa nação contém em si” (BARRETO, 2010, p. 124). Essa passagem demonstra a característica anarquista do amigo de Isaías. Em outro trecho, Isaías, comentando sua admiração pelo recente amigo, cita que ele fez-lhe “notar que era preciso difundir na consciência coletiva um ideal de força, de vigor, de violência mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de todos nós” (BARRETO, 2010, p. 125). Podemos notar que, a partir daqui, muitas das ideias libertárias de Isaías foram de todo incitadas pelas conversas com Gregoróvitch.

Na delegacia, sofre um ato discriminatório pela sua cor. Isaías, escrevendo essas memórias, lembra-se com muita dor desse e de outros acontecimentos e discerne os fatos que o levaram a ter pensamentos de tais maneiras. Nessa ocasião, ficou indignado ante o descompasso que um homem, representante das autoridades e do governo, do que tinha de certa forma poder legitimado e que deveria ter consciência jurídica de seus direitos, agirem dessa forma. Após uma pequena discussão, sem motivos para isso, Isaías é preso a mando do delegado, injustamente. Todo seu pensamento de patriotismo, recém-erguido por seu amigo, se desfaz. Pensou ironicamente: “A pátria!”.

Lima Barreto mistura reflexões pessoais com as reflexões da personagem ao longo da obra. Ele, enquanto Lima Barreto, critica os literatos

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dos jornais. Justifica-se escrevendo para denunciar os problemas porque passou e tenta inaugurar uma nova forma de escrita, se desvencilhando das normas padrões de beleza e se utilizando de uma forma acessível para todos. Entre suas obras favoritas, Barreto (2010, p. 137) menciona a obra A Guerra e a Paz, de Tolstói, uma importante obra em formato de romance que analisa as estruturas aristocráticas russas.

Após ter saída da delegacia, Isaías, absorto em pensamentos e reflexões, se demonstra injuriado e encalacrado ante os acontecimentos, não consegue se conformar com os acontecimentos recentes, não entende porque ele, uma pessoa tão aplicada aos estudos e com anseios morais tão nobres pudesse sofre tantas injustiças daquela forma. “O que me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso”, “(...) na delegacia, na atitude do delegado, numa frase meio dita, num olhar, eu sentia que a gente que me cercava, me tinha numa conta inferior” (BARRETO, 2010, p. 141) e

(...) Aquele meu fervor primeiro tinha sido substituído por uma apatia superior a mim. Tudo me parecia acima de minhas forças, tudo me parecia impossível; e que não era eu propriamente que não podia fazer isso ou aquilo, mas eram todos os outros que não queriam, contra a vontade dos quais a minha era insuficiente e débil. (BARRETO, 2010, p. 149).

Nota-se que a partir desse momento começam a surgir no protagonista esses sentimentos de inconformidade com o que está posto e começa a ter insights de revoltas e pensamentos de crítica ante o sistema. Posteriormente conhece o Abelardo Leiva, do qual passa a ter muita afinidade e admiração pelos seus pensamentos de poeta e revolucionário. Em nota de rodapé:

A descrição e características físicas e da personalidade de Leiva se aproxima da de Luiz Edmundo que, na juventude, freqüentava a mesma roda da Café Papagaio, no centro do Rio, junto com Lima Barreto. Os amigos de Leiva reúnem características de outros jovens iconoclastas, grupo apelidado de ‘Esplendor dos amanuenses’, que mesclavam ideias anarquistas e positivistas, aos quais se associam também alguns poetas simbolistas. (BARRETO, 2010, p. 150, nota 31)

A passagem a seguir sugere um perfil anarcomunista do amigo de Isaías, munido de ideias revolucionárias e socialistas:

Como revolucionário, dizia-se socialista adiantado, apoiando-se nas prédicas e brochuras do senhor Teixeira Mendes, lendo também formidáveis folhetos de capa vermelha, e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua. Vivia pobremente, curtindo misérias e lendo, entre duas refeições afastadas, as suas obras prediletas e enchendo a cidade com os longos passos de homem de grandes pernas. (BARRETO, 2010, p. 151)

Em outras passagens onde Isaías Caminha e seu amigo Leiva conversam, sempre fica claro a presença de ideias revolucionárias e convergentes aos tipos de anarquismo e, algumas vezes, o socialismo. Em um diálogo travado entre Agostinho e Leiva, Agostinho se admira e se questiona sobre essa nova ordem social proposto por Leiva e este com seu argumento demonstra que a realidade é um espaço de exploração do homem da massa pelo homem detentor do poder, alienando àqueles uma falsa felicidade:

Agostinho: – Mas o senhor o que quer é desordem, é anarquia, é extinção da ordem social...Leiva: – Mas é isso mesmo, não quero

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outra coisa! Pois o senhor acha justo que esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa hora com as mulheres, com as filhas e com as amantes, o que bastava para fazer viver famílias inteiras? O senhor não vê que a pátria não é mais do que a exploração de uma minoria, ligada entre si, estreitamente ligada, em virtude dessa mesma exploração, e que domina fazendo crer à massa que trabalha para a felicidade dela? O público ainda não entrou nos mistérios da religião da pátria... Ah! quando ele entrar! (BARRETO, 2010, p. 156 e 157)

No trecho seguinte, Leiva, aos moldes proposto por Proudhon apud Woodcock (2002), no pensamento anarquista, na questão da não necessidade do Estado para governar a vida social, pois, tal como acontece com os outros seres sociais da Natureza, a raça humana tende a uma vida social tão natural quanto por si só, exclama:

Leiva: – Não há na natureza nada que se pareça com a nossa sociedade governada pelo Estado... Observe o senhor que todas as sociedades animais se governam por leis para as quais elas não colaboraram, são como preexistentes a elas, independentes de sua vontade; e só nós inventamos esse absurdo de fazer leis para nós mesmos – leis que, em última análise, não são mais que a expressão da vontade, dos caprichos, dos interesses de uma minoria insignificante... No nosso corpo há uma multidão de organismos, todos eles se interdependem, mas vivem autonomamente sem serem propriamente governados por nenhum, e o equilíbrio se faz por isso mesmo... O sistema solar... Na natureza, todo o equilíbrio se obtém pela ação livre de cada uma das forças particulares...(...)Leiva: – Eu quero a confusão geral, para que a ordem natural surja triunfante e vitoriosa! (BARRETO, 2010, p. 157)

Quando Isaías já se encontra trabalhando

em O Globo, a convite de seu amigo Gregoróvitch, sempre fica muito claro suas críticas ante a imprensa e as relações de poder que se encontra dentro e fora dela. Esse fato fica claro na passagem a seguir, quando Leiva dialoga com Plínio de Andrade, suposto pseudônimo do próprio Lima Barreto:

Plínio: – (…) A imprensa! Que quadrilha! (…) Nada há nada tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral de toda a prova… E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação… Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chama-los gênios, embora inteiramente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas… (…) E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! (…) trabalham para a seleção de mediocridades.(…)Plínio: – (…) hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também… É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os atrozes lucros burgueses… Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um que os combata… Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que deve fazer

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num jornal… (…) (BARRETO, 2010, p. 163, 164 e 165)

Em certo momento, Isaías faz uma crítica à imprensa: “era a imprensa, a onipotente imprensa, o quarto poder fora da Constituição!” (BARRETO, 2010, p. 193)

Questionando ainda mais, posteriormente, as relações de poder dentro do jornal e suas relações com os funcionários, adotando uma crítica contrária às formas de subordinação e segregação, Isaías afirma:

No jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas são festas do feudo a que todos têm obrigação a se associar; os seus ódios são ódios de suserano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não.(…)Não há repartição, casa de negócio em que a hierarquia seja mais ferozmente tirânica. O redator despreza o repórter; o repórter, o revisor; este, por sua vez, o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do balcão. A separação é a mais nítida possível e o sentimento de superioridade, de uns para os outros, é palpável, perfeitamente palpável. O diretor é um deus inacessível, caprichoso, espécie de Tupã ou de Júpiter Tonante, cujo menor gesto faz todo o jornal tremer. (BARRETO, 2010, p. 244)

No decorrer da história, acontece um fato inusitado, a Guerra do Sapato, apontado pelo comentarista dessa edição como sendo uma paráfrase da Revolta Contra a Vacina Obrigatória de 1904 (BARRETO, 2010, p. 265, nota 99). Em determinada passagem, fica claro o furor da sociedade contra as imposições do governo, ressaltando o perfil anarquista de combate às leis e autoridades. Isso fica claro nas duas passagens:

A irritação do espírito popular que eu tinha observado na minha própria casa não me fez pensar nem temer. Julguei-a especial àqueles a quem tocava e nunca que aquelas observações ingênuas se tivessem transformado em grito de guerra, em amuleto excitador para multidão toda. (BARRETO, 2010, p. 263)Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância. (BARRETO, 2010, p. 265)

Então, quase no fim do romance notamos mais dois trechos que nos remetem aos ideais anarquistas, a primeiro parafraseado os escritos de Tolstói (BEZERRA, 2010) ao considerar o impulso de luta pelo amor – e não pelo ódio – e posteriormente no sentimento de Isaías de que realmente apenas a oposição e o emprego da violência, observados pela personagem Leiva anteriormente, é capaz de tirar as pessoas de seus estados alienados de bondade, que deixa cega todo sentido de liberdade:

(…) fiquei animado, como ainda estou, a contradizer tão malignas e infames opiniões, seja em que terreno for, com obras sentidas e pensadas, que imagino ter força para realizá-la, não pelo talento, que julgo não ser muito grande em mim, mas pela sinceridade da minha revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor. (BARRETO, 2010, p. 288)Na delegacia, a minha vontade era rir-me de satisfação, de orgulho, de ter sentido por fim que, no mundo, é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para impedir que os maus e os covardes não nos esmaguem de todo.Até ali, tinha sido eu a doçura em pessoa, a bondade, a timidez e vi bem que não podia, não devia e não queria ser mais assim pelo resto de meus dias em fora. Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por ter descoberto uma coisa que ninguém

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ignora. Felizmente não foi tarde… (BARRETO, 2010, p. 289).

Conclusão

Este trabalho teve como objetivo investigar a presença de resquícios literários que se remetam ou refletem o início da construção do pensamento anarquista no Brasil no início do século XX, mais especificamente na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Embora suas obras posteriores como Triste fim de Policarpo Quaresma, ou mesmo os folhetins publicados por Lima Barreto em jornais considerados anarquistas da época apresentem elementos figurados do pensamento anarquista mais evidente, tal como citado por BEZERRA (2010), nota-se que na obra analisada há, mesmo timidamente, trechos, ideias e passagens que remetem ao pensamento libertário do autor na obra analisada.

Começamos a conceituar os termos anarquismo e anarquia, explanamos seu surgimento e desenvolvimento na Europa, mostramos brevemente como a anarquia se firmou no Brasil, mostramos resumidamente a vida e obra de Lima Barreto e suas relações com o anarquismo e finalmente investigamos na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha a presença de passagens que se remete ao pensamento anarquista de Lima Barreto. É necessário, todavia, deixar claro que não se pode afirmar categoricamente que Lima Barreto era um anarquista, mas é evidente que, até mesmo pelas circunstâncias históricas da época e de sua história de vida (fortemente marcada pelo preconceito e pela luta e crítica contra o status quo), suas obras transparecem o pensamento libertário, muitas vezes pela vertente do anarco-comunismo. A obra analisada ainda é tímida nesse sentido, mas julgamos rico tornar evidente em que momentos da história de Isaías o anarquismo se mostra presente.

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Fernando Morgato de OliveiraYasmim Nóbrega de Alencar

Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto

Bacharelandos em Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política

de São Paulo

Resumo

O presente trabalho tem por interesse apresentar uma leitura onde se buscará elementos de um pensamento hegemônico na cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX. A partir de relatos contidos na obra do autori visa-se identificar um modelo de pensamento que predominava na cidade do Rio de Janeiro. Focalizando os discursos que deslegitimavam os “cidadãos” negros da “cidade maravilhosa” na época, serão abordados assuntos como preconceito, estigma social, marginalização, entre outros.

Palavras -Chave

Pensamento; Linguagem; Dominação; Poder.

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Lima Barreto: vida e obra

Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio de 1881, mulato, era filho de João Henriques e Amália Augusta, ele tipógrafo e ela professora, ambos mulatos. Não era de família abastada, mas tinhas ligações com os nobres da época, como, por exemplo, seu padrinho que era Visconde de Ouro Preto e senador do Império. Lima sofre aos seis anos de idade com a morte precoce de sua mãe. Quando completa sete anos vê-se diante de um novo período da história onde ocorre a Abolição da escravatura no ano de 1888. Um ano depois veria o universo político-social brasileiro alterar-se drasticamente com a Proclamação da República, no ano de 1889. Com mais uma reviravolta do destino e no mesmo ano seu pai é demitido da Imprensa Nacional em fevereiro, e em março, é nomeado escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador. Perceber-se-ia que dali em diante as marcas desse período e o processo de infinitas dificuldades de inserção do negro, discriminação racial deixariam suas marcas na sociedade brasileira, marcas estas que estariam presentes como centro de discussão em quase todas as suas obras.

Já no início da sua carreira como literato Lima nos presenteia suas obras onde utiliza seu recurso realista autobiográfico. Ele dá inicio em 1900 aos registros do Diário Íntimo, onde colocará suas impressões sobre êxodo rural, a cidade e a vida urbana no Rio. Lima passa por inúmeros percalços, mas quando começa a escrever reportagens no Correio da Manhã inicia de modo regular sua carreira no jornalismo literato brasileiro.

Em 1905, nasce a primeira versão de Clara dos Anjos, este seria publicado somente postumamente, na mesma época elabora os prefácios de dois de seus romances: Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e Recordações do escrivão Isaias Caminha, livros estes que

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terminaria simultaneamente, ainda que o primeiro venha a ser publicado dez anos depois que o segundo. A partir do lançamento de Recordações do escrivão Isaías Caminha, em 1909, Lima teria, enfim, seu nome mencionado na “high society” da imprensa carioca.

Passa então a escrever e elaborar crônicas e peças satíricas em quase todos os veículos de comunicação de sua épocaii. Todos os seus escritos continham um “sentimento humano e uma compreensão admirável do fenômeno social” (BARBOSA, Francisco de Assis. In: BARRETO, Lima 2011, p. 37iii).

Segundo Barbosa (2011, p. 44), “não será possível proceder-se à revisão da nossa história republicana, do 15 de Novembro ao primeiro 5 de Julho (...), sem recorrer aos romances, contos, crônicas e artigos de Lima Barreto”. Lima possui uma escrita paradigmática, torna-se impossível, muitas vezes, traçar uma distância entre as fronteiras do real e do imaginário.

Novamente Francisco de Assis Barbosa nos dá um ótimo exemplo do talento, da atuação de Lima Barreto como escritor longínquo, vanguardista que está para além dos ideais de produção de sua época, ou como diria o próprio Lima Barreto: das camuflagens do real. Ele o distingue como um escritor:

Memorialista, a ponto de se tornar difícil, senão impossível, delimitar em alguns de seus romances e contos as fronteiras da ficção e da realidade, ele anotou, registrou, fixou, comentou ou criticou todos os grandes acontecimentos da vida republicana. Como num vasto painel que se desdobra em sucessivos quadros, lá estão os episódios culminantes da insurreição antiflorianista, a campanha contra a febre amarela, a ação de Rio Branco no Itamaraty, o Governo de Hermes da Fonseca, a participação do

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Brasil na Primeira Guerra Mundial, o advento do feminismo, as primeiras greves operárias, a Semana da Arte Moderna, e o delírio do futebol e do jogo do bicho, tudo isso se mistura com os nossos ridículos e as nossas misérias, mas também sem esquecer a grandeza e a doçura do nosso povo; a mania da ostentação, o vazio intelectual e a ganância dos políticos; em suma, toda a crise das classes dirigente, que se agravaria de modo alarmante com a queda do Império, isso de um lado; do outro, a bondade inata do brasileiro, a coragem do funcionário público humilde que luta para educar os filhos, o milagre da sobrevivência da população pobre do subúrbio carioca, que, em meio da miséria, canta e ri. (BARRETO, 2011, p. 45)

Lima Barreto enxergou isso com os olhos de quem estava imergido naquele contexto sócio-cultural e que não tinham nada de falso, fez sua contribuição para o universo literário transmitindo em seus livros o mais exuberante realismo nunca antes visto ou transcrito por nenhum escritor de sua época. Retratou sem pudor os políticos, a maquinaria social, a manipulação da mídia e outras dezenas de fatos que corroboraram para inúmeras leituras e análises da época e do país. Através de suas investidas, de simbologias descritas através de seus personagens Lima alterou o plano narrativo e de interpretação do real, traçando em seus escritos um panorama da mentalidade burguesa que durante os primeiros trinta anos de nossa república predominou.

Esta é uma obra ímpar de valor histórico incalculável. Não é a toa que Lima Barreto tornar-se-á inclassificável após esta e outras publicações. Suas análises sobrepõem-se ao plano comum, romântico e sensorial da sua época; tem-se nos escritos desta obra o ar de ausência da humanidade, o tom cinza do pudor, a mancha da vergonha e a tenaz realidade. O que temos então? Uma obra

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de envergadura que transpõe os planos do real e do imaginário, do eu lírico, onde a produção se faz na concepção da semântica formaliv e não da semântica enunciativav, como os “mandarins” (escritores) da época de Lima Barreto faziam.

Introdução

Recordações do escrivão Isaías Caminha é o primeiro romance de Lima Barreto lançado, em 1907, em folhetim na revista Florealvi, sendo lançado em livro em 1909. Na obra o narrador principal é Isaías Caminha, mulato, letrado, de família humilde, mas não marginal, que almeja um futuro e vê no Rio de Janeiro sua esperança de se tornar alguém. Com o auxílio de Valentim (seu Tio) e uma carta escrita pelo Coronel Belmiro para o deputado Castro, Isaías vê/consegue sua saída da vida no interior, nela está à porta de entrada para o seu futuro como “Doutor” na capital. “A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego. Um dia pelos outros iria às aulas, e todo fim de ano, durante seis, faria os exames, ao fim dos quais seria doutor!” (BARRETO, 2011, p. 75). O que ele não esperava encontrar durante a sua trajetória era inúmeros percalços que o levariam ao limite da superação e da consciência humana.

Bosivii (2011, p. 10) , na introdução do livro descreve a condição de Isaías como a “do mestiço humilde, interiorano” que passa depois a ser o “suburbano” enfrentando as dificuldades de integração de vida na capital carioca que “se moderniza a passos largos”.

O que é visto na obra é uma construção minuciosa da vida humilde de um mestiço, seus conflitos, suas angústias, as mazelas, as atrocidades e as injustiças que observará na atmosfera tétrica e marginalizada dos cortiços ao do centro urbano pré-modernizado do Rio de Janeiro. Tudo isso mostra uma realidade brutal, severa, mas que faz

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Isaías refletir sobre sua conduta e o leva a analisar suas origens e as razões pelas quais o levaram até o seu destino.

A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência. (...) Foi com esses sentimentos que entrei para o curso primário. Dediquei-me açodadamente ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram-se desdobrando as minhas primitivas noções sobre o saber. Acenturam-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes avaliar ao certo significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir... (BARRETO, 2011, p. 67-68).

Sendo ele filho de um padre, e sua mãe escrava, Isaías já antes de nascer encontra-se numa batalha e num dilema moral. O Pai pela profissão e o peso do pecado da carne não pôde assumi-lo como filho socialmente, mas dá-lhe toda a instrução e carinho que qualquer outro pai poder-lhe-ia dar.

Pareceu-me que o seu encontro fora rápido, o bastante para me dar nascimento. Uma crise violenta do sexo fizera esquecer os votos de seu sacerdócio, vencera a sua vontade, mas, passada ela, viera, com o arrependimento da quebra do seu voto, a dor inqualificável de não poder confessar sua partenidade. Ele amou-me sempre, talvez me quisesse mais por causa das condições que envolviam o meu nascimento. Em público olhava-me de soslaio, media as carícias, esforlava-se por fazê-las banais; em casa, porém, quando não havia testemunhas, beijava-me e afagava-me com transporte. (BARRETO, 2011, p. 67-68).

A mãe, por sua condição humilde e

miserável, nada pôde fazer pelo filho senão apoiá-lo. Sua vida pacata e “burguesa” de algum modo mostrar-lhe-ia que fora dos confins do interior, da cidadezinha, sua condição não passaria de uma mera negação da sua própria identidade; para se compreender como esta descontrução se dá é preciso entender a linguagem, e como através dela construímos as formas socialmente aceitas de identidade.

Frantz Fanon, em seu livro Pele Negra Mascaras Brancas, apresenta como a linguagem determina as formas de identidades estabelecidas socialmente.

Na linguagem está a promessa do reconhecimento; dominar a linguagem, um certo idioma, é assumir a identidade da cultura. Esta promessa não se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos negros. Mesmo quando o idioma é “dominado”, resulta a ilegitimidade (FANON, 2008, p. 15).

Isaías acredita nesta legitimidade do ser letrado e parte para a cidade com a esperança de conquistar seu lugar ao Sol. Da saída do interior até a chegada à capital Isaías enfrentará inúmeros conflitos, dos quais nem a sua inteligência, aguçada e voraz, conseguirá de imediato decifrá-los. Ao chegar à capital demorará a perceber que sua estadia além de não ser bem quista por uns, será anulada por outros. “O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação. Curti durante segundos uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em pranto.” (BARRETO, 2011, p. 80).

Mas, de certo modo, Isaías “enfrentará” os problemas. Contudo, seus esforços, em grande parte, serão em vão. Procurará exigir seus direitos mesmo que para isso tenha que dormir no “xilindró”; colocar-se-á, muitas vezes, na pele de

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outras pessoas, essas provações servirão ao nosso protagonista como combustível para seguir em frente, sempre avante, em busca de seu sonho. Firmará alianças, terá inimigos, provará o doce sabor da amizade e o ardor veneno da mentira e da traição.

Contudo, para entendermos a situação de Isaías no contexto apresentado na obra de Lima Barreto, será preciso retornarmos um pouco no tempo para que possamos compreender como as disposições sociais e políticas tratadas na obra ocorreram. Assim, damos ao leitor uma pequena abordagem das transformações que se sussederam e que deram molde ao pensamento apresentado no livro. Deste modo, um breve levantamento das transformações histórico-político-culturais do período, assim como, dos conflitos que desencadearam a Independência e a Abolição dos escravos revelaria a tão sonhada “República”. A importância de tal apresentação nos permite tratar mais precisamente dos processos que se desdobram sobre a personagem protagonista durante toda a obra.

Os processos sócio-políticos na pré República

Os ares do Brasil pré-republicano eram, naquele período, de mudança, pelo menos para a elite que se iluminava, já há algum tempo, com os “abomináveis princípios franceses” da revolução e buscavam a Independência da colônia com a metrópole. Esses homens ilustrados eram “os estudantes que viajavam para o exterior, completando seus estudos em Portugal ou na França [e] voltavam imbuídos das novas ideias...” (COSTA, 2010, p. 29) visando uma reforma imediata, que devidos aos conflitos ideológicos, ocorreriam paulatinamente. “Toda uma geração fora educada nos princípios revolucionários que

os homens da Ilustração se tinham incumbido de divulgar e a Revolução Francesa de pôr em prática” (COSTA, 2010, p. 30).

Durante o período imperial um número substancial de vertentes político-ideológicas imergiu nas discussões dos grupos de repressão contra o regime. Às vésperas da independência a vertente que se destacava era o liberalismo. Neste mesmo período discutia-se a ‘possibilidade de um levante de escravos’, contudo, firmaram um documento que garantia o direito de propriedade dos senhores sobre seus servos: “‘Patriotas’ (...) ‘vossas propriedades, ainda as mais opugnantes ao ideal de justiça, serão sagradas. O governo porá meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela força’” (COSTA, 2010, p. 33). O Liberalismo brasileiro conciliava com a religião e com a Igreja Católica, constata-se tal dado a partir do número expressivo de padres nos movimentos contra hegemônicos, este processo recebeu o nome de Revolução dos Padres.

Outra vertente apresentara-se no mesmo período, o nacionalismo. Entretanto, esta não consolidou-se devido a economia brasileira que era ainda baseada essencialmente na exportação, tendo, também, precárias suas formas de comunicação, assim como, o limitado comércio interno que dificultava as transições em toda sua extensão. Tal nacionalismo expressava-se na forma de um radical antiportuguesismo.

Todavia, existia uma dualidade, pois:

Aos olhos da população nativa mestiça, a Independência significava sobretudo a possibilidade de eliminar as restrições que afastavam as pessoas de cor das posições superiores, dos cargos administrativos, do acesso à Universidade (...) e ao clero superior. Abolir as diferenças de cor branca, preta e parda, oferecer iguais oportunidades a todos sem nenhuma

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restrição era o principal ideal das massas mestiças que viam nos movimentos revolucionários a oportunidade de viverem em ‘igualdade e abundância’. Para elas, a Independência configurava-se como uma luta contra os brancos e seus privilégios (COSTA, 2010, p. 36).

Contudo, Marins (1998), no livro História da Vida Privada no Brasil, nos mostra que essa “independência” tanto do povo negro, quanto dos migrantes e imigrantes da época, teriam um custo muito alto. Sua subordinação daria-se não mais pelas garras do senhor (carrasco e desumano), esta, agora, estruturariam-se a partir dos novos logradouros e da “nova engenharia” que surgiriam nesta suposta “independência”, as favelas.

Fim da escravidão. Migrações e imigrações. A aurora do regime republicano dava-se em meio a transformações demográficas e sociais, que liberavam populações, e franqueavam novos destinos geográficos às esperanças de sobrevivência de muitos dos velhos e novos brasileiros. (...) As grandes cidades surgiam-no horizonte como o espaço das novas possibilidades de vida, do esquecimento das mazelas do campo, da memória do cativeiro. (...) somavam-se aos antigos escravos, forros e brancos pobres que já inchavam as cidades imperiais, e junto a eles também aprenderiam a sobreviver na instabilidade que marcaria suas vidas também em seu novo habitat. (...) As elites emergentes imputavam-se o dever de livrar o país do que consideravam “atraso” (...) visível na aparente confusão dos espaços urbanos, povoados de ruas populosas e barulhentas, de habitações superlotadas, de epidemia que se alastravam com rapidez pelos bairros, assolando continuamente as grandes capitais litorâneas. Acreditar na adjetivação que as intenções normativas das elites atribuíam à aparência das ruas e casas das antigas cidades, herdadas da Colonia e do Império, inviabiliza, entretanto, a possibilidade

de compreender essas cidades e as experiências humanas, ali vividas em seus múltiplos espaços, em uma de suas maiores características: a instabilidade. “Desordem” e “tumulto”eram justamente as dimensões, muito eficientes, que grande parte das populações urbanas brasileiras encontravam para sua sobrevivência, para seu agir social.Casas e ruas fundiam-se numa dinâmica plasmada e difusa, em que os limites espaciais constituíam-se historicamente ao sabor da ambição fundiária dos proprietários e da complacência sonsa das autoridades. O ‘desleixo’, (...) parecia comandar a pratica (...). Neste aparente desleixos esgueiravam-se as ‘aparentes’ desordens funcionais (...) em que escravos, forros e seus descendentes, miseráveis e remediados, logravam obter mais facilmente as condições de sua sobrevivência, e de seus próprios padrões culturais e de sociabilidade. (MARINS, 1998, p. 132-133)

Darcy Ribeiro (1995), em seu livro O Povo Brasileiro, complementa, o trecho citado acima, explicando que esta deterioração urbana ocorreu por muitas dessas pessoas que “levantaram” as favelas, somente, para que fosse possível manter seu trabalho. Caso contrário, seria impossível trabalhar na capital tendo em vista a distância dela para o campo. Casos adversos a esses também surgiram, de modo que:

A própria população urbana, largada a seu destino, encontra soluções para seus maiores problemas. Soluções esdruxulas é verdade, mas são as únicas que estão ao seu alcance. Aprende a edificar favelas nas morrarias mais íngremes fora todos os regulamentos urbanísticos, mas que lhe permitem viver juntos aos seus locais de trabalho e conviver como comunidades humanas regulares, estruturando uma vida social intensa e orgulhosa de si. (...) onde faltam morrarias, as favelas se assentam no chão liso de áreas de

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propriedade contestada e organizam-se socialmente como favelas. (...) É nessa base que se estrutura o crime organizado, oferecendo uma massa de empregos na própria favela, bem como uma escala de heroicidade dos que o capitaneiam e um padrão de carreira altamente desejável para a criançada. Antigamente, tratava-se apenas do jogo do bicho, que empregava ex-presidiários e marginais, lhes dando condições de existência legal.(...) Outro processo dramático vivido por nossas populações urbanas [principalmente nas periferias] é sua deculturação. Sua gravidade é quase equivalente à primeira deculturação que sofremos, no primeiro século, ao desindianizar os índios, desafricanizar os negros e deseuropeizar o europeu para nos fazermos. (...) A questão hoje é mais grave. A luta dentro dessa massa urbana é ferocíssima. (...) O normal na marginalia é uma agressividade em que cada um procura arrancar o seu, seja de quem for. (RIBEIRO, 1995. p. 204-205)

Esta sociabilidade se constitue a partir do próprio momento e do complexo conjunto de relações que fora estabelecido em uma realidade ainda marcada pelo pensamento colonialista, com suas prerrogativas essenciais para relações de opressão cultural: o preconceito racial e o estigma social proveniente de uma desigualdade de classes, que já ali começavam a delinear seus contornos. Esses eram os benefícios e as condições de estrutura que grande parte da população brasileira, pobre, não letrada e marginalizada, e aqueles que adotariam a pátria, teriam de partilhar. Ademais, haviam aqueles que possuíam um fragmento da “civilidade” vigente, e a esses ficou a incumbência de reproduzir o pensamento dominante.

O Olhar de Isaías e o pensamento na Primeira República

Isaías, que nascera justamente cercado

deste pensamento, reproduziria tal poder sobre seus pares. Já na infância mostrava traços de que o condicionamento de seu pensamento fora bem estruturado. “O espetáculo de saber do meu pai, ralçado pela ignorância de minha mãe e de outros (...), surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento” (BARRETO, 2011, p. 67). Fora este deslumbramento que fez com que Isaías criasse anseios de inteligência e buscasse sua posição na cidade.

Esta suposta decisão traria um júbilo a Isaías onde, vez outra, este chegaria a fantasiar em sua mente forças, ou chamados, que buscava-o para aventuras e conquistas mundo a fora. “Ouvia uma tentadora sibila falar-me, a toda hora e a todo instante, na minha glória fortuna. Agia desordenadamente e sentia a incoerência dos meus atos, mas esperava que o preenchimento final do meu destino me explicasse cabalmente” (BARRETO, 2011, p. 68). Estas formas de contentamento subjetivas introjetadas em seu imaginário levariam-no a universos e multiversos, chegando algumas vezes metamorfosear chamados de alguma força que nem mesmo ele saberia explicar.

Todas as manhãs, ao acordar-me, ainda com o espírito acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido: ‘Vai, Isaías! Vai!... Isto aqui não te basta... Vai para o Rio!’ (...) por fim um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voara a frente, a formar um V. Era a inicial de ‘Vai’. [e] Tomei isso como um sinal animador, como um bom augúrio do meu propósito audacioso. (BARRETO, 2011, p. 68)

Preconiza então sua partida para a cidade do Rio de Janeiro. Esta fora feita junto a uma carta cedida pelo coronel Belmiro endereçada ao

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deputado Castro, solicitando-o asilo e trabalho ao jovem Isaías. Sua partida viera acompanhada de um temor, um receio que o acolhera subitamente após sua decisão.

(...) era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações, protetores [exceto o deputado Castro] que me pudessem valer... Que faria lá, só, a contar com minhas próprias forças? Nada... Havia de ser como uma palha no redemoinho da vida – levado daqui, tocado para ali, afinal engolido no sorvedoro... ladrão... bêbado... tísico e quem sabe mais? (BARRETO, 2011, p. 69)

Contudo, levado pelo ímpeto desejo, um pathos incondicional, de alcançar o título de Doutor, este, o fez acender a chama da esperança e deste modo lançou-se para sua odisséia. Suas fantasias giravam em torno do poder atribuído ao título buscado, o Doutor! Não titubeava pela escolha feita, almejava nela suas glórias, fortunas, e via na mesma, a mais valiosa das virtú. Entoava sobre as condições, disposições e impressões mais rotineiras possíveis que a titulação lhe daria.

Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polimórficos... Era um pallium, era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o mundo dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-entanha antes de ferir a marteladas

à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre humano!... (BARRETO, 2011. p. 75).

Aqui percebemos claramente a influência de um pensamento que o domina, que transfere sua realidade à reliadade de um grupo específico. Essa dominação acontece, segundo Bourdieu (2002), por um poder simbólico que se exerce sobre Iasías, e é justamente o que estrutura seu pensamento. E este pensamento mergulhará Isaías num novo mundo e fará com que ele reproduza os valores deste mundo ao qual ele pensa pertencer.

Repentinamente senti-me outro. Os meus sentidos aguçaram-se; a minha inteligência entorpecida (...) despertou com força, alegremente e cantante... Eu via nitidamente as coisas e elas penetraram em mim até o âmago. Convergi todo o meu aparelho de exame para o espetáculo que me surpreendia. Estive por instantes espasmodicamente arrebatado, para um outro mundo, adivinhado além das coisas sensíveis e materiais.Evolava-se do ambiente um perfume, uma poesia, alguma coisa de unificador, a abraçar o mar, as casas, as montanhas e o céu; pareciam erguidos por um só pensamento, afastados e aproximados por uma inteligência coordenadora que calculasse a divisão dos planos, abrisse vales, recortasse curvas, a fim de agitar viva e harmoniosamente aquele amontoado de coisas diferentes... O aconchego, a tepidez da hora, a solenidade do lugar, o crenulado das montanhas engastadas no céu côncavo, deram-me impressões várias, discordantes e figidias... (BARRETO, 2011. p. 81-82)

Bourdieu (2002, p. 12) dirá que “O campo de produção simbólica é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção

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que os produtores servem aos interesses dos grupos exteriores do campo de produção.” Desta forma, Isaías reproduz discursos, muitas vezes, preconceituosos e racistas mesmo ele sendo “negro”viii (mestiço). Fanon (2008) dirá que o que determina que tal pensamento seja atríbuido pelos negros é a afirmação, ou certeza, do fracasso como indivíduo.

Muitos negros acreditam neste fracasso (...) e declaram uma guerra maciça contra a negritude. Este racismo dos negros contro o negro é um exemplo da forma de narcisismo no qual os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco. Eles literalmente tentam olhar sem ver, ou ver apenas o que querem ver. Este narcisismo funciona em muitos níveis. Muitos brancos, por exemplo, investem nele, já que teoricamente preferem uma imagem de si mesmos como não racistas, embora na pratica ajam frequentemente de forma contrária. (FANON, 2008. p. 15)

Esta leitura nos levanta, portanto, uma questão: O que faz com que os negros adotem a postura (racista e preconceituosa) dos brancos? Tal questão nos remete a pensar a linguagem como determinante de tal função. Sendo a linguagem um mecanismo de dominação – conforme o próprio Fanon (2008) afirma – esta imcubice de formular a formação dos sujeitos. Tendo em vista a recente ruptura da escravidão e do colonialismo alguns mecanismo ainda permeavam a esfera tanto pessoal (psique) quanto social carioca. Diria Fanon, “(...) a colonização [dominação] requer mais do que a subordinação material de um povo. Ela também fornece os meios pelos quais as pessoas são capazes de se expressarem e se entenderem.” (FANON, 2008, p. 15).

Esta sentença nos permite observar uma inculcação ideológica estruturada nos indivíduos

que identifica-se, segundo Bourdieu (2002), nas taxionomias políticas, religiosas, filosóficas, jurídicas etc., que revelam a legitimidade “natural”, desde que não adimitidas. As relação de comunicação entre os indivíduos são, portanto, relações de poder fixadas no poder (simbólico ou material) armazenados pelos indivíduos durante as relações. Tais sistemas agem com base em instrumentos estruturados e estruturantes de informação e saberes que garantem a dominação de um grupo sobre outro, utilizando aparelhos que determinem a legitimação, dominando os dominados.

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto, poder quase mágico que permite o equivalente daquilo que é obtido pela força, graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (BOURDIEU, 2002. p. 14)

Deste ponto, talvez, possamos identificar esta “obsessão” dos negros em se colocar socialmente, assim como sua revolta. Logo, “esta obsessão (...) é resultado da impotência social”, pois, “não conseguindo exercer um impacto sobre o mundo social, eles se voltam para dentro de si mesmos” (FANON, 2008. p. 16). Assim, busca-se de algum modo o reconhecimento social, mesmo que legitimando o outro (dominante), ou seja, deslegitimando a si mesmo (dominado). Assim age o poder simbólico.

O reconhecimento do poder simbólico só se dá na condição de se descreverem as leis de transformação que regem a transmutação das diferentes espécies, (...) o trabalho de dissimulação e de transfiguração que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força

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fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia. (BORDIEU, 2002, p. 15)

Fanon (2008) acrescenta que,

O principal problema desta atitude está na contradição em buscar a liberdade escondendo-se dela. A liberdade [reconhecimento] requer visibilidade, mas, para que isto aconteça, faz-se necessário um mundo de outros. Esquivar-se do mundo é uma ladeira escorregadia que, no final das contas, leva à perda de si. Até mesmo o auto reconhecimento requer uma colocação sob um ponto de vista de um outro. Esta é [portanto] uma verdade difícil de aceitar (FANON, 2008, p. 16)

Ao mesmo tempo, se a liberdade requer um mundo de outros, é necessário que uma alteridade regule os vínculos entre os sujeitos. Logo, a não compreensão do outro, reflete a incompreensão de si mesmo. Tal formulação nos permite enxergar características em Isaías que fogem desta concepção de alteridade. Para ele, sua condição de rapaz letrado, fidedigno permitia-o olhar o mundo de cima, tal postura fazia-o analisar os outros sem o menor pudor, chegando, vez outra, utilizar termos e expressões fortes e radicais para descrever situações ou pessoas. “(...) Eu não podia adivinhar que o Rio contivesse exemplar tão curioso do gênero humano, uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado, (...) exuberante de gestos inéditos e frases imprevistas”. (BARRETO, 2011, p. 88)

Tal postura pode estar associada ao seu objetivo de ser Doutor. Isaías idolatra os que possuem tais títulos, exemplo claro é sua admiração pelos doutores da Câmara dos Deputados da República dos Estados Unidos do Brasil. Ele dialoga

inúmeras vezes consigo buscando meandros para comparar a imponência deles com a de pensadores antigos e Deuses.

Não foi sem espanto que que descobri em mim um grande respeito por esse alto e venerável oficio. Lembrei-me daqueles velhos legisladores da lenda e da história: os Manus, os Licurgos, Os Moisés, os Sólons, os Numas – esses nomes todos que os povos agradecidos pela fecundidade e pela sabedoria de suas leis reverenciaram por dilatados anos, ergueram-nos à altura de deuses, consagraram-lhe templos magníficos. (BARRETO, 2011, p. 94)

Assim se estruturará o pensamento de Isaías. Olhando seus pares com olhos de pomba, e vendo-os como reles insetos que contribuem para o pleno funcionamento da cadeia alimentar, subservientes não mais dos Deuses, mas dos paladinos da justiças, os Doutores.

Considerações finais

Na perspectiva sociológica, podemos refletir acerca das correlações existentes entre a desigualdade de classes e racial no contexto em que a narrativa de Lima Barreto se desenvolve. É possível ainda nos reportarmos às passagens em o personagem descreve, mais de uma vez, situações de discriminação com a figura do estudante, da pessoa negra e pobre. Vale ressalvar que o racismo no Brasil, apesar de ser ainda velado e invisibilizado, influenciou fortemente a sociabilidade no contexto da República, ainda marcada pelo colonialismo. Sem falar do que este pensamento colonialista contribuiu para o desenrolar da desigualdade de classe e da desvalorização da cultura brasileira que viria a ser esta miscelânea de costumes, maneiras de viver, fazer arte, literatura e etc, fora dos padrões dos colonizadores europeus.

Darcy Ribeiro (1995) evidencia muitos dos

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aspectos de épocas remotas num Brasil buscando resistir étnica e culturalmente e aderindo às diversas culturas influenciantes. Ainda nesta obra célebre Darcy nos aponta várias realidades em que forças de resistência culturais, o fortalecimento do racismo e outras contingências seguem formando nosso povo brasileiro tão controverso. Há, portanto, que se formular um pensamento a respeito da alteridade do outro. Deste modo, será possível se enxergar no outro, respeitando-o seja por sua etnia, cor, classe social ou econômica.

Por conseguinte, este pensamento necessário para o fortalecimento de uma igualdade que provenha da democracia racial , de fato, implica numa profunda reflexão e mudança de postura/atitude sociocultural no contexto das relações sociais, nas quais se perpetra o racismo e a inferiozação das pessoas negras, bem como nos tempos recordados por Isaías, e, por assim dizer, também Lima Barreto que sua literatura manifesta.

Em diversas passagens do romance, a presença forte de um discurso de desigualdade de classe e racial é evidente:

(...) De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se misturavam e se confundiam. Talvez ao se amassem, mas viviam juntos, trocando presentes, protegendo-se, prestando-se mútuos serviços. Bastava, entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte. (BARRETO, 2010, p. 241)

Podemos, inclusive, nos reportar novamente ao sociólogo Darcy Ribeiro (1995), em se tratando da formação do povo brasileiro tão marcarda pelas violências colonialistas (aqui, nos referimos ao etnocídio, genocídio e longos períodos de

escravidão protagonizados pelas práticas e lógicas eurocêntricas que culminaram numa realidade marcada pela desigualdade social ainda não dirimida em nossa contemporaneidade):

Apesar da associação da pobreza com a negritude, as diferenças profundas que separam e opõem os brasileiros em extratos flagrantemente contrastantes são de natureza social. São elas que distinguem os círculos privilegiados e camadas abonadas – que conseguiram, numa economia geral de penúria, alcançar padrões razoáveis de consumo – da enorme massa explorada no trabalho, ou até dele excluída por viver à margem do processo produtivo e, em consequência, da vida cultura, social e política da nação. (RIBEIRO, 2006, p.215-216)

Portanto, as disposições sociais que se formularam/estruturaram durante o período colonial/imperial brasileiro formaram um pensamento estruturado estruturante possibilitando um ordenamento social que viabilizava as práticas de dominação/inculcação ideológica. (Bourdieu. 2002) Tais práticas possibilitaram – e possibilitam – o domínio de poucos sobre muitos. Tais disposições aparecem nitidamente na narrativa de Lima Barreto, pois ao descrever e comparar as realidades do centro do Rio de Janeiro (urbano, civilizado, industrializado) com a periferia (não urbana, depredada, incivilizada), assim como as formas socialmente construídas e aceitas de cidadãos, apresenta-nos um quadro das forças que atuavam sobre o período na cidade “maravilhosa”. Desse modo, torna-se possível enxergar a realidade e ao mesmo tempo transpô-la, tomando-a como referência, para analisarmos os dias de hoje.

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i Obra: Recordações do Escrivão Isaias Caminha: BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras e Editora Pinguim, 2011, publicada em 1909; na obra é retratado o social e o indivíduo no meio ao qual está inserido. Ao tratar os conflitos sociais e pessoais do protagonista Lima Barreto nos apresenta um quadro dos principais percalços do Rio de Janeiro e seu desenvolvimento.

ii Veículos como O Diabo, Revista da Época, Fon-Fon, Brás Cubas, Careta, O Malho e Correio da Noite (BARRETO, Lima. 2011 – Texto de abertura da Editora)

iii Prefácio publicado pela Editora Brasiliense, em 1961, na edição de Recordações do escrivão Isaías Caminha. (N. E.).

iv É uma semântica de tradição lógica como a relação entre significado e verdade, referência e denotação, quantitativo, extensão e intensão.

v Faz referência a uma ilusão criada pela linguagem, sendo a linguagem um jogo de argumentação enredado em si mesmo. Não fala-se sobre o mundo, fala-se para construir um mundo e a partir dele tentar convencer o interlocutor da VERDADE; verdade CRIADA pelas e nas nossas interlocuções.

vi De pequeno formato (15 x 20 cm aproximadamente), com edições variando de 39 a 56 páginas, a revista Floreal apareceu na primavera de 1907, sob a direção de Lima Barreto, para deixar de ser publicada dois meses depois, totalizando apenas quatro números. Lima Barreto, intelectual investido de verdadeira missão, atribuía um sentido emancipatório à leitura e tinha em Floreal não só um espaço de expressão que não encontrara em seu meio, mas um baluarte útil no combate ao que julgava ser a crescente alienação promovida pelos meios (sociais) de comunicação. Fonte: http://www.brasiliana.usp.br/node/737; Acessado em: 20/10/2012

vii Cursou letras neolatinas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É professor titular da área de literatura brasileira na USP, escritor, comentarista e literário. Bosi é reconhecido por abordar temas como Pré-Modernismo; História da Literatura Brasileira, entre outros.

viii Utilizamos uma aspa para manter a descrição do próprio Isaías consigo mesmo. Em seus discursos durante toda obra ele não se enxerga como negro, isso prova-nos a sua inocência, assim como o condicionamento do seu pensamento.

Notas

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40 41Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Coleção Reconquista do Brasil, v. 140. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp: 1988.

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. In BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras/Editora Pinguim, 2011. p. 37.

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras e Editora Pinguim, 2011.

BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. In BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras/Editora Pinguim, 2011. p. 10.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 5° Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9ª edição. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

FANON, Frantz. Pele negra, mascaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: Editora EDUFBA, 2008.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do Patronado Político Brasileiro. 16ª edição. São Paulo: Editora Globo, 2004.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 3ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil: República da Époque à Era do Rádio. Coordenador-geral da coleção: Fernando A. Novais; Organizador do volume: Nicolau Sevcenko. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. – (História da vida privada no Brasil; vol. 03)

Referências Bibliográficas:

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42Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013

Marcella de Campos CostaKleber Aparecido da Silva

A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor

Graduandos do curso de Sociologia e Política da Escola de Sociologia e Política

de São Paulo

Resumo

Através da obra de Lima Barreto Recordações do escrivão Isaias Caminha analisamos de que forma a educação, no contexto brasileiro, é vista como uma ferramenta emancipadora, mas que também acaba por reproduzir velhas estruturas sociais e raciais. A herança escravista e a divisão por classes de cor ainda se fazem presentes no Brasil, podendo ser percebidas na educação e na cultura, por exemplo, pelos entraves da linguagem e do debate sobre as cotas raciais. Isaias Caminhas, personagem de Lima Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens brasileiros, em sua maioria vindos das periferias, que tentam trilhar um caminho de ascensão social, mas que ainda hoje são barrados pelos preconceitos e dificuldades impostas pela sociedade.

Palavras -Chave

Educação; Classes de Cor; Ascensão Social; Lima Barreto.

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A história nos mostra diversos exemplos dos homens em busca de emancipação e poder, que hoje passa preponderantemente pela ascensão econômica e o direito de consumo.

O direito de consumo torna evidente a fragilidade de atender necessidades básicas como o reconhecimento de cidadania munido de direitos sociais. O Estado ao invés de diminuir a desigualdade racial e social, promove a queda de juros e incentiva o poder de compra. Mas, ainda assim, o acesso à educação, a cultura e ao espaço público é negado pelas autoridades. Uma camada da sociedade acredita que se igualar a economia, todos teriam o mesmo direito de concorrer de maneira justa a vagas nas universidades e melhores postos de trabalho. Outra parte da sociedade aposta que há uma dívida com a comunidade negra, sendo assim reivindicam cotas, principalmente para inserção nas universidades públicas.

Há uma dificuldade do poder público de atenuar o abismo existente entre uma classe de cor e outra, acentuando-se a desigualdade racial, de renda, saúde e educação entre brancos e negros. Muitos apontam o sucesso do homem por aquilo que ele conquistou com a sua força de trabalho, pela determinação pessoal e posição financeira. Sabemos que não é só isso, uma série de fatores interfere no êxito do indivíduo, pois será preciso percorrer longos caminhos que muitas vezes se apresentam de maneira íngreme. A educação escolar é a força motriz da tão sonhada ascensão social, mas também se faz necessário o capital cultural que facilite a incursão desse agente.

Na obra de Lima Barreto explicita-se a discrepância cultural, mas que de certo modo alavanca os desejos do menino Isaias Caminha: “A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível

mental do meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso; deram-me anseios de inteligência”. (Barreto, 2011, p. 67)

Não basta o acesso escolar, mas também é necessário uma estrutura familiar, que propicie os anseios do educando, seja com a refeição diária ou a inspiração obtida através da cultura familiar, pois é no seio da família que primeiro nos deparamos com o mundo. Mas, nem todas as famílias podem propiciar um ambiente intelectualizado e instigante, com uma excelente biblioteca doméstica, nem todos os pais tem a disposição em debater diversos assuntos com os seus filhos.

Os meios pelos quais se chegam à educação, e posteriormente ao sucesso, seriam mediados pelo Estado que possibilitaria acesso continuum, mas na prática como diria Carlos Drummond de Andrade “no meio do caminho tinha uma pedra”. Os obstáculos são variados - da cor da pele ao status sócio-econômico encontramos os entraves de um Estado pouco ineficaz na representação máxima de seu povo.

Uma das pedras encontradas no caminho poderia ser chamada d’o câncer da sociedade. O racismo, que ainda hoje sobrepuja a consciência do cidadão, inviabiliza e obstrui as relações sociais no mais estrito conceito, pois ainda não superamos essa doença maligna que interfere no desenvolvimento de um país livre dos preconceitos de cor e pobreza.

Segundo o autor da obra “Racismo e Luta de Classes”, Serge Goulart nos lembra que “o Brasil e Cuba foram os dois últimos países do mundo a eliminar a escravatura como base de um modo de produção”. (Goulart, 2002, p.11)

Goulart (2002) continua a exemplificar, que no Brasil havia duas linhas constrangedoras que se encontravam no caminho desse país ainda regido

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exemplificada aqui, tornou-se mais harmoniosa e estável a relação do negro no âmbito sociocultural brasileiro, Munanga alerta que “está ideia ainda paira em nosso imaginário social”. (MUNANGA, 2006, p. 107).

As raízes históricas relacionadas aos negros no Brasil continuam presente no imaginário do homem, que mesmo por avanços obtidos pelas lutas de pretos e pardos ou de políticas reformistas, ainda encontram dificuldades perante toda a sociedade, seja a priori nas escolas, nas universidades públicas ou até mesmo ao desfrutar do espaço público.

A marginalidade também foi subscrita pelo modo de abolição, que em contraponto dos EUA, “o fim da escravidão para aqueles que trabalhavam nas fazendas não significou o acesso a terra. Significou seu despejo das fazendas”. (Goulart, 2002, p.17). A sociedade brasileira é baseada nesse atraso, e traz consigo marcas profundas cravadas em cada indivíduo.

Poucos países carregam tantos e tamanhos problemas educacionais como o Brasil, para Florestan Fernandes isto também é resultado de uma herança deixada pela sociedade escravocrata e senhorial, pois “recebemos uma situação dependente inalterável na economia mundial, instituições políticas fundadas na dominação patrimonialista e concepções de liderança que convertiam a educação sistemática em símbolo social dos privilegiados e do poder dos membros e das camadas dominantes” (Fernandes, 1989, p. 162). Florestan também acredita no papel da educação na moldagem do homem, homem este que busca a sua identidade, procura reconhecimento perante os familiares e a sociedade. Em um país com tantas desigualdades sociais e econômicas como o Brasil a educação ainda é considerada um dos poucos meios de se alcançar o almejado, ou seja, a estabilidade financeira e, não menos importante, o

pelas amarras do modo de produção escravocrata, Serge diz: “O desenvolvimento capitalista no Brasil só podia avançar com a transformação do trabalho escravo em trabalho assalariado”. (Goulart, 2002, p.13)

Vimos aqui que a questão racial foi o óbice do acanhado desenvolvimento da sociedade brasileira que queria avançar na relação geopolítica com o restante dos outros países, como os EUA que já havia liberto os negros e não apenas isso, mas também terras para o plantio agrícola.

Não obstante, no Brasil, a combinação da pressão da Inglaterra, até então rainha dos mares e senhora incontestável da economia capitalista, que já havia impulsionado os movimentos de independência nas colônias ibéricas das Américas, exigia uma modificação na situação do Brasil. Mas, também lutas internas contra a escravidão, desde um ideário abolicionista a levantes nas senzalas, dinamitaram o escravismo na segunda metade do século XIX.

A luta do povo negro no Brasil não foi um processo simples, a assinatura da Lei Áurea (que aboliu a escravidão), não foi suficiente para resultar em uma solução favorável, pois nesse momento teríamos um contingente de homens e mulheres livres, mas sem direção, sem trabalho, sem moradia.

Não foi através da lei que se ganhou a condição de livre voo, pois não estavam isentos dos grilhões da injustiça sócio-racial. Não houve a prerrogativa de uma ascensão ou emancipação com oportunidades como aquelas dadas aos brancos, sobretudo, às camadas ricas da população. Suas práticas religiosas e liberdade de expressão estavam subjulgadas pela classe de cor branca dominante.

É preciso destacar as lutas de resistência negra e desmistificar a Ideia que pós a Lei Áurea já

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constituíam não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um título para superior respeito dos homens e pra a superior consideração de toda a gente. (Barreto, 20112, p.67)

Essa abertura demonstra-nos a figura do mulato pobre que ainda não se reconhece como tal. Vê o pai, que é branco, “fortemente inteligente e ilustrado” e sua mãe com uma origem obscura que trata seu pai de maneira cerimoniosa, quase como uma empregada se dirige ao patrão.

Vendo a sua mãe triste, Caminha ainda não a via como uma escrava alforriada e sim imaginava que a consternação era devido à discrepância da educação da mãe com a do pai. “Se minha mãe me parecia triste e humilde – pensava eu naquele tempo – era porque não sabia, como meu pai, dizer nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva” (Barreto, 2012, p.68).

O contraste familiar não atenuou os desejos e aspirações de Caminha. Foi com esses sentimentos que entrou para o curso primário, não hesitou, dedicou-se açodadamente ao estudo e não demorou em brilhar e o mundo era como se estivesse esperando para continuar a evoluir. Era assim que Isaías Caminha se via.

Como era de se esperar, com o tempo a energia de Isaias não diminuiu cresceu sempre progressivamente. Sua professora, dona Ester imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio.

Para alcançar seus objetivos Isaias “fugia aos brinquedos, evitava os grandes grupos [...]” (Barreto, 2012, p.68). No Liceu não foi diferente, teve uma boa reputação, quatro aprovações e muitas sabatinas ótimas, descreve Lima Barreto. Isaias lamenta pelas poucas recordações de seus professores do curso secundário, a única descrição que faz a eles é que eram banais. Além do mais, eles não tinham os olhos azuis de dona Ester, que

status quo, o reconhecimento.

O personagem principal da obra Recordações do escrivão Isaias Caminha de Lima Barreto, pode ser tomado como exemplo dessa busca incansável pelo reconhecimento perante a sociedade. Este sonha em encontrar seu espaço, sua importância através da educação e de um título, como demonstra o trecho “Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos...” (Barreto, 2012, p. 75). Este é o caminho encontrado por muitos jovens, mas a educação se faz insuficiente e isso se agrava se levarmos em consideração as diferenciações das classes de cor, que fomenta a desigualdade na busca pelas oportunidades de inserção e reconhecimento socioeconômico.

Na obra Recordações do escrivão Isaias Caminha o autor, Lima Barreto, nos coloca diante de uma incrível sensibilidade de mesclar problemas pessoais do personagem principal, que segundo Prado (1989), traz em seu cerne características do próprio escritor, e problemas sociais recorrentes como a desigualdade racial, econômica e educacional.

Lima Barreto inicia o livro nos mostrando a vida e a formação do personagem principal, Isaias Caminha, filho de um padre bem sucedido e educado com uma mãe mulata ex-escrava, descrita pelo próprio filho como obscura por sua ignorância. Rapaz bem criado e educado aos moldes burguês pelo pai, do qual o filho Isaias Caminha nutre grande admiração e orgulho, principalmente por seu vasto conhecimento e educação.

O espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento.Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las

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de ser doutor, pois como dizia Isaías:

‘Ora Felício!’ pensei de mim para mim. ‘O Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também – eu que lhe ensinara, na aula de português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por quê!?’ (Barreto, 2012, p.70)

Como motivador ou apenas inveja, Isaías se coloca a desejar o título de doutor, sonhava em se formar, em ter um anel no dedo, andar nas ruas, nas praças, pelas estradas de cartola e sobrecasaca, com as pessoas o chamando de Doutor e se importando com o seu dia. Para Isaías isso seria sobre-humano. Neste ponto da obra Isaías começa a enfrentar o conflito que, segundo Nietzsche (1998), é natural ao homem, à busca pelo poder e autoafirmação.

Como todo rapaz mulato, pobre e brasileiro da época que aspirava qualquer tipo de ascensão e consideração da sociedade era necessário um apadrinhamento, ou seja, alguém de grande importância e prestigio nas elites para sustentar a jornada do jovem rumo ao topo e que o apresentasse a elite de modo a ser ao menos aceito. É exatamente o trajeto que Isaías Caminhas acredita que irá traçar, mas ao chegar à cidade do Rio de Janeiro se depara com outra realidade e percebe que terá que alcançar seus objetivos sozinhos, terá que conseguir seus estudos para ser doutor sem ajuda e mais do que isso, se depara com o preconceito contra o negro.

Conforme discutido acima o preconceito é uma problema enraizado na sociedade brasileira e passa por todos os âmbitos, mas nos interessa especificamente na educação. Já na época que a obra retrata, inicio do período republicano, a seleção educacional, conforme nos mostra Florestan Fernandes, é baseado em privilégios (de riqueza,

“tão meigos e transcendentes que pareciam ler o meu destino” dizia Isaias. (Barreto, 2012, p. 69).

Entendemos que o homem para encontrar o reconhecimento social, precisa de alguns determinantes, como um país que proporcione uma estrutura física e política de escolas, e também de professores bem preparados que façam uma leitura crítica de mundo. Não apenas por uma cosmovisão e sim pela interdisciplinaridade.

Que esses professores vejam seus alunos como indivíduos socioculturais, prenhes de conhecimentos do cotidiano social e geográfico. Só assim os professores poderão conquistar e mediar à ascensão dos futuros protagonistas da sociedade.

Quando uma cidade ou localidade qualquer não oferece subsídios para o processo sócio educacional e mercado de trabalho, muitos precisam migrar para outros locais que favoreçam maior espírito cosmopolita.

A migração para cidades de maior desenvolvimento socioeconômico é de dúbio acento. Há forte tendência para a ascensão social quanto para extrema pobreza e tamanha dificuldade estrutural da infraestrutura urbana.

Mesmo assim, o nosso personagem Isaías Caminha escutava uma voz que dizia para ir para o Rio de Janeiro, pois sua cidade já não bastava, não era suficiente para atender seus sonhos. Isaías colocou-se a pensar e a medir as consequências ao mudar para a cidade grande.

Um dia, ao ler o Diário de *** verificou que Felício, um antigo condiscípulo, se formara em farmácia, e como dizia o Diário, houve uma estrondosa manifestação da parte de seus colegas. (Barreto, 2012, p. 70)

Havia uma motivação que apontava para o empreendimento dos seus sonhos, era a vontade

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habilidades culturais e de letramento são ignoradas e muitos o julgam inadequado para o trabalho, mesmo fugindo a regra, pois havia tido uma educação básica espetacular aos moldes da elite.

O personagem de Lima Barreto, Isaias Caminha, não consegue atingir seu objetivo inicial, se tornar doutor, mas consegue um emprego por indicação em um famoso jornal do Rio de Janeiro da época. Neste jornal Isaias sofre uma transformação, apesar de permanecer buscando por seu reconhecimento e a consideração de toda a gente. Este que antes tinha que driblar os preconceitos agora passa a agir de forma preconceituosa. Na concepção de Isaias para ser jornalista era necessário um embasamento educacional e cultural elevado, qualidades que muitos dos seus colegas de trabalho, em sua perspectiva, não tinham. A soberba de Isaias passa também pela linguagem, que segundo Gnerre (1987), é símbolo de status e poder, aliás, ferramenta de poder para quem a detém. Isaias passa a julgar as pessoas de seu convívio pelo seu modo de falar e pela linguagem utilizada. Os de fala mais rebuscada eram detentores de bons estudos e de capital cultural superior aos demais, sendo assim tinham reconhecimento e importância para a sociedade. Mais uma vez o conhecimento é utilizado como elemento de segregação e para qualificar os homens. A norma culta da língua que remete a poder e a persuasão é transmitida através do processo de educacional, não apenas escolar, mas também no ambiente familiar, pela influência dos pais nos hábitos de leitura. Isaías além de ter tido boa educação contou também com o conhecimento das grandes obras de literatura que seu pai lhe proporcionou. Assim, o personagem principal de Recordações do escrivão Isaías Caminha, dominava os códigos linguísticos, muito diferente de grande parte dos jovens negros e mestiços, que

de posição social, de poder, de raça ou religião). Era de interesse das elites ‘deseducar’ a massa, ou seja, os desprivilegiados, negros, mulatos, mestiços e pobres. Estes tinham seu...

horizonte cultural claramente delimitado, porque afinal de contas, a cultura cívica era a cultura de uma sociedade de democracia restrita, inoperante, na relação da minoria poderosa e dominante com a massa da sociedade. Essa massa era a gentinha; e, para ser a gentinha, a educação seria perola, que não deveria ser lançada aos porcos (...). (Fernandes, 1989, p. 162)

Ainda hoje nota-se essa fragmentação da educação por classes sociais e, consequentemente, classes de cor, se levarmos em conta a herança escravocrata descrita nas páginas acima. As escolas públicas da periferia são, muitas vezes, abandonadas pelo poder publico e deixadas a sua própria sorte. De todos os lugares, mídia, família, professores etc., os alunos recebem a carga e a responsabilidade da sua formação e de seu futuro. Delega-se a eles a tarefa de “estudar para ser alguém na vida” e “ter um futuro”, amenizando assim as desigualdades sociais que sofreram a vida toda. A educação permanece hoje seletiva, tomemos como exemplo as universidades públicas, onde apenas alunos com repertório cultural e educacional superior ao da maioria é que conseguem ingressar nessas vagas, ou seja, alunos de escolas privadas ou publicas dos bairros centrais tidas como modelo.

Eis a briga do sociólogo Florestan Fernandes, a briga por uma educação mais democrática, onde a qualidade do ensino não leve em consideração a “qualidade do homem” (etnia, classes, região, origem e gênero).

Isaías que passa a enfrentar a questão das classes de cor não consegue facilmente um emprego que lhe proporcionasse estabilidade para frequentar os estudos. Por ser mestiço, suas

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linguagens de ensino-aprendizagem. Assim como oficinas de artes, esporte e lazer, esses novos gêneros educacionais aguçariam a criatividade e dariam novas percepções de mundo que fossem transformadoras e libertárias.

A esperança é decisiva para provocar mudanças individuais e sociais. Mesmo que muitos a compreendam como força alienante, ela impulsiona pessoas e grupos ao encontro de saídas, mesmo que incipientes. Ela gera coragem e amor à vida, leva sujeito a apreciar os fragmentos de emancipação, a permanecer disponível e a providenciar o necessário alimento para que esses fragmentos fertilizem e cresçam. Por lado, a desesperança profetiza a morte do sujeito e o compele à autodestruição, ao lançar sobre os fragmentos emancipatórios possíveis seus vaticínios agourentos. Admitir a morte do sujeito é não compreender a história como síntese de múltiplas determinações, construídas a partir das correlações de forças, dentro de várias possibilidades de saída, presentes no local e no regional, no nacional e no mundial. (Souza Neto, 2011, p. 170)

No mesmo livro o autor ainda nos faz lembrar que “o homem também é produto e produtor do seu cotidiano e de sua história” (NETO, 2011, p. 178). Negar esse axioma é negar a condição humana, por isso se faz importante não observar apenas a questão econômica e sim a questão cultural que é construída pelo indivíduo.

2

Isaías termina o seu relato confessando seu desapontamento quanto aos desfechos que sua vida ganhou. Seu árduo caminho rumo à ascensão e reconhecimento social, que começou quando saiu do seio familiar e se atirou a uma aventura no Rio de Janeiro para ser doutor, é cheia de altos e baixos.

precisam aproveitar possibilidades reduzidas do processo de aprendizagem.

Dominar os códigos linguísticos, a fala rebuscada e a cultura literária são para as sociedades complexas fatores expressivos no processo de reconhecimento social e na busca do status quo, pois possibilita mobilizar pessoas, influenciar opiniões e demonstra educação sofisticada (Bourdieu, 1977). O prestígio de Isaías no jornal em que trabalha aos poucos vai sendo moldado e este assume uma postura preconceituosa e segregadora. Este problema de descriminação pelo falar é nítido já na época em que a obra se passa e persiste nos dias de hoje, por exemplo, o uso de gírias, muito comum em periferias onde a educação é precária, é ligada diretamente a marginalidade e a pessoas desprivilegiadas socialmente.

A língua que nos une é a mesma que nos separa. Isaías parece se esquecer das suas origens, do caminho trilhado para o reconhecimento da sociedade burguesa de seu tempo, assim como hoje, apenas queria reproduzir os valores dessa classe.

Os valores burgueses não se dão apenas no âmbito econômico, mas também se apropriam de outras formas de dominação como pelo substrato linguístico. A língua culta restrita na classe dominante e aqui enfatizo mais uma vez que não se trata apenas do economicismo, mas também do academicismo, ganhando cada vez mais força segregadora do que concerne a exclusão social.

Assim como as gírias, novos códigos são elaborados, e está claro que a educação formal não deu conta de subsidiar crianças e jovens negros ou pobres para que com a forma culta pudessem decodificar o mundo e seus signos.

É preciso esperança que outras fontes de educação, que não seja a formal, utilizem novas

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Durante o livro percebemos que em sua chegada logo nota que lhe tratam diferente pela sua cor, após entrar no jornal acaba tendo certos contatos pela sua educação de “gente abastada”, mas logo desiste de buscar seu sonho de títulos e prestigio. Contenta-se com o pouco que a sociedade carioca do século XIX se propõe a lhe dar.

Lembrava-me... lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres... Sentia-me parasita adulando o diretor para obter dinheiro... Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha meninice eu não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império. (...) Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado em um outro qualquer. Tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco devido aos outros e um pouco devido a mim. (Barreto, 2012, p.300-301)

Este é o destino de muitos negros no Brasil, que tenta esconder sua face preconceituosa com discursos como “ser contra a cota porque os negros têm a mesma capacidade” e “os negros também são racistas”. Estes discursos só ignoram o fato de que o caminho que os negros e pardos percorrem pra chegar onde almejam é, quase sempre, mais árduo do que o do branco. Podemos evocar um caso atual de homem negro brasileiro “que deu certo”, o ministro Joaquim Barbosa. Pessoas utilizam sua imagem para veicular mensagens com dizeres que indicam que se ele conseguiu chegar

todos os desfavorecidos (negros e pobres) também conseguem sem cotas, mas esquecem de citar que o cenário que ele encontra é de um poder judiciário onde apenas 13% dos juízes são negros e pardos, e estes ganham em média 14% a menos do que seus colegas brancos. Além disso, ignoram que a herança escravocrata ainda faz cegar alguns olhos do quadro social brasileiro com seus reflexos de forma nítida. Há quem ainda ache natural termos uma quantidade imensa de “patrões” de cor branca e “peões” de cor negra e parda, num país onde sua maioria populacional é composta por negros, pardos e mestiçosi.

Neste ensaio tentamos demonstrar como a educação e o conhecimento são utilizados como ferramenta para se alcançar o reconhecimento perante a sociedade e a ascensão social. No entanto ainda hoje para muitos brasileiros não há garantias de êxito nesta busca, pois há os empecilhos impostos por uma sociedade ainda muito marcada pela escravidão e os preconceitos entre classes de cor.

Isaías Caminha, personagem de Lima Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens brasileiros, em sua maioria vindos das periferias, que tentam trilhar um caminho de sucesso, mas acabam barrados pelos preconceitos e dificuldades impostas em sua educação formal.

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i Cerca de 191 milhões de brasileiros em 2010, 91 milhões se classificaram como brancos, 15 milhões como pretos, 82 milhões como pardos, 2 milhões como amarelos e 817 mil indígenas. Registrou-se uma redução da proporção brancos de 53,7% em 2000 para 47,7% em 2010, e um crescimento de pretos (de 6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para 43,1%). IBGE - 2011.

Notas:

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Nirlyn Karina Seijas Castillo

Curadoria de Artes, Micropolíticas Culturais para a América Latina

Artista da dança, mestranda do programa multidisciplinar de pós-graduação em cultura

e sociedade da Universidade Federal da Bahia, Especialista em Estudos Contemporâneos em

Dança pela Universidade Federal da Bahia, e Licenciada em Dança pela Universidad

Experimental de las Artes, Venezuela. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança. Diretora Geral e Curadora da

Plataforma Internacional de Dança/Bahia. Produtora executiva da Coreógrafa e Bailarina

Gilsamara Moura. Coordenadora Geral do Catálogo Virtual de Dança/BA 2012

Resumo

Este artigo pretende questionar as possibilidades de ação política envolvidas no trabalho da curadoria de artes. Faz um percurso pelo entendimento da curadoria da contemporaneidade, suas funções, suas possibilidades de escolha e de influencia sobre determinados contextos e ambientes, apontando sua capacidade de dar visibilidade à produção artística e de gerar discursos através das mostras artísticas que promove e organiza. A partir desse raciocínio inicia uma reflexão, na tentativa de construir cruzamentos sobre pensamentos críticos que convocam sugestões e estratégias para dinamizar o desenvolvimento cultural na região latino americana.

This article aims to question the possibilities of political action involved in curatorial practices. It is a journey through the understanding of contemporary curatorial work, its functions, its choice and influence over certain contexts and environments, indicating its ability to give visibility to artistic production and to generate discourses through the artistic activities that it promotes and organizes. From this reasoning begins a reflection in an attempt to build a bridge over the critical thoughts that call for suggestions and strategies to boost cultural development in the Latin American region.

Palavras -Chave Keywords

curadoria, desenvolvimento, políticas culturais, America Latina.

curatorial practice, development, cultural policies, Latin America

Abstract

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Artigos

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Dos críticos aos curadores

Parto do pré-suposto de que a “teoria da arte” foi construída pelos críticos e pelos historiadores. Contudo, nestes últimos 50 anos, esta tarefa vem sendo distribuída em diversas mãos, dando mobilidade, diversidade de narrativas e multiplicidade de visões que fazem da arte um universo ainda mais complexo.

Assim, a teoria de arte normalmente construída a partir da crítica, passou das mãos dos “críticos especializados” às mãos dos artistas que decidem cada vez mais argumentar, teorizar, escrever, criticar seus próprios trabalhos e os trabalhos de seus colegas artistas, determinando assim o fim do poder que envolvia a figura do crítico e deslocando-a então à curadoria, por ser, na sequencia, a figura que decide de forma prática os rumos da arte visível (eles decidem o que circula, o que se mostra, o que se vende).

Hoje a curadoria tem potencial para transformar as artes pelo simples fato de gerar visibilidade para umas questões e outras não. Este “poder” pode ser utilizado para aportar de maneira prática e concreta ao desenvolvimento de um pensamento-conhecimento cultural em determinada região onde age, para modificar realidades, para criar discursos necessários ao mundo de hoje, para fazer circular o conhecimento construído coletivamente por artistas, ou (claro!) pode se constituir como uma simples estrutura de poder, onde arbitrariedade, o interesse pessoal, a repetição dos modelos impostos, etc, tem espaço para continuar existindo de forma influente e radical na cena das artes.

A curadoria na contemporaneidade também não sempre escapa das mãos destes novos artistas que se colocam como criadores e pensadores, como intérpretes e gestores,

Curadoria de Artes, Micropolíticas Culturais para a América LatinaNirlyn Karina Seijas Castillo

como acadêmicos e experimentadores, sempre transitando e permitindo com esse transito que os fazeres se complexifiquem, se relativizem e se enriqueçam.

De qualquer forma, o que realmente é importante salientar neste artigo é que a natureza da curadoria pode permitir uma transformação tanto da atividade da própria crítica, quanto da prática artística e da relação com os espectadores, pois ela estabelece outros nexos com as materialidades das obras, suas apreciações, avaliações e localizações. (FERREIRA, 2010, p. 47).

Compromisso político na prática curatorial

A partir do surgimento das artes contemporâneas, se cria uma nova situação para a curadoria, que vai além do velho conceito do curador como zelador do acervo de arte e da a ele uma noção de organização, criação de discurso, amplificação de visão e propositor de políticas de entendimento, percepção, poder.

Pode agir no seu âmbito muito particular (a curadoria) como espécie de gestão cultural, de forma que pensa o que de seu contexto pode ser movimentado para obter outro resultado, cobrir uma carência, fomentar certas questões, e então agir na sua prática com consequência a isto.

O discurso curatorial tem a capacidade de falar sobre questões políticas e estéticas que colocam ao curador no lugar dos formadores de opinião, que permitem e promovem reflexões sobre a cultura de sua sociedade, trazendo à luz noções diversas sobre uma questão que podem modificar o jeito em que as enxergamos.

Conhecer bem o meio onde se apresentará a exposição, ter uma posição sobre o que é necessário de ser apresentado e estabelecer o que queremos promover nesse meio, são elementos fundamentais

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para gerar uma mostra artística que mobilize o senso dos espectadores para uma determinada direção. É importante pensar no que faz falta em nosso espaço e pensar como a curadoria de arte pode apontar para essas reflexões.

Os curadores assim como “os artistas, não estão acima da realidade política: a sua liberdade não é de modo nenhum imunidade, antes se realiza precisamente na força e na clareza das suas intervenções”. (ARGAN, 1995, p. 45). Os curadores devem pensar muito bem a quem estão dirigindo o seu discurso, como aporta esse discurso a determinada realidade, e em que âmbito está atuando porque, por exemplo, um festival internacional pode querer refletir sobre a complexidade das relações culturais, revelando o potencial da pluralidade, e as relações multiaxiais, explorando uma idéia de cultura global; mas uma mostra local num bairro em situação de risco pode possibilitar discussões sobre a violência, a responsabilidade social, as diferenças de oportunidades, promovendo sempre o diálogo entre uns artistas e outros e entre alguns públicos e outros.

As possibilidades são infinitas. Basta ser estudioso, propor uma discussão pertinente ao contexto e estudar quais são as obras que colocadas em relação, podem ajudar a se inserir nesta discussão e trazer visões sobre o assunto, às vezes sendo incisivo, às vezes sendo tangencial, às vezes sendo discreto, tudo vai depender do contexto onde se está inserido.

Esta forma de criar discursos e questionamentos tem tanto a ver com o sistema geral da arte como com a idéia local da produção e da vida em determinado país, cidade, bairro, etc. Não é o mesmo questionamento que pode ser produzido na América Latina e na Índia, nem o mesmo em Belém do Pará e na cidade de La Paz

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(Bolívia). Não é que seremos bairristas no sentido mais retrograda, mas com certeza as questões são contextuais e serão mais potentes se temos consciência disso. Uma mostra artística tem um local de “residência”, e também terá territórios imaginários em cada um dos espectadores, desdobramentos culturais por todos os signos e imagens propostas nas obras, em fim, reverberações não sempre mapeáveis a priori. As exibições, por tanto tem amplitude tanto local quanto global, é uma das propostas do mundo nas quais a gente pode pensar global e agir local e vice versa, em função de não perder de vista a complexidade do fenômeno artístico e suas implicações na cultura.

O discurso curatorial que aporta ao âmbito do político convoca a ideia da curadoria como um “dizer alguma coisa”, como um manifesto que não só se gera através de algum texto que o curador possa produzir para acompanhar sua mostra, se não que é um discurso que aparece também na materialidade da mostra artística, na organização das peças expostas ou apresentadas, nos recortes propostos, em cada obra mostrada, no estudo que se realizou antes, no acompanhamento de certos artistas, obras, tendências, na capacidade da curadoria de ser um termômetro de diz qual é a temperatura da arte e quais são suas propostas.

Potencializando discussões através da curadoria

O ponto chave da curadoria é a forma como a mostra se apresenta, este é o diferencial para este espaço potencializar outros assuntos ou não. É na montagem da grade programática que o curador consegue expressar seu ponto de vista. Cada escolha pode refletir os objetivos, as condições e as ideologias da curadoria. No melhor dos casos, a organização do espaço-tempoi faz que o espectador perceba a clareza da informação

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que está em jogo, tanto das obras como unidades de sentido, quanto da exposição como unidade de conteúdos e sentidos culturais.

A mostra artística feita através de uma curadoria, cria conhecimento, sentidos, cadeias de pensamento e ação. Na prática o discurso do curador se faz através das relações estabelecidas entre as obras, assim como na própria materialidade dos trabalhos escolhidos; essa é uma possível lógica do “dizer algo” de um curador. Os curadores geralmente explicitam de formas inusitadas, que tipo de relação está querendo propiciar com essa curadoria, manifestando seu ponto de vista, articulando as peças apresentadas com esse ponto de vista e garantindo que essas aproximações sejam percebidas também pelo espectador.

A realização da mostra artística se configura como uma “criação” do curador, onde ele conjuga conclusões de suas análises, os quais estarão em relação com o objetivo da mostra e algumas outras coisas ressaltantes, à natureza e materialidade própria das obras escolhidas, seus próprios aportes criativos, éticos, estéticos, ideológicos e compositivos, configurando um espaço para a defesa de ideias e apostas políticas curatoriais que versam sobre as obras, sobre o status da arte, sobre a contemporaneidade.

Para isto, e já o tínhamos comentado antes, um curador deve ser um estudioso tanto da história da arte e da cultura quanto da cultura e arte contemporânea que se faz no seu tempo e região. O curador pode ser um pensador da área na que se envolve em função de não sucumbir à tentação de só fazer circular aquilo que gosta; muito menos quando se trata de dinheiro público. A relação entre o público e o privado deve ser cuidada exaustivamente. O curador exerce o direito à liberdade de pensamento, mas isto não suspende sua responsabilidade social, pois faz uso público da

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sua reflexão e por isso deve estar em plena relação com a história e a vida política do contexto.

Talvez precise ter capacidades aguçadas de reconhecer o discurso que vale a pena ser dito e buscar as peças, as equipes, as estruturas para fazer este discurso existir. É fundamental pensar o espaço da mostra de arte como um possível espaço de confronto, diálogo, confluência e reflexão, de prática política, sobre onde estamos e para onde queremos ir. Nesse sentido, espera-se que os curadores saibam relacionar as lógicas das obras de artes com a história da arte e o contexto da sua realização com outros trabalhos de arte que constituam um campo de conhecimento que esteja dentro da discussão atual.

A curadoria pode ser uma micro-política cultural para America Latina?

É possível fazer um exercício para reconhecer certos aspetos sobre nossa região que podem e devem ser salientados pelas práticas curatoriais feitas neste contexto? Como a curadoria pode abranger a complexidade de territórios e culturas que implica esta parte do mundo?

Vale a pena uma reflexão a este respeito, pois algumas coisas em comum conectam esta Latino-América entre si, mesmo que às vezes nos parece que cada país tem sua historia e sua especificidade, é possível ao meu entender achar confluências de necessidades e preocupação tanto estéticas quanto artística, políticas, econômicas, em fim, culturais.

Circular, viajar, vender dentro da América Latina

Pesquisas culturais e artísticas (Bourdieu, Eco) demonstraram que a criação cultural se forma também na circulação e recepção dos produtos simbólicos. É necessário, por tanto, dar importância, nas políticas

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culturais, a esses momentos posteriores à geração de bens e mensagens, isto é, ao consumo e apropriação das artes e da mídia. (CANCLINI, 2008, p. 76)

Comecemos por situar algumas questões a mais das já ditas sobre o ofício do curador. Convido a pensar em que posição da cadeia produtiva das artes está a pratica do curador. Na minha percepção este fazer muda muito com respeito às inquietações de cada curador, mas, geralmente, o curador faz parte de um estádio muito importante da produção artística que é a distribuição, circulação e mobilidade dos produtos simbólicos que são produzidos por artistas no mundo inteiro. É aqui, que seu papel é fundamental. No momento em que a obra é consumida, por quem, onde, como, antecedida por que, sucedida por que, são perguntas fundamentais na curadoria.

Uma curadoria, com ferramentas para responder estas perguntas, tem o potencial (como dizemos ao principio do artigo) de modificar o rumo da produção artística e de sua recepção também. O momento do consumo cultural é fundamental para alcançar uma familiaridade com a produção artística que desdobre em relações mais aprofundadas entre vida e arte. Uma curadoria que só sucumbe a razões econômicas, pressões da “moda” artística, sobrevaloração de estilo ou tipo de obras, sem pensar em como isso afeta o contexto que toca e como poderia ser transformador fazer diferente, perde a maior parte de sua possibilidade de mudar a realidade do contexto onde está sendo realizado. E perde a possibilidade de se pensar como “micro política” onde se traçam objetivos na base da pesquisa, da instigação e da compreensão do meio com o que lidamos.

A geração de familiaridade e de apropriação por parte dos cidadãos aos bens simbólicos é indispensável para compreender a dimensão e

importância que estes podem ter na construção de uma Latino-america mais potente como região simbólica e cultural. Como podemos os curadores gerar esta familiaridade, quais são os mecanismos que vamos utilizar para aproximar (sem satisfazer de forma solta) nossos cidadãos das preocupações que ocupam a arte e que são de forma direta preocupações que dizem sobre todos nós, alguma parte sempre nos atinge, ou pelo menos pode abrir as portas para novas percepções, enriquecimentos e visões de mundo.

As políticas culturais, e fazendo o transito, as políticas curatoriais, devem contrarrestar os efeitos de uma tendência à privatização dos bens simbólicos, e de uma apropriação da mídia que acaba com construções polifônicas e multidirecionadas. Parecesse impossível, mas é esse um dos principais papeis de uma mostra de arte, sua capacidade de aproximar e mostrar aquilo que você não vê sempre na TV comercial e que também pertence às construções simbólicas de nossos cidadãos.

A criatividade cultural desenvolve neste triangulo ESTADO, MERCADO e ARTE, um papel importantíssimo porque é quem pode dilatar, movimentar e realinhar os espaços de integração cidadã, integração transnacional, transcultural, etc. “Promover políticas culturais e de integração no meio às novas formas de privatização transnacional exige repensar tanto o Estado como o mercado, e a relação dos dois com a criatividade cultural” CANCLINI, 2009, p.76

Todo profissional que entenda, trabalhe e movimente noções sociais e públicas, deve se questionar qual é o verdadeiro significado do público, e de como o público (último estágio da cadeia produtiva) esta sendo nestes tempos dominado por certa produção cultural que neutraliza este sentido do público e o “privatiza”, por assim dizer, simplificando sua complexidade e

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satisfazendo os interesses do mercado em quanto produtor de sentido, de gostos e de expectativas.

Devemos nos perguntar quais são as possibilidades para que novas políticas culturais criem estruturas e estratégias para negociar espaços com esta nova privatização dos gostos, que empobrece nossos sentidos e minimiza o senso crítico da população. São precisas políticas onde “... haja lugar não apenas para aquilo que é vantajoso para o mercado, mas também para a diferença e a dissidência, para inovação e o risco. Em suma: para elaborar imaginários coletivos interculturais mais democráticos e menos monótonos” (CANCLINI, 2008, p. 79), que possam enriquecer nossas visões de mundo e abram possíveis portas para a cultura que queremos.

Hoje, o grande desafio das artes e a cultura Latino-americana é como reconhecer as áreas estratégicas do nosso desenvolvimento, inclusive pensando neste desenvolvimento não como o já fracassado conceito moderno que nos ensinaram as democracias ocidentais, se não esse desenvolvimento que condiz às características particulares de nossas práticas sociais e que melhorariam a qualidade de vida de nossos cidadãos. Porém pensando que desenvolvimento implica inevitavelmente o mercado global, o comercio de bens e serviços onde devemos nos posicionar de forma mais efetiva e clara, em função de beneficiar de forma contundente nossa sociedade.

A pergunta-chave não é com que ajustes econômicos internos vamos pagar melhor as dívidas, e sim que produtos materiais e simbólicos próprios (e importados) podem melhorar as condições de vida das populações latino-americanas e potencializar nossa comunicação com as demais” (CANCLINI, 2008, p.103).

Na curadoria este papel de reconhecer nossas potencialidades parece sempre uma tarefa

árdua. Inclusive porque viemos duma escola de formação “eurocéntrica” que pouco se ocupa em aprofundar os fazeres artísticos locais, a interação entre artistas de uma mesma região, de uma realidade política e histórica semelhante e de aprofundar a pesquisa, a experimentação e a descoberta própria. Inclusive aqueles movimentos identitarios, reduzem a manifestação de nossa cultura a um tipo de lógica esteriotipada que pouca diversidade e coesão da a nossos produtos artísticos. Viemos de uma cultura da repetição, cópia e pouco da transgreção, contextualização, resignificação.

O pior, quando pensamos na região latino-americana, é que em outros tempos esta simplificação da produção simbólica era dada pela colônia (prática o simbólica), regimes de governos nacionalistas que reprimiam a diversidade, e hoje está sendo imposta pelas grandes indústrias transnacionais (americanas, europeias e agora chinesas) que continuam determinando o que consumimos e como o consumimos neste território, fazendo que sejamos vendidos ao estrangeiro como potencia exótica quase unívoca e comprando o que eles nos vendem, seja o que for. Digamos que é como estar mudando a o santo mais não a igreja, seguimos estando colonizados. Contudo, em Latino-america existem espaços de resistência, e é possível sim promover e encontrar práticas artísticas que mergulhem na velha escola não para copiar se não para recriar o material do que preocupa, ocupa e excita o senso estético, político e artístico dos cidadãos.

Por isso, e agora nos valendo diretamente da fala do García Canclini:

Afirmar que os leitores e espectadores têm a ultima palavra na decisão do que merece circular e ser promovido é uma meia verdade dos discursos de marketing;

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uma afirmação que se mostra enganosa em sociedades onde os Estados fazem cada vez menos por formar públicos culturais, com bibliotecas entendidas como depósitos de livros e quase nunca como clubes de leitura, com sistemas educacionais que ainda não percebem – como aconteceu recentemente na frança – que aprender a avaliar os meios audiovisuais deve fazer parte do currículo fundamental. (CANCLINI, 2008, p. 79)

Sob o rotulo “o público sabe o que lhe interessa, gosta e quer”, diversos crimes culturais são realizados dia a dia nas nossas radiodifusoras, nossas televisões e nossos jornais. Como fazer frente a esta massificação incompleta da informação e da produção cultural? E como fazer frente a esta união latino-americana que se gera só através desta relação linear com o mercado estrangeiro? Quais são os tipos de integração latino-americanas possíveis fora o olho da transnacional interessada unicamente na nossa capacidade de consumir produtos trazidos e produzidos fora do nosso território e fora de nossas políticas?

Esta realidade não toca unicamente a produção cultural senão todo o consumo em geral, mas focando na produção artística que é a que tem mais a ver com curador, devemos reconhecer que as políticas de integração e distribuição dos bens culturais entre países da América são muito complexo, custoso, desorganizado e desbalanceado. Os nossos acordos de cooperação internacional pouco ou nada se ocupam de apoiar e estabelecer políticas que beneficiem a mobilidade do conhecimento que se produz em universidades, estúdios de artes, conservatórios, projetos sociais e demais iniciativas que realizamos.

Ainda baseados em preocupações sobre como abaixar impostos para levar e trazer mercadoria, não estão conseguindo abranger a produção simbólica de modo satisfatório. Não é

um segredo que trazer um artista da Espanha é mais barato que um do Equador. Um absurdo?, é, mas é a realidade. Isto é muito grave, nem os próprios gestores públicos de cultura, nem movimentos estudantis universitários, nem o movimento da classe artística tem conseguido instaurar medidas de pressão fortes que criem medidas de incentivo à mobilidade de materiais culturais dentro do âmbito latino-americano.

Será possível pensar como a curadoria influi nesta dinâmica, mesmo sendo custoso, será que podemos fazer circular sempre produtos latino-americanos, lidando de modo ágil e consciente com as diferencias políticas e históricas que esta região compreende, em função de contrarrestar a falta de posição e ação de nossos governos frente ao que chamamos mobilidade de bens e serviços dentro da região. Precisamos organizar estratégias para sensibilizar e obrigar os países a passar dessa cooperação internacional que temos, a um que “(...) trabalhe como o que é possível homogeneizar, com as diferenças que persistirão e com os crescentes conflitos interculturais” (CANCLINI, 2008, p.104).

A integração na América Latina continuará sendo uma Utopia, entre aspas irônicas ou cínicas, em quanto não houver articulação entre trabalhadores, indígenas, consumidores, cientistas, artistas, produtores culturais; em quanto não incluirmos na agenda formas de cidadania latino-americana que reconheçam os direitos de todos os que produzem dignamente dentro ou além de seus territórios de nascimento (CANCLINI, 2008, p. 105).

Nosso Mercosul, Aladi, Alca, Alba, pouco tem respondido a estas demandas, mesmo sabendo que muito se contribui para o desenvolvimento da cultura quando se tomam medidas que beneficiam esta circulação, distribuição, consumo, como

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podem ser casos europeus, japoneses, inclusive norte-americanos. A mobilidade dos bens culturais permitirá uma amplitude de possibilidade, mercado, visões e desenvolvimento da própria produção cultural, dando fortaleza à economia cultural e criativa que desde faz alguns anos vem apontando uma nova possibilidade de desenvolvimento econômico sustentável nas cidades.

Não podemos seguir recebendo de braços abertos os “presentes” da cooperação internacional europeia, que só beneficia a mobilidade de seus produtos, só para não organizar, forçar e mobilizar nossos próprios recursos em função de fazer circular nossa produção artística. Os países “centrais” estão certos em querer distribuir seus produtos, pois sabem quanto isso gera sustentabilidade para seus produtores, devemos seguir o exemplo, não só comprando, mas vendendo, mobilizando, e circulando também o que é produzido nas nossas cidades, por nossos artistas, teóricos, pesquisadores, etc.

(...) não é a mesma coisa o programa Media ou Eurimages ser aproveitado por Claude Chabrol, Pedro Almodóvar ou os canais Plus europeus do que por um diretor de cinema uruguaio, um editor mexicano ou um produtor de televisão costa-riquenha, que devem se bater com legislações pré-midiáticas nas alfândegas de seus países, com burocracias que tratam filmes e livros como objetos supérfluos. A pesar dos acordos assinados em 1998 para liberalizar a circulação dos bens e serviços culturais (a Associação Latino-americana de Integração e o artigo XIII do Protocolo do Mercosul), as práticas alfangendárias dos governos desconhecem essas facilidades (Saraiva, 1997). Isso nos leva a dois desafios estratégicos: a integração multimídia e as legislações de amparo à cultura. (CANCLINI, 2008, p. 78)

Desde o pensamento do Canclini, fica parecendo que muita responsabilidade deve

ser colocada encima da ação governamental, e compartilho esta ideia, pois devem se atualizar e aprimorar as legislações, leis de amparo à cultura. Porém, e sabendo que a complexidade e lentidão da nossa maquina burocrática demora longos períodos para poder mudar pequenos retalhos de tecido, acredito que a participação dos gestores culturais, as comissões de seleção de projetos a serem incentivados, as curadorias de arte e dos criadores de obras e projetos artísticos, sejam fundamentais nessa construção de intercâmbio de conhecimentos entre nossas populações na America latina, pensando estes atores como também fazedores de micropolíticas capazes de mobilizar a afetividade do público, o fazer artístico e o rumo da cultural.

O público, entendido como parte fundamental da relação entre a produção simbólica e a sociedade, deve ser explorado, estudado, entendido, e deve se construir uma relação infinitamente mais atrelada, pois será, talvez, a única forma de ação política que possa fazer frente à avalancha de informação padronizada que recebemos diariamente.

A criatividade cultural implica os públicos que são no final das contas, o último consumidor e construtor de sentidos e desdobramentos daquilo que entendemos como produção artística. Por esta relação é que continua sendo importante aprimorar a educação artística, o apoio aos autores, aos editores, os museus, canais de televisão, festivais de artes cênicas, que são onde estes produtos são consumidos, difundidos e distribuídos.

Os curadores de artes precisam se aproximar tanto aos artistas como ao seus públicos, estudando aprofundadamente o que pode mobilizar sua afetividade, sua capacidade de resignificação, e aprender a usufruir isto que lhes pertence como direito, se preocupando em

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estabelecer estratégias que possam garantir um consumo cultural maciço que possa ser acessados com a menor discriminação possível. “Sobretudo para descobrir e pensar como podem as culturas populares sair de seu abandono local e, com suas criações e saberes participar competitivamente do comércio global”. (CANCLINI, 2008, p.94)

Não é uma tarefa fácil pensar no público, ainda mais quando estamos na frente de uma região onde o público é latino-americano. Nesta hora é necessário lembrar-se da particularidade de se debruçar num território, um conceito e uma região simbólica tão complexa quanto a America Latina. Este território que compreende algumas dezenas de países no centro e sul América, todos multiculturais, multirraciais, com grande diversidade de classes sociais, religiões, noções estéticas, é estigmatizado por uma coesão cultural um tanto simplificada sob “uma identidade só”. Como convocar discussões na frente desta complexidade?

Por exemplo, achamos que na America Latina tudo mundo sabe dançar salsa, sendo que inclusive nos países com grande influência salseira existem não só pessoas quanto grupos culturais que não valorizam este ritmo e baile (e toda sua estética) e não dançam, não ouvem, não fazem parte, não conhecem, não se interessam. Isto é só um exemplo para localizar a quantidade de reduções que fazemos sobre o contexto latinoamericano e o perigo da reflexão que venho propor, pois acredito que só pensando na complexidade, diversidade, multidões, poderemos ter alguma aproximação a uma prática curatorial que dê conta das preocupações também múltiplas deste universo.

As identidades políticas instauradas a partir dos anos 50´s nos deixaram um ranço de unidade que muito contribui para a impossibilidade de fazer estudos suficientemente aprofundados sobre como poderemos gerar lógicas, discursos e práticas que

atendam à diversidade dos nossos espectadores, sem anular ou ignorar esta diversidade, senão fazendo dela o grande potencial de diálogo, de aproximação, de conjunção, de oportunidade.

O panorama complica porque, nestas ultimas décadas, este ser “latinoamericano” está mudando rapidamente, “A pergunta sobre o que significa ser latino-americano está mudando, as respostas outrora convincentes se desvanecem e surgem dúvidas quanto à utilidade de assumir compromissos continentais” CANCLINI, 2008, p. 24. Muitas questões estão sendo colocadas para que pensemos como fazer possível um percurso que gere tensões, gere leveza na relação e riqueza na vivência deste contexto cultural, apropriando-se cada vez mais dos compromissos com quem é familiar e não com regimes política ou economicamente estabelecidos.

Ainda tem uma questão, não menor, que identifica nossa região como uma parte do mundo que por diversas razões nos últimos anos se espalhou pela Europa, Estados Unidos, principalmente, mas também dentro da própria latino-america, construindo um mapa complexo de migrações, muitos exílios (políticos, econômicos) e outras mobilidades, sobretudo dos profissionais de classe media que transitam pelo mundo levando e trazendo conhecimentos e experiências.

“A América Latina não está completa na América Latina. Sua imagem é devolvida por espelhos dispersos no arquipélago das migrações” (CANCLINI, 2008, p. 25). Este ponto é fundamental quando queremos entender inclusive como se constroem as artes, pois neste campo, quase com religiosidade, a mobilidade, transferência, transitoriedade territorial enriquece as práticas, as acompanha, as nutre com tudo o que vá sendo recolhido no caminho. O tempo inteiro temos dificuldade de saber de onde é tal

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artista pois nasceu em Irã, mas mora entre Belgica, Dinamarca e passa mais de 4 meses por ano na America Latina. É muito típico este fenômeno nas artes, o qual complexifica ainda mais a vontade de encontrar caminhos possíveis de mediação entre saberes e fazeres locais e globais, artistas e públicos, diversidade e organização. “Podemos dizer que “o latino-americano” anda à solta, transborda seu território, segue à deriva em rotas dispersas” (CANCLINI, 2008, p. 27).

Parece-me instigante neste contexto que colocamos sobre a mesa, pensar numa curadoria capaz de influir nesta narrativa tão variada e polifônica que é América latina, aos poucos, com algumas iniciativas, desde seu espaço, seu recorte e seu poder. É um desafio que poderia convocar a discussão sobre a responsabilidade do curador na frente de seu contexto. Nesta parte do mundo há de se ser muito cuidadoso sobre nossa visão de mundo, sobre nossa capacidade de abrir caminhos, de abranger vozes diversas e de falar com vários tipos de corpos, pensamentos, ações, preocupações, urgências.

Estes pontos que assinalamos sobre a America Latina são só algumas razões “... que desautorizam qualquer narrativa não suficientemente polifônica, com fortíssimos e pianíssimos para transmitir a heterogeneidade de América Latina, suas variadas escalas de desenvolvimento” (CANCLINI, 2008, p. 31).

Essa responsabilidade do curador que nesse artigo convocamos, tem a ver como a talvez capacidade de influir neste mal chamado “desenvolvimento” da sociedade e aumento de qualidades de vida que permitam uma interação maior dos cidadãos com bens culturais que os contemplam, que os instigam e que os fazem abrir portas para uma sociedade mais aberta, mais possível, mais enriquecida, menos zenofóbica,

medrosa do diferente, racista, conservadora, precisamos gente que lide com a multidão que representa este território e que não precise fechar quadros que acalmem suas dúvidas, suas questões, suas possibilidades de criar o mundo que quer viver com menos pré-conceito e mais criatividade.

Acredito na curadoria que modifica, e pensando em América Latina acredito que uma curadoria que considera estes aspetos pode fazer diferença nas hipóteses que se propõe:

- Diversidade cultural, diversidade de públicos, diversidade de entendimento, vozes, formas, pensamentos.

- Relação entre o público e privado, entre o bem de todos e as novas formas de privatização.

- Distribuição dos bens culturais como elemento fundamental da distribuição mais equitativa da qualidade de vida.

- Circulação de conhecimento, de arte, de produção simbólica como motor de sustentabilidade e mudanças na cidadania.

- Acordos e microcooperações que possibilitem a mobilidade e visibilidade da nossa produção pode modificar a familiaridade da sociedade aos bens criativos.

- Curadoria como motor de discussões, ampliador de visões e possibilitador de novos caminhos.

O fato artístico, a mostra artística, o fazer simbólico mediado por curadores engajados com a realidade política podem mudar (em escalas desconhecidas por falta de avaliações qualitativas em longo prazo) a maneira em que nossos latino americanos se enxergam e enxergam suas riquezas e especificidades como indivíduos, como sociedade, como motor de economia, política e produção criativa, cultural, simbólica. Eis, ao meu entender, a grande potencia da curadoria na América Latina.

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i Espaço no caso das artes plásticas, visuais ou exposições onde o percurso do espectador contempla deslocamento no espaço como condição principal; tempo ou programação no caso das artes temporais como a música ou as artes cênicas.

Notas:

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Curadoria de Artes, Micropolíticas Culturais para a América LatinaNirlyn Karina Seijas Castillo

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Thiago Henrique Desenzi

Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do Republicanismo Clássico

Graduado em Engenharia Civil, Especialista em Gestão e Políticas de Cultura pela Universidade

Metodista de São Bernardo do Campo e Graduando em Sociologia e Política pela

FESPSP - Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Contato: [email protected]

Resumo

Um estudo da crise econômica mundial de 2008 a partir de um resgate das idéias do republicanismo clássico, buscando traçar percepções de como a teoria republicana pode colaborar para uma melhor compreensão das dinâmicas da crise, bem como para as possíveis resoluções desta a partir da lógica do Estado.

Palavras -Chave

Crise econômica; Republicanismo; Estado.

Abstract

A study of the global economic crisis in 2008 from a redemption of the ideas of classical republicanism, in order to describe perceptions of how the republican theory can contribute to a better understanding of the dynamics of the crisis, as well as to possible resolutions of this from the logic of the State.

Keywords

Economic crisis; Republicanism; State.

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1. Introdução

Com o “estouro” da bolha do mercado imobiliário norte americano em 2008, estamos assistindo até os dias atuais o desenrolar de uma grande recessão econômica de amplitude mundiali, com enormes reflexos na economia cotidiana. Tal colapso na economia mundial fora fruto, inicialmente, das más condutas do mercado financeiro norte americano, que devido à desregulamentação deste frente ao estado, pôde tomar atitudes que vieram a inflar esta “bolha”, tornando ainda maiores os reflexos de sua ruptura.

A doutrina da desregulamentação do mercado se baseia na premissa de que o mercado livre e desregulado, deixado por si só é eficiente, se auto corrigindo nos pequenos deslizes que venha a ter. Idéia esta, impulsionada principalmente após a segunda fase da crise do Petróleo de 1973, onde os países produtores de petróleo aumentam os preços deste produto em cerca de 300% do valor, momento que coloca um ponto de inflexão no modelo econômico keynesiano de estado, baseado no estado de bem estar social, que contava com grande respaldo público e político tanto na Europa como nos Estados Unidos.

A partir deste momento, as idéias de cunho liberal, fundamentadas principalmente sob o ponto de vista de Milton Friedmanii , teórico do liberalismo, passam a desenhar um novo modelo de estado, suplantando o deficitário modelo de estado de bem estar social. Tem por objetivo atender à dinâmica desta nova sociedade que vem se formando, e que aos poucos vem sofrendo os impactos da globalização e da financeirização da economiaiii .

Ganha força a idéia do estado mínimo, que atuaria somente como um regulador do mercado,

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Thiago Henrique Desenzi

e que buscaria transferir toda a esfera de ação possível para que o mercado viesse a gerir isento de sua intermediação efetiva, sob a premissa que o mercado livre sem esta ação incisiva do estado poderia trazer uma maior liberdade aos indivíduos, e segundo Friedman (1985, p.177): “A essência da filosofia liberal é a crença na dignidade do indivíduo, em sua liberdade de usar ao máximo suas capacidades e oportunidades de acordo com suas próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de não interferir com a liberdade de outros indivíduos fazerem o mesmo”.

Entretanto, este projeto de Estado desenvolvido desde os anos setenta, não se mostrou tão efetivo à comunidade global ao decorrer destes anos, haja vista que os países que aceitaram este modelo de ação para seus estados apresentam um acentuado processo de centralização da riqueza e do poder (HARVEY, 2011; JUDT, 2011, CHOMSKY, 2011).

Ademais, as crises financeiras se tornaram cada vez mais recorrentes ao redor do mundo, e seus reflexos atingiram proporções cada vez mais amplas. Segundo Stiglitz (2010), ocorreram cerca de 124 crises entre 1970 e 2007. Apesar do grande colapso causado pela crise de 2008, segundo David Harvey (2011), não havia nada de original nesta crise, apenas o seu tamanho e seu alcance.

Nos dias atuais, a origem dos lucros corporativos ao redor do mundo tem suas bases no setor de finanças, e não mais no setor produtivo, tendo como base de operação um capital especulativo, “fictício”, não atrelado diretamente a nenhum elemento do processo de produção. Segundo Harvey (2011), este capital “fictício” tomou as rédeas do poder, a partir da geração de enormes somas de dinheiro, que silenciavam as vozes dissonantes quanto a seus interesses.

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Entretanto, quando da ocorrência destas crises, o setor financeiro vem até o Estado na busca de socorro. O que aparentemente se apresenta de forma paradoxal foi uma prática corrente no lidar com estas crises. Nas ações que tentavam solucionar tais crises, assistimos o Estado injetando dinheiro público na tentativa de resgatar este mercado, ou seja: “Os contribuintes estão simplesmente socorrendo os bancos” (HARVEY, 2011, p.33). Aqueles que enriqueceram sob a lógica da ausência necessária do Estado, se utilizam deste, no momento que precisam de resgate.

Atualmente os sintomas da crise vêm se alastrando pelo mundo, ou conforme preferem os economistas, vem “contagiando” as demais economias. Os Estados Unidos apresentam um índice de desemprego duas vezes maior que antes da crise. A Europa, em especial Espanha e Grécia, operam com um índice de desemprego superior a 20,00%, e convulsões sociais claras vêm demonstrando a insatisfação popular com a economia, com a política e com os planos de resgate econômico do Fundo Monetário Internacional, que pregam a austeridade econômica com a privatização das companhias públicas, aumento de impostos e corte nos gastos públicos.

Diante deste quadro, tendo em vista compreender as razões que permitem e norteiam a vida em sociedade dos indivíduos, buscamos no republicanismo clássico um resgate parcial das idéias relacionadas a tradição do governo misto, da democracia, da relação entre os diversos indivíduos dentro da polis e dos demais conceitos permeáveis ao republicanismo nos dias atuais.

Para buscar compreender esta dinâmica de opressão de uma parcela da população sobre as demais, tendo como base o sistema financeiro e a classe relacionada com tal setor em relação às demais esferas da sociedade, tomamos como

suporte inicial as idéias de Aristóteles. Segundo este autor, a ganância dos ricos é sempre crescente, pois estes buscam defender seus interesses sobre os demais interesses dos pobres.

A concepção das idéias republicanas relacionadas ao bem comum também nos parecem como um norte, buscando fundamentar as premissas desejáveis do estado nacional político e econômico, em relação ao momento atual de crise ao qual atravessamos.

A retomada republicana, em justa medida, “faz contraponto à celebração da expansão do mercado e da esfera dos interesses privados, à retração do espaço público e das regulações políticas” (CARDOSO, 2008, p.28). Esta traz no cerne de suas argumentações a fundamentação central da polis, a vida justa e virtuosa. Se o ideal republicano dos propósitos coletivos de uma sociedade que busque o bem comum, soa como se estivesse fora de seu tempo, desarraigado do cotidiano, pode significar como a concepção de vida pública esteja degradada (JUDT, 2011).

Entendemos ser este um momento propício para a retomada dos valores republicanos, pois a ganância do sistema financeiro, pouco a pouco, nos conduziu a uma espécie de presente sem passado, a uma condição de busca incessante pelo lucro desvinculada de nenhum outro aspecto moral da vida em sociedade. O mundo caminha como se não tivesse aprendido nada com as lições de seu passado.

A dinâmica é nova, os personagens também, mas recorrer ao berço das ideias das repúblicas democráticas modernas pode nos trazer clareza de quais os motivos que fundamentaram e orientam a existência da sociedade atual.

2. O início da crise

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A crise econômica de 2008 teve origem nos Estado Unidos, a partir de seu mercado imobiliário, que havia sido utilizado como instrumento de manobra por sistemas bancários, tendo em vista a sustentabilidade da ampliação deste mesmo mercado.

O país mais rico do mundo vivia além das suas posses (STIGLITZ, 2011). A estratégia adotada para a manutenção do sistema econômico global, claramente dependente deste mercado de consumo americanoiv, foi a da expansão do crédito junto a sua população, mesmo cientes que a capacidade de endividamento destes indivíduos havia chegado ao “limite”. As taxas de juros eram baixas, bem como as regulações do estado para a concessão de empréstimos, e desta forma foi montado um cenário propício à alimentação de uma “bolha”, pois a carteira de credores, que haviam tomados estes empréstimos concedidos pelas instituições financeiras, era composta também de pessoas que dificilmente teriam condições de honrar o pagamento destas dívidas.

De acordo com Stiglitz (2011), a inundação de liquidez no mercadov fez criar uma pressão inflacionária no valor dos imóveis, e os indivíduos, na busca da concessão de novos empréstimos para manter seu padrão de consumo, dispuseram de suas residências como garantia na avaliação destes empréstimos.

O dinheiro em excesso que vinha a inundar o mercado viria também do aumento do endividamento em relação ao capital existente, ou seja, os bancos estavam operando a uma ordem superior ao “normal” de emprestar três vezes o total de seus depósitos, pois chegaram a operar em 2005 com trinta vezes o total de depósitos disponíveis (HARVEY, 2011), operando a partir da especulação, sem lastro real.

Havia aqui claramente uma incoerência do mercado imobiliário, que chegou ao limite de corresponder a mais que a metade do PIB norte americano. O indivíduo norte americano abria mão de sua residência para manter-se consumindo no mercado, porém este modelo era insustentável, como se mostrou, quando esta “bolha” de crescimento artificial se rompeu, e colocou aos olhos do mundo a real situação econômica daquele país. A necessidade norte americana e também mundial para a manutenção de seu padrão de consumo trouxe o colapso. Sinais da crise já vinham aparecendo em outros setores da economia americana, porém o governo através de ações que inundavam de crédito a economia e da redução dos impostos, buscava resolver o problema da “falta de consumo”, pela disposição de mais capital no mercado, induzindo as pessoas a ficarem cada vez mais endividadas, mas mantendo o seu padrão de consumo.

As dívidas individuais junto aos bancos foram transformadas em carteiras de dividendos e negociadas entre instituições financeiras diferentes, sob a forma de derivativosvi, de forma a securitizar a operação, conferindo assim “maior confiabilidade” aos papéis que vieram a ser negociados em Wall Strett.

Assim se formou uma cadeia, entre o mercado, as securitizadoras, e até as resecuritizadoras do mercado. E quando a bolha estourou, o efeito foi devastador, levando todos que estavam envolvidos na negociação destes papéis. Os resultados desta crise afetaram grande parte da população norte americana, bem como, a partir do desaquecimento da sua economia, exportou a incerteza e a recessão econômica por todo o mundo dependente de seu consumo.

O mercado financeiro norte americano, agindo de forma desmedida, tendo a busca do

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lucro como objetivo central e isento de qualquer responsabilidade quanto às demais esferas da sociedade, conduziu tal processo desde a concessão de empréstimos aos indivíduos até a elaboração de novos produtos financeiros de alto risco, que pudessem maximizar os lucros a serem obtidos.

3. As agências e seus interesses

Um importante mecanismo utilizado neste sistema é o das agências de classificação de risco, tais como Standart & Poor´s, Moody´s, Fitch entre outras. Estas assumiram um papel político muito forte ao redor do mundo, se desvinculando de seu aspecto estreitamente econômico. Tem o poder de atribuir notas referentes ao “risco” da operação de crédito, tanto para empresas quanto para países, expressando qual o risco do não pagamento de suas dívidas no prazo previamente estipulado.

O problema reside no fato que os clientes principais destas agências são as próprias instituições classificadas, gerando uma nebulosa relação entre estes. Existem diversas manobras passíveis de desvios e corrupçãovii. Um exemplo típico pode ser visto no escândalo Enron em 2001, onde através de fraudes contábeis na auditoria fiscal regida pela Andersen Consulting, que auxiliou a manipulação de seus balanços financeiros escondendo uma enorme dívida de mais de 25 bilhões de dólares, buscou a lucratividade de seus títulos no mercado de ações através de uma fictícia imagem de “saúde” financeira desta empresa.

Certamente tais agências de classificação de risco não analisaram corretamente o mercado ao qual classificavam, ou supostamente agiram de forma premeditada a partir de interesses escusos. Afinal de contas, dispunham os papéis vinculados às hipotecas de subprime sob uma alta classificação, encorajando diversos investidores a participarem deste lucrativo negócio.

A tentação de obter lucros fáceis a partir dos custos das transações levou muitos bancos grandes a negligenciar suas funções essenciais. O sistema bancário, nos Estados Unidos e em muitos outros países, não se concentrou em emprestar dinheiro a pequenos e médios produtores, que constituem a base da criação de empregos em qualquer economia, mas concentraram-se, em vez disso, em promover a securitização, especialmente no mercado hipotecário. (STIGLITZ, 2011, p.41)

Com o rompimento da “bolha” imobiliária, principalmente após a falência do banco de investimentos Lehman Brothers e a estatização da seguradora AIG em setembro de 2008, as agências responsáveis pela regulação deste mercado se calaram, tal como o Banco Central norte americano, alegando a impossibilidade de saber antecipadamente sobre esta bolha que vinha se formando ao longo dos anos. Os mercados financeiros buscaram se isentar da culpa, alegando que a crise não fora mais que um acidente, e afirmavam de maneira categórica que a regulação do estado ainda seria maléfica a inovação e a competição dos mercados.

4. Economia liberal, socorro estatal

A lógica que permitiu que o mercado financeiro viesse a ditar as regras do estado nacional quanto a defesa de seus interesses, tanto nos Estados Unidos como nos demais países que adotaram o modelo da liberalização econômica, era a lógica privatista. Através do lobby e do favorecimento político, se entranharam nas estruturas políticas do Estado, de forma a barrar quaisquer tentativas de regulamentação do mercado. A única orientação destas políticas ora estabelecidas era a da obtenção do lucro privado. O mercado buscava resultados de curto prazo, de lucro máximo no prazo mínimo,

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conforme Stiglitz destaca (2011, p.51): “Como sua remuneração se vincula aos preços das ações nas bolsas e não aos resultados de longo prazo, é natural que os gestores façam o possível para elevar o valor das ações – mesmo que isso de lugar a uma contabilidade ilusória (ou criativa)”.

Mesmo o FMI, em seus relatórios sobre a criseviii aponta que devido ao mundo estar inundado de crédito, foi difícil fazer a previsão da crise que vinha se formando, ou seja, o mercado financeiro estava tomando enormes lucros com esta dinâmica, então ninguém se interessou em buscar as razões que poderiam levar ao colapso.

Offe (1984) e Przeworski (2001) já apontavam a desmedida de forças, entre os “corporativos”, que se utilizam das ferramentas e da força do capital, para ter uma maior representatividade de seus interesses junto à esfera política, e que a sociedade em geral, não conta com uma força representativa tão impactante.

Em suma, os mercados financeiros fizeram muito dinheiro durante os anos em que prorrogaram uma crise já anunciada, trabalharam com um capital “fictício” durante anos, gerando bilhões de dólares para seus acionistas, e distribuindo bônus milionários a seus correligionários em Wall Strett.

A protelação da economia de crédito interessava a todos que ganhavam enormes somas financeiras com o negócio. Havia presente uma idéia que eles não teriam o que temer, pois mesmo se viessem a ter problemas tinham a certeza que seriam resgatados pelo governo. Esta confiança no socorro por parte do governo encorajou o sistema financeiro a tomar medidas de alto risco (STIGLITZ, 2011; HARVEY, 2011). E fora exatamente como ocorreu, pois o sistema financeiro foi resgatado de maneira questionável, aos olhos da sociedade que via sua contribuição junto ao

estado sendo direcionada para socorrer este hábil esquema de defesa dos interesses privatistas e particulares. Segundo Harvey (2011, p.16), a lógica que orientou as ações das economias liberais no socorro aos seus mercados era: “privatizar os lucros e socializar os riscos; salvar os bancos e colocar os sacrifícios nas pessoas”.

Tal procedimento é visto atualmente nos programas de socorro aplicados pelo FMI em países como a Grécia, Espanha e Portugal, que atravessam grandes convulsões sociais devido a um processo de aumento de impostos e diminuição de investimento público, tendo em vista que o estado possa pagar pelas dívidas de seu sistema financeiro junto ao mercado.

O imediato socorro ao sistema financeiro de um país se deve ao estrondoso tamanho que as instituições financeiras tomaram em relação ao Estado. Se o estado permite que as empresas quebrem, ele esta permitindo que o próprio Estado, suas instituições e toda a economia local venha a colapsar, se tornando assim refém do próprio sistema financeiro. Os planos de socorro deste sistema financeiro em todo o mundo passam então a ser regidos sob o argumento que os bancos se tornaram grandes demais para poder falir.

O governo norte americano, por exemplo, destinou grande parte da verba de saneamento do setor financeiro na compra de ações preferenciais sem direito a voto de bancos e instituições de poupança, beneficiando mais de 400 instituições, além de cerca de outros US$500 bilhões ainda no governo de George W. Bush destinados a outras empresas, seguradoras e bancosix. O que nos chama a atenção, é que os mesmos executivos e instituições que enriqueceram nas operações de crédito envolvendo as hipotecas de subprime nos Estados Unidos ao longo dos últimos anos, foram premiados com pacotes de ajuda financeira

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mantendo seus mesmos salários astronômicos, bem como mantendo sua farta política de distribuições de bônus.

Desta forma, verificamos que aqueles que depositam sua confiança no fundamentalismo de mercado, tal como o FMIx e o setor financeiro, foram os primeiros a reclamar ajuda governamental no socorro aos envolvidos com a crise, sob a alegação de assim evitar o “contágio” com as demais instituições financeiras, o que na prática não tem se mostrado muito efetivo, conforme análise de Nouriel Roubini:

Until last year, policymakers could always produce a new rabbit from their hat to reflate asset prices and trigger economic recovery. Fiscal stimulus, near-zero interest rates, two rounds of “quantitative easing,” ring-fencing of bad debt, and trillions of dollars in bailouts and liquidity provision for banks and financial institutions: officials tried them all. Now they have run out of rabbits. (ROUBINI, 2011)

As soluções apontadas pelo governo americano de saldar as dívidas do setor financeiro com a utilização do capital público, somado a diminuição de impostos e a baixa taxa de juros se mostraram insuficientes. Na Europa, os pacotes de socorro financeiro que pregam a austeridade fiscal tampouco surtiram resultado.

5. Do que nos valeu tudo isso?

A aposta no modelo liberal de estado não obteve o resultado esperado, trouxe apenas maior centralização de renda e maior desigualdade entre os indivíduos, acentuada ainda mais pela fragilidade e incapacidade do estado em mediar tais situações junto ao mercado. Segundo Tony Judt (2011, p.97): “o capitalismo não sobreviveria se seu funcionamento se reduzisse ao mero

fornecimento de meios para os ricos ficarem mais ricos”. Tal premissa vem se confirmando, haja vista as convulsões e questionamentos que democracia e o capitalismo vêm enfrentando.

O principio que baseia a necessidade da regulamentação é simples, Stiglitz (2011, p.49) resume de forma clara: “a razão pela qual os bancos são regulados é que sua falência causa danos consideráveis ao resto da economia”. Desta forma, os argumentos em defesa de uma suposta “liberdade” do sistema financeiro, acabam se tornando limitados e relativos, tendo em vista estarem desvinculados da realidade e do objetivo do bem comum em um Estado.

O fato é que não atingimos a meta de Friedman de utilizar ao máximo nossas capacidades e oportunidades, não podemos de forma alguma, afirmar que atualmente os indivíduos têm igualdade de direitos e igualdade de oportunidades. Creio que a afirmação de Friedman seja um tanto quanto questionável. Podemos nos utilizar da interpretação de Karl Marx, dispondo acerca de indivíduos diferentes em relação aos direitos individuais, como forma de buscar outra linha de raciocínio:

O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos por uma mesma medida sempre quando sejam considerados sob um ponto de vista igual, sempre e quando sejam olhados sob um aspecto determinado... Para evitar todos estes inconvenientes, o direito não teria de ser igual, mas desigual (MARX, 1973, p.232).

Ou seja, medidas diferentes para pessoas diferentes. É impossível na sociedade crer que todos os indivíduos partem de uma igualdade

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de condições, de capacidades e oportunidades. Há diferenças latentes, em diversos sentidos, tais como capacidades físicas, de saúde, de acesso a informação, a educação e de oportunidades de certos tipos de trabalhos. Desta maneira, o papel do Estado, é de mediar estas diferenças, aplicando medidas diferentes, para cidadãos diferentes.

A concessão do poder através da concepção do liberalismo desregulado tende a centralizar o poder na parcela mais rica da sociedade, ou seja, aqueles que já dispunham do poder econômico se perpetuam ali. Segundo Tony Judt (2011, p.157): “os ricos não querem a mesma coisa que os pobres. Quem depende do trabalho para sustentar a família não quer a mesma coisa que quem vive de investimentos e dividendos”.

Entendemos assim, que a concepção do liberalismo apartada do Estado é potencialmente tirânica, tendo em vista se comportar como benéfica apenas para uma parcela da sociedade em detrimento da parcela mais pobre, tal entendimento pode ser visto também em Aristóteles (1991, p.172): “É um erro, mesmo nas Constituições aristocráticas, dar, como fazem muitos, muito aos ricos e muito pouco ao povo; a longo prazo, de coisas que só têm aparência de bem resulta necessariamente um mal real: o Estado arruína-se mais pela cupidez dos ricos do que pela dos pobres”.

A afirmação de Aristóteles não poderia se mais coerente à crise da corrente liberal, em consonância ainda com as palavras de Marx revalidam a afirmação de que o capitalismo deixado livre tende a “arruinar-se”, devido à própria ganância do lucro que dirige suas premissas.

6. O panorama atual

Atualmente diversos críticos, economistas e teóricos especulam se esta crise está colocando

o próprio capitalismo em xeque. A dimensão tamanha da crise, dotada de escala mundial, levanta questionamentos inclusive acerca do próprio modelo democrático adotado na maioria dos países capitalistas. Mesmo as vozes ortodoxas do FMI permeiam esta grande preocupação com o quadro econômico atual, segundo Christine Lagarde, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional: “Devemos todos estar cientes de que este é um momento decisivo. Não se trata de salvar um país ou uma região em particular. Trata-se de salvar o mundo de cair numa espiral econômica descendente”xi.

A ideia é perfeitamente cabível. As posições dos analistas internacionais, do FMI e dos demais setores ligados à economia apontam que a recessão econômica ainda pode vir a se agravar mais. O perigo do contágio ilustrado pelos analistas pode se consolidar, pois apesar dos mercados europeus e americanos estarem mais orientados ao setor financeiro, e sofrerem mais rapidamente os efeitos desta crise, os demais países em desenvolvimento, essencialmente fornecedores de matérias primas e produtos manufaturados, podem vir a sofrer grandes impactos em sua economia, devido à diminuição do ritmo de consumo dos países mais afetados pela crise.

Abaixo apresentamos um quadro resumido com as informações centrais da crise contrapostas a situação anterior a ela:

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Segundo Nouriel Roubini (2011), as diversas manifestações populares que atravessam o mundo discutem questões colocadas pelo crescimento da desigualdade, pela pobreza, centralização da riqueza e pelo desemprego. Reforçamos esta afirmação com os dados da tabela acima, podemos verificar um quadro onde a maioria dos países mencionados obteve um aumento do índice de desemprego atrelado a um maior déficit público (em conseqüência direta ou não de uma menor arrecadação de tributos). Os casos mais graves são os de Grécia e Espanha, que se encontram no foco da crise atual, aonde os níveis de desemprego chegaram a índices alarmantes. Por conseqüência, tal situação vem conduzindo a uma escalada da insatisfação popular exponencial nestes países, alem de todos os problemas sociais oriundos do desemprego, tais como o aumento nas taxas de criminalidade.

Com o déficit público somado as

medidas de austeridade do FMI que inibem o investimento no setor produtivo, o Estado passa a ficar “engessado”, não dispondo de linhas de ação efetivas para resolução da crise e ficando condicionado aos caprichos destes pacotes de ajuda concedidos.

A situação na Grécia particularmente nos chama mais a atenção, pois o colapso social devido à crise financeira e aos pacotes de ajuda da União Européia e FMI são enormes, tendo consequências sociais gravíssimas. O quadro político e social atual da Grécia ilustra de forma clara quais os efeitos dos problemas oriundos da liberalização do mercado, e ainda, ilustra de que forma o Fundo Monetário Internacional enxerga a crise, aplicando mais uma vez medida de austeridade, que colocam a população a beira de um colapso e o país a beira do caos.

Atualmente a população grega reagiu nas urnas quanto à orientação do mercado, elegendo um quadro político dissonante com a ordem estabelecida, conforme aponta matéria do Jornal Correio Braziliense: “A prescrição de medidas de austeridade pelo FMI ao país do Mediterrâneo foi o estopim de uma crise política sem precedentes, com os partidos gregos votados em 6 de maio não conseguindo formar o gabinete para governar e a convocação de novas eleições em 17 de junho”xii.

Os demais países apontados nas primeiras posições dos índices de desemprego vêm apresentando pouco a pouco quadros de recessão econômica e colapso financeiro, cada um a sua maneira devido a particularidades locais. Por sua vez, a política fiscal “amarrada” por acordos internacionais, impede uma reação mais ajustada à crisexiii. Afinal, ao invés de buscar estimular a economia através de recursos que instiguem a produção e diminuam, assim, os impactos do desemprego, focam sua ação na responsabilidade

Fonte: http://www.economist.com/blogs/buttonwood/2012/05/debt-crisis-1

* http://www.tradingeconomics.com/

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de sua balança de pagamentos. Como no caso da Grécia, vieram a adotar uma política de austeridade com aumento de impostos, corte de benefícios públicos à população e dos gastos do governo. A reação é que a economia não responde, e a reação prática é que a população destes países sofre na pele os efeitos da política liberal.

Roubini (2011) aponta que a única forma de fazer com que tais economias orientadas pelo mercado voltem a operar de forma capaz e desejável, é que estas retornem a um ponto de equilíbrio entre a orientação de mercado e sua orientação de fornecimento de bens públicos. Ainda de acordo com este autor: “That means moving away from both the Anglo-Saxon model of laissez-faire and voodoo economics and the continental European model of deficit-driven welfare states. Both are broken”.

7. A baliza do republicanismo

No presente quadro econômico-político internacional assistimos o Estado ser dirigido pelos interesses de uma oligarquia financeira, que em troca da obtenção de maiores lucros através do mercado financeiro em detrimento do mercado produtivo, coloca de forma prática ou potencial, grande parte da população global em grandes problemas sociais. Mohandas Gandhi, o grande líder da independência da maior República democrática do mundo, a Índia, teceu um celebre frase acerca destes interesses. Segundo ele haveria no mundo alimentos o suficiente para saciar toda a fome de cada pessoa, porém, não para saciar toda a ganância de cada indivíduo. A frase se encaixa perfeitamente no quadro que descrevemos até aqui. A “fome” de poder de alguns confere o flagelo à maioria.

Em contraposição a esta situação vigente, a retomada do republicanismo clássico assenta

suas bases sobre a idéia do bem comum, atrelado a concepção do cidadão ativo dotado de virtude cívica, tendo como objetivo ser um instrumento contra toda forma de dominação arbitrária e despótica, conforme cá será melhor descrito.

Entendemos que as ideias do republicanismo clássico, principalmente as vinculadas ao pensamento de Aristóteles, podem nos auxiliar a buscar novas formas de observar o mesmo objeto, o quadro econômico-político atual. Contudo, temos uma clara visão que os conceitos da sociedade que embasaram os estudos destes teóricos em muito se diferem daqueles vigentes em nossa sociedade contemporânea, principalmente quanto ao conceito do indivíduo em relação à concepção moderna deste. Compreendemos que a forma de raciocínio conduzida ali, que fora utilizada como base ao longo dos séculos que os sucederam na moldagem do nosso modelo democrático republicano, amplamente adotado e conceituado no mundo, pode nos auxiliar a encontrar pontos no qual devemos acentuar as pesquisas, bem como buscar formas para aperfeiçoar a convivência social entre os indivíduos.

Em todos os momentos em que o republicanismo foi retomado ao longo da história, existe presente uma ideia que busque conduzir a sociedade contra a dominação dos indivíduos pelo do arbítrio de quem quer que seja. O republicanismo de Cícero em Roma, por exemplo, primava pela independência e pela não dominação de seus cidadãos (PETTIT, 1999).

Da mesma forma, os burgueses do renascimento Italiano encontraram na releitura destes clássicos, embasamento para a formação de uma sociedade sem poderes arbitrários. Tais idéias também são discutidas com veemência pelos aos teóricos políticos jusnaturalistas ingleses, principalmente quando estes atravessaram

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períodos turbulentos de sua história, durante a revolução Inglesa e Gloriosa (SKINNER, 1999), bem como, são amplamente discutidas no processo de independência norte americano, que buscava acima de tudo conceber a garantia da “liberdade” do povo contra a tirania ou opressão de qualquer poder externo.

A concepção de Estado, presente nas discussões republicanas contemporâneas, busca que este venha se tornar um mecanismo não arbitrário de governo na sociedade. A orientação da constituição mistaxiv, com poderes divididos e limitados, permite um contrapeso dentro das instâncias de poder, inibindo a ação de tiranos que possam tomar o poder por desejos individuais. A liberdade da não dominação, portanto, é dependente da existência do Estado. A função desempenhada pelo Estado seria de mediar às relações na sociedade, conferindo uma orientação de justiça e proteção a seus cidadãos.

Entretanto, diferentemente da concepção atual de liberdade, vista como uma não interferência, a concepção republicana prima pela não dominação, na qual o cidadão passa a ser um protagonista a partir de seu próprio arbítrio, sob qualquer forma de subjugação. Este valor é conferido quando este vem a participar das esferas de decisão da cidade, na busca do bem comum.

A visão atual de liberdade foi conceituada a partir dos teóricos do século XVII, na releitura das idéias republicanas clássicas (SKINNER, 1999). As bases do republicanismo cívico se perderam na releitura hobbesiana de tais ideias , havendo um deslocamento da concepção original de liberdade, sendo desvinculada do ideário de civismo e colocada sob a noção do direito liberal. Esta mesma concepção de liberdade é amplamente aceita nas argumentações dos teóricos do liberalismo, apesar de aos olhos dos novos republicanos ser

condicionada como negativa, pois se limita a defesa dos interesses do indivíduos junto aos demais.

A noção desejável de liberdade a partir destes republicanos é a liberdade positiva, na qual os cidadãos possam ter uma ação direta junto à vida política da cidade. Desta forma, esta relação entre Estado e sociedade seria o que se perdeu na releitura das ideias republicanas ao longo da história, pois o Estado na república não tem a mesma forma do Estado na concepção liberal de governo. Tal mudança na relação entre governo e a liberdade dos indivíduos configura aquilo o que foi descartado na concepção liberal de liberdade.

8. A contribuição de Aristóteles

No livro I, cap. II de A Política, Aristóteles nos parece já “saber” sobre a dinâmica liberal de mercado que viria dominar o mundo tanto séculos depois. Ali, este discute sobre a avareza e sobre a insaciável busca humana por riquezas, na qual estes “amam o dinheiro”, buscando sempre acumular maiores somas por nunca julgar que tem o necessário. Segundo ele: “Ora, é absurdo chamar “riquezas” um metal cuja abundância não impede de se morrer de fome; prova disso é o Midas da fábula, a quem o céu, para puni-lo de sua insaciável avareza, concedera o dom de transformar em ouro tudo o que tocasse”. (ARISTOTELES, 1991, p.22)

O regime político apresentado por Aristóteles é a Politeia, que tem como substância de sua existência o corpo dos cidadãos. Para este filósofo a vida na polis está relacionada a um fim último do homem, se traduzindo como a mais desenvolvida forma de convivência humana. Em suas palavras: “A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constituiu a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a

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existência, mas também para buscar o bem-estar” (ARISTOTELES, 1991, p.3).

Desta forma, podemos ver que o objetivo final da polis é outro que não apenas sua manutenção, mas tendo como cerne da questão a forma como se viva em sociedade, a busca de uma “melhor” forma de vida em sociedade, objetivada a busca de um bem estar comum. Esta premissa é o que destaca este filósofo daqueles que o precederam. De acordo com Aristóteles (apud MIRANDA FILHO, 96, p.71), assim são enumerados os objetivos da polis: “I) este não consiste apenas em assegurar a posse dos bens materiais e da propriedade; II) nem apenas assegurar aos cidadãos a proteção contra injustiças e crimes tanto de origem externa quanto interna; III) nem facilitar as trocas, o comércio ou a garantia dos contratos”.

Para melhor relacionar as razões desta concepção, devemos partir da célebre afirmação de Aristóteles, de que o homem é um animal cívico, pois é dotado do dom da palavra. É com a utilização desta faculdade humana que temos: “senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil” (ARISTÓTELES, 1991, p.4).

Esta citação de Aristóteles fundamenta um dos mais importantes, e por vezes mal compreendido, conceito de seu pensamento. Quando o autor se refere ao homem como um animal cívico, não se está afirmando que há uma inclinação natural biológica do homem a política, o que se afirma aqui é que o homem é um animal político porque somos dotados do discurso e da razão, que diferentemente dos demais animais, nos possibilita ter no discurso e na razão formas de

relação e mediação com os demais membros da sociedade.

O elemento de coesão entre os mesmos cidadãos de uma polis é uma capacidade de saber o que é certo e o que não é de maneira geral, uma moral compartilhada que reconhece os indivíduos enquanto semelhantes. Isto apenas seria possível, uma vez que temos no discurso o “laço de toda sociedade” e nos utilizando da razão através do discurso, podemos nos reconhecer e também reconhecer os demais, de forma a compor uma sociedade.

A convivência com os demais é explicada através da teoria da amizade (philia) de Aristóteles, que aponta que os laços que unem os seres na polis estão relacionados não apenas a uma busca comercial (como configura a teoria liberal), mas se vincula a busca de afetos, lealdade e honra. Esta “amizade” é aquilo que configura a intenção de viver em comunidade, desfrutando de uma moral coletiva. A amizadexvi aqui colocada diminui o conflito na polis. Esta relação é o que possibilita que tal laço entre os indivíduos, provido pelo discurso e pela razão (logos), venha a permitir a vida em sociedade na busca pelo bem estar comum. Segundo Aristóteles (1991, p.139): “Se forem seus amigos, se-lo-ão também de seu Estado. A amizade supõe igualdade e semelhança.”

Esta propriedade social descrita através da teoria da amizade é aquilo que possibilita aos homens ver o objeto da polis a partir de um diferente ponto de vista. De acordo com Arendt: “Esse tipo de compreensão – ver o mundo (como dizemos corriqueiramente) do ponto de vista do outro – é uma percepção política por excelência” (2009, p.60). Tal possibilidade, de poder ter acesso a diversos pontos de vista sobre o mesmo objeto, é característica chave da política, sendo passível de ser aplicada na politeia aristotélica.

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Desta forma, a política aristotélica traz em seu eixo de ação a moral social, na qual o Estado é disposto como superior ao indivíduo, assim como o bem comum é sobreposto ao bem individual. Entretanto, não se trata de um conceito opressivo, que tem o cidadão por apenas uma “engrenagem” que venha a permitir a funcionalidade de todo o sistema, a ideia da perfeição da polis só poderia ser atingida com a participação do sujeito nas esferas de decisão, partilhando assim, junto ao estado, a responsabilidade pelo bem estar comum.

Baseado nestes argumentos, a república pode ser vista como uma ferramenta contra todos os tipos de autoritarismo, principalmente ligados a governos totalitários que venham a mobilizar toda uma massa de indivíduosxvii, ou demais formas de governos que utilizem ou pretendam utilizar a população como massa de manobra para projetos particulares de dominação.

É também importante destacar que Aristóteles apontava uma divisão central na sociedade, entre pobres e ricos, e esta seria a fundamental diferença na democracia. Na Grécia clássica havia dois regimes concretos, o da maioria (demos) tido por democracia e o de alguns, tido por oligarquia (oligoi). Todavia, o problema apontado pelo filósofo era que: “cada um deles, ao invés de contemplar a totalidade da polis é excludente: o povo exclui os oligarcas e vice-versa” (MIRANDA FILHO, 1992, p.65).

As pessoas não podem ser ao mesmo tempo ricas e pobres, sendo necessário ao Estado buscar o equilíbrio entre ambos, de forma que nenhum dos dois elementos se sobressaia, a fim de evitar a injustiça que uma possa cometer sobre a outra. Para Aristóteles, a justa medida estaria na chamada classe média, que seria fundamental na moderação dos interesses da polis, agindo como o “fiel da balança”.

Ainda segundo o autor, o regime da politeia seria uma mescla entre as instituições da democracia e da oligarquia, convencionando posteriormente politeia às que tendem a democracia, ou seja, as que buscam a ampliação da base do sistema (CARDOSO, 2008). A busca então é encontrar um equilíbrio, ou um “justo meio” entre ambos, de forma a conduzir a dinâmica do Estado sem tender para nenhuma das duas partes, nem a busca exacerbada da riqueza pelos ricos, nem a busca desmedida dos desejos pelos pobres, e assim alcançar a preservação virtuosa da polis.

O Estado nacional pós anos setenta, descrito na primeira parte deste artigo, aponta que estaríamos sendo governados não pela maioria, e sim por alguns, uma oligarquia de interesses envolvidos com o mercado financeiro. Segundo Cardoso (2008, p.36): “Os ricos, por sua vez, sustentam sua reivindicação ao poder em nome da riqueza, da competência e do mérito que, no governo, estariam postos a serviços da cidade; mas, na verdade, querem apenas conservar os seus bens e aumentar seu patrimônio, em que vêem o bem verdadeiro e a aspiração universal de todos os homens”.

A ganância dos ricos na atualidade vem desvirtuando a orientação republicana, conforme aponta Judt (2011, p.155): “As instituições da república tem sido degradadas, acima de tudo pelo dinheiro”. Diferentemente da atualidade, a orientação aristotélica aponta que a república teria por função utilizar-se da razão, através do Estado, com vistas a não permitir o domínio das tiranias sobre todos, seja ela da maioria (democracia), de alguns (oligarquia) ou de um (monarquia). Assim, o Estado teria como fim ser o uma instituição que pudesse se intrometer nos assuntos dos indivíduos, porém de forma não arbitrária, buscando se desvincular da concepção do tirano, que poderia

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definir leis, julgar e condenar os indivíduos, através de seu próprio arbítrio.

A descrição aristotélica da democracia, por sua vez, conduzia a visão de uma tirania das massas, que seria tão terrível quanto à tirania de apenas um (monarquia), ou de um grupo (oligarquia). A origem desta crença se assentava na ideia de uma massa “pouco educada”, que teria como objetivo somente expropriar os ricos, devido à busca de seus desejos, relacionados à conquista de bens materiais (RIBEIRO, 2008). Esta visão pode ser constatada na passagem de Aristóteles:

Não é sem razão que se censura tal governo e, de preferência, o chamam democracia ao invés de República; pois onde as leis não têm força não pode haver República, já que este regime não é senão uma maneira de ser do Estado em que as leis regulam todas as coisas em geral e os magistrados decidem sobre os casos particulares. Se, no entanto, pretendermos que a democracia seja uma das formas de governo, então não se deverá nem mesmo dar este nome a esse caos em que tudo é governado pelos decretos do dia, não sendo então nem universal nem perpétua nenhuma medida.(ARISTÓTELES, 1991, p.111)

Tal ideia é contraposta a concepção atual de democracia, que na mais rasa interpretação que se possa ter, nos leva a ideia de que o poder tem como “soberano” o povo, que busca colocar em prática seus anseios através dos representantes eleitos pelo sufrágio universal. Mesmo que tal argumentação seja contestável, principalmente a partir dos teóricos do liberalismo, tomemos como base o cerne da idéia democrática atual, a busca de limitar a propensão a tirania no Estado através da participação popular em suas instituições e no processo de escolha dos representantes populares.

Independentemente da visão aristotélica

da inviabilidade democrática como sistema (tese posta a prova nas sociedades contemporâneas), a questão de suma importância no quadro de crise atual, dentro da concepção vigente de democracia é: Que sentimento dirige as deliberações nesta democracia?

Aqui vamos nos utilizar da interessante frase de Ribeiro (2011, p.22): “Uma democracia sem república não é kratosxviii, é simples populismo distributivista”. Existe neste trecho uma significativa colocação de que a democracia precisa da república para existir. Conforme explanamos anteriormente, o republicanismo tem a função de orientar tais deliberações visando às premissas do bem comum. Assim, a democracia apenas não é suficiente para atender os anseios da vida em sociedade, partindo do pressuposto que os homens naturalmente têm uma inclinação para vida em sociedade, conforme demonstra Aristóteles (1991, p.5): “O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade”.

Há então a necessidade de uma orientação que busque pautar a vida a partir do conceito de sociedade, e não apenas de indivíduo. Desta forma, a indicação é exposta de forma clara, temos uma inclinação natural para a convivência. Como tal, a principal orientação que deveria guiar a construção desta convivência seria a maneira de torná-la possível e virtuosa.

Porém, na compreensão da dinâmica da polis, mesmo dentro da premissa que os seus membros compartilham de uma ética individual comum, refletida na moral do Estado, Aristóteles leva em conta as diferentes funções e o diferente arbítrio entre cada um dos indivíduos. A combinação

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entre logos (capacidade de discurso e lógica) e política somente fora possível considerando tal característica particular da polis. A citação de Mario Miranda Filho, que explicita está ideia com base na pluralidade compõe o pensamento:

Decidida a se instalar para valer na polis a filosofia, a partir de Platão, terá que operar em si mesma uma conversão: reconhecer a existência de gente como Estrepsíade como necessária, de gente cujo comportamento errante é ditado, em grande parte, por forças irracionais constitutivas do homem e, portanto também da cidade. Isto equivale a reconhecer que a política abriga em si um elemento irracional que aparece por vezes como um incontornável para a razão – seja ele o sagrado, seja a estupidez da força bruta em sua recusa de escutar o outro – com o qual o especialista da razão tem que se haver. Viver na polis não é, pois viver numa comunidade de sábios virtuosos, nem de religiosos, ou de conformistas ou de guerreiros, ou de rico ou de pobres. A polis é, como diz exemplarmente Aristóteles na Política, uma pluralidade. (MIRANDA FILHO, 1992, p.59)

A pluralidade traz consigo a noção de que todos estão colaborando para um fim em comum, a manutenção da polis. Aristóteles (1991, p.41) argumenta que “embora as funções dos cidadãos sejam dessemelhantes, todos trabalham para a conservação de sua comunidade, ou seja, para a salvação do Estado. Por conseguinte, é a este interesse comum que deve relacionar-se a virtude do cidadão”.

Para o filósofo seria impossível que um Estado fosse composto integralmente de homens perfeitos, mas a busca é que os cidadãos venham a executar o seu melhor papel como tal, procurando se tornar bons cidadãos. Aqui estaria a posição de encaixe do Estado. De acordo com Aristóteles

(1991, p.41): “É daí que provém a bondade intrínseca do Estado, sem que seja necessário que haja entre todos igualdade de mérito”.

9. Considerações finais

Diante de todo o panorama apresentado, acreditamos que apesar das diferenças junto à sociedade da antiguidade, principalmente sob a visão aristotélica, em relação à sociedade atual, podemos sim utilizar diversos pontos e argumentações políticas desenvolvidas ali para nosso debate contemporâneo, como já o fizemos em alguns pontos até aqui discorridos.

O primeiro ponto a ser destacado se trata do conceito de oligarquia. Aristóteles apontava que este seria o regime no qual o domínio é exercido por apenas alguns, o que de fato observamos atualmente. Conforme descrevemos na primeira parte do artigo, toda crise financeira americana e posteriormente mundial, teve no setor financeiro o elemento que entranhado nas esferas de poder do Estado, pode manipular as diretrizes deste com vista a atender seus interesses econômicos. Os demais membros da sociedade que trabalhavam na construção da riqueza do sistema (até porque sem este trabalho não existiria esta riqueza) eram elementos até certo ponto passivos, e que certamente não tinham a mesma voz e a mesma representatividade na obtenção de seus interesses junto ao Estado.

Outro elemento a ser destacado é a divisão social entre ricos e pobres. Creio que esta tenha se alterado ao longo dos séculos, mas não a maneira que apontava o filósofo, com a predominância de uma classe média. O fato é que a situação dispõe a parcela dos mais ricos da sociedade, dos mais poderosos, dirigindo e controlando o Estado, de forma questionável podemos afirmar, tendo em vista todo o ônus que trouxeram a população dos

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países atingidos pela crise. Até os dias atuais, as demandas destas duas parcelas são paradoxalmente distintas, e estas duas parcelas da sociedade não podem ser descartadas como um todo, nem junto ao poder, nem junto às suas demandas. O ponto a ser perseguido é o equilíbrio, aos moldes de uma politeia aristotélica, contudo, descartando a configuração elitista disposta pelo filósofo para exercer os postos de governo na polis.

Destacamos também o papel da virtude cívica, que é fundamental na dinâmica republicana. Alias, é o que se espera do cidadão, conforme visto na argumentação de Judt (2011, p.153): “Mas repúblicas e democracias só existem em virtude do engajamento de seus cidadãos na condução dos negócios públicos”. No conceito de Aristóteles esta virtude cívica seria aplicável em um pequeno Estado, onde os laços sociais formados a partir da amizade poderiam mediar as relações entre os indivíduos, gerando a virtude cívica manifestada na participação da vida política. As sociedades hoje em muito se diferem desta, em tamanho e em composição (nacionalidades, credos, orientações e etc.), assim, o conceito da amizade ali demonstrado se torna um tanto quanto frágil para descrever o processo de aglutinação na polis atual.

Entretanto, a colocação acerca da razão e do discurso, nossa capacidade enquanto “animal político”, vinculada a uma capacidade de discernir o bem do mal, colabora na construção de uma moral comum, ao qual compartilhamos. E tal moral comum orienta a sociedade a buscar não apenas seus objetivos de interesse específico, mas a serem orientadas também quanto a uma noção de bem e mal no tocante a restante desta mesma sociedade.

As diversas manifestações sociais no mundo demonstram uma orientação comum no indivíduo, vinculada a uma ideia de justiça social. Mesmo que

dispostas de forma dispersa, e na maioria dos casos orientadas por demandas específicas, ainda assim, estas contribuem para uma orientação social que busca o bem estar do todo. Segundo Amartya Sen: “Os valores sociais podem desempenhar – e têm desempenhado – um papel importante no êxito de várias formas de organização social” (2000, p.297).

O conceito atual de liberdade permite, e com justa medida, a busca dos interesses particulares, mas é inegável que a orientação do sujeito não é restrita apenas a busca de seus interesses financeirosxix, a moral social compartilhada desempenha um papel de suma importância na orientação destes indivíduos, atrelada a parcela econômicaxx.

A liberdade apontada pelos teóricos do liberalismo considerava a não-interferência, mas se esqueceu de observar e resguardar a não-dominação. O indivíduo pode não sofrer interferências, mas sem o Estado na mediação das diferenças entre os diversos indivíduos, o regime é dominado por uma parcela de força apenas, que subjuga todos os demais pela interferência nas leis do mercado, de modo desregulatório e específico, ou seja, de acordo com a conveniência do poder.

Para a obtenção da não dominação do indivíduo, o republicanismo atual busca resgatar uma autogestão no indivíduo, que possa ser livre, sem nenhum opressor lhe cerceando. De acordo com Pettit (2008, informação verbal), a ideia de liberdade republicana é vinculada a não dominação (pensamento, discurso, religião, associação, deslocamento, emprego e etc.), seria uma das bases necessárias para que todos, independentemente de sua função ou cargo na sociedade, possam olhar uns nos olhos dos outros, sem medo.

Conforme discutimos anteriormente, a democracia por si só, sem a orientação republicana

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acaba por se tornar limitada como regime junto aos homens. De acordo com Tony Judt (2011, p.135): “Sem idealismo, a política se reduz a uma forma de contabilidade social, de administração cotidiana de homens e coisas”. O idealismo destacado por Judt é a orientação e, quando não existe o Estado, fica entregue aos interesses dominantes, no caso, os econômicos.

O resgate a orientação social é elemento urgente em nossa sociedade, bem como a retomada da virtude cívica, disposta de forma adaptada a sociedade atual, conforme a liberdade individual que detemos e buscamos que seja mantida. Creio que a frase de Joseph Stiblitz pode sintetizar bem o cerne desta exposição:

Avançamos muito por um caminho alternativo – criando uma sociedade em que o materialismo predomina sobre os compromissos morais; em que o crescimento rápido que atingimos não é sustentável, nem do ponto de vista ambiental nem do social; em que não agimos em conjunto, como uma comunidade, para atender as nossas necessidades comuns, de certa forma porque o individualismo desabrido e o fundamentalismo do mercado erodiram qualquer sentido de comunidade e levaram a uma exploração selvagem de indivíduos inocentes e desprotegidos e a uma crescente divisão social. (STIBLITZ, 2011, p.389)

A república mais uma vez deve ser resgatada no momento em que a sociedade busca lutar contra a dominação pelo arbítrio do mercado. O papel desta, conforme disposto ao longo da história, é o de nortear as discussões em busca do melhor modelo de regime para vida em sociedade. Estas discussões devem levar em conta a dinâmica social vigente, centralmente quanto a valores como liberdade e moral social, porém, de forma a não perder de vista a busca do bem estar comum.

Creio que o modelo de Estado que venha a se delinear após a crise de 2008 seja algo, conforme apontado por Nouriel Roubini (2011), para uma estrutura que se distancie do modelo anglo-saxão do livre mercado e também do modelo europeu de Estados de bem estar social movidos a déficits. A questão colocada agora é de que forma delinear esta nova estrutura e como colocar em prática nesta sociedade dominada pelas relações de mercado.

Desta forma, o ponto fundamental do republicanismo nos dias atuais é o resgate do tema da igualdade, pois tal propriedade tem se mostrado extremamente corrosiva a toda dinâmica da vida em sociedade. O ponto é, conforme apontado por Aristóteles, buscar a média, o ponto de equilíbrio entre as estruturas e os cidadãos que compõe nossa sociedade, de forma a evitar a desmedida de forças disposta aos olhos de todos no desenvolvimento desta crise. Nas palavras deste ilustre filósofo: “É uma verdade reconhecida que a mediana é boa em tudo.” (ARISTÓTELES, 1991, p.168).

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i Conforme apontam palavras da diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional: “Lagarde disse aos estudantes da John F. Kennedy School of Government que a geração deles “enfrenta provavelmente a pior insegurança econômica em décadas, possivelmente pior até do que a da Grande Depressão” (LAGO, 2012)

ii Influente teórico do liberalismo, oriundo da Escola de Chicago. Aponta as diretrizes do liberalismo, buscando condicionar o temor dos indivíduos à concentração de poder nas mãos do estado, objetivando a liberdade individual através do liberalismo de mercado, sem a regulação ou interferência do estado.

iii A partir de 1970 o capitalismo vem se globalizando, através da utilização de novas ferramentas na busca da maximização de seus lucros, tais como a financeirização da economia, a desregulamentação dos mercados mundiais, a desestruturação do trabalho organizado, o avanço das tecnologias das comunicações e a rapidez dos transportes.

iv Os Estados Unidos da América tiveram um Produto Interno Bruto Nominal (PIB) de aproximadamente 15,6 trilhões de dólares em 2011, mais que duas vezes maior ao segundo colocado, a China com 7,3 trilhões.

v Termo de referência para dizer que o mercado estava repleto de capital buscando algum negócio onde pudesse ser aplicado.

vi Um instrumento financeiro de alto risco derivado de outros ativos (ex. ações). Busca fundamentalmente estabelecer ferramentas de especulação relacionadas a proteção, alavancagem e arbitragem, criando assim um “produto” vendido a investidores, que buscam lucros a partir de sua negociação no mercado financeiro.

vii Conforme demonstra o documentário norte americano Inside Job, de Charles Fergunson, vencedor do Oscar de Melhor Documentário no ano de 2010. Este descreve a sistemática de corrupção do mercado financeiro norte americano, suas relações com as empresas e o estado nacional, bem como as conseqüências de suas ações.

viii Para consulta acessar http://www.imf.org/external/np/exr/key/finstab.htm

ix Conforme dados disponíveis junto ao Grupo de Conjuntura Fundap - http://www.debates.fundap.sp.gov.br/.

x Fundo Monetário Internacional atua hoje como um regulador capitalista, oferecendo socorro financeiro e estabelecendo as regras para sua concessão. Porém, as políticas que dirigem suas ações são claramente privatistas, defendendo primariamente criar condições para os estado quitarem suas dívidas junto a seus credores, buscando conferir “confiança” junto ao mercado, porém nitidamente desconexos do resultado de suas ações no plano social junto a estes estados, haja vista os casos atuais da Grécia e Espanha.

xi Para consulta acessar http://www.imf.org/external/np/exr/key/finstab.htm

xii Disponível em http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/5/23/as-contradicoes-de-lagarde Publicação de 23/05/2012.

xiii A preocupação do FMI de conter os gastos públicos junto a seus países credores em muito colaborou para acentuar os reflexos sociais das crises econômicas que vieram a atingir os países que receberam

Notas

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pacotes econômicos de socorro, haja vista a atuação deste junto ao México em 1994, a Crise dos países asiáticos em 1997 e a crise argentina de 2002.

xiv A constituição mista atualmente é definida pela idéia de eleições, leis, alteração no poder, divisão de papeis funcionais, transparência e checks and balances. (informação verbal) (PETTIT, 2008).

xv Pettit (1999), Ribeiro (2008).

xvi O conceito de amizade de Aristóteles se enquadra na sua definição de melhor polis para ser governada, sendo uma cidade pequena, com relações baseadas entre “iguais”. As grandes cidades contemporâneas dotadas de diversidades étnicas em sua composição, com certeza fogem a sua premissa teórica.

xvii Conforme definição de Newton Bignotto (2008, p.57).

xviii Relativo à força. Vinculada a ideia da origem da palavra democracia: demo mais kratos.

xix “O uso do raciocínio socialmente responsável e de idéias de justiça relaciona-se estreitamente à centralidade da liberdade individual. Não se está afirmando com isso que as pessoas invariavelmente invocam suas idéias de justiça ou utilizam seus poderes de raciocínio socialmente sensível para decidir sobre o modo de exercer sua liberdade. Mas um senso de justiça está entre as considerações que podem motivar as pessoas – e com freqüência isso ocorre” (SEN, 2000, p.297)

xx “Quanto à vida dedicada a ganhar dinheiro, é uma vida forçada, e a riqueza não é, obviamente, o bem que estamos procuramos: trata-se de uma coisa útil, nada mais, e desejada no interesse de outra coisa” (ARISTÓTELES, 2008, p.12).

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Tathiana Senne Chicarino

Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as confusões entre público e privado

Graduada em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2010). Mestranda em

Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde participa como pesquisadora do

Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP), atuando principalmente nos seguintes temas: mídia, cultura

política, democracia, liderança política e ciberpolítica.

ResumoO presente artigo pretende a partir do livro Os Donos do Poder de Raymundo Faoro (2000), retomar a discussão sobre o patrimonialismo, a formação do patronato político, e os obstáculos que eles apresentaram à construção de um Estado moderno, e, portanto, à própria configuração do capitalismo brasileiro.Faoro (2000) sustenta que ao longo de seis séculos o Estado brasileiro se fez autônomo em relação à sociedade civil, pois possuía um objetivo central: a realização dos interesses particulares de seus dirigentes, do patronato, ou estamento político. Desta forma, a máquina pública foi transformada em patrimônio pessoal, o leitmotiv tipicamente brasileiro. A longa permanência do capitalismo politicamente orientado de cunho tradicional e patrimonial foi possível porque conseguimos combiná-lo com o capitalismo moderno, criando uma dupla pauta de desenvolvimento, com o arcaico e o moderno caminhando juntos. Este processo modernizador terá consequências na estrutura de poder, no grupo monolítico de domínio e no imaginário social, impedindo a mudança, estimulando o associativismo vertical em detrimento ao associativismo horizontal e não fomentando a formação de uma cultura cívica.

Palavras -ChaveRaymundo Faoro; Patrimonialismo; Estamento Político; Capitalismo.

AbstractThis article seeks from the book The Power Owners Raymundo Faoro (2000), back to the discussion about the formation of patrimonialism and political patronage, and the obstacles they had to build a modern state, and thus the very configuration of Brazilian capitalism.Faoro (2000) sustain that over six centuries the Brazilian state became autonomous in relation to civil society, for he had a central goal: the realization of the interests of its leaders, employers, or political establishment. Thus, the government machinery has been transformed into personal wealth, the leitmotiv typically Brazilian.The long stay politically oriented capitalism and traditional stamp sheet was possible because we can combine it with modern capitalism, creating a dual agenda of development, with the archaic and modern walking together. This modernizing process will have consequences in the power structure in monolithic group and domain in the social imaginary, preventing change, stimulating associative vertical over the horizontal associative and not encouraging the formation of a civic culture.

KeywordsRaymundo Faoro; Patrimonialism; Political Estate; Capitalism.

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1. Introdução

Faoro é sem dúvida um dos maiores intérpretes da realidade brasileira, sem desconsiderar os aspectos socioculturais e o comportamento prático, mas enfatizando a feição institucional, ele parte do estudo sobre patrimonialismo e os obstáculos presentes na construção de um Estado moderno, para poder compreender a formação do patronato político e a configuração do capitalismo brasileiro.

No clássico livro Os Donos do Poder (2000) o autor nos aponta que muito do “atraso” do país se deve a uma herança ibérica transplantada desde a colonização. Tendo como influência significativa Max Weber, Faoro sustenta que ao longo de seis séculos o Estado brasileiro se configurou como autônomo em relação à sociedade, privilegiando a racionalidade burocrática em detrimento da racionalidade moderna e legal, mas o autor vai além do pensamento weberiano quando diz que este mesmo Estado precede a sociedade civil, que não lhe é somente apartada. Esta autonomização se desenvolverá a partir de um objetivo central que é a realização dos interesses particulares de seus dirigentes, ou do estamento como o autor conceitua, transformando a máquina pública em patrimônio pessoal.

Simon Schwartzman na obra Bases do Autoritarismo Brasileiro (2007) sintetiza bem a realidade brasileira, tendo como base o pensamento de Faoro:

(...) conheceríamos um sistema político de cooptação sobreposto ao de representação, uma sociedade estamental igualmente sobreposta à estrutura de classes, o primado do Direito Administrativo sobre o Direito Civil, a forma de domínio patrimonial-burocrática e o indivíduo como um ser desprovido de iniciativa e sem direitos diante do Estado” (SCHWARTZMAN, 2007, p.43).

Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as confusões entre público e privadoTathiana Senne Chicarino

Para Schwartzman (2007) o indivíduo no Brasil não tinha iniciativa ou direitos ante o Estado, e se, eles não eram representados da forma mais simples, uma forma articulada e autônoma era impensável. Diremos então, que esta é uma característica constitutiva do capitalismo brasileiro, definido como capitalismo de Estado, ou politicamente orientado. De acordo com Faoro (2000) esta estrutura sobreviverá a tudo e a todos, criando um capitalismo sem o ethos capitalista e a ética calvinista, mas sob a onipresença do Estado patrimonial.

2. A origem do patrimonialismo

O primeiro Estado Nacional a surgir foi Portugal, e, de forma simplificada, as razões desta vanguarda vão, de uma realeza mais forte a um feudalismo mais centralizado, fatores que resultaram no progressivo enfraquecimento dos senhores feudais. Antevendo esta derrocada, parte da burguesia, especialmente a burguesia mercantil, se alia ao Poder Real, transformando este no principal condutor do processo de desenvolvimento do Estado-Nação, porém, o sucesso desta aliança virá, sobretudo da cooptação nobiliárquica, ou, de uma estratégia domesticadora de oferecimento de cargos com status de nobreza que perduraria por séculos e que seria exportada à América portuguesa.

Formado o tripé “Coroa, burguesia, Estado Nacional”, ungido pelo mito edênico do paraíso terrestre (BUARQUE, 2000) e reforçado pela marca da guerra, a empresa marítima buscará no expansionismo territorial a sedimentação de seu poderio e a subordinação da economia. Esta acumulação primitiva de terras, nos alerta Faoro (2000) dará início a confusão entre o que é um bem público e o que é um bem privado, ou à forma de dominação conhecida como patrimonial.

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Além disso, fornecerá subsídios para a formação do estamento nobiliárquico através da concessão de terras, combinando dois fundamentos em si contraditórios: o da soberania da posse da terra e o da dependência ante o Poder Real, tudo isso selado pela lealdade. O resultado será uma grande capilarização dos agentes reais no território português, cuidando de algo que era ao mesmo tempo seu e do rei.

O marcante traço territorialista de Portugal terá também, influências significativas em seu ordenamento jurídico, não podendo se filiar à Common Law, ou direito do costume da terra; e também sem construir um conjunto de normas que lhe seja endógeno. Foi adotada a Constituição de Diocleciano, como Estatuto de Ordem Pública - dando o caráter político e instituindo uma vasta camada de funcionários públicos - e o Código de Justiniano, como Estatuto regulador das relações privadas, sendo que este afirmava o poder ilimitado do imperador, e consequentemente reforçava o patrimonialismo.

Segundo terminologia de Faoro (2000), a esses fundamentos sociais e espirituais se somará a tendência mercantil da monarquia portuguesa, e, juntos construirão o Estado patrimonial e com ele uma nova ordem social, o capitalismo politicamente orientado. Um capitalismo de Estado diferente do capitalismo dos países que tiveram uma revolução burguesa clássica, pois tanto em Portugal quanto na América portuguesa, a burguesia fora sufocada e cooptada, ela não terá um papel eminentemente revolucionário como a história mostrou e Marx eternizou no Manifesto Comunista (MARX, 2002).

Reforçando o argumento da importância da predisposição comercial de Portugal, Faoro (FAORO, 2000, p.36) ressalta que foi esta peculiaridade histórica que acelerou o aparecimento do sistema patrimonial, contrário à ordem feudal,

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pois, se não existiam as evidências empíricas na superestrutura, estas levavam à incerteza da existência do feudalismo na infraestuturai Faoro (2000) trará ainda para contrastar com a teoria marxista, a diferenciação de Maquiavel (1976) sobre dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial, no último o monarca é o senhor do comércio e da riqueza territorial, e estende sobre os súditos uma rede patriarcal diferente dos direitos e deveres fixamente determinados como no feudalismo.

Não ter tido um feudalismo chamado “autêntico”, que tivesse revolvido as entranhas da sociedade, fez com que a Península Ibérica desconhecesse as relações capitalistas em sua íntegra, sem a articulação entre sociedade e Estado. Portugal ficou refém dos avanços tecnológicos de outras nações, especialmente, França e Inglaterra, pois, não havia reinvestimento ou acumulação. O patrimônio português servia para manter a administração colonial, e esta é uma das principais teses de Faoro (2000), a de que toda renda gerada pela terra era destinada à geração e conservação de um estamento burocrático de caráter fidalgo. Esta tese desfaz ainda ao nó górdio da manutenção por Portugal de um domínio colonial tão vasto e rico a despeito de não seguir princípios racionais modernos. A resposta está em quanto maior o patrimônio real, maior era a incorporação de pessoas ao estamento, e, portanto, maior era a capilaridade de Portugal na colônia, “todos são a sombra do rei”, de um poder monocéfalo que se desdobrava nos rincões tropicais.

Vale ressaltar que, se a estrutura patrimonial levou à estabilização da economia e do entreposto colonial, por outro lado, impediu o florescimento da burguesia e com ela o capitalismo industrial. Como já dissemos, o Brasil vivenciou um capitalismo orientado de cunho tradicional, e embora utilizasse formas do capitalismo moderno,

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racionalidade técnica e dispersões liberais, não possuía o seu espírito, ou o ethos capitalista segundo a teoria weberiana.

No texto Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1981) Weber procura confirmar a hipótese de que a representação religiosa, especialmente a dos calvinistas, e a conduta econômica por eles exercida foram no Ocidente uma das causas do desenvolvimento do capitalismo. Embora existissem fenômenos capitalistas em civilizações orientais, as características específicas do capitalismo ocidental – busca do lucro combinado com a burocratização, o primado do Direito racional e o protagonismo do indivíduo – só floresceram quando o espírito do capitalismo e a vocação religiosa se encontraram. A ética protestante sugere que se deve desconfiar dos agrados deste mundo, a riqueza em si constitui um grande perigo, o ideal é trabalhar dia após dia, acumulando lucro e reinvestindo no que não foi consumido. Permitindo o desenvolvimento dos meios de produção, a aquisição econômica deixa de ser um meio de satisfazer somente as necessidades básicas do homem e passa a ser um dos princípios orientadores do capitalismo. Os calvinistas viviam o comportamento ascético de alheamento do mundo e como eles não sabiam se seriam salvos ou condenados, procuravam sinais no mundo que indicassem sua escolha. É assim que algumas seitas terminaram por ver no êxito econômico uma prova da escolha de Deus, eram os predestinados.

Este ethos capitalista, este comportamento ascético voltado para a acumulação não ocorria entre os católicos, pois eles não percebiam a sociedade dos homens na terra como um fim em si, mas, de forma teleológica esperavam o Segundo Advento, ou o Paraíso, que de certa foi encontrado na América portuguesa. O historiador Caio Prado Júnior (1970), seguindo a mesma vertente de

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Sérgio Buarque (2000), dirá que a ocupação dos trópicos será estimulada pelos imensos territórios à disposição, o colono virá somente se for o dirigente, contando com outra gente que trabalhe para ele, revelando a aversão ibérica ao trabalho manual.

3. O estamento: Leviatã Social

É interessante notar o uso que Faoro (2000) faz da história, pois se por um lado ele a usa intensamente, recuperando os antecedentes históricos como a formação do Estado-Nação português, e suas heranças para a América portuguesa, por outro lado, ele cria uma teoria a-histórica sobre a formação do patronato brasileiro, algo se manterá imutável diante dos desdobramentos do mundo (SCHWARTZMAN, 2003). E para compreender esta paralisia Faoro (2000) tenta escapar do determinismo historiográfico rompendo com um postulado marxista que considera o feudalismo uma etapa necessária na linha da história, mas que por outro lado, vê a origem do patrimonialismo brasileiro já nos primórdios coloniais, quando Portugal transplanta sua estrutura de dominação à América portuguesa, tendo o estamento como ferramenta de poder.

De acordo com Faoro (2000) o estamento é diferente das classes, pois teria de ser uma categoria econômica, e não somente política, mas ao contrário é o estamento que sustenta a classe pelo fiscalismo. Vale ressaltar, porém que isso não exclui as relações de poder, enquanto capacidade de agir, de produzir efeitos, de determinar comportamentos, de forma intencional ou interessada, neste caso, as relações se fundamentam e se legitimam no que Weber (2005) chamou de um tipo de dominação tradicional, baseado na tradição, com o aparato administrativo de tipo patriarcal formando a rede

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que irá sustentá-las.

O estamento segundo Faoro (2000) seria então, uma organização político-administrativa, uma corporação de poder, estruturada numa comunidade, ou seja, o “Estado-maior da autoridade pública”. Este grupo se torna árbitro da nação e das classes sociais, regulador da economia e proprietário da soberania nacional, atua em nome próprio e para tanto, usa indiscriminadamente os instrumentos oriundos de sua posse do Estado. Falar que o estamento é uma elite ou classe política para Faoro (2000) é pleonasmo, pois haverá sempre uma minoria governando ou tendo isso como objetivo. Ser uma minoria governante não significa, pois ter autonomia, e, esta é uma qualidade fundamental do estamento.

José Murilo de Carvalho (2010), no entanto, vai discordar de Faoro quanto ao que seja a classe dirigente imperial (segundo terminologia do próprio autor), para ele, não se trata de um estamento,

(...) mas de uma elite política formada em processo bastante elaborado de treinamento, a cujo seio se chegava por vários caminhos, os principais sendo alguns setores da burocracia, como a magistratura. (...) O segredo da duração dessa elite estava, em parte, exatamente no fato de não ter a estrutura rígida de um estamento, de dar a ilusão de acessibilidade, isto é, estava em sua capacidade de cooptação de inimigos potenciais (CARVALHO, 2010, p. 151).

Acrescenta ainda que a classe dirigente também

(...) não era máquina moderna de administrar, pois o sistema industrial de produção que levou a racionalização administrativa para dentro dos modernos Estados capitalistas ainda não se estabelecera entre nós” (CARVALHO,

2010, p.164).

Porém, se considerarmos o texto de Weber (1978) Feudalismo e Estado Estamental, veremos que o estamento estaria baseado em relações de piedade, e não em relações contratuais como no feudalismo; sendo assim, o estamento poderia coexistir com o capitalismo, a despeito da hierarquização e da pessoalidade, pois o estamento não é casta já que não possui a sua rigidez e nem classe, é um corpo homogêneo estratificado, formando uma teia de relacionamentos que constitui um determinado poder e influi em determinado campo de atividade. O estamento tivera origem no que Weber (1978) denominou “patrimonialismo”, essa forma de dominação política tradicional poderia evoluir para formas modernas, como o patrimonialismo burocrático-autoritário, combinando aspectos racionais e irracionais. O estamento portanto, além de não ser rígido, não pode ser identificado com o pré-capitalismo, pois não terá um caráter necessariamente transitório, mas muitas vezes permanente em uma economia patrimonial onde o prestígio e a honra ocupam papel destacado, por isso o mecanismo da cooptação nobiliárquica terá resultados tão eficientes.

Se, ao definir o patronato político brasileiro como sendo de ordem estamental, e usando conceitos como patrimonialismo e burocracia racional-legal o autor se aproxima de Max Weber, por outro lado, ele se afasta substancialmente Marx, principalmente quando sustenta a autonomia do estamento político burocrático. Faoro relendo Marx dirá que para este o bonapartismoii ou o cesarismo apresenta apenas uma autonomia aparente, visível somente na superestrutura. De fato, em O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte (2006) Marx vai, confirmando a clássica tese de que “O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir

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os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX, 2002, p.42) dizer que as políticas, ou as ações do Executivo coincidem com os interesses da classe dominante, e mais, o Golpe de Estado na França de Napoleão III não fora obra de um indivíduo, mas das circunstâncias e condições geradas pela luta de classes. Faoro (2000) ao contrário, defenderá o estamento como um poder político que não era exercido nem para atender aos interesses das oligarquias rurais, nem a incipiente burguesia, mas em causa própria, “(...) por um grupo social cuja característica era, exatamente, a de dominar a máquina política e administrativa do país, através da qual fazia derivar seus benefícios de poder, prestígio e riqueza” (SCHWARTZMAN, 2003, p. 209). Simon Schwartzman (2003) em seu artigo Atualidade de Raymundo Faoro, contará que a contribuição do jurista-sociólogo

“(...) vai além da utilização dos conceitos weberianos e da interpretação que deu ao sistema político brasileiro: ela consiste, fundamentalmente, em chamar a atenção sobre a necessidade de examinar o sistema político nele mesmo, e não como simples manifestação dos interesses de classe, como no marxismo” (SCHWARTZMAN, 2003, p. 209).

Faoro (2000) dirá ainda que tanto Marx quanto Engels não previam a assimilação da burocracia pelo estamento, sendo a primeira apenas um formalismo do Estado. Já na realidade brasileira, não impera a burocracia, a camada profissional que assegura o funcionamento do governo e da administração no ideal do Estado racional-legal, mas o estamento político, que se faz árbitro dos conflitos entre as classes. Sua autonomia se manifesta através de certos objetivos, sendo um dos principais a centralização territorial e política. O estamento burocrático comanda o ramo civil e militar e também provê oportunidades de ascensão

política através da cooptação nobiliárquica e posteriormente, através da concessão de empregos públicos.

Por ser uma realidade peculiar, retomaremos alguns eventos políticos significativos para poder compreender a evolução do estamento político no Brasil.

4. Recuperando a história

Desde a colonização, foi forte a presença da continuidade e da permanência, traços de nossa cultura política. É relevante salientar, portanto, que não vivenciamos uma revolução nos moldes clássicos, não houve mudança na estrutura fundiária e menos ainda na democratização do poder, e é neste ponto que a continuidade fica mais evidente, nos donos do poder, ou no estamento político.

O capitalismo liberal, ou capitalismo manchesteriano desenvolveu-se no Brasil de forma derivada, perpassado pelo hibridismo de sua estrutura e de suas instituições. As fases do seu desenvolvimento foram superpostas, não encontraram aqui uma sociedade homóloga à sua prática e ideologia, mas um Estado anacrônico que até o Império era predominantemente agrário em base econômica latifundiária e escravista.

Caberia então às elites utilizarem o liberalismo à sua maneira, de modo a não levar à balcanização, mas em prol da manutenção e expansão do território, essa característica ibérica estaria acima da livre iniciativa e da descentralização política, e, portanto da própria ideologia liberal, que ficaria para ser concretizada no futuro, fazendo com que a prática do liberalismo fosse retrógrada em relação à realidade brasileira, abafando os interesses privados e inibindo a livre iniciativa (VIANNA, 1996).

A democracia liberal de orientação estrangeira, era contrária aos interesses da

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oligarquia, e aqui tomou outras formas; a ideologia a ser criada não priorizava a democracia representativa, mas sim uma forma elitista de ação política, tendo o Estado como principal ator. Era como se fosse descoberta uma forma de convívio entre as instituições liberais e o sistema patrimonial de origem ibérica.

Esse convívio ou mudança pela via da acomodação, Faoro (2000) vai identificar especialmente no comportamento e nas atitudes da Coroa portuguesa, do Exército e também da classe dominante, por exemplo, quando a queda do Gabinete Liberal de Zacarias de Góes em 1868 inaugura um processo de intenso dissídio entre a Coroa e o Exército. A Coroa tentava conter o liberalismo, ao passo que se espalhava a contrariedade quanto ao uso indiscriminado do Poder Moderador, a famosa frase “o rei reina, mas não governa” será usada por progressistas e liberais, e posteriormente exacerbada pelos republicanos que farão intensa pregação contra a monarquia. O Partido Republicano agrupará grande parte dos fazendeiros dissidentes, especialmente os do oeste paulista. Estes, que outrora eram um dos sustentáculos do Império, agora não viam mais vantagem na artificial titulação nobiliárquica, o benefício visualizado por eles estava agora no discurso federativo. A Coroa tenta ainda em seus últimos suspiros esvaziar essas reivindicações federativas reinantes empreendendo a centralização política e descentralização administrativa, essa tentativa de aproximação dos municípios e com as províncias protegerá a unidade política, mas a medida será tomada tarde demais.

A sociedade começa a se desmistificar, dirá Faoro (2000). A sociedade de classes começa a surgir, e suportes como a burguesia agrária e o Exército – chamado por Faoro de o principal aparelho centralizador, depois de aniquilada a

Guarda Nacional – entram em colapso, além disso, a abolição da escravatura trata de lhe desferir o último golpe, afetando o estamento político que sobrevivia das divisas oriundas do crédito cedido à agricultura comercial, a classe dominante estava fragmentada e absorvida em ideias e posicionamentos diferentes dos do Império.

A despeito de sua aproximação com a classe média – já que com o passar do tempo os filhos das oligarquias concentram-se cada vez mais nas carreiras do Direito, e o oficialato ao contrário, passa a ter sua origem, sobretudo de famílias militares e de rendas modestas – e da tomada de um discurso democrático com a tese do cidadão de farda, a instauração da República pelo Exército não trouxe consigo a soberania popular ou a representação social e política, mas o poderio regional, especialmente dos Estados mais abastados com o exacerbamento do mandonismo privado. Cabe ressaltar que se a oligarquia persistiu a esta mudança social, o mesmo ocorre com o estamento, que não finda, somente dispersa.

Assim, mesmo com a República e a tentativa de descentralização do poder não houve a ampliação da cidadania, o Estado republicano passou a não impedir a atuação das forças sociais, mas a favorecer as mais fortes, no estilo spenceriano, como nos ensina Carvalho (2006), com o liberalismo como instrumento de consolidação do poder.

Faoro (2000) dirá que a soberania popular só existirá como farsa, não traduz a vontade “de baixo para cima”, mas sempre de cima, de um estamento burocrático que num movimento pendular confunde o espectador, variando sua aparência, ora liberal, ora democrático, e outras, autoritário.

5. Viagem redonda: estamento permanente?

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De forma exortativa, no último capítulo de Os Donos do Poder, Faoro (2000) utiliza a metáfora da Viagem Redonda, para dizer que de Dom João a Getúlio Vargas passaram-se seis séculos, mas algo se manteve intacto, a ser, o capitalismo politicamente orientado. Esta estrutura político-social se viabiliza pelo tipo de domínio conhecido como patrimonial exercido pelas mãos do estamento que, se no início era aristocrático, depois passa a ser burocrático. Contudo, isso não significa dizer que a estrutura é estática, imóvel, mas que a mudança se deu ao longo dos séculos pela acomodação, ou seja, existe a renovação, porém, ela carrega coercitivamente os mesmos valores e tradições de antes, com uma homogeneidade de consciência, de ideologia, de visão de mundo, a mudança não é, portanto, estrutural. Faoro (2000) vai salientar que a permanência da estrutura exige a mudança interna e o ajustamento externo, e se a elite conseguir controlar o ritmo e o alcance da mudança poderá impedir a ruptura, afastando as consequências imprevistas.

O patrimonialismo não gerou uma burguesia capaz de ir contra o status quo, ou fazer a revolução, mas uma elite predatória ligada ao estamento, e se durante esses seis séculos houve momentos de crise, de mudança de direção, não houve, contudo, mudança de domínio, como no conceito gramsciano (COUTINHO, 1999), as pessoas podem mudar, mas a orientação permanece. E Faoro (2000) vai seguir o mesmo raciocínio quando diz que essas mudanças não ocorreram sem conflitos, mas ao receber o impacto das novas forças sociais se opera a estratégia de cooptação, de amaciamento, de domesticação, de incorporação dos valores, num caráter de compromisso, podando-se o “fermento revolucionário” – clássica caracterização de Florestan Fernandes acerca do liberalismo.

A legitimidade do patrimonialismo,

portanto, vai se assentar na tradição, combinando continuidade e estabilidade, e isso servirá a Faoro não somente para identificar a origem do patronato político brasileiro, mas também para entender como se deu esse caminho, que no Brasil foi via Estado; o ator a moldar a fisionomia do chefe de governo e a regular as relações sociais. O chefe por meio do Estado vai tutelar os interesses particularistas, dando um tom pessoalista às normas, vai acolher sem intermediários o cidadão e os desvalidos em um braço, e no outro a apática e parasita burguesia. Essa ambiguidade dirá Faoro (2000), será uma característica significativa neste tipo de domínio. Dirá ainda, que o chefe não será um mito carismático, um herói, ou legitimado por um governo constitucional-legal, já que as leis tendem a configurar-se de acordo com a demanda do estamento, mas será o bom príncipe como D. João I, D. Pedro II e Getúlio Vargas.

Em se tratando da figura de Getúlio Vargas, conhecido como o “Pai dos pobres”, essa lógica operará com especial clareza, pois ele vai empreender uma política de bem-estar social num momento onde as massas emergiam ao procênio do desenvolvimento industrial e urbano e a concessão de direitos será uma forma de arrefecer as reivindicações e os possíveis surtos revolucionários, processo conhecido como populismo. Porém, é importante ressaltar que, embora a manipulação das massas tenha sido um ingrediente ímpar na estratégia populista, ela foi também um modo de expressão das insatisfações das massas e, ao mesmo tempo, uma forma de estruturação do poder para os grupos dominantes.

Para Faoro (2000) as massas confundirão o político com o taumaturgo, com o ilusionista, que ao invés de agir, salva, e mais uma vez Getúlio Vargas e o nacionalismo que florescerá após a Revolução de 30 serão paradigmáticos para

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compreender esse fenômeno, a ser, o messianismo que permeia a cultura política brasileira. Getúlio Vargas e o estamento que ele representava significavam a esperança de um mundo novo, um mundo em compasso com os valores e teorias tidas como universais, ou seja, correspondia a um verdadeiro processo civilizatório permeado por um bovarismoiii colonizado, mas a modernização que correspondente a esse processo não desvanece o patrimonialismo político, ao contrário, dá sobrevida à elite política estamental numa ordem estatal centralizada. Nas palavras de Werneck Vianna (2011) “(...) a Revolução de 1930 consistiria, pois, em um retorno às raízes patrimoniais, obedecendo ao movimento oculto das estruturas” (VIANNA, 2011, p.04).

6. Modernização e modernidade: cultura política imutável?

A longa permanência do capitalismo politicamente orientado de cunho tradicional foi possível porque conseguimos combiná-lo com o capitalismo moderno, criando uma dupla pauta de desenvolvimento, com o arcaico e o moderno caminhando juntos. Para compensar essa diferença de ritmo, a mudança social se dará por saltos, o que favorecerá o estamento, pois permanecerá o mesmo grupo monolítico de domínio, um grupo capaz de impor um destino comum a homens heterônomos.

Sobre o conceito de mudança social, vale a pena resgatá-lo do livro de Florestan Fernandes, Mudanças Sociais no Brasil (2008).

Neste o sociólogo vai chamá-lo de uma noção genérica, podendo ser aplicada a quaisquer espécies de alterações no sistema social, independente das condições de tempo e espaço, podendo ser, portanto, progressiva ou regressiva, e é a esta qualidade que depende a caracterização

do desenvolvimento social. Porém, o ritmo da mudança não é homogêneo a todas as esferas culturais e institucionais de uma dada sociedade, o que pode gerar um desequilíbrio variável da integração delas entre si, com atritos e tensões, algo típico em sociedades marcadas pela dualidade estrutural (FERNANDES, 2008).

Esta dualidade estrutural é o modo como o Brasil consolida o seu Estado burguês de Direito, não com o capitalismo politicamente orientado precedendo o capitalismo moderno, mas agindo ao mesmo tempo. Esta temática é trabalhada por Faoro no texto A questão nacional: a modernização (1992) onde ele coloca a seguinte reflexão: se a realidade brasileira indica que a secular estrutura patrimonial não foi extinta, ou, não cumpriu a etnocêntrica lei geral do desenvolvimento histórico com o pressuposto de que as nações que estão nas últimas posições devem se adaptar ao ritmo mundial, há que se questionar sobre qual seria a “pista natural do desenvolvimento” do Brasil e, somente quando for desvendado o leito por onde ela corre, poderemos trilhar o caminho de um país moderno e não modernizador, sem atalhos ou saltos, pois eles “estão cheios de atoleiros de autocracias” (FAORO, 1992, p.08). O desenvolvimento para Faoro (1992) começa com a descoberta desta pista, que conteria um eco hegeliano na medida em que se faz como devenir, como atualização, negando a “(...) hipótese do encadeamento de modernizações e da própria modernização como via de desenvolvimento” (FAORO, 1992, p. 02).

Para tanto, Faoro (1992) fará a distinção entre modernidade e modernização. A primeira comprometeria em seu processo a sociedade em geral, todas as classes e não só as dominantes, com a revitalização e por vezes remoção de papéis sociais, não dependendo de comandos externos para se realizariv. Já a modernização, ao contrário da

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modernidade, não seria o desenrolar da lei natural do desenvolvimento, mas a instauração de uma política de mudança social implementada por um grupo condutor, através da ideologia ou coerção, e não como expressão da sociedade civil.

O processo modernizador tão próprio do Brasil geraria um tempo circular, ou a lógica do conservar-mudando de Vianna (1996). As estruturas permaneceriam intactas ante as mudanças, e o imaginário social acerca das relações de poder, ou cultura política se manifestará contra as ideologias opostas, os interesses divergentes, afeita à conciliação e à internalização do conflito. Nossa revolução burguesa será dominada pelo andamento passivo, “(...) e por esta natureza passiva do caminho, o sistema de orientação racional pode coexistir com a ordem patrimonial, criando para a burguesia a possibilidade de extrair vantagem tanto do moderno quanto do atraso” (VIANNA, 2011, p.06).

Nosso particularismo privatista será antípoda à formação de uma cultura cívica, de um associativismo horizontal como na ética protestante, as soluções virão de um associativismo vertical, através da mendicância estatal.

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i Superestrutura é uma categoria usada na tradição marxista para indicar as relações sociais, jurídicas, políticas, e as representações da consciência (costumes, ideias) que complementam a estrutura. Infraestrutura é a base material, as forças econômicas.

ii Bonapartismo é uma forma de governo ou de uso do poder onde há a subordinação do Legislativo ante o Executivo por uma figura carismática.

iii Bovarismo é uma visão romantizada da possibilidade de se passar de uma condição negativa, para outra considerada ideal.

iv Faoro explica este processo através do exemplo hegeliano para o desenvolvimento, usando a metáfora do desenvolvimento de uma planta, que não se faz por uma força externa, mas a partir de seu germe, que a contém de modo ideal, e não uma direção superior, um enxerto, desenvolvendo assim, a planta (FAORO, 1992, p. 07).

Notas

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Alessandra Felix de Almeida

Da experiência vivida à crítica escrita:Os saberes cotidianos e os seus sujeitos como parâmetros da produção textual e reflexão dos fenômenos sociais

Graduanda do curso de Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia

e Política de São Paulo. Contato: [email protected] /

[email protected]

Resumo

Trata-se de um projeto individual e autônomo, desenvolvido para produção textual a partir de conversas e debates sobre conteúdos e experiências de vida dos participantes, conforme orientações da metodologia Pesquisa-Ação, cujo objetivo é o da transformação e resolução de problemas em uma forma de ação planejada de caráter social. Nos últimos cinquenta anos os problemas da leitura, compreensão e escrita de textos persistem na educação brasileira e têm sido diagnosticados através de dados e estatísticas, no entanto a questão que se colocou foi como estas dificuldades se apresentam e quais seriam suas consequências práticas. Uma vez que esta problemática está colocada, é possível aceitá-la como um fato dado, portanto percebido como real, de modo que a dificuldade se apresentaria como parte da produção de textos, legitimando distinções entre aqueles que sabem e dominam e os que não sabem e são dominados. Assim, o objetivo

Palavras -Chave

Produção textual. Desmistificação da escrita. Experiência vivida.

do projeto foi o de trazer os participantes para dentro do processo de produção textual, através de suas experiências vividas, apresentando que tais experiências têm seus valores, pois estão inseridas na mesma sociedade, pode-se assim, relacioná-las com os contextos sociais, políticos e econômicos, possibilitando um pensamento crítico de si mesmo e do mundo em que vivem.

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1. Introdução

Em 04/02/1962 foi apresentado pelo jornal O Estado de São Paulo, sob o título “A escola média do século XX: um fato novo em busca de caminhos”, um dos principais problemas da educação secundária como sendo “o da preparação de candidatos a cursos superiores” (OESP, 1962), em 17/07/2012, foi publicado, pelo mesmo veículo, que “No ensino superior, 38% dos alunos não sabem ler e escrever plenamente” (OESP, 2012) e em reportagem sobre o ENEM, um importante portal de notícias na web, destacou, em 04/06/2012, que os “candidatos ainda têm dificuldade para entender tema de redação” (UOL, 2012). Diante deste quadro, podemos entender que os problemas da leitura e escrita persistem na educação brasileira, por pelo menos cinquenta anos, e que as políticas públicas para a educação tiveram como objetivo o desenvolvimento dos estudantes para o mercado de trabalho, no entanto as mesmas políticas públicas têm se deparado com a ineficiência da educação de base (INAF, 2011: 3).

A problemática da educação, especificamente a produção textual, foi o ponto de partida para a elaboração deste projeto, desenvolvido na Vila Brasilândia, e orientado pela questão da dificuldade em redigir textos como um fato dado. De modo que a proposta deste projeto, sob a perspectiva metodológica da Pesquisa-Ação, foi a de desmitificar a produção de textos, colocando os participantes como protagonistas da produção textual, assim como o são do mundo que constroem socialmente (NOGUEIRA e MESSARI, 2005: 163) e apresentando suas qualidades sensoriais como vinculadas a todo processo da vida social (HORKHEIMER, 1983: 133).

Os temas dos textos produzidos tiveram como fonte a vivência dos participantes, a fim

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Alessandra Felix de Almeida

de demonstrar que a leitura do mundo se coloca como um passo anterior ao da leitura e da escrita (FREIRE, 2011: 109), entendendo que a dificuldade, colocada como um fato dado, acaba por legitimar distinções entre aqueles que sabem e dominam e os que não sabem e são dominados (BOURDIEU, 2010: 10) e que a reflexão livre de pressupostos dominantes, efetiva a essência do pensamento que é pensar (HORKHEIMER, 1983: 145).

2. A construção da verdade em ação

“Último dia de prova tem a temida redaçãoi” é o título de uma matéria da Revista Veja, publicada no dia 04/11/2012, em referência ao Exame Nacional do Ensino Médio. Flávio Villaça (1999) em seu estudo sobre os “Efeitos do espaço sobre o social na metrópole brasileira” nos apresenta o desenvolvimento de uma ideologiaii para a dominação do espaço público, nos mostra ainda que “o real não é fácil e diretamente observável pelos nossos sentidos [...] surgem então diferentes versões sobre o real” (VILLAÇA, 1999: 231). Em seu trabalho, o autor aponta algumas versões do real, como a ligada à naturalização dos processos sociais, como por exemplo, “a miséria do nordeste é decorrência do clima” (VILLAÇA, 1999: 231). O estudo de Villaça (1999) percorre os veículos de comunicação, especificamente os jornais e as revistas de grande circulação, a fim de apresentar como as notícias são construídas e para onde está direcionada a atenção da imprensaiii. O tema de Villaça (1999) é o espaço urbano, no entanto, podemos utilizar o seu método para analisar como as versões do real também são desenvolvidas na área da educação.

Em 04/02/1962 foi apresentado pelo jornal O Estado de São Paulo, sob o título “A escola média do século XX: um fato novo em busca de caminhos”, um dos principais problemas

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da educação secundária como sendo “o da preparação de candidatos a cursos superiores” (OESP, 1962), em 17/07/2012, foi publicado, pelo mesmo veículo, que “No ensino superior, 38% dos alunos não sabem ler e escrever plenamente” (OESP, 2012) e em reportagem sobre o ENEM, um importante portal de notícias na web, destacou, em 04/06/2012, que os “candidatos ainda têm dificuldade para entender tema de redação” (UOL, 2012). Podemos perceber, ainda que à primeira vista, que a educação tem sido apresentada mais como um problema do que uma solução ou menos ainda, como parte integrante do direito civiliv, um dos três elementos do conceito de cidadania previsto por T.H. Marshall (1967).

O presente trabalho aborda a questão da produção textual, neste sentido foi realizada uma breve pesquisa nos meios de comunicação quanto às notícias veiculadas que fizessem referência ao último Exame Nacional do Ensino Médio, realizado nos dias 03 e 04/11/2012, que citassem as palavras “redação” e “ENEM”, temos assim os seguintes resultados publicados no dia 04/11/2012v:

um fato dado e propagada graças à legitimidade dos veículos de comunicação. Também não foi objeto deste trabalho a análise dos objetivos da mídia, quanto à possibilidade de divulgar uma ideologia, mas sim como as notícias superficiais orientam a construção de verdades que podem impactar nas atitudes dos leitores e ouvintes. Podemos entender que diante destas colocações as produções de texto ganhem uma complexidade além do que de fato teriam. Se “a miséria do nordeste é decorrente do clima”, do que decorreria a dificuldade para a elaboração de um texto?

3. O “saber de experiência feito”

Do ponto de vista de que todas as pessoas partilham do mesmo mundo, embora com visões e referenciais diferentes, é possível considerar que estas mesmas pessoas têm algo a contar, ensinar e aprender, seja em suas relações cotidianas ou na produção de um texto. Paulo Freire (2011) procurou

introduzir a troca fecunda de saberes, do popular com o científico. Deixou claro que somente um ignorante pode considerar o povo ignorante. Pois ele é um produtor de sentido, de visão de mundo, de valores além dos frutos de seu trabalho (FREIRE, 2011: 10).

Procurando responder à pergunta: do que decorreria a dificuldade para a elaboração de um texto? Foi considerado que em oposição à dificuldade haveria a facilidade. Conforme exposto, o termo dificuldade (ou associações negativas à redação) é consideravelmente superior ao termo facilidade no que tange à produção de redações. Assim, podemos começar a reelaborar a pergunta acima da seguinte forma: Do que decorreria a facilidade para a elaboração de textos por uma pequena parcela das pessoas? Neste

Diante destes dados podemos afirmar que as redações foram referenciadas de maneira negativa em 86% das matérias publicadas. Se as redações são, na “realidade”, fáceis ou difíceis, este não foi o argumento de elaboração deste trabalho, mas sim a questão da dificuldade em redigir colocada como

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sentido, sabe-se, através do pensamento de Pierre Bourdieu (2010), que as ideologias correspondem a interesses particulares que procuram representar interesses universais – aqui, verdades universais –, que tendem a desmobilizar as classes dominadas. Uma vez que não haveria o que fazer diante de verdades universais, as distinções entre os grupos legitimar-se-iam e seriam estabelecidas hierarquias (BOURDIEU, 2010: 10), em que estariam os que sabem (produzem textos com facilidade) e dominam e aqueles que não sabem (têm dificuldades para produzir textos) e são dominados.

Considerando que os dominados seriam representados, nos termos de Paulo Freire (2010), pelo povo e que estes produzem sentido, têm seus valores e visões de mundo, poderíamos sugerir, assim, que a ideologia colocada também hierarquiza estes sentidos, valores e visões. Sendo assim, conforme ensina Horkheimer (1983), as qualidades sensoriais dos homens estão intrinsecamente vinculadas a todo processo da vida social, porém os fatos que os sentidos fornecem aos indivíduos são pré-formatados, não são naturais, são ensinados, tornando os homens receptivos, passivos e inautênticos. O indivíduo normalmente aceita as determinações pré-estabelecidas e vive de maneira a reforçá-las (HORKHEIMER, 1983: 133, 135), portanto a produção textual baseada nas experiências dos participantes poderia reverter este quadro de passividade diante dos fatos pré-formatados.

Uma vez que todos compartilham do mesmo mundo, podemos entender que todas as pessoas são sujeitos da história, ou no limite, de suas histórias que têm em si o seu “saber de experiência feito” (FREIRE, 2011: 39) e estes poderiam ser utilizados na produção textual, proporcionando uma reflexão livre de pressupostos dominantes, efetivando a essência do pensamento que é pensar

(HORKHEIMER, 1983: 145).

A hipótese para o desenvolvimento deste trabalho, procurando responder à pergunta: do que decorreria a dificuldade para a elaboração de um texto? Foi que a dificuldade estaria na não utilização dos saberes cotidianos, tidos como menores, como referência para a produção textual.

4. O Desenvolvimento

Foi realizada uma pesquisa exploratória em dezembro de 2011 junto a alguns adolescentes moradores da região da Vila Brasilândia. A pergunta de partida foi: Vocês têm dificuldades para fazer uma redação? Todas as respostas foram positivas. A segunda pergunta foi: Vocês gostariam de participar de uma oficina de produção de textos? As respostas foram igualmente positivas e entusiasmadas.

A premissa para a elaboração deste projeto foi a utilização do “conteúdo” de cada participante para a geração de temas para as redações, procurando relacionar as experiências vividas com o contexto social, a fim de realizar análises e aprofundar os temas, cujo resultado final seria o pensamento crítico sobre as suas realidades. O objetivo do projeto foi o de trazer os participantes para dentro do processo de produção textual, tornando-os parte dele e não tomar a dificuldade como um fator intrinsicamente relacionado com a referida produção.

A metodologia utilizada foi a Pesquisa-Ação, cujo objetivo é o da transformação e resolução de problemas com a participação conjunta do pesquisador e dos pesquisados, em uma forma de ação planejada de caráter social. Esta metodologia permite um meio eficaz para responder aos problemas da situação vivida, buscando soluções para problemas reais onde todos os participantes

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do processo tenham voz e vez. A Pesquisa-Ação, sem reduzir a reflexão teórica, opera principalmente como pesquisa aplicada (THIOLLENT, 1986: 7,8, 73). Esta metodologia, aplicada à área de educação, justifica-se na

constatação de uma desilusão para com a metodologia convencional, cujos resultados, apesar de sua aparente precisão, estão muito afastados dos problemas urgentes da situação atual da educação. Por necessárias que sejam, revelam-se insuficientes muitas das pesquisas que se limitam a uma simples descrição da situação ou a uma avaliação de rendimentos escolares [...]. Dentro de uma concepção do conhecimento que seja também ação, podemos conceber e planejar pesquisas cujos objetivos não se limitem à descrição ou avaliação da reconstrução do sistema de ensino, não basta descrever e avaliar. Precisamos produzir ideias que antecipem o real ou que delineiem um ideal (THIOLLENT, 1986: 74,75).

5. Vivência

Em uma sala de aula da Escola Estadual Professor Crispim de Oliveira, localizada no Jardim Carumbé – Vila Brasilândia, foram realizados nove encontros quinzenais, aos sábados, totalizando vinte e sete horas, com uma média de nove alunos por turma, com idades entre onze e cinquenta e três anos. O objetivo, apresentado em todos os encontros, era de que ao final de cada debate fosse produzida uma dissertação crítica. Assim, em todos eles foi apresentada a estrutura da dissertação (introdução, desenvolvimento, conclusão) no entanto, trazendo esta estrutura técnica para uma linguagem mais próxima da fala, procurando enfatizar que em qualquer conversa cotidiana lançamos mão de alguma estrutura, ou seja, quando contamos uma história, seja qual for,

fazemos uma introdução (apresentamos o tema), desenvolvemos (detalhamos o tema) e concluímos (esboçamos alguma opinião) e foi nesta dinâmica que os encontros ocorreram de forma a desmistificar a produção de um texto, colocando-o como parte integrante, ainda que de forma subjetiva, no dia-a-dia da comunicação entre as pessoas.

Sentávamos em forma de círculo e era sugerido pela ajudante (pesquisadora) que os participantes relatassem um acontecimento importante ocorrido naquela semana (houve também a utilização de fotos e jornais), destes era escolhido, por votação, o mais interessante. A partir da escolha do acontecimento, a ajudante pedia para que os participantes dissessem palavras relacionadas com o que foi relatado. Todas as palavras eram escritas na lousa e quando se esgotavam todas as possibilidades de palavras, passávamos a sublinhar as mais importantes. Sobravam, em média cinco palavras e com estas conversávamos a fim de construir um tema.

Para a primeira construção do tema, houve certa dificuldade, pois os acontecimentos pareciam ser um fim em si mesmos. Assim, desenvolvemos uma analogia com um iceberg a partir do filme Titanic (1997), que todos haviam assistido, essa analogia procurava mostrar que se o comandante do transatlântico tivesse noção do tamanho do bloco de gelo que sustentava a pequena ponta aparente, provavelmente, o naufrágio não teria ocorrido, ou seja, procurávamos analisar os fatores que sustentavam o tema oriundo do acontecimento narrado, refletindo sobre as questões que não prestamos atenção no dia-a-dia, mas que uma vez analisadas, proporcionam um caráter mais crítico aos acontecimentos, tornando tanto as conversas quanto os textos mais interessantes e fundamentados. Essa analogia foi aceita por todos os participantes e utilizada em todos os encontros,

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Após a produção dos textos cada produtor fazia a leitura em voz alta, nos dois primeiros encontros nenhum dos participantes quis ler, assim, a ajudante iniciou esta fase do encontro, sendo que nos demais, os próprios participantes se candidatavam para iniciar as leituras. Ao final do encontro conversávamos sobre o que foi lido

e refletíamos sobre o que cada texto mostrou de novo.

7. Análise dos Resultados

No mínimo, durante os últimos cinquenta anos os problemas da leitura e escrita persistem entre os estudantes brasileiros, tal problema dificultaria o

a chamada para a utilização da “teoria do iceberg” era: O que vocês acham que está por baixo disso tudo que conversamos?

Depois de construído o tema, era sugerido que os participantes atribuíssem um título a ele. Os títulos eram escritos na lousa, um deles era escolhido por votação e a partir deste momento todos os participantes, inclusive a ajudante, começavam a produzir os textos seguindo a estrutura da dissertação crítica.

6. As produções

A cada encontro a ajudante apresentava o que foi aprendido no encontro anterior, com o objetivo de mostrar que já havíamos aprendido algo que poderia ser reutilizado naquela nova produção textual, enfatizando que quando nos debruçamos sobre um tema percebemos o quanto dele sabemos, mas não havíamos prestado atenção, pois talvez o tratássemos como algo corriqueiro. Assim tivemos, por ordem de encontro, as seguintes produções:

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acesso ao ensino superior e consequentemente ao mercado de trabalho qualificado. Temos políticas públicas desenvolvidas sob a perspectiva da educação como um meio para o acesso à vida profissional, no entanto, a perspectiva inicial que sugerimos é o posicionamento dos indivíduos enquanto cidadãos críticos de si, sendo que leitura e escrita podem representar o início de todo o desenvolvimento educacional, pois para o entendimento de qualquer disciplina é necessário ler, interpretar e escrever. O presente trabalho partiu da problemática descrita que, no referido período, nos apresenta dados, gráficos e considerações construídos e elaborados a partir de métodos quantitativos. No entanto, a questão colocada foi por que e como se dá a dificuldade em ler, interpretar e escrever textos, tal dificuldade estaria exclusivamente relacionada a questões de rendavii ou corviii, conforme descritos em dados estatísticos? Partimos do pressuposto de que haveria a construção de uma realidade, em que a dificuldade estaria dada no processo de produção textual e o ponto de partida para o desenvolvimento deste projeto foi a desmistificação desta suposta realidade.

Foi possível construir com os participantes a prática da escrita a partir dos conteúdos de seus passados, presentes e perspectivas de futuro, mostrando que a produção textual tem como ponto de partida o próprio produtor, todas as experiências têm valor, pois estão inseridas em uma mesma sociedade, essas experiências são bases concretas para a produção de textos, podem ser problematizadas pari passu, passando de uma narração para uma crítica e uma revisão da realidade vivida. Temas, à primeira vista, apresentados de maneira simples, passaram, a partir dos debates, a serem implicados pelas conjunturas política, social e econômica, portanto nos dizendo algo que não havíamos pensado, mostrando que somos capazes

de elaborarmos os nossos próprios pensamentos, sendo assim, o processo da construção de um texto, ou uma redação, tornou-se mais acessível.

A questão principal que se colocou em todo o processo deste projeto foi o exercício do pensamento, buscando os fatores que sustentam as nossas vivências cotidianas, refletindo sobre aquilo que vemos de maneira superficial, problematizando sobre nós mesmos, podendo assim problematizar o mundo em que vivemos e não o assimilarmos de maneira dada. A desconstrução de ideologias norteadoras das nossas ações se deu de maneira simples, embora não fácil. O desânimo nos rondou por diversas vezes, mas conversamos, refletimos sobre esse desânimo e o problematizamos também.

Esta Pesquisa-Ação, realizada em um pequeno grupo, parece ter iniciado o alcance de seu objetivo, ou seja, a transformação e a resolução de problemas pontuais. Transformação no sentido de desmistificar a produção textual como algo ligado necessariamente à dificuldade, não tomamos a referida produção como algo fácil, mas como algo que demanda esforço de pensamento, repertório e reflexão crítica e estes itens não são qualidades natas de uma ou outra pessoa, são processos e construções que podem ser realizados por qualquer pessoa racional, não depende de cor, credo ou classe social. Resolução de problemas no que diz respeito à ação da produção de texto propriamente dita, exercendo a escrita sem temor ou preocupação.

Curiosamente os temas propostos nos encontros, tendo como ponto de partida os próprios participantes, passaram por um processo de amadurecimento, começamos com o tema mãe, que em tese é o nosso primeiro contato com o mundo, passamos pelo papel da paternidade, sobre as regras que conduzem as nossas vidas,

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pela reflexão de nossas experiências, pelo mundo do trabalho e o seu papel social, pela análise dos processos individuais que impactam no coletivo e finalmente conseguimos analisar um fato aparentemente exterior, fomos capazes de contextualizá-lo, desenvolvê-lo e abordá-lo de maneira crítica.

A questão da dominação não foi debatida durante os encontros, ela foi sentida como parte da fala dos participantes, como por exemplo, “eu não consigo escrever” ou “eu não consigo pensar” e estes “não consigo” foram problematizados e questionados pela ajudante quando perguntava: “por que você acha que não consegue?”. As respostas iniciais eram “eu não sei”. Procurava-se debater que saber que não se sabe seria o primeiro passo para o saber, o não saber não seria um fato dado, seria um fato provisório assim como todas as instâncias da vida. Assim, discutíamos sobre a construção dos saberes, considerando que estes não estão relacionados a um dom ou a uma relação entre pessoas mais ou menos capacitadas, de modo que os saberes passaram a ser entendidos como processos acessíveis e vividos por qualquer pessoa.

Em nenhum momento a dificuldade foi colocada como parte integrante da produção de um texto, esta foi tratada como mais um forma de comunicação, assim como a fala, lembrando que quando começamos a falar não discursamos de maneira eloquente, começamos por balbuciar algumas sílabas e nem por isso nos calamos.

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Alessandra Felix de Almeida

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i Disponível em <http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/enem-2012-ultima-dia-de-prova-tem-a-temida-redacao>. Acesso em 10/11/2012.

ii É aquela versão da realidade social desenvolvida pela classe dominante, tendo em vista facilitar a dominação, tornando-a aceitável pelos dominados. Essa versão tende a esconder dos homens o modo real como as relações sociais são produzidas. Por meio da ideologia os homens legitimam as condições sociais de exploração e dominação, fazendo que estas pareçam verdadeiras e justas (VILLAÇA, 1999: 231).

iii Sua pesquisa demonstrou que a região de concentração das camadas de alta renda, que representa 15,90% dos domicílios da área pesquisada, recebeu 74,66% da atenção da imprensa (VILLAÇA, 1999: 233).

iv Nos termos de T. H. Marshall (1967) a educação estaria diretamente relacionada com a cidadania, sendo um pré-requisito para a liberdade civil. O elemento civil, para o referido autor, é uma das três partes do conceito de cidadania, sendo representado pela “liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça” (MARSHALL, 1967, p. 63)

v Tabela de Dados: Anexo I

vi Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/saber/1091790-professora-e-acusada-de-punir-alunas-que-nao-emendaram-feriado-em-sp.shtml>. Acesso em 13/11/2012.

vii Gráfico Níveis de alfabetismo da população de 15 a 64 anos segundo renda familiar: Anexo II

viii Tabela Escolaridade da população de 15 a 64 anos segundo cor/raça: Anexo III

ix Disponível em http://www.gaz.com.br/noticia/376768-redacao_e_o_que_mais_preocupa_no_enem_2012.html. Acesso em 10/11/2012.

x Disponível em http://www.jornalacidade.com.br/editorias/cidades/2012/11/03/enem-redacao-e-o-maior-desafio-para-alunos.html. Acesso em 10/11/2012.

xi Disponível em http://atarde.uol.com.br/brasil/materias/1465046-estudante-diz-estar-preocupado-com-redacao-do-enem. Acesso em 10/11/2012.

xii Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,estudante-diz-estar-preocupado-com-redacao-do-enem,955539,0.htm. Acesso em 10/11/2012.

xiii Disponível em http://concursoseempregos.opovo.com.br/app/universidades/enem/2012/11/04/enem-internanoticia,1917/candidatos-se-dizem-surpresos-com-tema-da-redacao.shtml. Acesso em 10/11/2012.

xiv Disponível em http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2012/11/sergipanos-consideram-o-tema-da-redacao-do-enem-dificil.html. Acesso em 10/11/2012.

xv Disponível em http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2012/11/candidatos-consideram-tema-de-redacao-facil-em-sao-carlos-sp-enem-.html. Acesso em 10/11/2012.

Notas

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xvi Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/11/no-rio-2-dia-de-enem-foi-mais-facil-mas-redacao-surpreendeu-estudantes.html. Acesso em 10/11/2012.

xvii Disponível em http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/11/primeiros-acabar-enem-em-brasilia-elogiam-tema-da-redacao.html. Acesso em 10/11/2012.

xviii Disponível em http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2012/11/alunos-que-fizeram-enem-na-ufsc-acham-complicado-tema-de-redacao.html. Acesso em 10/11/2012.

xix Disponível em http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/11/em-brasilia-candidatos-do-2-dia-do-enem-dizem-temer-redacao.html. Acesso em 10/11/2012.

xx Disponível em http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2012/11/matematica-e-redacao-sao-desafios-para-o-2-dia-do-enem-dizem-alunos.html. Acesso em 10/11/2012.

xxi Disponível em http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2012/11/estudantes-de-bh-acham-redacao-do-enem-mais-dificil-que-anteriores.html. Acesso em 10/11/2012.

xxii Disponível em http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/enem/2012-11-05/tema-considerado-dificil-pode-baixar-notas-da-redacao-no-enem.html. Acesso em 10/11/2012.

xxiii Disponível em http://noticias.r7.com/minas-gerais/noticias/tema-de-redacao-surpreende-candidatos-do-enem-e-divide-opinioes-em-bh-20121104.html. Acesso em 10/11/2012.

xxiv Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276604-EI8398,00-Enem+primeiros+a+sair+em+Curitiba+divergem+sobre+dificuldade+do+teste.html. Acesso em 10/11/2012.

xxv Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276665-EI8398,00-Enem+primeira+a+sair+candidata+desiste+da+redacao+no+Rio.html. Acesso em 10/11/2012.

xxvi Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276595-EI8398,00-Enem+redacao+dificil+faz+candidatos+inventarem+no+RS.html. Acesso em 10/11/2012.

xxvii Disponível em http://noticias.terra.com.br/educacao/enem/noticias/0,,OI6276701-EI8398,00-Enem+tema+da+redacao+assusta+e+complica+estudantes+de+BH.html. Acesso em 10/11/2012.

xxviii Disponível em http://educacao.uol.com.br/noticias/2012/11/04/candidatos-do-enem-2012-em-belo-horizonte-dizem-que-vila-do-dia-e-a-redacao.htm. Acesso em 10/11/2012.

xxix Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/enem-2012-ultima-dia-de-prova-tem-a-temida-redacao. Acesso em 10/11/2012.

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Anexo I

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Anexo II

Anexo III

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Referências Bibliográficas:

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Renato Moro Giannico

O artesão

Estudante de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e

Política de São Paulo.

O artesão é a dinâmica entre a natureza e o homem que cria o artesanato: arte na matéria, criação no espírito, como uma mãe gera um filho.

É filho da fibra e do laço, do suor e do sereno, da taboa e do xisto, da terra e do ar.

É pai do traço e do gesto, do espírito e da matéria.

Faz das mãos rachadas e humildes o trabalho que preserva e cria culturas.

No olhar atento, no suor da testa, nos pés descalços no chão, o artesão se faz, a voz é rouca, mas o trabalho é valho.

“Se arranco um “gaio”, com uma andorinha faço verão, se “móio” o barro, crio até Eva e Adão, se me dão um laço, desfaço e desvendo todo um sertão, e se a vida me for negada pelo homem, mostro que na natureza, a vida não se nega não, e com o que cair na minha mão eu faço, porque eu sou o artesão”.

O trabalho artesanal preserva e reescreve a natureza do homem enquanto criador de seu meio. E ter esta consciência tão bela e sagrada, que é resgatada nos lentos e “mágicos” trabalhos manuais e, concebida na perfeita harmonia entre a inspiração com os sutis movimentos das mãos, que se dá o dito trabalho artesanal. Sendo as mãos, nada mais do que a extensão do coração.

E são estes homens e mulheres, bravos guerreiros brasileiros que sobrevivem neste mundão criando, recriando, pintando, tecendo, moldando

e esculpindo as nossas tradições que trazem, em suas raízes negras, brancas, mulatas, caboclas, as riquíssimas e múltiplas artes e trabalhos manuais que, sem sombra de dúvida, criam e transformam a nossa cultura na mais bela colcha de retalhos.

“Somos herdeiros de todos os talentos, de uma mistura que ainda esta se fazendo” (Darcy Ribeiro).

Dedico este suspiro aos artesãos brasileiros que somos todos nós!

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Ensaio Poético

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