Revista a cor_brasil_2010

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Sumário

Revista A COR DO BRASIL

A lei 10.639 torna obrigatório a inclusão da história da África e da cultura negra no currículo escolar do ensino básico.

A revista A Cor do Brasil é uma contribuição ao fomento de debates sobre o tema relacionado ao concurso de redação promovido pelo projeto Camélia da Liberdade e servirá como subsídio para alunos e professores das redes pública e privada do Estado de Rio de Janeiro.

Enxergar o Brasil com um novo olhar - Esse é o desafioIvanir dos Santos

DISCRIMINAÇÃO, RACISMO, PRECONCEITO E DESIGUALDADE SOCIAL: ENSAIANDO UM PANFLETO PEDAGÓGICOAzoilda Loretto da Trindade

Raça, etnia e nação: a ambigüidade dos conceitosJacques d’Adesky

A ousadia que transforma100 anos da Revolta da Chibata

PARA UMA PEDAGOGIA DA

(RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES

ÉTNICO-RACIAIS

Alexandre do Nascimento

Movimento Negro Brasileiro: uma pedagogia de exemplos e desafiosAmauri Mendes Pereira

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A Cor do Brasil é uma publicação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAPRua da Lapa, 200 – gr.810 – Centro RJ – CEP: 20021-180 – Tels.: (21) 2242-0961 / 2232-7077e-mail: [email protected] [email protected] Site: www.portalceap.org.br

Edição e produção: Espalhafato comunicação e produção / Programação visual: Ricardo BogéaRio de Janeiro, 2010

Patrocínio

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Ivanir dos Santos

Professores são certifi cados pelo Curso de Capacitação de professores da Lei 10.639/03, ministrado pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas.

Professoras da Fundação de Ensino de Niterói, recebem o livro “ Ações Afi rmativas, Atitudes positivas” após palestra sobre educação, ministrada por Ivanir dos Santos .

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Nesses cinco anos em que o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) realizou o Projeto Camélia da Liberdade foi possível perceber que o maior desafi o da sociedade brasileira é se pensar fora do contexto eurocêntrico. Os padrões dos nossos heróis e de ícones históricos se baseiam, fora do círculo dos profi ssionais de ensino engajados nas lutas do Movimento Negro, na perpetuação da invisibilidade das contribuições que os descendentes de africanos deram ao Brasil. Enxergar a formação social de uma nação, assim como já fazem países como o México e a Costa Rica, a partir das contribuições de todos os povos que a compõem é recontar a própriahistória e entender o papel e quinhão que nos cabe.

A Lei 10639/03 - que instituiu o ensino da História da África, da Cultura Afrobrasileira e do papel do negro na sociedade, no ensino fundamental e médio das escolas públicas e privadas, do país – tem pretensão muito maior que o de resgatar a dívida histórica que o Brasil tem com os negros e negras descendentes de africanos que vieram para cá sob o domínio do tráfi co. Ela propõe uma nova perspectiva de compreensão da identidade nacional e desloca os padrões impostos, por séculos, pelos nossos colonizadores. O caráter democrático da Lei em questão implica um real conhecimento da participação e contribuição dos afro-brasileiros na formação econômica, cultural e social do Brasil mas, sobretudo, mexe na urdidura de intolerâncias decorrentes do preconceito tão banalizado em nossa sociedade. Intolerância cultural, intolerância racial, intolerância religiosa. Por isso é tão difícil sua implementação

Enxergar o Brasil com um novo olhar

efetiva. Difícil por que somos obrigados a nos enxergar e pensar sob uma nova ótica, a partir de outros conceitos, que não os europeus. Pensar a própria realidade nos leva a crescer como povo e nação. E crescer dói, causa mal-estares.

A escolha do centenário da Revolta da Chibata como tema deste ano para o Prêmio e o Concurso de Redação Camélia da Liberdade tem a fi nalidade de propor uma refl exão sobre o que nos contaram e o que é fato. Neste caso específi co, o que nos contaram é que os castigos físicos impostos aos negros foram abolidos junto com a escravidão, em 1888. Poucos são os livros que narram, mesmo de forma concisa, a história de João Cândido, líder da revolta, e como se deu o motim. O fato é que dois mil marujos, negros e mulatos, quase trinta anos após a abolição da escravatura, ainda recebiam castigos físicos de superiores militares, que em sua esmagadora maioria eram de ascendência européia. Foi preciso que a capital federal, na época, fosse ameaçada por marinheiros amotinados para que milhares de homens livres pudessem ser tratados com dignidade.

O Brasil levou 98 anos para reconhecer João Cândido como Herói Nacional. Assim como levou 115 anos – entre a abolição da escravatura e a confecção da Lei 10639/03 – para reconhecer a importância de contar a história dos descendentes de africanos que a nossa história não contou. Porém, o atraso que insiste em tratar negros e negras como atores invisíveis da sociedade brasileira deve servir para explicitar o que de melhor nossos ancestrais ensinaram: a capacidade de resistir na busca do sonho e a de encarar desafi os como quem grita por liberdade.

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“Ser capaz de sentir indignação contra qualquer injustiça cometida

contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. É a qualidade

mais bela de um militante.”

Ernesto “Che” Guevara

DISCRIMINAÇÃO, RACISMO, PRECONCEITO

E DESIGUALDADE SOCIAL:

ENSAIANDO UM PANFLETO PEDAGÓGICO

Azoilda Loretto da Trindade*

* Pedagoga, Psicóloga, Mestre em Educação e Doutora em Comunicação Social e, principalmente, ativista da luta contra o racismo.

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Diante da necessidade de escrever sobre temas que me inquietam, me vi sem inspiração para efetivamente dizer algo contundente sobre questões que fazem parte de minha existência. Os prazos esgotados, as cobranças justas e o texto – um monte de palavras colocadas sobre a tela do computador – não expressava, nem de longe, algo signifi cativo e que pudesse, na minha opinião, tocar o leitor. Pus-me a pensar, buscar referências, quer em livros, quer a partir de observações do cotidiano, em músicas, fi lmes,... Tentei fazer uma imersão mais intencional na temática, partindo da premissa que, numa sociedade que é discriminatória, preconceituosa e racista, essa imersão já foi naturalizada... Esse distanciamento permitiria, talvez, produzir o trabalho que pretende ser nada mais do que uma refl exão a ser compartilhada com potenciais pessoas leitoras. Um texto não acadêmico, mas nem por isso sem os requisitos básicos necessários a um texto, temperado para seduzir. Espero que seja uma leitura saborosa e nutritiva para alimentar os nossos ideais libertários e libertadores.

Reflexões

Gostaria de pensar estes termos (Discriminação, Racismo, Preconceito e Desigualdade Social) como amalgamados, complementares. Se, inicialmente, destaco os conceitos é só como estratégia didática, pois no dia-a-dia, o que vale combater são as ações preconceituosas, racistas, discriminatórias produtoras e reprodutoras de desigualdades sociais.

Quero destacar, no entanto, que o caminho por mim trilhado não corresponde, evidentemente, a uma unanimidade. E creio ser importante enfatizar que a necessidade de uma defi nição, ainda que imprecisa, é apenas para que possamos ter tranqüilidade para compreender o sentido, o processo e os engendramentos de tais ou quais conceitos em nossa vida cotidiana. Afi nal, concordamos com Munanga (1998) quando diz que quem defi ne o racismo são os anti-racistas que, por sua vez, partem de perspectivas diversas, às vezes opostas, que difi cultam a construção de uma

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defi nição unânime. Esta falta de consenso na defi nição do racismo faz com que os anti-racistas se fi xem em compreender o racismo e os racistas a agirem.

Vamos ao trato dos conceitos, que são, no meu ponto de vista, de uma certa forma, polissêmicos e polêmicos.

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3 - Derivação: por extensão de sentido. tratamento pior ou injusto dado a alguém por causa de características pessoais; intolerância, preconceito.

Ex.: os idosos lutam contra a d. no mercado de trabalho.

4 - Rubrica: termo jurídico. Ato que quebra o princípio de igualdade,

como distinção, exclusão, restrição ou preferências, motivado por raça, cor, sexo, idade, trabalho, credo religioso ou convicções políticas.

Discriminar

1 - Verbo transitivo direto e bitransitivoperceber diferenças; distinguir, discernir Ex.: <d. bem as cores> <d. o certo do

errado> <d. entre uma cópia e o original> transitivo direto.

2 - Colocar à parte por algum critério; especifi car, classifi car, listar.

Ex.: é preciso d. os artigos em faltatransitivo direto e pronominal

3 - Não (se) misturar; formar grupo à parte por alguma característica étnica, cultural, religiosa etc.; separar(-se), apartar(-se), afastar(-se)

Ex.: <a professora foi punida por d. os alunos negros, colocando-os nas últimas carteiras> <não se julgando igual aos demais, ele mesmo se discrimina>

transitivo direto

4 - Derivação: por extensão de sentido. tratar mal ou de modo injusto, desigual,

um indivíduo ou grupo de indivíduos, em razão de alguma característica pessoal, cor da pele, classe social, convicções etc.

Ex.: é comum a polícia d. os pretos e pobres

Estas defi nições de dicionário, nos revelam a complexidade dos conceitos, pelo menos no que se refere à dinâmica escolar. Pode passar despercebido o fato de, por exemplo, ouvir educadores dizendo que nas suas classes todos são iguais, negros, brancos, pobres, ricos...Ver educadores, em legitimas discussões, negando a necessidade de se discutir

a) Discriminação

“Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem;

lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize.”

Boaventura de Souza Santos

Recentemente, fui a um encontro em que uma das palestrantes fortalecia a tese de se banir qualquer forma de discriminação. Ora, como educadora, pessoa que pensa palavras, ações, pensamentos... comecei a refl etir sobre o tema de maneira mais crítica... Ora, na escola, a discriminação não é algo totalmente ruim, ela é, por vezes, demandada. Lembram das classes de alfabetização e mesmo da educação infantil? A criança deve ser capaz de “discriminar” as letras p-b-d-q, os tamanhos, as cores, as formas... Alguns setores sociais lutam pelo que chamam “discriminação positiva”... – observem, por exemplo, as cotas para mulheres nos partidos políticos, as cotas para portadores de defi ciências nos concursos públicos...Afi nal, como perceber as diferenças, as singularidades, as peculiaridades sem discriminar? Em que consiste a discriminação? Podemos viver sem discriminar? Como ler este texto sem discriminar as letras, as palavras, os sinais? E os nossos sentidos, - olfato, paladar, tato, visão, audição-, não são discriminatórios? Então, vamos chegar num acordo? De que discriminação estamos falando?

Segundo o Dicionário1:

Discriminação

Substantivo feminino ato ou efeito de discriminar.

1 - Faculdade de discriminar, distinguir; discernimento.

2 - Ação ou efeito de separar, segregar, pôr à parte.

Ex.: <d. racial> <os negros sofrem d.>

1 http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=discrimina%E7%E3o&stype=k em 20/02/2007

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questões afro-brasileiras, em nome do direito de todas as diferenças serem retratadas na escola, sem, muitas vezes, se dar conta de que o segmento masculino, branco e de classe sócio-econômica média/alta/favorecida acaba por ter um tratamento privilegiado...Daí surge uma indagação: Como se forjou a resistência que muitos educadores e educadoras têm em dar relevância aos valores da população afro-descendente/negra e à própria população afro-brasileira? É tão evidente que vemos, em muitos casos, até o dia 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra, ser rechaçado como algo discriminatório, enquanto os outros 199 dias letivos, estão recheados de referências da cultura de matriz européia, como calendários de festas religiosas, de feriados. Cabe analisar sobretudo os murais os conteúdos escolares...E muitas vezes, tudo isto, vem encoberto por atos de “bondade”, de “amor ao próximo”.

Trago estas pontuações, ainda que de maneira superfi cial, objetivando que, nós educadoras, que trabalhamos cotidianamente com conceitos, com as noções de erro e acerto, com a avaliação, que implica aprovação e reprovação, com experimentos, com valores, percebamos a complexidade dos conceitos e a utilização dos mesmos.

Observem que contradição ou paradoxo: Se não houver discriminação não podemos perceber as diferenças, respeitar as singularidades e criar mecanismos, instrumentos e equipamentos sociais voltados para atender às especifi cidades, no caso, dos diversos modos e maneiras de se ser humano, criando políticas públicas que potencializem e representem a Vida na sua amplitude e não no restrito e excludente modelo hegemônico e dominante e etnocêntrico. Ao mesmo tempo, no que se refere a direitos, à humanidade, não podemos discriminar ninguém. Nesse sentido, rechaçamos a discriminação que subtrai a humanidade do outro, das pessoas, que subtrai a sua importância, visibilidade social e histórica,

sua cidadania, seus direitos (humanos, políticos, sociais,...), valorizando aquela que justamente nos possibilita, ao discriminar as diferenças, propor estratégias de se atender na escola e na sociedade o preceito de igualdade na diversidade.

udo os murais

Artigo 2* Declaração Universal dos Direitos Humanos

I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

* http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm. Em 25/02/2007

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b) Preconceito

Parece simples a questão dos preconceitos: idéias preconcebidas a respeito de outrem ou alguma coisa, com ou sem base real.

De fato, somos seres complexos. Somos todos, creio, marcados por idéias preconcebidas. Quantas vezes brincamos com o ditado “não vi e não gostei” ou ”não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe” e outros ditos engraçados mas que sinalizam nossa predisposição para idéias preconcebidas? Temos tantos exemplos, não temos?

Observem estas fi guras e digam o que vêem:

Figura 12

Figura 2

Na fi gura 1 se apresentam um rato e um homem idoso, na fi gura 2 duas mulheres, uma jovem e uma idosa. O que você viu?

2 http://www.ceballos.ws/rat2.gif

E nesta? O que você responderia?

Sapo ou cavalo?

Figura 3

A mesma fi gura é a resposta.Poderíamos dizer, com base nestas

imagens, que nossa resposta depende de como vemos a realidade, de como organizamos o que vemos na realidade e de como a interpretamos. Algumas pessoas poderão ver uma imagem, outras duas, outras três... e, muitas vezes, rechaçar o que o outro possa estar vendo e elas não. Muitas vezes, a verdade, o conceito é, simplesmente, o que conseguimos captar e não o que o outro vê, sente, percebe. Lembram, “Narciso acha feio o que não é espelho”?

Nossos preconceitos não são dissociados da realidade, ao contrário, estão alicerçados em como vemos ou lemos esta realidade e, também, em como os valores sociais estão sendo apresentados aprioristicamente a cada um de nós.

SInalizo isto, com o intuito de dizer que os preconceitos não são desconectados da realidade, há um contexto social, histórico, político que favorece a emergência e o recrudescimento dos preconceitos, para o “bem” e para o “mal”, se assim tomarmos essa dicotomia. Já que, podemos dizer, somos uma sociedade de defi nições, de classifi cações, de busca de explicações e respostas, de “verdades” e busca de “verdades”, da Ciência, das hipóteses, da lógica, das etiquetas, das planifi cações, dos pressupostos, ...

“Dessatanizar” os preconceitos, compre-endê-los fora da lógica binária, do bem e do mal, do certo e do errado mostra-se produtivo como problematização. Uma vez que, não os eliminamos com exorcismos, com sectarismos,

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com fundamentalismos,mas com luta, sobre-tudo interna, lutando com “aquela velha opi-nião que temos sobre tudo”, com encontros, com aproximações, com coragem. Ufa! E haja aproximação, haja encontro! São tantos os preconceitos: religiosos, políticos, sexuais, de gênero, de cor/etnia, de raças, de classe. Con-tra africanos e seus descendentes (negros), in-dígenas, orientais, alemães, ciganos, gordos, baixos, altos, minorias, maiorias, defi cientes, doentes... Contra quem pensa diferente de nós, contra quem é a favor das cotas, contra quem é contra, contra proletário, contra burguês, con-tra os acadêmicos, contra os militantes, con-tra, contra, preconceitos contra tantos e tantas que parece que vivemos num mundo inviável.

Não, não é com esta dimensão que quero me aliançar. Portanto, queremos convidar a quem é preconceituoso/a, e creio que todos somos, numa dimensão ou outra, a compreender que embora recebamos um legado que nos “predetermina” a ser preconceituosos/as, que embora tenhamos nossas experiências que nos “determinam” a ser preconceituosos/as, podemos deixar de ser. Estamos diante de uma construção, não de uma geração espontânea, universal, eterna, imutável de idéias. Felizmente, creio, somos sujeitos/pessoas em movimento, em transformação, em construção e reconstrução de saberes, de conhecimento, de conceitos, de linguagem, de história, de vida...Somos “metamorfoses ambulantes” e espero que a serviço da vida, nossa e do outro, sobretudo do outro muitas vezes diferente de nós, que nos inquieta, nos leva a indagar, a perder o chão, a buscar novas respostas, a sair da “segurança do já dito, sabido, feito”.

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de “considerar o racismo não só um fator poderoso na produção da exclusão social, mas principalmente o mecanismo civilizatório (portanto ocidental e cristão) de rejeição existencial, ou seja, consciente e subconsciente, da alteridade”.

Esta concepção nos ajuda a pensar o racismo como alicerce da sociedade ocidental, na medida em que engendra-se numa “hiperracionalização sistemática dos juízos de valor positivos sobre a civilização ocidental, que se reforça na medida em que se fortalecem os seus mecanismos racionalizantes (tecnologia, ciências), essencializando ou naturalizando a cultura” (SODRÉ: op. cit, p.259).

d) <->Discriminação <-> Racismo <-> Preconceito <-> Desigualdades Sociais <->

Em síntese, há uma interação entre esses termos sobretudo no que se refere a produção de exclusão social, subjugação e subalternização de segmentos signifi cativos da sociedade.

Cabe ressaltar, antes de fi nalizar este escrito, tendo em vista a Lei nº 10.639/03 que, embora tenha destacado o caráter geral do preconceito e da discriminação, pensar na situação dos negros, afro-brasileiros, que de acordo com dados ofi ciais, constituem cerca de 50% da população brasileira é um convite que se impõe.

Compartilho com vocês a percepção, oriunda de análises e observações do que acontece na sociedade, no que se refere ao tratamento dado à população negra afro-brasileira. Ou seja, quero evidenciar a insensibilidade freqüente em relação ao seu sofrimento e ao aviltamento da sua cidadania, o

c) Racismo

Aqui, não vou me furtar a colocar algumas defi nições de racismo, não de dicionários, mas de ativistas negros da luta contra o racismo.

[...] designa um comportamento de hostilidade e menosprezo em relação a pessoas ou grupos humanos cujas características intelectuais ou morais, consideradas ‘inferiores’, estariam diretamente relacionadas a suas características ‘raciais’, isto é, físicas ou biológicas (BORGES, MEDEIROS E D’ADESKY; 2002, p. 48-49).

O racismo é um sistema de opressão da diferença marginalizada. Nesse sistema cada etapa se apóia, se nutre e se sustenta na outra. Trata-se da opressão de (...) tipos físicos ou grupos étnicos, por serem diferentes do modelo estabelecido pelo opressor como padrão ideal. O ideal de beleza física, de cultura, o modelo padrão, é defi nido e estabelecido pelas elites dominantes (TEORORO, 1999, p. 98).

Uma ideologia que defende a hierarquia entre grupos humanos, classifi cando-os em raças inferiores e superiores.

[...] a ideologia racista é um conjunto de idéias utilizado para explicar determinada realidade, no caso, as desvantagens dos negros em relação aos brancos (BENTO,1998, p. 25).

O racismo é uma construção sócio-histórica tecida ao longo dos séculos, na perspectiva da exclusão, da dominação, na justifi cativa da apartação e hierarquização humana. O racismo não é natural, não é intrínseco ao ser humano, às pessoas.

Compactuamos com o destaque de Sodré (1999, p. 258) que nos sinaliza a possibilidade

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silêncio quase cúmplice com o que acontece, em termos de desumanização, com esta população, em níveis micro e macro político. Por quê? Será racismo? O que você acha?

Finalizo este texto com reticências, texto inconcluso como um ensaio e, ainda mais, de caráter panfl etário. Espero, que soe como um convite ao seu envolvimento visceral no processo de construção de uma educação de fato para todos/todas, que contemple, atendendo às diferenças e à rica diversidade da nossa sociedade, sem hierarquizações das diferenças. Proponho um olhar sobre a escola em que o machismo, racismo, elitismo não encontrem solo para fl orescer e refl orescer. É possível uma sociedade melhor para todos e todas e a escola/educação, creio, tem uma enorme e signifi cativa contribuição a dar nessa direção.

Referências

BENTO, Maria Aparecida da Silva. Cidadania em preto e branco: discutindo as

relações raciais. São Paulo: Ática, 1998.BORGES, Edson; MEDEIROS, Carlos

Alberto e d’ADESKY, Jacques. Racismo, preconceito e intolerância. São Paulo: Atual

Editora, 2002.MUNANGA, Kabengele. “Teorias sobre

o racismo”. In. HASENBALG, Carlos. Racismo: perspectivas para um estudo

contextualizado da sociedade brasileira. Niterói: EDUFF, 1998.

MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília-DF: Ministério

da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2000.

SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis,

RJ: Editora Vozes, 1999.TRINDADE, Azoilda L. da. O racismo

no cotidiano escolar. 1994. Dissertação (Mestrado em Educação) - IESAE/

FGV, Rio de Janeiro, 1994.______________________Reinventando

A Roda: Experiências multiculturais de uma educação para todos – Boletim do Programa Salto Para O Futuro, TVESCOLA - 2002.

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As noções de raça, etnia e nação não se deixam captar com facilidade. Todas são de uso no campo das ciências humanas e utilizadas na língua corrente. São noções que chegam a se entrelaçar. Em certas circunstâncias, é usada indiferentemente uma pela outra. Em razão que estes termos encontram-se no vocabulário político e no discurso ideológico, convém esclarecer os seus sentidos.

A antropologia ajuda a compreender melhor essas duas noções. Mostra que o signifi cado do termo raça vem evoluindo com o decorrer do tempo. Baseando-se nos estudos da genética, aponta a ambigüidade que cerca a noção de raça. Em relação à etnia, a antropologia analisa a idéia da nação moderna para diferenciar claramente o que é etnia e o que é nação.

Antigamente a palavra raça era de uso restrito. Referia-se à família, a uma fi liação, à nobreza. Não era usado para identifi car grupos humanos. Será necessário esperar para que o termo venha designar um grupo de pessoas aparentadas (ou supostamente aparentadas) por características físicas comuns. Mais tardar, no decorrer da primeira metade do século XIX, o termo raça vem a incorporar além dos traços físicos, características de outra natureza, como os elementos culturais, sociais, de modo que chegará a se falar de raça indo-européia, raça semita, etc.

Jacques d’Adesky

Doutor em Ciência Social / Antropologia, Professor Titular da Universidade Cândido Mendes.

Raça, etnia e nação: a ambigüidade dos conceitos

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Durante o século XIX a antropologia tenta classifi car

as pessoas com base em di-ferenças de natureza exis-

tentes entre os grupos. A característica que se impõem naturalmente é a cor da pele que permi-tirá defi nir as três raças negra, branca e amare-la. Mas as imprecisões desta classifi cação não podiam ser defi nitivas. Não havia como agru-par numa mesma raça os habitantes da África Central, os do Sul da Índia e os que mora-

vam na Mela-nésia. Todos tinham a pele muito escura,

mas além deste traço, tudo os di-

ferenciava. Isto levou a incluir outras caracterís-

ticas como a textura dos cabelos, o formato do crânio, etc.

Diante dos progressos da genética no século XX, renovou-

se a problemática das raças. Não se tratava mais de diferenciar os grupos

de indivíduos segundo os seus caracteres aparentes

(os fenótipos), mas segundo os conteúdos de seus patrimônios

genéticos. Chega-se até mesmo a uma defi nição da raça que encontrou uma

aprovação unânime e que é formulada da seguinte maneira: uma raça é um conjunto de indivíduos que tem uma parte importante de seus genes em comum e que pode ser diferenciado das outras raças em função destes genes.

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Quando se tratou de dar um conteúdo a esta defi nição, ao tentar precisar quais eram os genes que distinguiam os conjuntos de

indivíduos, observou-se que o conjunto das semelhanças e das diferenças era tão complexo que mesmo com

a acumulação de novos dados genéticos cada vez mais precisos, tornava-se

mais difícil a classifi cação das diversas po-

pulações com-pondo a espécie humana.

Em face desta realidade os

geneticistas tiveram que admitir que não era possível classifi car as diversas populações humanas segundo as freqüências dos diver-sos genes contidos nos

patrimônios genéticos destas populações. Se era

possível, na base de caracteres bem defi nidos, comparar as popu-

lações, analisar as distâncias observadas, contudo estes trabalhos não permitiam che-

gar a uma classifi cação em raças. Concluí-ram, portanto que a raça não era um fato, mas um conceito. Não correspondia na espécie

humana a nenhuma realidade que pudesse ser defi nida de maneira objetiva.

Em conseqüência disto, será então necessário abandonar a idéia de raça? A nossa resposta é

negativa. Pois o termo raça representa nos dias de hoje algo mais que uma simples classifi cação entre grupos

de indivíduos. Pode apresentar dentro de certos contextos um signifi cado ideológico quando afi rma a existência de uma hierarquia entre os grupos classifi cados. Além disto, ela é um

dado espontâneo da percepção. Por isso torna-se uma idéia construída socialmente. E por ser construída, pode ter um impacto extremamente grande nas sociedades dominadas pelo(s) racismo(s). Pois falar de racismo(s) nessas sociedades, signifi ca também falar sobre exclusão

e a marginalização de grupos ou populações menosprezadas em virtude da raça. Possibilita, portanto discernir o(s) racismo(s) que permeia(m) estas sociedades, mas também discutir as suas causas, debater os seus efeitos assim como propor políticas públicas e ações

concretas de luta anti-racista.

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Em relação à indeterminabilidade do conceito de raça do ponto de vista de seu uso corrente pela população, Pierre-André Taguieff 1 lembra que o homem comum tem formas de percepção que nada têm a ver com os complexos modelos teóricos dos geneticistas contemporâneos. Ele não percebe seus vizinhos com os olhos do espírito científi co, pois ele entende o discurso cientifi camente autorizado dos geneticistas anti-racistas como algo distante, abstrato, angelical, sustentado pelas elites do saber e desprovido do conhecimento corriqueiro das raças socialmente percebidas.

O homem comum, continua Taguieff, não vendo continuidade genética nem a diversidade genética que torna os geneticistas tão otimistas, continuará a tipifi car e a classifi car os indivíduos segundo suas características perceptíveis e, mais particularmente, visíveis. A desconstrução científi ca da raça biológica, observa ele, não faz desaparecer a evidência da raça simbólica, da raça percebida e, invariavelmente, interpretada. Acima de tudo o imaginário racista alimenta-se das semelhanças e das diferenças fenotípicas da cor da pele até diversas características morfológicas. Portanto, se para a biologia a noção de raça coloca problemas insolúveis de defi nição que a tornam ultrapassada, sua importância, indubitavelmente, não pode ser negada. Porque a raça, queira-se ou não, permanece sendo um elemento maior da realidade social, na medida em que emprega, a partir das características físicas visíveis, formas coletivas de diferenciação classifi catória e hierárquica que podem engendrar, às vezes, comportamentos discriminatórios individuais ou coletivos.

Em relação às propostas de certos geneticistas e intelectuais que advogam a supressão da palavra raça, porque, segundo eles, a idéia de raça só aparece como sobrevivência científi ca ultrapassada que traz em si o risco de manter os preconceitos entre os leigos, Taguieff ressalta que tirar da língua essa palavra, visando apagar o racismo do espaço mental, também não 1 TAGUIEFF, Pierre-André, Les fi ns de l’antiracisme, Paris, Editions Michalon, 1995

será a solução. O apelo a corrigir as palavras para melhorar as coisas é uma tentação permanente do politicamente correto, alerta ele. A eliminação no vocabulário da palavra raça como prescrição da ação anti-racista remete, escreve ele, a uma eugenia lexical negativa que crê matar o racismo eliminando a palavra. Tal supressão, segundo Taguieff, teria conseqüências contrárias ao efeito imaginado, pois reforçaria os mecanismos racistas do “querer dizer”, favorecendo, assim, a normalização do racismo simbólico.

A classifi cação do conceito de etnia é também necessária. É de grande importância na medida em que a maioria das nações no mundo atual são pluriétnicas. Além disso, a etnia tornou-se para as minorias uma fonte de solidariedade e, ao mesmo tempo, um espaço de afi rmação de identidade no seio da nação. Tornaram-se também nos dias de hoje uma referência crescente no cenário internacional quando se destaca, por exemplo, as lutas étnicas na África ou o genocídio e a limpeza étnica na antiga Iugoslávia.

Como escrito no início, sabemos da difi culdade de apreender a noção de etnia. Uma das fontes dessa situação provém do fato que até o nascimento da nação moderna, chamava-se nação o que qualifi camos hoje de etnia. Pois etimologicamente, natio, nationis, refere-se não só àqueles que nascem no mesmo local, mas também à família, à cidade, ao sangue, ao solo, à época, à geração. Assim, a nação remete a etnia, dela nutrindo-se, principalmente quando prevalece o conceito de nação baseado na raça e na língua.

A coexistência desses dois conceitos que parecem antinômicos deve compreender-se histórica e teoricamente. De fato o

A coexistência desses

dois conceitos que parecem

antinômicos deve compreender-se

histórica e teoricamente.

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processo histórico da construção dos Estados europeus modernos comporta dois aspectos complementares: a unifi cação cultural da população e a criação de estruturas políticas capazes de sustentar o desaparecimento da sociedade feudal.

Em muitos países europeus, a construção da nação e a unifi cação cultural realizaram-se paralelamente, sob o mando de um grupo étnico dominante. Este modo de construção nacional infl uenciou profundamente os Estados da periferia que surgem depois da descolonização. Assim, por exemplo, vale relembrar nos países africanos o papel assumido tanto pelo partido único quanto pelo exército em vista a integração de populações etnicamente fragmentadas em uma nação pós-colonial.

Portanto, parece claro que a concepção da etnia entendida como um conjunto de indivíduos que partilham um certo número de características, nomeadamente raciais, lingüísticas, desatrela-se formalmente do sentido moderno da nação, porque esta última é relacionada a uma certa forma de Estado territorial, o Estado-nação, e ao privilégio de soberania que lhe é concedido. Estas duas características político-jurídicas, a do Estado e a da soberania, diferenciam sem ambigüidade a nação moderna e a etnia.

O critério de base territorial ajuda também a distinguir a nação da etnia, se levarmos em conta que a idéia do território é necessariamente inclusa no conceito de nação, embora não seja um requisito imprescindível à existência de grupos étnicos. A referência histórica com um lugar (território) preciso é uma condição sine qua non da nação, podendo até acontecer às

vezes que, devido às vicissitudes da guerra ou às conseqüências de migrações, as fronteiras nacionais sejam fl uidas e se sobreponham às de um outro grupo nacional efetivamente reconhecido ou que aspire a sê-lo.

Portanto, podemos dizer que são as características político-jurídicas, às quais se junta à existência de uma base territorial, que afi rmam o predomínio da nação moderna sobre as etnias que asseguram a clara separação entre identidade nacional e identidade étnica, uma vez que não somente o Estado se atribui o monopólio da coação orgânica, mas lhe cabe também, por direito, a necessária organização das aspirações de uma comunidade nacional num território claramente delimitado, cuja soberania é reconhecida por outros Estados.

É essa clivagem que pressupõe o Estado-nação como quadro político de referência e permite colocar a etnia em segundo plano. O Estado-nação apresenta-se, assim, como o espaço no interior do qual progressivamente se atenua o predomínio da etnicidade em favor da nacionalidade. É essa passagem de etnia para a nação que assegura ao conceito da cidadania a guarda de direitos civis e políticos que só podem ser apanágio daqueles que uma identidade nacional designa, por toda parte, como membros da comunidade nacional dotados de plenos direitos. Portanto, a cidadania não está diretamente ligada à etnicidade. Não se é cidadão de uma etnia, mas cidadão de uma nação. A cidadania indica o pertencimento ao povo soberano do Estado, segundo os princípios dos modernos Estados-nações.

Mas, se é necessário reconhecer que a et-nicidade implica um diferencial comunitário, ela não afi rma, necessariamente, um antinacio-nalismo. O que contribui para o dilaceramento entre o nacionalismo e o particularismo étnico são as antinomias e os dilemas vividos a partir das tentativas de homogeneização e de unifor-mização que negam o direito de cada um a uma identidade cultural e a um enraizamento comu-nitário diferente.

O critério de base territorial ajuda

também a distinguir a nação da etnia,

se levarmos em conta que a idéia do

território é necessariamente inclusa no

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A antinomia entre a naciona-lidade e o particularismo identifi -cador é marcante quando a política do Estado é a de um represamento dos pluralismos étnicos, podendo então traduzir-se pela depreciação dos particularismos em benefício da promoção da identidade comum acima das diferenças culturais.

É o caso, em especial, dos nacionalismos dos Estados multirraciais ou multiétnicos que constroem políticas assimilacionalistas privilegiando a matriz cultural dominante. Na medida em que esses nacionalismos defendem uma homogeneidade cultural, um pertencimento religioso ou histórico comum, eles podem impor, pelo recurso a veleidades totalitárias, modelos normativos que excluem os que são diferentes. O nacionalismo torna-se então um movimento voltado para desenraizar e homogeneizar, impondo àqueles que vivem no mesmo território um modelo normativo do humano.

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Em novembro de 2010, o país rende justas homenagens à valentia e coragem de homens que oferece-ram suas próprias vidas para mudar a dura realidade da Marinha do Brasil, que impunha castigos físicos aos marinheiros de patentes inferi-ores. Há 100 anos, João Cândido – o Almirante Negro – coordenava a revolta que parou a então capital da República e garantiu, por decreto presidencial, tratamento digno para todos.

A Revolta da Chibata acon-teceu entre 22 e 27 de novembro de 1910, no Rio de Janeiro, na época Capital da República. Dois mil marinheiros se rebelaram con-tra a aplicação de castigos físicos, ameaçando bombardear o entorno da Baía de Guanabara. O estopim da revolta foi a punição (com 250 chibatadas) aplicada ao marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, do Encouraçado Minas Gerais. Por ter ferido um cabo com uma navalha, ele recebeu o castigo na presença da tropa formada, ao som de tambores. O rigor dessa punição, considerada desumana, provo-cou a indignação da tripulação.

Na noite de 22 de novembro, os marinheiros do Encouraçado Mi-nas Gerais se amotinaram, mataram quatro ofi ciais, obtiveram a adesão do Encouraçado São Paulo (o seg-

undo maior navio da Armada) e de mais seis embarcações meno-res ancoradas na baía. Foi en-tão emitido um ultimato no qual ameaçavam abrir fogo sobre a en-tão Capital Federal. Eles exigiam o fi m das chibatadas e a anistia a to-dos os revoltosos que se entregassem. A Marinha chegou a esboçar um ataque, mas além de rechaçada, ainda sofreu um bombardeio às instalações na ilha das Cobras.

A cidade estupefata parou. Muitos curiosos se aglomeravam ás mar-gens da Baía de Guanabara para acompanhar a movimentação dos revoltosos. Uma forte pressão popular pedia o fi m da revolta, que era bravamente conduzida com o mínimo de condições. Havia pouca comida e a munição era escassa.

Em 26 de novembro, já sem al-ternativa, o então presidente Hermes da Fonseca, determinou o fi m dos castigos e garantiu a anistia dos revoltosos. Porém, sua promessa não foi cumprida. Os revoltosos fo-ram detidos com requinte de crueldade na Ilha das Cobras. Outros, após serem expulsos de seus navios, acabaram assassinados. Dos dois mil homens que se atrev-eram a clamar por liberdade, menos de cem fi caram vivos.

João Cândido, líder da rebelião e que sobreviveu a todos os martírios, foi internado como louco e indigente no Hospital dos Alienados, em 1911. Sua absolvição - e

A ousadia que transforma100 anos da Revolta da Chibata

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a de outros sobreviv-entes - só aconteceu em 1913. Somente em 2008 ele e seus companheiros seriam reconhecidos como Heróis Nacionais. Foi a menos de dois anos que um

estátua de bronze daquele que liderou a revolta foi er-

guido na Praça XV.

Memória e homenagem

É em homenagem à valentia daqueles

que ofereceram suas próprias vi-das para mudar a história da Marinha e do

Brasil que o Centro de Articulações de Popu-

lações Marginalizadas (CEAP) escolheu o tema “João Cândido, o

Marinheiro da Liberdade - 100 anos da Revolta da Chibata” para edição do

Prêmio Camélia da Liberdade e de seu Concurso de Redação. O prêmio, patrocinado

pela Petrobras e que já está na sua quinta edição, pretende resgatar a memória de homens e mul-

heres negros que fi zeram a diferença na história do país.

Almirante Negro

João Cândido nasceu nas serras gaúchas em 1880, oito anos antes da abolição da escravatura. Filho de escravos, aos 13 anos lutou na Revolta Federalista. Aos 15, foi enviado por

seus pais para o Rio de Janeiro com uma carta de recomendação

do delegado da Capitania dos Por-tos de Porto Alegre. O apoio foi dado pelo Almirante Alexandrino de Alencar, ex-ministro da Mar-inha que conhecia a família do menino.

João Cândido conheceu os quatro continentes navegando pela Marinha, o que lhe deu uma nova concepção de mundo. Foi nestas viagens que percebeu a diferença com que os marujos da Europa e de outros lugares eram tratados. Ele se perguntava por que apenas a Marinha do Brasil ainda impunha castigos físicos aos seus subordina-dos. Apesar de não ter sido alvo das chibatas, o marinheiro negro sofria com o que via à sua frente: vários homens sendo submetidos a casti-gos cruéis impostos pelas chibatas - feitas com pregos nas pontas que rasgavam a pele e faziam escorrer sangue e dor.

Fonte: Projeto Memória Banco do Brasil

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Alexandre do Nascimento

Doutorando em Serviço Social (UFRJ), Mestre em Educação (UERJ), Profes-

sor e Integrante do Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações Afi rmativas da

Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro (Faetec) e Professor do

Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC).

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Na sociedade e na educação, uma nova demanda se coloca a partir da promulgação da Lei Federal 10.639/03 e do Parecer 003/04 e Resolução 01/04, ambos do Conselho Nacional de Educação que, como já sabemos, instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e as diretrizes gerais deste ensino. Trata-se, de um modo geral, da concretização de uma das propostas e exigências mais importantes da luta histórica do Movimento Social Negro1, que se insere no campo da educação e, pois, da produção de uma nova consciência social-histórica e uma nova cultura. Esta demanda se coloca para o currículo escolar e para a pedagogia, que necessariamente, devem passar por uma reestruturação, sobretudo nas disciplinas de história, literatura e educação artística, como diz a Lei, e por uma revisão de práticas tradicionais.

Estamos, dessa forma, diante de um novo desafi o colocado para os educadores pela exigência social de democratização das relações sociais, que no Brasil passa indispensavelmente pela superação do racismo, dos preconceitos e discriminações contra os descendentes de africanos, sua história, valores e produções culturais. Como essa exigência social não diz respeito somente ao combate às desigualdades raciais, o currículo e a pedagogia se tornaram parte dessa perspectiva, pois o conceito de democracia propõe igualdade e não uniformidade.

Neste sentido, além da igualdade de condições socioeconômicas, a democracia proposta que a multiplicidade de movimentos sociais requer que todas as pessoas, como são, sejam reconhecidas, visíveis e tenham as mesmas oportunidades de participação na sociedade,

1 Para os organizadores do I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 na cidade de São Paulo, “o Movimento Negro se defi ne como o conjunto de entidades e grupos, de maioria negra, que têm o objetivo específi co de combater o racismo e/ou expressar valores culturais de matrizes africanas e que não são vincu-lados a estruturas governamentais e partidárias” ( D’Adesky, 2001).

PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

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na economia e na política, respeitando-se suas singularidades e as dimensões culturais e raciais que as compõe. Os movimentos sociais, principalmente aqueles que lutam pelo reconhecimento dos direitos de cidadania, dos direitos culturais e dos chamados direitos humanos para os grupos sociais estigmatizados e discriminados por preconceitos e racismos, ocupam uma posição chave nesse projeto de democracia, pois além de atores necessários ao processo de produção/universalização de direitos são, num sentido amplo, movimentos que contribuem para a educação geral da sociedade. No caso da luta anti-racista, tendo em vista uma mudança cultural e simbólica não estereotipada e baseada no reconhecimento positivo das heranças históricas e culturais de origem africana, setores do movimento social chegaram a desenvolver propostas pedagógicas bem elaboradas e direcionadas à educação escolar.

No movimento negro, por exemplo, podemos citar as propostas de Pedagogia Interétnica2 e de Pedagogia Multirracial3. Além dessas, muitas outras propostas foram e continuam sendo criadas por militantes, educadores e pesquisadores negros e negras, tendo sempre como objetivo a superação do racismo, dos preconceitos e das discriminações raciais. O movimento dos cursos pré-vestibulares para negros, com destaque para o Curso Pré-Vestibular do Instituto Steve Biko, que possui a disciplina Cultura e Consciência Negra, para o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e o Instituto Educafro, que

2 Essa proposta pedagógica foi desenvolvida pelo profes-sor Manoel de Almeida Cruz, em Salvador-BA.Ver LIMA (2007). 3 Maria José Lopes. Pedagogia Multirracial em contra-posição à ideologia do branqueamento na Educação. In: Núcleos de Estudos Negros (1997, p. 23-37).

possuem a disciplina Cultura e Cidadania, entre outros cursos pré-vestibulares que atuam contra as discriminações e desigualdades raciais na educação, são outros exemplos de movimentos que possuem propostas e práticas pedagógicas preocupadas com a superação do racismo e com a produção de uma nova cultura de relações étnico-raciais.

A Lei nº 10.639/03 tornou uma das principais reivindicações do movimento negro em um direito da sociedade e um dever para a educação formal. Ou seja, os sistemas de ensino devem incluir o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e a educação das relações raciais em seu trabalho. E os educadores e educadoras, como agentes principais desse processo, devem rever suas práticas pedagógicas e incluir o debate sobre relações raciais e o legado histórico-cultural de origem africana no Brasil.

Como trabalhar esses conteúdos em sala de aula? Em que consiste o que a Lei denomina de “educação das relações étnico-raciais”? Como criar formas de dialogar com alunos e alunas sobre racismo, preconceito, discriminação e intolerâncias em relação a negros, homossexuais, mulheres, defi cientes e outros grupos sociais historicamente discriminados? Eis alguns dos desafi os que educadores e educadoras devem enfrentar. E nesse enfrentamento o ponto de partida é, conscientemente, fazer a opção ética pela igualdade de tratamento e de reconhecimento, pelo respeito às diferenças, pela multiplicidade e, pois, por uma educação democrática e cidadã.

Porém, considerando o movimento negro como o principal produtor de práticas e conteúdos para a educação, o currículo e a

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pedagogia, podemos partir concretamente da seguinte questão: O que os educadores podem apreender e aprender dessas lutas e das práticas produzidas por elas?

A primeira coisa que podemos aprender com essa luta histórica é que a educação escolar é parte de uma cultura racista, preconceituosa e discriminatória que estabelece hierarquias e desigualdades entre os diversos grupos sociais, seus valores e aspectos culturais. Não são poucas as pesquisas e análises que comprovam e concluem que a escola e as suas práticas educacionais são, também, reprodutoras e produtoras de preconceitos, discriminações, hierarquias e desigualdades raciais.

O segundo aprendizado é que as propostas de promoção de igualdade racial e de reconhecimento histórico, social, cultural e estético positivo, bem como a valorização da multiplicidade étnica e cultural inserem-se num processo democrático. E também não são poucas as pesquisas e análises que mostram que as imensas desigualdades socioeconômicas do Brasil e, portanto, a falta de democracia material, tem no racismo um dos principais determinantes.

A observância das relações entre educação, preconceitos e discriminações raciais, bem como de propostas e experiências pedagógicas desenvolvidas no âmbito do

movimento negro constituem um terceiro elemento de análise e aprendizado que educadores e educadoras podem tomar como referência para pensarmos e experimentarmos novos conteúdos e formas anti-racistas e multirraciais, no currículo escolar e no fazer pedagógico. Como já dissemos, a perspectiva anti-racista, a valorização das diferenças étnico-raciais e de reconhecimento das histórias e produções sócio-culturais de africanos e afro-descendentes, são fundamentais no Brasil para um processo social mais amplo de constituição das condições objetivas e subjetivas de igualdade, autonomia e, pois, de democracia. A educação (e, obviamente, os educadores e educadoras) tem uma importante e indispensável contribuição nessa perspectiva, a partir do momento em que se inicie uma reestruturação curricular que incorpore de forma consciente e positivamente, os princípios de Consciência Política e Histórica da Diversidade, de Fortalecimento de Identidades e de Direitos e de Ações Educativas de Combate ao Racismo e às Discriminações4.

4 Esses princípios constam das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. In: MEC/Secad (2006).

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Assim como tem sido até então reprodutora e produtora de preconceitos, discriminações, depreciações e hierarquias étnico-raciais, a educação escolar pode passar a ser o oposto, ou seja, uma atividade de reconhecimento e valorização da multiplicidade e das diferenças étnico-raciais, de produção de uma consciência política e histórica da diversidade e de crítica ao racismo e qualquer forma de discriminação e intolerância, e já começa a sê-lo pelo menos nas suas diretrizes, nas políticas educacionais do Ministério da Educação e algumas Secretarias Estaduais e Municipais e nas preocupações dos educadores, que cada vez em maior número mobilizam esforços de pesquisa, aquisição de conhecimentos e seleção de material para dar conta da questão em sala de aula. Nesse

sentido, alguns conceitos ajudam na construção de perspectivas, projetos e ações político-pedagógicas. Destaco o conceito Diversidade como sendo a perspectiva que deve assumir uma proposta para a (re)educação das relações étnico-raciais.

Primeiramente, podemos defi nir Diver-sidade, do ponto de vista sócio-cultural, como o conjunto das diversas formas de vida, estilos, valores, visões de mundo. A diversidade é uma multiplicidade de sujeitos sociais singulares que possuem história e cultura. “Essa constatação indica que é necessário repensar a nossa escola e os processos de formação docente, rompendo com as práticas seletivas, fragmentadas, corpo-rativistas, sexistas e racistas ainda existentes” (Sodré apud MEC/Secad, 2006, p. 218). Porém, “Assumir a diversidade cultural signifi ca muito mais do que um elogio às diferenças. Represen-ta não somente fazer uma refl exão mais densa sobre as particularidades dos grupos sociais, mas, também, implementar políticas públicas, alterar relações de poder, redefi nir escolhas, to-mar novos rumos e questionar a nossa visão de democracia” (Gomes apud MEC/Secad, 2006, p. 218).

Na educação escolar, assumir a diversidade signifi ca reconhecer e valorizar as diferenças étnico-raciais e, para isso, deve-se fazer escolas curriculares e pedagógicas coerentes com essa perspectiva, o que mais que

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explicitar diferenças é colocar em discussão as relações de poder e criar condições de troca, reciprocidade, reconhecimento e respeito ao outro. Portanto, como perspectiva e como conceito, a diversidade pode servir como base e objetivo geral de um projeto político-pedagógico cujo principio seja uma aposta na multiplicidade, o que quer dizer que a pedagogia passa a ser não apenas uma ação de explicitação, mas fundamentalmente uma ação de produção de singularidades. Porém, isso não se faz sem um permanente diálogo sobre os preconceitos e discriminações, sobre as dimensões raciais da desigualdade social e as relações de poder estabelecidas, sempre na perspectiva na superação do racismo e do etnocentrismo. Trata-se, então, de uma pedagogia militante e constituinte, na medida em que pretende explicitamente produzir uma nova cultura, um novo jeito de ser, uma nova visão estética e de relações sócio-culturais.

O primeiro elemento desse projeto é colocar no centro os grupos sociais estigmatizados e discriminados (raça/etnia, gênero, orientação sexual), propondo conteúdos e atividades coerentes com essa opção, ou seja, um conjunto de conteúdos, leituras e debates que explicitem e discutam as relações de poder que se estabeleceram entre as raças, culturas e gêneros, sempre no sentido de superação da discriminação e que avance no sentido da

valorização da história, cultura, cidadania e reconstrução da auto-estima dos integrantes desses grupos sociais.

Isso conduz ao segundo elemento do projeto, que é trabalhar com as noções de multiplicidade, diferenças e identidade. Essas noções são importantes às práticas que visam ajudar os educandos a desenvolverem as dimensões que os compõe, a compreenderem que as diferenças étnico-raciais, culturais e religiosas não são desigualdades e, portanto, não comprometem o ideal de igualdade de direitos, oportunidades, tratamento e reconhecimento, e que a multiplicidade é uma relação aberta das identidades singulares, que em cooperação constituem o comum. É afi rmando-se como

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multiplicidade, ou seja, como singularidades que cooperam que se mantém como tais, que as novas lutas contra o racismo, cujas principais expressões são os movimentos culturais das favelas e periferias e os cursos pré-vestibulares para negros, produzem direitos, estilos, diversidade e o desmoronamento defi nitivo da hibridação freyreana.

Esses elementos - colocar no centro os grupos sociais estigmatizados e discriminados e as trabalhar com as noções de multiplicidade, diferenças e identidade - são pontos básicos de um novo projeto político-pedagógico e, dentro dele, pode-se propor e produzir ações e práticas concretas, tais como:

Uma postura crítica dos educadores, independente da disciplina que leciona, em face de manifestações preconceituosas e racistas entre estudantes, entre professores e estudantes e no âmbito geral da escola. Isso é muito importante, pois não é incomum na escola as atitudes de desprezo, depreciação e desrespeito em relação a estudantes negros(as), muitas vezes em forma de “brincadeiras” em relação à cor da pele e ao cabelo. Tal postura deve mobilizar não apenas os professores, mas os diversos setores da escola, como diretores, supervisores, orientadores e inspetores. Os orientadores educacionais, em especial, devem buscar entender o impacto das depreciações na auto-estima e no desempenho escolar dos estudantes;

Desenvolvimento de atividades culturais, artísticas e musicais, não apenas aquelas que resgatam a história, mas que fundamentalmente incorporem elementos da cultura de origem africana e produzam estilos e formas singulares de estéticas, de linguagem, de expressão, etc. O hip-hop, por exemplo, é uma dessas produções;

Mobilização das diversas disciplinas em projetos comuns. Um projeto sobre África, por exemplo, pode mobilizar diversas áreas, como história, literatura, redação, geografi a, matemática (no trabalho com as estatísticas da desigualdade racial, por exemplo), ciências (na discussão da biodiversidade, das produções científi cas), informática (na sistematização de dados, produção de hipertextos, etc.), arte e educação física (danças, teatro, capoeira etc.). Um projeto deste tipo pelo menos uma vez ao ano, com apresentações na semana do 20 de novembro, por exemplo, ajuda a mobilizar esforços em pesquisa e produção de materiais informativos. O trabalho pedagógico por projetos é uma das dimensões mais importantes dessa pedagogia da (re)educação das relações raciais com foco no anti-racismo, na produção de multiplicidade e singularidades étnico-raciais;

Criação de grupos ou círculos de leitura de textos da literatura brasileira e africana;

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Debates a partir de palestras de militantes do movimento negro, pesquisadores e artistas que trabalham com a temática ou a partir de fi lmes, leituras de textos;

Incorporação da temática pelas disciplinas em seus conteúdos programáticos. Além das disciplinas de História, Literatura e Educação Artística, que são os lugares principais em que, segundo a Lei nº 10.639/03, deve se desenvolver de forma sistemática o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, conteúdos sobre África, história e produções dos afro-brasileiros e de uma (re)educação das relações étnico-raciais podem ser trabalhados pelas outras disciplinas. Língua Portuguesa, Redação, Geografi a, Sociologia, Ciências, Matemática e Educação Física, levando para seus currículos, por exemplo, discussões sobre a infl uência dos idiomas de origem africana em nosso universo lingüístico, temas a serem explorados na produção de textos, informações sobre características físicas, populacionais e culturais do continente africano, textos e debates sobre relações raciais e desigualdades, o debate sobre raça do ponto de vista biológico e sociológico, tabelas e gráfi cos estatísticos, as danças, o samba, a capoeira, tudo isso situado no tempo e no espaço. Até mesmo a disciplina de Informática pode dar sua contribuição, utilizando dados, imagens e pesquisas para o desenvolvimento de textos, planilhas, banco de dados, hipertextos e softwares.

Outro elemento, não menos importante, é o da luta pela constituição material de direitos. Neste ponto, a compreensão do conceito de ação afi rmativa e as políticas concretas que são propostas a partir dele é muito importante. Inicialmente é preciso que os educadores debatam as políticas em discussão que se apresentam na sociedade, como a proposta de cotas raciais e outras, no contexto do debate teórico e político sobre ações afi rmativas, observando na realidade social concreta as desigualdades e as barreiras raciais impostas aos afro-descendentes e não um moralismo abstrato segundo o qual todos devem ter os mesmos direitos e possibilidades. A perspectiva do conceito de ação afi rmativa insere num projeto de democratização dos direitos, de distribuição de renda, de reconhecimento e, portanto, de produção de condições objetivas e subjetivas de igualdade e autonomia. Cabe aos educadores, além da compreensão teórica e política do conceito de ação afi rmativa, a explicitação de todas as dimensões desse conceito e os motivos que levaram o movimento negro a se tornar o protagonista intelectual e militantes das ações afi rmativas no Brasil. Mesmo porque a Lei nº 10.639/03, as Diretrizes Nacionais Curriculares para e Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana e a pedagogia que estamos discutindo e propondo, inclusive neste texto, são também ações afi rmativas, ou seja, inserem-se numa perspectiva de afi rmação de identidade e direitos.

Por fi m, e para início de um processo de criação de práticas pedagógicas anti-racistas e de valorização da diversidade étnico-racial pelos educadores que ainda não se mobilizaram para tal, podemos dizer que a proposta educacional

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que não considera a multiplicidade e as diferenças é arbitrária, pois, conscientemente ou não, acaba fazendo uma determinada opção étnico-racial; a emancipação que não se alimenta da sua própria história e cultura não produz autonomia.

Portanto, a pedagogia, na perspectiva aqui delineada, coloca-se como uma ação militante que visa produzir uma mudança cultural e simbólica nas relações étnico-raciais e uma das principais medidas de ação afi rmativa de um processo de superação dos preconceitos e discriminações raciais, de construção de respeito às diferenças raciais, culturais e religiosas e, pois, de fortalecimento da democracia. O movimento negro vem mostrando, ao longo da sua história e com experiências concretas, o que deve e como pode ser feito, a sociedade em geral está mais aberta a esse debate, o Estado brasileiro já reconheceu a necessidade de promoção da igualdade racial na educação, os instrumentos legais existem e algumas ferramentas didático-pedagógicas já estão à disposição e outras em produção. Resta agora aos educadores e educadoras colocar a mão na massa.

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Movimento Negro Brasileiro:

uma pedagogia de exemplos e desafios

Amauri Mendes Pereira

Especialista em História da África Mestre em Educação-UERJ

Doutor em Ciências Sociais-UERJ

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A trajetória de auto-instituição do Movimento Negro Brasileiro vem cumprindo um papel pedagógico extraordinário, propiciando à sociedade brasileira pensar-se de maneira mais consistente do que vem sendo comum: a partir dos valores arraigados e sempre resignifi cados em séculos de escravismo; e do acúmulo de vantagens econômicas e políticas, de colonialismo cultural, enfi m, de hierarquização e naturalização da hierarquia social e “racial” entre mais claros e mais escuros.

Aos poucos vai fi cando mais evidente, tanto no terreno da instituição política, quanto para a comunidade de estudiosos dos problemas brasileiros contemporâneos, a envergadura dos processos através dos quais o Movimento Negro emerge na cena histórica rompendo com uma questão sensível nos sonhos das elites brasileiras: a construção de uma nação etnicamente homogênea, em que a superioridade (cultural e biológica) “branca” diluiria a “mancha negra”.

Não é aqui o lugar de se estender sobre o racismo “estrutural” que consistia na própria essência do pensamento das elites brasileiras

até meados do século XX, e do qual ainda hoje não estamos livres. Estudo recente e bem objetivo a respeito pode-se encontrar no livro de Kabengele Munanga Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Preciosos, também, os trabalhos de Giralda Seyferth especifi camente sobre a imigração como a primeira grande política pública da República e seus propósitos “eugênicos”.

É essencial, no entanto, cruzar ambas as coisas: se há um movimento social emergindo é porque há necessidade e condições sociais e históricas para isso. Como não falar no interesse do novo Estado republicano em substituir (ou como era mais comum se falar na época, higienizar) a população, branqueá-la, tornando-a mais apta à civilização? Ao negro brasileiro restava sucumbir ou (como sempre!) resistir. Aqui tratamos dessa resistência, observando que foi e está indo mais além do que era possível – está propondo coisas novas, novos sentidos à sociedade. E em relação ao racismo transformista, que exige cada vez mais força, habilidade e generosidade do Movimento Negro? É preciso não perdê-lo de vista.

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Um currículo remoto

Os quilombos são sempre uma referência quando se fala em lutas negras. Mas é uma ilusão imaginarmos quilombos apenas como grupos de negros escondidos, isolados no meio do mato. Pelo menos há estudos que mostram uma variedade de tipos de quilombos, que muitas vezes mantinham relações – às vezes mais, às vezes menos – confl ituosas com outros grupos e agentes sociais de suas regiões. Palmares, sem dúvida, é o maior de todos os exemplos, o mais conhecido. Será que para aqueles que viviam na Serra da Barriga bastava a existência do Quilombo? É possível que não, pois este cresceu, se desenvolveu, e se complexifi caram suas formas de organização interna (da produção, de circulação de idéias, das relações de poder etc.), transformando-o política e institucionalmente, gerando novas e desafi antes perspectivas, inclusive nas relações com os fazendeiros e autoridades da região. Hoje, podemos pensar que se tornaria intolerável, por ser uma negação radical do sistema dominante. Por isso a tensão foi se tornando aguda e, com o incremento das ações militares, ou se rendiam ou negociavam (como teria feito Ganga Zumba), ou se levava o enfrentamento até as últimas conseqüências, como teriam deliberado Zumbi, e a maioria.1

Mas certamente não eram apenas essas as formas de resistência no tempo da escravidão. Em cada tempo e lugar oprimidos de todas as “raças” encontram seu jeito. Não seria diferente entre nós. Já são muitos os estudos que abordam as relações senhor X escravo, como atravessadas por tensões e confl itos, diferentes das visões de escravidão benevolente, ainda comuns em nosso imaginário social. Documentos da época mostram que em meio a disputas (que às vezes degeneravam em fugas, assassinatos de feitores e senhores, ou ao contrário em punições terríveis sobre os rebeldes), eram selados variados tipos 1 Esse tipo de análise se tornou possível a partir da des-coberta de documentos da época e de sua análise por Décio Freitas, que mesmo não sendo à época um histo-riador de formação, produziu um clássico: Palmares: a Guerra dos Escravos. Ed. Mercado Aberto. Porto Alegre. 5ª edição. 1984.

de acordos, em que os escravos conquistavam direitos e condições de manter famílias, de gerar certa autonomia econômica que permitia a compra de bens e até de alforrias, e de articular espaços próprios de vivências culturais, religiosas e outras.

Estes estudos que falam do escravo – e até de famílias escravas – como sujeitos históricos são bem-vindos. Mas serão mais bem-vindos ainda os estudos que tratem da população negra no pós-abolição. Como já foi referido há um silêncio historiográfi co sobre essa trajetória, quer dizer, a escrita da história do Brasil não registra a população negra como tal, suas iniciativas, suas formas de adaptação ao novo regime, sua capacidade de sobreviver ao abandono social, que foi o que a abolição representou para a grande maioria, depois de passada a alegria do primeiro momento. É como se o fi m da escravidão legal e a igualdade formal da constituição republicana tivessem suprimido a hierarquização de importâncias durante séculos associadas à cor da pele.

E por que a história social não registra? Porque na visão da maioria dos historiadores, com a República começava um novo Brasil no qual a cor não importava e sim a classe social. Pode-se pensar que essa concepção sobre o desenvolvimento da nação e da sociedade brasileira tem a ver com a origem “racial” da maioria dos historiadores. Mais importante, porém, que esse vício de origem, que muitos conseguem superar, são as idéias que foram sendo criadas para explicar a perpetuação das desigualdades materiais e simbólicas que, de maneiras renovadas, passaram a vigorar. A crença generalizada entre as elites intelectuais era de que o atraso cultural se devia ao negro: à sua inferioridade biológica, à sua condição primitiva de ser humano. Hoje já são muitos os estudos que mostram os discursos e expectativas de parlamentares, de advogados, de médicos e outros entre os mais acreditados intérpretes daqueles momentos. Além de trabalhos de Giralda Seyferth, já referidos, gostaria de recomendar o pequeno texto de Carlos Vainer que se encontra na bibliografi a.

Interessante como custou tanto – quase o século XX inteiro – para serem “descobertas”

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e analisadas: a volumosa documentação sobre o racialismo e racismo de quase todos os principais intelectuais até meados do século XX; assim como a fábula de recursos despendidos para trazer imigrantes europeus (logo em 1891, foi decretado que apenas europeus podiam ser imigrantes); e as evidências de que o sul do Brasil tornou-se muito mais “branco” e desenvolvido do que era. Até muito recentemente era quase absoluta a visão de que o imigrante é que fi zera a diferença. Sozinho. Como se suas áreas de acolhimento – sem menosprezar a determinação de homens e mulheres que se abalaram de tão longe exatamente para se livrarem da miséria e exploração – não tivessem sido as mais benefi ciadas por todo tipo de investimento, inclusive, no que diz respeito à sua valorização como pessoas. Para as nossas elites, o imigrante europeu era o portador do sangue redentor da ossa inferioridade biológica – o verdadeiro “sangue-bom”...

O quadro-negro recente

O fenômeno da Frente Negra Brasileira, que impactou São Paulo quando de sua criação em 1931, é o exemplo mais conhecido de ruptura com as idealizações de branqueamento da sociedade. Mais do que simplesmente “clarear” pela mestiçagem, era necessário que o negro brasileiro concedesse em clarear culturalmente. E estava acontecendo o contrário: a valorização de ser negro! Hoje é fácil encontrar documentos organizativos, depoimentos dos militantes mais conhecidos e exemplares de jornais da imprensa negra que contam tal história.2 A FNB era uma organização de caráter social, que abrigava vasta e abnegada militância, ostensiva, com seus uniformes, carteirinha, posturas pessoais e coletivas até então inéditas da parte de negros, com esmerada disciplina de organização e mobilização, reivindicações e exigências abertas e diretas às autoridades públicas. Suas 2 Na segunda parte do livro clássico de Florestan Fer-nandes A integração do negro à sociedade de classes, há todo um capítulo dedicado aos movimentos sociais no meio negro. Farta documentação da Imprensa Negra da época e outras fontes.

idéias irradiaram-se por incontáveis cidades do interior... E alcançaria quase todas as regiões brasileiras, com volume incontrolável de representações (os dirigentes da FNB alardeavam – deve-se descontar os exageros – a adesão de mais de 200.000 fi liados).3

Se as irmandades negras católicas já eram muito antigas, assim como a Sociedade Protetora dos Desvalidos, na Bahia, e o Clube Floresta Aurora no Rio Grande do Sul, a partir da segunda década do século XX – e a Revolta da Chibata e o heroísmo de João Cândido, são um emblema disso – foram se mostrando, cada vez mais claramente, a inconsistência das idealizações e esforços arianizantes das elites. Foram sendo fundados clubes e associações negras em toda parte do país, com variadas características, de acordo com especifi cidades e possibilidades locais. Exemplos dos mais conhecidos: o Marcílio Dias e o Satélite Prontidão, em Porto Alegre, RS; o Aristocrata Clube em São Paulo; o Renascença Club, na capital e o Clube Palmares, em Volta Redonda, RJ; o Chico Rei Clube em Poços de Caldas e o Minas Clube em Além Paraíba, o Elite Clube de Uberaba, MG... Em torno desses e de outros tipos de espaços associativos, que não se pode tratar mais longamente aqui, aglutinavam-se famílias negras, criando mecanismos de assistência mútua e outras formas de fortalecimento social e econômico.

Não é outro também o sentido da ampla e irreprimível instituição das manifestações culturais de matrizes africanas. Às vezes, através de confrontação direta, como os afoxés nascidos dos candomblés da Bahia, cujo momento decisivo de afi rmação foi contra a repressão policial, em 1949 (por isso a tradição baiana do Afoxé Filhos de Gandhi de desfi larem apenas 3 Está por ser feita uma História do Movimento Negro Brasileiro. Flavio Gomes (Negros e Política, Jorge Zahar, 2005), sinalizou agudamente para o silêncio historiográfi -co sobre essa trajetória de lutas pós-abolição. São incon-táveis e as mais variadas, as iniciativas no seio da popu-lação negra, em todas as regiões brasileiras. É recente e ainda escasso, no entanto, o interesse acadêmico sobre esses eventos. Uma preciosidade é o livro ...E disse o velho militante José Correia Leite. É relato e análise feitos por quem ajudou a produzir tal história – um dos mais importantes nomes entre os militantes do MN ao longo do século XX. Editado por Cuti, poeta e militante negro, e publicado pela Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, em 1992.

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homens); como o Passo (do qual surgiu o Frevo) em Pernambuco; da Capoeira no Rio de Janeiro, Bahia e outras regiões... Outras vezes, como o Samba carioca, que foi se insinuando, resistindo (aqui e ali obrigado a enfrentamentos também), até conquistar certa institucionalidade, e galgar a importância que tem hoje.

Pois em cada um desses processos sociais há muito mais do que a contabilidade de êxitos dos quais se ufana, com razão, o Movimento Negro. Há histórias de vidas, de abnegação, de tenacidade e talento, de homens e mulheres inabaláveis em sua dignidade e determinação. A trajetória de resistência e a capacidade de construir suas próprias alternativas de sociabilidade constituem motivos de justifi cado orgulho para todos os que (independente da cor da pele e do tipo de cabelo) assumem a consciência social do que signifi ca ser negro no Brasil.

Aprender e ensinar novas lições

“A bibliografi a do ‘problema do

branco’ sobre o negro é imensa.

Nela, como não podia deixar de

ser, o negro é o problema.

As exceções – sinal dos tempos! –

estão aumentando.

Infelizmente a regra, idem.”

TI. Literatura Negra Brasileira: notas a respeito de condicionamentos

O problema do negro atravessou o século xx como um dos mais sensíveis na sociedade brasileira. Ao invés de assumir que o negro era um problema o Movimento Negro veio, aos poucos, mostrando que o problema se encontrava (e se encontra) na formação e no desenvolvimento da sociedade. A sociologia intuitiva e desafi adora de Alberto Guerreiro Ramos – negro, baiano, dos mais respeitados sociólogos brasileiros por volta de meados do século XX – deu o diagnóstico: segundo ele, havia uma patologia social do branco brasileiro. Que se manifestava no esforço de tematizar o negro, de vê-lo como o problema – hoje podemos dizer; de torná-lo o étnico, o diferente; enquanto o “branco” se oculta e transparece como a normalidade. É uma forma sofi sticada de racismo. Capaz, mesmo, de enganar gente sinceramente solidária, e até militantes do Movimento Negro. Somos muitas vezes levados a nos agarrar à diferença como um espaço possível, o único que nos é oferecido, onde podemos afrontar os estigmas que nos afrontam.

É verdade que a juventude negra que “tomou a história em suas próprias mãos” a partir dos anos 1970, criando novas formas de organização, assumindo novos discursos e práticas, buscando alianças e reforço junto a outros setores dos movimentos sociais, teve de romper com certas características das lutas contra o racismo que vinham lá de trás. Mas soube aproveitar bem a história e os exemplos de tenacidade, de abnegação, de capacidade de se instituir a ferro e fogo, que constituíam uma herança inestimável dos que lhes antecederam. Em fi ns dos anos 1980, aquela juventude amadurecia. Vivera a experiência concreta de se lançar, junto aos setores democráticos e anti-racistas, nas grandes campanhas políticas da conjuntura e acabar praticamente sozinha frente à repressão absolutamente desproporcional dos batalhões da polícia e do exército, nas manifestações de rua questionando o centenário da abolição.

No início da década de 1990 se esgotava a fase heróica e romântica do impulso do Movimento Negro iniciado nos anos 70. Novos jovens militantes tinham menos paciência e agendas mais pragmáticas. Ostentando a

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recém conquistada visibilidade (quase diria respeitabilidade) política da causa, lançaram-se ao Salto: a conquista de novos espaços político-institucionais, dentro e fora do país, acessando fundos públicos e a cooperação internacional, como já era uma verdadeira febre em outros setores do movimento social. Militantes negras questionavam o machismo dos homens negros e o elitismo e racismo do feminismo branco; religiosos católicos, protestantes, umbandistas, candomblecistas precisavam resguardar suas instituições e áreas de infl uência; o mesmo, com aqueles que haviam conquistado espaços em partidos políticos, no sindicalismo e em outros segmentos. Aos poucos foi se enfraquecendo a noção de que estar junto ao conjunto das lutas sociais era sufi ciente para, através da ampliação da luta contra o racismo, realizar pouco a pouco, a redenção da sociedade. Essa visão universalista perdeu espaço para o diferencialismo e a agilidade, simplicidade do discurso e de projetos, que ele propicia. Simultaneamente foi se inaugurando uma nova postura, não mais apenas de demanda, mas de disputa, em esquemas de poder.

O Salto pode se tornar uma viagem longa, na qual Ações Afi rmativas e cotas representam uma estação. Como disse um poeta angolano, Helder Neto, “não há caminhos, fazemos os caminhos ao andar”. Resta – enquanto se faz o que se tem de fazer, do jeito que tiver que ser feito – interrogar. Serão sufi cientes esses jeitos possíveis de fazer Movimento Negro? Serão mesmo nossos esses espaços e formas toleradas pelo campo de poder racial e de classe que nos lança no gueto e, até, absorve – e manipula através da produção cultural e do consumismo – a nova estética e as muitas energias e coisas boas que produzimos?

No seio da população negra, “no âmago das coisas”, conforme poetou Cuti, nas “Almas da gente negra”, de que falava W.E.B. Du Bois, há exemplos sem conta que precisamos resgatar. Não eram muitas e complexas as formas de luta durante a escravidão? No pós-abolição não foram encontrados os jeitos mais diversos de não fi car de fora da nova sociedade que nascia, e mais adiante e até hoje não estão sendo colhidos os frutos da força, da tenacidade, da alquimia da dor e do sofrimento em energia transformadora? O Movimento Negro Brasileiro se deixará emparedar (como no poema de Cruz e Souza) em jeitos e caminhos óbvios, domesticadores?

Como vivenciar o momento atual com a efi cácia, mas também com o poder da criação e superação com que Luiza Mahin e Luiz Gama, Castro Alves, Patrocínio, José Correia Leite, Arlindo Veiga dos Santos, Raul Joviano do Amaral, Henrique Cunha, Abdias do Nascimento, Maria Nascimento, Solano e Margarida Trindade, e tantos outros e outras, vivenciaram os desafi os e ensinaram as sociedades de seus tempos?

Franz Fanon, como cada um de nós, não tem soluções. Mas do fundo de sua alma e de uma vida martirizada nos enviou pistas:

“não há caminhos, fazemos os caminhos ao andar”

Como vivenciar o momento atual com a efi cácia, mas também

com o poder da criação e superação (...)

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“É por um esforço para se reapossar de si, e de despojamento.É por uma tensão permanente de sua liberdade, que os homens podem criar as condições ideaisde existência de um mundo humano.”

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