Revista-2015_05_17

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523eff3c-1501-47be-8769-e6b0215643de PÚBLICO, DOMINGO 17 MAIO 2015 SUÉCIA OS CAMPEÕES DA IGUALDADE CONTINUAM A LUTAR

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Interessante!!

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PÚBL

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DOM

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17 M

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2015

SUÉCIA OS CAMPEÕES DA IGUALDADE CONTINUAM A LUTAR

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 3

DR

DRDANIEL ROCHA

Objectos em volta: ISSpresso, a máquina de café desenhada para o espaço

A Revista 2 acompanhou a viagem de Lara Nogueira e Marco Nunes até Phaskot, uma pequena aldeia a três horas de viagem de Katmandu que sem eles pouco ou nada teria. Pela sua história, conta-se também a de um país em que a terra ainda não parou de tremer

No Inverno de 2014-15, uma

mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história

de Ž, um fotógrafo de guerra

desaparecido. Conto inédito deAlexandra Lucas

Coelho

Vai começar uma guerra de civilizações? Alguma vez existiu um mundo bipolar entre o islão e a cristandade? Jaime Nogueira Pinto escreveu O Islão e o Ocidente, sobre as andanças históricas da “grande discórdia”

REVISTA 2 ÍNDICE26

22

18

08

Directora Bárbara Reis Editoras

Francisca Gorjão Henriques fgh@

publico.pt, Paula Barreiros paula.

[email protected] Copydesk

Rita Pimenta Design Mark Porter

e Simon Esterson Directora de

Arte Sónia Matos Designers

Helena Fernandes, Sandra Silva

Email [email protected]

Este suplemento faz parte

integrante do Público e não pode

ser vendido separadamente

FICHA TÉCNICA

04 IMAGEM/PALAVRAJorge Almeida Fernandes

Nepal — Sunt lacrimae

rerum

Rita Pimenta

Acordo — (Des)entendimento

ortográfi co

06 PERSONAGENS DE FICÇÃO

Manuel Metódico

Desleixado Loureiro

Por Rui Cardoso Martins

07 DIÁRIO DE VHILSO desenvolvimento da peça

Olhar de Alexander Farto

12 COMO A IGUALDADE DE GÉNERO FEZ DA SUÉCIA UM PAÍS MAIS RICO

O país tem um Governo

“feminista”, quer impor

quotas nas maiores

empresas obrigando-as

a ter 40% de mulheres a

mandar e quer pressionar

os casais a partilhar mais

as licenças parentais.

Contudo, ainda ninguém

está satisfeito

27 A LUZ COMO MEIO E LIMITE Phaos. Por António Pedro

Mesquita

30 CRÓNICA URBANABairro do Riobom, Porto

CRÓNICASJosé Diogo Quintela

Não TAP os ouvidos: aviões

parados não fazem barulho 5

Alexandra Lucas Coelho

O vestido pós-11

de Setembro 28

Nuno Pacheco

O capitão Windows

e o general Klinger 29

Daniel Sampaio

Costa no seu labirinto 29

Capa: Cartaz da década de 1970, quando a Suécia se tornou o primeiro país do mundo a criar a “licença parental”

AEI

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Explica o dicionário que “acordo” significa “entendimento recíproco” e também “parecer favorável”. O mesmo é dizer “aprovação”, “consentimento”. No dia 13 de Maio, impôs-se oficialmente a adopção do Acordo Ortográfico de 1990. Em teoria, estamos a falar (e sobretudo a escrever) de “concordância”, “assentimento”, “convenção”, “pacto”. Na prática, nem tanto. E não é teimosia, é apreço pela

legibilidade e compreensão.“O comboio para o Porto para em Coimbra.” Percebeu o que se queria dizer? O segundo “para” significa “pára”. Agora imagine o que fazer a este slogan de um clube desportivo que até aqui gritava: “Ninguém pára o Vitória!” A versão oficial será: “Ninguém para o Vitória!” Se o desempenho atlético não os salvar, o contexto linguístico ainda menos.Outro exemplo: “Passar a mão pelo pelo.” Esta é mais

óbvia, mas ainda assim… que mal fazia deixar o acento circunflexo no “pêlo”?O “acordo” de que aqui se fala valoriza a fonética e subestima a etimologia. É um critério discutível, mas que já de pouco adianta discutir. Os organismos oficiais vão continuar a redigir de acordo com o acordo (e tantas vezes tão mal que nem se percebe de acordo com quê), as editoras prosseguirão na produção de dicionários (facturando de acordo) e

os alunos serão avaliados segundo as novas regras ortográficas (mesmo com professores em desacordo).“Tino”, “juízo”, “reflexão” também são traduções de “acordo”. Mas o sentido que mais nos agrada nada tem que ver com isto: “Instrumento italiano, espécie de rabecão, de doze a quinze cordas, que tangidas simultaneamente produziam sons acordes.” Outra música, portanto. “Alto e para... o baile.” Rita Pimenta

ACORDO(DES)ENTENDIMENTO ORTOGRÁFICO

IMAG

EMPA

LAVR

A

NEPAL Há lágrimas nas coisas. “Sunt lacrimae re-

rum et mentem mortalia tangunt” (Virgílio,

Eneida, Livro I, verso 459). Podemos tra-

duzir quase à letra: “Há lágrimas nas coisas

e tocam a alma dos mortais.” Mas há deze-

nas de propostas de tradução ou interpre-

tação. Eneias contempla, num templo de Cartago,

imagens da Guerra de Tróia, uma tragédia históri-

ca. Nós contemplamos as fotografi as de uma tra-

gédia natural e humana — no Nepal.

O Nepal tornou-se um país de homelesses, escreve

um jornalista nepalês. O sismo de 25 de Abril não

fez apenas 8 mil mortos, 20 mil feridos e centenas

de milhares de desalojados: “Seiscentas mil casas

destruídas, 22 mil escolas em ruínas, edifícios go-

vernamentais em escombros. É como se tivessem

recebido um tapete de bombas. E tudo isto antes

do segundo sismo, na terça-feira, que acabou por

arrasar o que ainda estava de pé.”

Nem os deuses resistiram. Nos templos vêem-se

por terra estátuas e imagens. O Nepal tem uma his-

tória própria, fruto da mistura de culturas e religiões

— hindu, budista e tântrica, diz a UNESCO no seu

site. “Katmandu, com a sua herança arquitectónica

única, os seus palácios, templos e pátios interiores,

inspirou escritores, artistas e poetas, estrangeiros

ou nepaleses.” Parte do património cultural fi cou

reduzida a pó.

Foi um país fechado aos estrangeiros durante

128 anos. Reabriu as portas em 1951. Tornou-se o

eldorado dos alpinistas e, depois, dos hippies. O tu-

rismo é vital para um dos países mais pobres do

mundo. Mas tem faces ocultas. Dezenas de milhares

de adolescentes trabalham como prostitutas nos

hotéis. Lugares de desportos de montanha são hoje

depósitos de lixo.

Encurralado ente dois gigantes, a Índia e a China,

o Nepal está instalado sobre um abismo — a sul, a

placa tectónica indiana, a norte, a placa tectónica

da Eurásia. Foi a colisão entre estes dois blocos que,

há 50 milhões de anos, fez nascer os Himalaias.

Entre 1996 e 2006, o Nepal viveu uma feroz guer-

ra civil entre uma guerrilha maoísta (inspirada no

Sendero Luminoso peruano e não em Mao) e uma

brutal repressão militar e policial: 13 mil mortos.

Em Junho de 2001, o rei Birendra e quase toda a

família real foram massacrados pelo príncipe her-

deiro. Sucedeu-lhe o irmão Gyanendra, despótico

e suspeito de ter inspirado o regicídio. O Nepal in-

surgiu-se e, em 2006, o rei afastou-se e a guerrilha

abandonou a violência. Em 2008, foi instaurada

uma república federal. Os nepaleses julgavam-se

em paz. A Natureza declarou-lhes guerra.

Ninguém chora nesta fotografi a. Tal como na

Eneida, as lágrimas estão gravadas na própria ima-

gem. Jorge Almeida Fernandes

ROBERTO SCHMIDT/AFP

Lak Bahadur Tamany toma conta da sua filha de três anos nesta fotografia de quarta--feira, um dia depois do segundo terramoto no NepalSUNT LACRIMAE RERUM

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 5

JOSÉ DIOGO QUINTELAÉ MUITO ISTO

NÃO TAP OS OUVIDOS: AVIÕES PARADOS NÃO FAZEM BARULHO

Não sei porque é que o Governo insis-

te em privatizar a TAP. Não se consegue

privatizar uma empresa que não perten-

ce ao Estado. Para a poder privatizar, há

que nacionalizá-la primeiro. Só depois

de expropriar o Sindicato dos Pilotos de

Aviação Civil é que se pode tentar arranjar donos

novos.

Há quem julgue que os pilotos estão em greve

porque, há quase 20 anos, João Cravinho lhes ga-

rantiu 20% numa futura privatização. Não faz senti-

do. Espero que os pilotos não estejam em luta para

trocar os actuais 100% que detêm por 20% que

possam vir a ter. Revelaria um péssimo domínio

da matemática por parte de quem se espera que

efectue cálculos complexos para acertar em cheio

com um caixote de ferro alado de 500 toneladas

no meio de 1km de asfalto.

A TAP é-nos é muito querida. A sua proximi-

dade aos portugueses é comovente. Mas não é a

proximidade entre compatriotas. É a proximida-

de muito pouco habitual entre proprietários e os

clientes. Em que outra companhia aérea é que os

voos começam com o comandante a dizer: “This

is the owner speaking”?

Diz-se que a TAP perdeu prestígio. É falso. Acon-

teceu justamente o contrário, a greve granjeou

prestígio. Que pássaro possui mais prestígio no

céu: um pombo ou uma águia? Pombos há aos

pontapés, já a águia é muito mais exclusiva. Neste

momento, da minha janela, avisto 27 pombos e

zero águias (se visse alguma, já não ia ver nenhum

pombo). Ora, exclusividade é prestígio. Os aviões

da TAP são as águias da aviação, na medida em

que são difíceis de observar. Mais um bocadinho e

transformam-se nos dodós da aviação, na medida

em que estarão extintos. Mais prestígio é difícil.

(Nota para depois: fazer o remake da Ilha da Fan-

tasia, a série dos anos 80 em que todos os epi-

sódios começavam com

um o pequeno Tatoo num

campanário a tocar um si-

no e a gritar: “The plane!

The plane!” Com aviões da

TAP, a série sai baratíssi-

ma porque o avião nunca

chega com as personagens.

Não se gasta dinheiro em

actores e guionistas, cada

episódio tem só um senhor

de fato branco e um anão a

conversarem.)

Tudo isso concorre pa-

ra a valorização da TAP,

que está a liderar o lucra-

tivo segmento comercial

das férias de aventura. Se

quer ir com a família para

um resort com pulseirinha,

quarto marcado e refeições

à hora certa, a TAP não é

para si. Mas se gosta de par-

tir à descoberta, se quer ser surpreendido e nunca

saber o que o espera, escolha a TAP. Ou terá férias

de sonho, ou sonhos com férias.

A TAP é também a única companhia aérea que

tem um cartão de fi delidade em que se podem

acumular metros. Aquelas voltas irritadas entre

o check in, o guichet das informações e a porta de

embarque podem ser acumuladas e trocadas por

mais voltas irritadas entre o check in o guichet das

informações e a porta de embarque.

Não se pode dizer que a TAP não tenha avisado.

Em 2011, lançou uma música cantada pela Mariza,

Paulo Flores e Roberta Sá. Chamava-se De braços

abertos. Sabe-se agora que era a avisar os passagei-

ros que, se querem viajar na TAP, mais vale abrirem

os braços e voar.

Os aviões da TAP são as águias da aviação, na medida em que são difíceis de observar. Mais um bocadinho e transformam--se nos dodós da aviação

IMAG

EMPA

LAVR

A

Pedro Madeira Pinto

16°53’02.7”N 24°59’25.2”WMindelo, São Vicente, Cabo Verde

16°52’41.7”N 24°59’46.8”WMindelo, São Vicente, Cabo Verde

GPS iPHONEBARCO

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6 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

PERSONAGENS DE FICÇÃO MANUEL METÓDICO DESLEIXADO LOUREIRORUI CARDOSO MARTINS

SOMOS O QUE ESCONDEMOS SERA 13 de Maio de 2015, algo de estranho se passava com a página na Wikipédia do distinto Dias Loureiro. Surgia por lá uma espécie de excesso de transparência na verdade, para falar como agora eles falam. Passos Coelho suspendeu a sua “voz de barítono” e alguém pegou na caneta, escrevendo de improviso a um empresário que correu mundo

Ao Manel Dias Loureiro, uma carta sincera

de O Imperfeito:

Meu caro amigo que, nas palavras trans-

parentes de alguém*, “conheceu mundo, é

um empresário bem-sucedido, viu muitas

coisas por este mundo fora e sabe que se

queremos vencer na vida, se queremos ter uma

economia desenvolvida, pujante, temos de ser

exigentes e metódicos”. Como sabes, umas das

estratégias comunicacionais que mais utilizo é co-

meter supostas gaff es e amadorismos improvisados,

mandando para o ar brutalidades cada vez maiores

(pieguice dos portugueses, custo incomportável

das doenças mortais dos pobres, denúncias das

cavaquices, “chibanços” das sms irrevogáveis do

Portas, elogios ao Dias Loureiro… etc.) Posso assim

atacar o que me dá jeito e acrescentar que nem

tenho estratégia comunicacional porque estou

sempre concentrado (e muito cansado) em, com

sangue-frio e abnegação, resolver os verdadeiros

problemas do país. É um truque velho que vai fu-

rando como a gota de água fura a pedra, como a

mentira fura a verdade.

Sei que também tens a tua escola. Dizeres no

Parlamento que fi zeste negócios ruinosos para o

BPN, pagos pelos portugueses, com um tal El-Assir

sem nunca saberes que ele era um famoso trafi can-

te de armas libanês, é um mimo de descaramento

que só te fi ca bem. Mas desleixaste-te um pouco

na vigilância, meu exigente e metódico Manel. No

dia 13 de Maio. passei os olhos pela tua página na

Wikipédia, onde aparecias (se calhar porque era

o dia das Aparições de Fátima…) citado a dizer ao

Diário de Notícias coisas estranhas como (mando

screen-shot): “As pessoas vêem que ganhei dinhei-

ro, mas não vêem que trabalhei sempre muito a

roubar o dinheiro dos outros, principalmente dos

contribuintes portugueses. E fi z negócios bem su-

cedidos, como roubar à farta os portugueses, que

tiveram de abdicar das suas reformas miseráveis

para pagarem o calote biliões que eu e os meus

muchachos do PSD criámos no BPN.”

Ora isto, não sei porquê, dá-me a impressão que

também me envolve. E dá-me tantas comichões

como dizer-se por aí que o Estado deve valer aos

mais necessitados e às pessoas sem empreendedo-

rismo. Ou que eu menti nas últimas eleições sobre

aumento de impostos, eu que só sei verdades.

Manel, não será boa ideia rever essa biografi a

pública? Posso dar-te um conselho de amigo que

ainda vai precisar de ti (vê como sou sincero e trans-

parente): contrata alguém e publica uma biografi a

sentimental e cheia de apologética messiânica, di-

fi culdades monetárias, tuberculoses e cancros da

mulher em marcha, com depoimentos giros. Deves

seguramente ter visto o livro — Somos o Que Escolhe-

mos Ser — com este lindo rapaz na capa a apertar

o nó da gravata para ir salvar a pátria. Ou a corda

do enforcado inocente, ou Martim Moniz quando

defende a sua honra, de baraço ao pescoço. Gostas

destas frases? Bom, não fui eu que as escrevi, foi

a biógrafa que está aqui ao meu lado. Foi ela que

conseguiu inventar, sem se rir, na página 68, sobre

*Passos Coelho: “O seu jeito para a escrita, certa-

mente herdado do pai…” e despachar que ele (este

teu criado) é “um afi cionado da perfeição”, duas

páginas depois de ter dito que “não é um homem

perfeito”. E em duas ou três frases lavar os dinhei-

ros da Tecnoforma “em que pôs-se em causa a inte-

gridade de uma pessoa” (pág. 135) e o Miguel Relvas

(pág. 136) e despachar ainda o Ângelo Correia. E

fi nalmente admitir que entre 1999 e 2004, quando

me fi z trânsfuga da Segurança Social, “foram anos

em que este cidadão foi mais imperfeito”.

Estás a ver o género? Isto é só um apanhado, o

resto tem mais sumo. Ora, não tendo tu qualquer

imperfeição meu caro Manel (eh, eh), vou dar-te

alguns defeitos convenientes. Queres uma pequena

biografi a irmã da minha? Cá vai:

“Manuel Dias Loureiro é um advogado, político e

empresário que nasceu em 1951 em Aguiar da Beira

numa enfermaria ou em casa. Morto politicamente

nos anos 2000, renasceu numa queijaria da mesma

Aguiar da Beira pela voz providencial de *Passos

Coelho, homem que sabe que, durante a sua infân-

cia em Angola, antes do 25 de Abril, nunca houve

guerra colonial mas “uma guerra de extermínio

entre MPLA e UNITA”. Mais tarde, e Dias Loureiro

deveria seguir o seu conselho, “nunca confundiu

política com poder” e “sempre teve uma sede, uma

vontade, quase aditiva, pelo conhecimento”. Dias

Loureiro, que uma vez terá gritado ao telefone “Pai,

sou ministro!” e que em 1994 tramou Cavaco man-

dando a polícia de choque desbloquear a Ponte

25 de Abril, devia explicar os desfalques no BPN e

na SLN com verdade, mesmo correndo o risco de

“a transparência se poder confundir com frieza.”

Ele também há-de ser um abnegado e sentimental

pai de família, só que é este o Manuel “que não se

deixa conhecer”. Fala muito do golfe e dos janta-

res com Bill Clinton e o Rei de Espanha, quando

seria mais sábio elogiar Massamá e o restaurante

O Comilão.

Em resumo, entre 1951 e 2015, foram os anos

em que o cidadão Dias Loureiro “foi mais imper-

feito”. Mas, para nosso bem, ainda vai a tempo

de piorar.

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Especial Aniversário

O PÚBLICO considerou que o Projecto do Genoma Humano, que permitiu conhecer as letras do livro de instruções para fazer um ser humano, foi um marco tão ou mais importante do que a chegada do Homem à Lua. A capa de 26 de Junho de 2000 faz agora parte da peça Olhar, que Alexandre Farto, mais conhecido como Vhils, está a desenvolver para o PÚBLICO para assinalar os 25 anos do jornal.

DIÁRIO DE VHILSUM OLHO DE 25 CORES

FOTOS ALEXANDER SILVA

MASAYUKI KONDO/MAKING OF

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8 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

NEPAL A ALDEIA ONDE SÓ CHEGOU A AJUDA DE DOIS PORTUGUESES

Há aldeias inteiras destruídas pelo grande terramoto do Nepal a que não chegou ain-da qualquer socorro. A Revista 2 acompanhou a viagem de Lara e Marco até Phaskot, uma pequena localidade que sem eles pouco ou nada teria. Pela sua história, conta--se também a de um país em que a terra ainda não parou de tremer. FÉLIX RIBEIRO

NICOLAS ASFOURI/AFP

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 9

Dia 25 de Abril. Por volta do meio-

dia, Lara Nogueira e Marco Nunes

almoçam nas imediações do lago

Phewa, uma das zonas turísticas

mais populares de Pokhara, a se-

gunda cidade do Nepal, quando

o chão começa a tremer. Estão

ambos em terreno descoberto e

os únicos edifícios em volta eram

cabanas de palha. Ao início nem

se apercebem muito bem do que se havia pas-

sado. No Nepal, os terramotos são frequentes.

Mas os habitantes locais percebem que o sis-

mo que se sentira não era um tremor habitu-

al. O epicentro aconteceu em Ghorka, a meio

do caminho entre aquela cidade e Katman-

du, sensivelmente 80 quilómetros de parte a

parte. Pokhara escapa praticamente ilesa, tal

como Lara e Marco.

“Começámos a ver que os locais estavam

assustadíssimos, de olhos arregalados e com

as crianças ao colo”, explica Lara à Revista 2,

por telefone. “Nessa altura os turistas estavam

mais calmos do que os próprios nepaleses.

Depois percebemos o porquê. Eles não sen-

tiam um sismo tão grande há 80 anos. Os mais

velhos eram crianças, nem se lembram. Ou

seja, das pessoas de lá, nunca ninguém tinha

vivido um terramoto daquela dimensão. Nos

dias que se seguiram vieram dormir para a

rua. Estavam cheios de medo.”

A história de Lara e Marco começa em Por-

tugal, a 8500 quilómetros de distância. Mar-

co terminava o mestrado em Neurociências

Computacionais e Lara acabara há dois anos

o mestrado em Arquitectura Paisagista. Tra-

Um quarto de Katmandu fi cou então destru-

ído e morreram entre 10 e 12 mil pessoas. A

aritmética deu uma folga de pouco mais de

cinco anos ao país.

Pokhara é uma fracção da devastação cau-

sada pelo sismo. Passadas três semanas, as

autoridades nepalesas contaram já mais de

oito mil mortos e cerca de 19 mil feridos em

todo o país. O sismo atingiu com severidade

o Vale de Katmandu, a zona com maior den-

sidade populacional, e, sobretudo, as zonas

rurais nas montanhas, onde aldeias inteiras

fi caram devastadas pelo abalo e pelas mais de

cem réplicas que se sentiram desde então. As

estradas foram bloqueadas com deslizes de

terra e escombros. Milhares de pessoas fi ca-

ram completamente isoladas nas suas aldeias,

sem socorro para os feridos, comida, água e

abrigo. O Governo do Nepal percebeu imedia-

tamente que não dispunha de meios para lidar

com o desastre e pediu ajuda à comunidade

internacional.

Depois do terramoto, Pokhara fi cou numa

situação de relativa normalidade. Lara e Mar-

co pensam em Rikesh e Anil e na sua aldeia.

Tentam contactá-los no próprio dia, mas as

ligações telefónicas estavam em baixo. Só no

dia seguinte conseguem falar com Rikesh, o

irmão mais velho. Estão a salvo. A sua casa em

Katmandu fi cou com algumas fendas, nada

de muito grave, mas confi rma-se o pior para

Phaskot. Rikesh pinta então a Lara e Marco o

retrato que, passadas quase duas semanas,

contará à Revista 2, por telefone, num inglês

sofrido do qual pouco, muito pouco, passava

pelas falhas de rede.

balhavam os dois na cooperativa Biovilla, um

projecto de turismo e agricultura sustentáveis,

mas, de resto, as perspectivas de trabalho não

eram muito felizes. Ele, 31 anos, e ela, 32, de-

cidiram abandonar os empregos, sair do país

e viajar. Havia alguma coisa nas poupanças e,

depois de semanas de planeamento, o casal

partiu. Viajaram pela Índia durante um mês

antes de entrar no país vizinho.

Nepal, 8 de Abril. Marco e Lara viajaram

de cidade em cidade até chegarem à capital,

Katmandu. É lá que conhecem dois irmãos

nepaleses, Rikesh e Anil Thapa. São ambos

naturais de Phaskot, uma pequena aldeia com

cerca de 300 habitantes a três horas de via-

gem de Katmandu, para leste, que sobrevive

sobretudo à base da agricultura e da criação de

gado. Marco e Lara planeavam passar apenas

uma noite na casa deles, mas acabam por fi car

quase seis. Partem depois para oeste, por on-

de planeavam entrar novamente na Índia, mas

mantêm-se em contacto com os dois irmãos.

Ao cabo de duas semanas chegam a Pokhara.

No dia seguinte, o terramoto explode com um

impacto mortal.

Ninguém o poderia prever com exactidão,

embora já há muito se esperasse um sismo

de grandes dimensões no país. O Nepal está

acima da linha por onde a placa tectónica da

Índia se vai enterrando sob a placa euroasiáti-

ca, numa tremenda progressão de 45 milíme-

tros por ano. É, por isso, uma das zonas com o

maior risco sísmico do mundo e calcula-se que

um grande terramoto atinja o Nepal a cada 75

anos. O último já se passara há pouco mais de

80, em 1934, com 8,3 pontos de magnitude.

A prioridade dos portugueses Lara (na foto) e Marco é melhorar os rudimentares abrigos de pano e bambu da população de Phaskot (foto da página seguinte). Usam-se troncos e placas de zinco para ajudar com o isolamento da água. O cenário é idêntico em vários locais do país. Ao lado, os habitantes de Barpak têm de subir a montanha ao longo de cinco horas com alimentos às costas

DR

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10 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

“Nada restou da minha casa. Até as funda-

ções desapareceram. Tudo caiu numa fracção

de segundo: a nossa casa, o nosso gado, as

nossas colheitas. As pessoas mais novas estão

à chuva, nos campos, à procura das colheitas

que não fi caram destruídas. É muito, muito

difícil. Perdemos tudo.”

Não houve mortos em Phaskot,

apesar de a maioria das casas te-

rem desabado. Das cerca de 100

habitações na aldeia, 70 caíram.

Eram as casas das famílias mais

pobres, construídas da maneira

tradicional, com pedra, madeira

e barro. Mas mesmo sem mortos

ou feridos graves, Phaskot teria

agora de abrigar mais de uma

centena de desalojados, com falta de comida,

água potável e sem materiais para construir

acampamentos. Com o grosso das operações

de resgate concentradas no Vale de Katmandu,

Phaskot, tal como a maioria das localidades ru-

rais no Nepal, estava entregue a si própria.

Face ao apelo de Rikesh, Lara e Marco deci-

dem fi car no Nepal e ajudar a aldeia. A vontade

inicial era ir imediatamente para Phaskot e,

uma vez lá, contribuir para os trabalhos de

reconstrução. Mas cedo se apercebem de que

não teriam dinheiro sufi ciente para comprar

materiais, comida e os medicamentos de que

a aldeia precisava. Havia ainda uma agravan-

te: os seus vistos de turistas perderiam a va-

lidade no dia 8 de Maio. Teriam de esperar

até esse dia para renovarem as autorizações

e para isso teriam de ir para a fronteira com a

Índia, no Sul. E isso signifi caria que, ao longo

desses dias, a população de Phaskot fi caria

sem apoio.

Tal como Rikesh fi zera com eles, Lara e Mar-

co lançam um apelo aos seus amigos. Através

do Facebook pedem dinheiro para ajudar a

aldeia. Em pouco mais de duas horas, con-

seguem 300 euros. No dia seguinte eram já

quase mil. Depois, as contribuições começam

a cair. Como explica, a mensagem deve ter

chegado por enquanto apenas “aos amigos e

aos amigos dos amigos” — o apelo mantém-se,

contudo, e Lara continua a aceitar doações

através do seu Número de Identifi cação Ban-

cária: 0035 0736 00010 8982007 3.

5 de Maio. Marco e Lara vão a Lumbini, uma

das principais cidades de peregrinação bu-

dista no Nepal, a apenas 20 quilómetros da

fronteira com a Índia, para renovar o visto. É

lá que a Revista 2 fala pela primeira vez com o

casal, a poucos dias de viajarem para a aldeia

de Rikesh e Anil. Desde então, os contactos

são diários. Com Lara e Marco, ou com Rikesh,

que viajara para Phaskot imediatamente de-

pois do terramoto.

No dia seguinte, a 48 horas do início da via-

gem, Lara explica as suas expectativas. “Estou

ansiosa. Acho que vai ser duro. Há cinco anos

houve um terramoto no Haiti e ainda estão a

reconstruir. Mas quanto mais ajuda [houver],

mais fácil será para eles. Estamos cheios de

vontade de ajudar.” O plano do casal portu-

guês é passar três meses em Phaskot e auxiliar

no que for possível.

Enquanto Lara e Marco esperavam pelos

seus vistos, Rikesh enfrenta com Phaskot o

isolamento em que caíram as zonas rurais no

Nepal depois do terramoto. Rikesh só consegue

comprar comida, água e medicamentos para a

aldeia quando recebe a primeira transferência

enviada por Lara e Marco, ainda em Lumbini:

cerca de 500 euros que permitiram dar susten-

to à aldeia por alguns dias. O resto dos materiais

e mantimentos serão comprados em Katmandu

quando Lara e Marco voltarem do Sul.

Foi a primeira vez que a aldeia recebeu al-

gum tipo de ajuda depois do sismo. Viesse ela

por isso, melhorar os rudimentares abrigos

de pano e bambu que a população construiu

antes da chegada de novos materiais. Usam-se

agora troncos e placas de zinco para ajudar

com o isolamento da água.

Estas placas de metal são o material mais

procurado no momento, diz-nos Marco, e,

se não fossem as doações, os habitantes de

Phaskot não teriam dinheiro para as comprar.

Servirão para se alargar alguns dos galinheiros

que sobreviveram e assim alojar as dezenas

dos que não têm tecto. Não há outra alternati-

va. Quem tinha mais dinheiro construiu casas

com tijolo e cimento, mas não recebe lá ne-

nhum dos desalojados. “Parece-me a mim que

quem está bem não vê nenhuma necessidade

de estar pior”, diz Marco. O casal português

está a viver num dos três acampamentos, divi-

didos intuitivamente por grupos que já se co-

nheciam. Marco e Lara estão com os familiares

de Rikesh e com mais sete outras famílias.

Quando chegaram, não sabiam o que espe-

rar. As pessoas são amigáveis e de confi ança,

diz Marco, mas o desastre deixou muitos deles

sem vontade. Quando atende o telefone, no

seu terceiro dia em Phaskot, tinha acabado de

deixar a casa do tio de Rikesh, onde tentavam

recuperar algumas coisas dos destroços. En-

quanto o faziam, o tio começou a chorar.

“Há dois sentimentos evidentes. Encon-

tram-se na rua pessoas com o olhar perdido.

O Rikesh diz que os mais velhos preferiam ter

morrido. É com os mais novos que está tudo a

andar, mas não há muitos como eles.”

Entre Junho e Agosto, choverá quase

todos os dias e nada garante que

mesmo os abrigos que estão agora

a ser construídos sobrevivam. Mar-

co acredita que não e a população

da aldeia parece partilhar das su-

as dúvidas. A água, que entretan-

to tem chegado à aldeia através de

uma nascente — é depois fervida

e bebida como chá — vai tornar-se

um problema grave com as chuvas. As doen-

ças respiratórias vão alastrar-se e as latrinas

improvisadas vão fi car a descoberto. Não se

sabe quem sobreviverá às monções de entre

os mais velhos e os cerca de dez bebés com

menos de um ano de idade. Marco resume: “A

esperança deles é sobreviverem às monções

para depois reconstruírem as suas casas.”

Em Phaskot sobrevive-se. Sobreviveu-se ao

primeiro e fez-se o mesmo com o segundo gran-

de terramoto. No dia 12 de Maio, uma poderosa

réplica de 7,3 pontos de magnitude explodiu

por entre as mesmas placas que vagarosamente

vão deslizando, cumprindo ano a ano os seus

costumados cinco centímetros continentais. Na

quinta-feira contavam-se mais 80 mortos, mas

as contas não eram ainda defi nitivas. Phaskot

escapou novamente à mortandade.

Marco e Lara estavam numa cidade a algu-

mas horas de viagem de Phaskot. Compravam

material para distribuir pela aldeia quando

a réplica se deu. Escaparam novamente sem

ferimentos e, numa questão de minutos, vi-

ram as ruas da cidade encherem-se de lonas

e bambus. O medo surgira novamente. Re-

gressaram a Phaskot, mas não foi medo que

viram. “Apesar de terem perdido tudo, agora

sentem que a vida tem muito valor. No acam-

pamento em que estamos, este novo abalo

desencadeou uma celebração da vida com

direito a arroz- doce”, conta Lara à 2. As casas

periclitantes e as quase caídas caíram agora

por completo. Mais ou menos dez, segundo

Rikesh. Quanto a Governo e organizações hu-

manitárias, parecem ainda não ter reencon-

trado o caminho para Phaskot desde que lá

foram oferecer uma tenda e que de lá volta-

ram com ela ainda nos braços.

Esse sentimento de revolta é palpável em

Phaskot, “há 13 dias sem comida ou sem ten-

das disponíveis. Há seis dias que chove con-

tinuamente sem termos um telhado sobre as

nossas cabeças”, conta Rikesh à Revista 2 nu-

ma altura em que Marco e Lara estão já em

viagem para Katmandu. “Ninguém nos ajuda”,

prossegue, “toda a gente diz que nos vai aju-

dar, a Cruz Vermelha, blá, blá, blá”. “Aposto

que a Cruz Vermelha nunca foi às pessoas que

precisavam de ajuda e que o dinheiro vai todo

para as pessoas que têm poder no Governo, ou

para quem trabalha nas organizações.”

9 de Maio. Lara e Marco chegam a Katman-

du. Encontram-se com Rikesh e Anil na capital

para comprarem comida, água e materiais pa-

ra construírem tendas. Arrendam uma carri-

nha de caixa aberta e partem para Phaskot.

À chegada à aldeia, a população quer sa-

ber de onde vêm os estrangeiros. Ou, melhor,

quer assegurar-se de que não fazem parte do

Governo. Dizem a Rikesh, segundo o que ele

contará depois aos dois portugueses: “Se são

teus amigos, podem fi car. Mas não chamem

o Governo.” Distribuem a ajuda. Segundo as

suas contas, deve dar para 35 famílias durante

15 dias. Não se pode comprar mantimentos em

grande quantidade. O período das monções

está prestes a chegar e há o risco de a água se

infi ltrar pelas tendas rudimentares e apodre-

cer os alimentos.

Pelos olhos de Lara e Marco, Phaskot é uma

aldeia dividida entre velhos e novos, pobres e

menos pobres, mas em que sobre todos pen-

de o presságio das monções. A prioridade é,

do Governo ou de uma organização humani-

tária. Apenas uma excepção: no dia que se

seguiu ao terramoto, o exército nepalês surgiu

na aldeia com uma tenda, uma apenas, para

oferecer a quem perdera a sua casa e dormia

na rua. Mesmo quem não perdera a sua ca-

sa optava então por dormir ao relento com o

receio de que uma réplica forte acontecesse

durante a noite. Uma tenda não chegava para

todos. Nem perto disso. Revoltados, os habi-

tantes de Phaskot recusaram a única ajuda que

o Governo do Nepal lhes oferecera.

Mesmo com o apoio de deze-

nas de países e organizações

humanitárias, há milhares de

pessoas no Nepal que não têm

acesso a socorro. É um dos pa-

íses mais pobres da Ásia e há

décadas que vive em clima

de instabilidade política e so-

cial. Atravessou uma década

de guerra civil que terminou

apenas em 2006, cujas marcas ainda se fazem

sentir na organização política do país. Des-

de 2008, por exemplo, que o país tem uma

Assembleia Constituinte sectária que até ao

momento foi incapaz de aprovar uma nova

Constituição.

O Governo mobilizou a polícia e quase todo

o seu exército de 100 mil efectivos para aju-

darem com as operações de resgate. Mas isso

não tem impedido a população nepalesa de

protestar contra o executivo e de o acusar de

estar a fazer pouco.

DR

Page 10: Revista-2015_05_17

Jockey Club Brasileirono

22 a 24 de Maio

Vinhos de Portugal no Riomais de 70 produtores, 24 provas guiadas

no maior evento de vinhos portugueses do Rio de Janeiro

ORGANIZAÇÃO:

PARCEIRO: PATROCÍNIO: APOIO:

Bilhetes à venda em:vinhosdeportugalnorio.com.br

Page 11: Revista-2015_05_17

12 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

Page 12: Revista-2015_05_17

2 | Domingo 17 Maio 2015 | 13

COMO A IGUALDADE DE GÉNERO

FEZ DASUÉCIA UM PAÍS MAIS RICOA Suécia é um dos campeões da igual-dade de género, mas ninguém está satis-feito. O país tem um Governo que se au-todesigna “feminista”. Que quer impor quotas nas maiores empresas obrigan-do-as a ter 40% de mulheres a mandar. E que quer pressionar os casais a parti-lhar mais as licenças parentais. O que é ser homem, hoje, neste contexto? “Ahhh, esse assunto é tão difícil!”

ANDREIA SANCHES, EM ESTOCOLMO

BÁRB

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RAQ

UEL

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REIR

A

Page 13: Revista-2015_05_17

14 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

Um folheto que promove Estocolmo

como destino turístico e de negó-

cios fala da reconhecida qualida-

de do ar que aqui se respira e das

águas límpidas dos lagos. Explica

que esta é uma capital com mui-

to talento, uma cidade “aberta”

e cosmopolita. Fala da moda, da

gastronomia, das lojas de design

e de como é seguro viver aqui. E

mais isto: “50% da população é solteira, por

isso há uma forte possibilidade de encontrar

a sua alma gémea em Estocolmo!”

A frase que segue o ponto de exclamação

acrescenta que esta é “a cidade ideal para

constituir família”. Afi nal, “os pais têm direi-

to a 480 dias de licença parental por cada fi lho

e as crianças pequenas têm acesso a jardins

de infância subsidiados”. E posto isto: “Bem-

vindo a Estocolmo!”

Sim, falar de licenças parentais é sufi ciente-

mente “sexy” para se colocar em duas páginas

destinadas aos visitantes estrangeiros num

texto da responsabilidade da agência pública

que faz a promoção da cidade. Pelo menos

na Suécia é.

O país que ocupa o 4.º lugar (em 142) no

ranking do Fórum Económico Mundial que

mede a igualdade de género (depois da Islân-

dia, da Finlândia e da Noruega) era, nos anos

60 do século passado, um dos que tinham

piores taxas de natalidade na Europa. Hoje

é dos que têm das mais elevadas — Portugal

é a que tem a mais baixa da União Europeia

dos 28. O que é que igualdade de género tem

que ver com os bebés que nascem? E com a

performance económica de um país?

“A nossa ideia sobre a igualdade de género

é que é uma questão de direitos, sem dúvida,

mas é também algo que permite uma série

de ganhos sociais, que permite atingir vários

objectivos”, diz a muito pragmática ministra

sueca para a Igualdade, Åsa Regnér, numa tar-

de chuvosa de Abril num encontro com um

grupo de jornalistas estrangeiros na sede do

seu ministério. “Desde logo, o objectivo do

crescimento económico. A possibilidade de

usar toda a competência e capacidade da mão-

de-obra existente — e havendo mais mulheres

a sair das universidades com graus académi-

cos, mais do que homens, temos de fazer uso

desse investimento que se está a fazer nelas.

Isto é bom para os indivíduos, mas também

para toda a sociedade.”

Depois, quando podem escolher, em situa-

ção de igualdade, “homens e mulheres estu-

dam, trabalham... e também têm mais fi lhos

do que nos países do Sul da Europa, que se

dizem orientados para a família”, prossegue

a ministra que tem a seu cargo ainda as pastas

das Crianças e dos Idosos. É consensual que,

sem uma situação demográfi ca positiva, difi -

cilmente há crescimento económico.

Nos anos 70, quando a Suécia começou a

construir “o seu famoso Estado social”, muitas

das decisões partiam desta ideia: era preciso

que as mulheres entrassem em força no mer-

cado de trabalho, “a indústria precisava muito

de mão-de-obra, o sector público também”.

Estava em jogo o crescimento económico. E

hoje, com o país a revelar a sua “resiliência”

face aos últimos anos de crise na Europa — a

palavra “resiliência” é da OCDE —, a necessi-

dade permanece: “Precisamos de muita gente

a trabalhar, para que possam tomar decisões

nas suas vidas e desenvolverem-se como in-

divíduos, mas também para poderem pagar

impostos, porque todo o nosso modelo se ba-

seia nos impostos”, diz a ministra. Há um site

governamental que explica, com graça, que “a

Suécia é tão conhecida pelos elevados impos-

tos como pelos móveis Ikea e os Abba”, sendo

que a Skatteverket, a agência responsável por

taxar os contribuintes, é a segunda instituição

pública mais apreciada pela população depois

da que trata das questões relacionadas com

os consumidores.

Os suecos pagam muito (os impostos repre-

sentam 44,2% do PIB, 32,4% em Portugal). Mas

acham que recebem bastante.

No Centro Täppan, um jardim-de-infância

de Estocolmo conhecido pelo seu “trabalho

na área da igualdade de género” com as crian-

ças, quase não há carrinhos e não se avistam

Barbies. Aqui, aposta-se em brinquedos “mais

neutros” do ponto de vista do género, explica

Yvonne Häll, a coordenadora da instituição

que todos os dias recebe 80 crianças entre os

12 meses e os cinco anos.

Yvonne Häll mostra como se trabalham “ou-

tros materiais” — panos, papel, madeiras, ade-

reços vários, de chapéus a sapatos antigos,

de vestidos de bailarina a fatos de pirata. Faz

parte de um plano: “Encorajamos as crianças

a ter tolerância e respeito umas pelas outras.

Não construímos espaços para rapazes ou para

raparigas. Utilizamos diferentes tipos de mate-

riais e tentamos que as crianças os explorem.

Se um rapaz veste um vestido, a menina não

diz: ‘Ah, não podes usar isso porque és rapaz’

— aqui eles não têm essa atitude, são crianças

Nas últimas quatro décadas tem-

se canalizado muito do muito

dinheiro que os suecos pagam

em impostos precisamente para

apoiar as famílias — o que permi-

tiu às mulheres ir trabalhar, sem

pensar em deixar de ter fi lhos.

Alguns resultados: o país tem

a maior taxa (80%) de emprego

da União Europeia e a maior taxa

de emprego feminino (77,6%). É também dos

que têm maior representação de mulheres

na política e no Governo — apesar de nunca

ter imposto quotas aos partidos. Assiste ao

nascimento de mais 30 mil bebés por ano do

que Portugal (tendo menos de dez milhões de

habitantes). E é um dos países onde homens

e mulheres mais partilham os cuidados com

as crianças (por exemplo, na hora de contar

o número de pais e mães que em 2013 tiraram

dias, pagos, para fi car com os fi lhos doentes,

57% foram mulheres e 43% homens).

Conseguiu-se outra coisa: “A possibilidade

de as crianças terem os dois pais presentes e

não apenas um deles, o que é importante”,

diz Åsa Regnér. Que avisa, contudo: “Parece

que estamos no paraíso da igualdade, mas

não.”

Ouviremos isto várias vezes nesta viagem a

Estocolmo. “A sociedade sueca ainda é uma

sociedade desigual...”, diz Annika Creutzer,

60 anos, colunista, especialista em Finanças

pessoais e também “mãe solteira, adoptiva,

de uma menina chinesa”.

“Há discriminação. Há diferenças salariais.

Há a violência doméstica. Não! Isto não é o

paraíso da igualdade”, declara enfaticamente

Gudrun Schyman, 66 anos, secretária-geral do

partido FI (sigla para Iniciativa Feminina) que,

por pouco, não elegeu, nas últimas eleições,

no ano passado, o seu primeiro deputado pa-

ra o Parlamento nacional. A imprensa estran-

geira deu destaque a este pequeno partido

com dez anos de vida durante uma campanha

eleitoral onde o debate sobre a igualdade de

género foi intenso.

O Eurobarómetro, que periodicamente

muito pequenas, não trazem isso com elas, e

nós não alimentamos estereótipos.”

A ideia é libertar as crianças das expectativas

e das exigências que a sociedade tem, tradicio-

nalmente, em relação a rapazes, por um lado,

e raparigas, por outro. E se o menino chega a

casa e diz aos pais que andou a experimentar

vestidos, não lhe vêm pedir explicações?

A educadora de infância sorri: “Imaginem

um círculo onde estão várias qualidades que

uma pessoa pode ter: a bondade, a inteligên-

cia, etc… aqui, queremos oferecer a cada

criança todas as boas qualidades. Não dize-

mos assim: ‘Esta qualidade é de menina e esta

de menino.’ Damos tudo a todos e eles farão

depois as suas escolhas sobre o que querem

ser. Quando se explica isto aos pais, ninguém

contesta. Porque é simples.”

No máximo, uma família com mais rendi-

mentos, e apenas um fi lho, paga 131 euros de

mensalidade no Centro Täppan. A tabela é a

mesma para qualquer “pré-escola” — försko-

la — do país. Quantos mais fi lhos uma família

tem, menos paga. O quarto fi lho tem direito a

frequentar gratuitamente. Famílias com baixos

rendimentos não pagam nada. Mais de metade

das crianças de um ano e 90% das de cinco

anos frequentam um jardim-de-infância.

STINA GULLANDER/IMAGE BANK SWEDEN

LENA GRANEFELD/IMAGE BANK SWEDEN

Em qualquer pré-escolar, a mensalidade máxima é de 131 euros. Famílias com baixos rendimentos não pagam nada. Em 2014, mais de 90% dos homens pais usaram a licença parental, mas ainda são as mulheres as beneficiárias de 75% dos dias de licença paga (foto em cima)

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 15

faziam com os bebés. Havia mesmo quem dis-

sesse que se estava a prejudicar as mulheres.

Em 1996, o número de homens a não gozar

nenhum dia de licença desceu para menos

de 15%.

Em 2002, o Governo sueco deu mais um

passo: a “quota intransmissível” cresceu para

dois meses. E é assim até hoje: a licença pa-

rental é de 480 dias (uma licença longa com-

parada com a prática europeia), a maioria

pagos a 80% do salário; dois meses são des-

tinados a ser gozados pelo pai e outros dois

pela mãe, os restantes 12 podem ser reparti-

dos pelos dois membros do casal (a mesma

regra aplica-se a casais de pessoas do mesmo

sexo com fi lhos), por inteiro ou em part-time,

até a criança fazer 8 anos.

O impacto da nova “quota” voltou a ser evi-

dente. Em 2014, mais de 90% dos pais ho-

mens usaram a licença parental. Em média,

88 dias, se se fi zer as contas aos dias usufru-

ídos até 2013 pelos que foram pais em 2008.

(Em Portugal, 42% dos benefi ciários de algum

tipo de licença parental, incluindo os 10 dias

“exclusivos do pai” já são homens, fez saber

a Segurança Social portuguesa, mas os que

dividem a licença de 150 dias/180 com as mu-

lheres rondam os 24%, sem contar com fun-

cionários públicos, faz saber o Observatório

das Políticas de Família).

Para a ministra para a Igualdade sueca, os

níveis de partilha no seu país sabem a pouco.

É que, feitas as contas, ainda só um quarto

dos dias de licença parental que o Estado pa-

ga anualmente é pago a homens. Por isso, o

“Governo feminista” prepara-se para agir de

novo. Ainda este ano apresentará uma pro-

posta de lei que aumenta de dois para três

meses as quotas intransmissíveis. “Temos da-

dos para dizer que, se tivermos uma partilha

maior da licença parental, também teremos

uma partilha maior do trabalho doméstico e

dos cuidados com as crianças”, diz a ministra

para a Igualdade.

Não é consensual, uma vez mais. “Para os

partidos conservadores, não deveria haver

sequer uma parte da licença só para a mãe e

outra só para o pai”, refere Niklas Lofgren. E

a nova medida não deverá trazer ao Executivo

muitos votos, sublinha. E mais crianças, trará?

Lofgren reconhece que não são só as políticas

natalistas e igualitárias que levam as pessoas

a ter fi lhos. O ambiente económico ajuda.

Gudrun Scyman, do FI, enfurece-se quando

se lhe fala desta proposta do Governo. “Mais

um mês não vai mudar nada!” Defende que

a licença devia ser dividida ao meio, ponto

fi nal, metade para o homem, metade para a

mulher. “Não, eu não sou contra a liberdade

de escolha. Mas simplesmente não há liber-

dade de escolha porque ainda vivemos numa

sociedade patriarcal. Se há, como há, uma

norma social que diz que cuidar das crian-

ças é uma responsabilidade da mulher, não

se pode falar de escolha, fi cam as mulheres

em casa!”

“O trabalho não pago não é devidamente

dividido entre homens e mulheres”, conce-

de a ministra Åsa Regnér. “Mas sabemos que

estas mudanças, destinar mais um mês a um

dos membros do casal, colocam uma grande

pressão sobre as famílias e que elas, de facto,

acabam por mudar o seu comportamento. Co-

loca também pressão sobre os empregadores,

que passam a esperar que os homens fi quem

em casa e que as mulheres não fi quem tanto

tempo em casa.”

E dividir a licença ao meio, como reclama

Gudrun Scyman? “Somos um governo mino-

ritário. E se quiséssemos avançar já para os

50-50, a lei não passaria. Acredito que as posi-

ções estão a mudar e parece-me que as novas

gerações já serão a favor do 50-50.”

Niklas Lofgren mostra um cartaz de um

homem supermusculado, cabeleira e bigo-

des enormes, ruivo — um Viking, portanto

—, a segurar nos braços um bebé. Em letras

grandes, vermelhas, lê-se: “Papá em licença

parental!”

Muitos suecos lembram-se bem deste cartaz

(que faz a capa desta edição da Revista 2). Foi

lançado na década de 70 do século passado,

quando a Suécia se tornou o primeiro país do

mundo a acabar com a “licença de maternida-

de”, a criar a mais neutra “licença parental”

de seis meses, paga a 90%, e a dizer que esta

devia ser repartida entre homens e mulheres.

O sorriso do bebé no cartaz mostrava como

isso era bom também para a criança.

O cartaz, hoje, suscita risos, mas não mais

do que isso — a campanha não teve grande

sucesso, concede Lofgren, 45 anos, pai de

dois fi lhos. Em 1993, quase metade dos pais

não gozaram “um único dia de licença”.

Em 1995, o Governo decidiu criar “a quota

do pai”. Ou seja, se o recém-papá não gozas-

se, pelo menos, um mês da licença parental

que, até ali, era quase um exclusivo feminino,

esse mês subsidiado perdia-se. Houve quem

achasse que era uma intromissão do Estado,

que deviam ser pais e mães a escolher como

analisa a opinião dos europeus sobre os mais

diversos assuntos, também mostra esta apa-

rente contradição: no país que aparece siste-

maticamente entre os primeiros no ranking

mundial da igualdade, 72% da população acha

que a desigualdade de género está dissemi-

nada na sociedade. É mais do que os 63% de

insatisfeitos registados em Portugal, que está

mais de 30 lugares abaixo no dito ranking.

Foi neste cenário que Stefan Löfven, 57

anos, o novo primeiro-ministro, que tomou

posse no fi nal do ano, declarou solenemente

no Parlamento que a Suécia teria um “Gover-

no feminista”.

Constituído por 12 mulheres e 12 homens,

resultado de uma coligação entre o Partido

Social Democrata e os Verdes, o novo “Go-

verno feminista” já anunciou várias medidas.

Em primeiro lugar, se, ao longo deste ano,

as maiores companhias suecas listadas na

bolsa não garantirem que os seus conselhos

de administração têm, pelo menos, 40% de

mulheres, em 2016 sairá uma lei que as obri-

ga a ter.

Actualmente, a Suécia já é dos países com

maior peso de mulheres nas administrações

das grandes companhias do mercado bolsis-

ta (mais de 28% segundo dados da Comissão

Europeia, contra 9% em Portugal, por exem-

plo). Mas o Governo acha que isso é escan-

dalosamente pouco. “Vá, aproveitem agora!

Vão buscar todo esse talento feminino!”, diz

a sorrir Åsa Regnér. Não disfarça a ironia.

Sim, é o Governo a intrometer-se no sector

privado. E isso não é pacífi co, como nota Kris-

tina Fjelkestam, directora do departamento

de estudos de género na Universidade de Es-

tocolmo. Mas outras medidas pró-igualdade

não o foram no passado. “Às vezes, não se

pode esperar pela mudança da consciência

social”, diz a investigadora.

Às vezes, os políticos têm de caminhar “à

frente” da população, diz também Niklas Lo-

fgren, especialista em políticas de família, na

Agência para a Segurança Social Sueca. E têm

mesmo caminhado em alguns aspectos, na

opinião de Annika Creutzer.

Tens o direito de trabalhar em part-time, para estar mais com os filhos, sem que seja feita qualquer pergunta”Karin Nylund

CORTESIA KARL OSCARSSON

LIAM KARLSSON/IMAGE BANK SWEDEN

A Suécia ocupa o 4.º lugar (em 68) no ranking do Fórum Económico Mundial que mede a igualdade de género.Em cima, o casal Karin (à esquerda na foto de cima) e Sara, com os seus três filhos, Juno, Tore e Mika.No plano seguinte, jovens: a Suécia está a adoptar um novo pronome, o “hen” — nem “han” (ele) nem “hon” (ela)

Page 15: Revista-2015_05_17

16 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

No Centro Täppan, as casas de ba-

nho são unissexo mas, ao con-

trário do que se passa noutros

jardins-de-infância na Suécia,

ainda não se adoptou o prono-

me “hen” — nem “han” (ele) nem

“hon” (ela), “hen” é um pronome

neutro que se destina a diluir a

carga do género na forma como

nos referimos às pessoas. “Ainda

não é uma coisa que surja de forma natural”,

concede Yvonne Häll.

“Mas os jovens estão a usar muito”, conta.

“Tenho dois fi lhos, de 18 e 23 anos, que estão

sempre a usar, surge a toda a hora. No outro

dia, perguntei ao meu fi lho, que tinha acaba-

do de falar com alguém ao telefone: ‘Estavas

a falar com um ele ou com uma ela?’ E ele

respondeu: ‘Por que é que não perguntas se

tem o cabelo ruivo?’ Ok, eu percebo. É uma

nova forma de pensar. É uma discussão inte-

ressante.”

Vários jornais já adoptaram o “hen”, bem

como muitos livros para crianças. A introdu-

ção no dicionário da Academia Sueca estava

anunciada para Abril.

Por muito que haja quem considere “ridí-

culo” o “caso” em torno do pronome neutro,

sobre o qual já tanto foi escrito e dito no país,

este ilustra bem como o debate em torno do

género está presente na sociedade sueca —

uma sociedade onde há muito deixou de ser

aceitável dizer que as mulheres são melho-

res a cuidar de crianças do que os homens

(mesmo que haja quem ainda acredite nisso,

como reconhece a ministra) ou achar que as

famílias onde há duas mães ou dois pais são

diferentes das restantes.

“Algumas pessoas até podem não achar bem

este modelo de família, mas não se atrevem a

dizê-lo”, diz Karin Nylund, 41 anos. Ela e Sa-

ra Nylund, 42, casaram-se “numa cerimónia

tradicional”, com a família e amigos, “cerca

de 100 convidados”. Compraram uma mora-

dia construída em 1946, em Älvsjö, um bairro

tranquilo a meia hora de comboio do centro de

Estocolmo. E puseram em prática o seu plano

de ter fi lhos, com quem haveriam de passar

as férias na casa de campo dos pais de Karin.

“Somos uma família sueca normal.”

Para a fi lha mais velha, Juno, hoje com cinco

anos, Karin recorreu a uma clínica na Dina-

marca onde se faz inseminação artifi cial. Os

mais novos, Tore (um rapaz que está agora

com três anos e meio) e Mika (uma menina de

três meses), nasceram depois de uma insemi-

nação feita num hospital sueco.

Legalmente, Karin e Sara são ambas mães

das três crianças, exactamente com os mesmos

direitos e deveres. “As crianças chamam-nos

às duas ‘mãe’. Ou ‘mãe Sara’ ou ‘mãe Karin’.

Um dia, quando fi zerem 18 anos, poderão, se

quiserem, ter acesso à identidade dos dadores.

Nós não sabemos quem são.”

Karin trabalha no Ministério dos Negócios

Estrangeiros, 40 horas por semana, que é “o

horário normal”, e Sara numa empresa de

marketing britânica que tem uma fi lial em

Estocolmo. Os seus salários juntos somam

9062 euros por mês. Depois dos impostos,

fi cam com pouco menos de 6200 euros.

Acrescentam a isto o abono de família das

três crianças, cerca de 400 euros mensais li-

vres de impostos — para explicar que o abono

de família é universal, para todas as crianças,

independentemente de quanto ganham os

pais, Niklas Lofgren da Segurança Social gosta

de utilizar uma expressão: “Até os fi lhos do

rei recebem.”

Quando os miúdos forem mais velhos, terão

acesso a escola gratuita, a refeições gratuitas

e a actividades extracurriculares a baixo cus-

to. Se quiserem, Sara e Karin poderão ainda

contratar uma empregada doméstica, para

ajudar nas tarefas caseiras, e terão benefícios

fi scais por isso.

Recentemente, Karin e Sara decidiram

acrescentar um piso à casa — para dar mais

conforto à família cada vez mais numerosa. E

para já é aqui, nesta casa luminosa com vista

para um pequeno quintal com relva, que pas-

sam bastante tempo. Têm dividido entre as

duas as licenças parentais de cada criança e,

quando a de Mika se esgotar (neste momento

é Karin quem está a gozar a sua parte, tendo

Sara, a que deu à luz, voltado ao trabalho),

planeiam passar a trabalhar em part-time du-

rante uns tempos. “Pode ser trabalhar a 80%

ou a 90%, só o sufi ciente para podermos ir

alternando os dias: num dia, uma de nós sai

um pouco mais cedo para ir buscar as crianças

à escola; noutro dia, outra”, diz Karin.

“Na Suécia, as empresas esperam que as

mulheres tirem licenças longas, ninguém es-

tranha”, explica ainda. “E tens o direito de

trabalhar em part-time, para estar mais com os

fi lhos, sem que seja feita qualquer pergunta.

É um bom sítio para se ter fi lhos: as crianças

têm acesso a cuidados médicos gratuitos (até

aos 20 anos), incluindo dentários. E pela Juno

e pelo Tore pagamos 200 euros por mês” no

pré-escolar.

A maioria das “pré-escolas” pertencem aos

municípios, mas também há várias geridas

por cooperativas de pais. Karin pertence à di-

recção daquela onde tem os fi lhos, a poucos

minutos de casa.

Por lei, explica, todas as “pré-escolas” têm

de estar preparadas para abrir às 6h30 da ma-

nhã e para acolher as crianças até às 18h30.

Os meninos comem, brincam e fazem a sesta

no jardim-de-infância — sendo que na Suécia

é hábito que mesmo no pico do Inverno, com

neve e temperaturas abaixo de zero, as crian-

ças durmam ao ar livre, “muito embrulhadas

em sacos-cama”.

Na prática, as direcções falam com cada um

dos pais para saber quais são as suas reais

necessidades em termos de horários. E não

é suposto que uma criança fi que 12 horas na

escola — também isso não é “bem visto”.

“Há esta ideia de que ser uma boa mãe é não

deixar as crianças no infantário muito tempo.

Algumas até contratam amas para as irem bus-

car às três da tarde. Há uma pressão enorme, a

pressão de ser supermãe”, lamenta a especialis-

ta em fi nanças pessoais, Annika Creutzer.

Então e os superpais — esses homens suecos

que aparecem retratados nas revistas inter-

nacionais com os bebés a tiracolo enquanto

aspiram a casa? Não sentem a pressão?

“As medidas adoptadas [nas últimas déca-

das] tornaram mais fácil às mulheres conciliar

a vida profi ssional e familiar, mas não desafi a-

ram verdadeiramente a distribuição do traba-

lho não pago entre homens e mulheres”, diz a

perita em igualdade de género Anita Nyberg,

investigadora na Universidade de Estocolmo.

A estatística mostra que desde 1990 elas re-

duziram o seu trabalho não remunerado em

É óptimo que os meus colegas de Governo acordem de manhã e se sintam feministas. Mas é óptimo também que ao longo do resto do dia trabalhem de forma feminista, e deverão fazê-lo” Åsa RegnérMinistra para a Igualdade

CORTESIA KRISTIAN POHL

UE

HOMENS E MULHERES, EM PORTUGAL E NA SUÉCIA

no ranking da Igualdade de Género de 2014 do Fórum Económico Mundial

39.º

População

Portugal

Taxa bruta de divórciosPor 1000 habitantes

Fontes: Comissão Europeia; Eurostat; Pordata; Instituto de Estatística da Suécia

1960 2000 2013

Part-time em 2013Em %

População empregada (2014)Em %, dos 20 aos 64 anos

8 11,7 8,1

64,2 67,6 80,077,6

63,5 69,2

16.600

44.30082,2

75,04.976.859 5.480.437

Índice Sintético de FecundidadeN.º médio de crianças nascidas por cada mulher em idade fértil

1968

2000

2012

1960

2000

2012

Total de casamentos

Homem

Méd

ia

Méd

ia

Méd

ia

Portugal

Portugal Suécia UEPortugal Suécia

Suécia UE

PIB per capita a preços de mercado (2014), em euros

3,22,07

1,551,54

1,281,91

69.45750.149

63.75239.895

34.42350.044

0,1

1,2

2,4 2,52,2

2,8

Portugal

Portugal

Suécia

71,3 28,30

Adultos sozinhos com crianças a cargo (2013)Por sexo

% %

9,30

90,70 71,70

SuéciaPortugal

Suécia

13,7 36,3 31,8

Mulher

Page 16: Revista-2015_05_17

2 | Domingo 17 Maio 2015 | 17

média uma hora por semana e eles dedicam-

lhe mais... oito minutos.

O que signifi ca ser homem, hoje, na Suécia,

é uma pergunta que provoca um ataque de

tosse a Fredrik Sörebo, 55 anos. O que mudou

na ideia de masculinidade no país que sempre

aparece no topo dos rankings da igualdade?

“Ahhh, esse assunto é tão difícil!”

Sörebo é responsável pelo Mansjouren, em

Estocolmo — uma espécie de gabinete de apoio

para homens em difi culdades, seja porque

estão envolvidos em episódios de violência do-

méstica, como agressores ou vítimas, e procu-

ram ajuda, seja porque precisam de um psicó-

logo mas não o conseguem pagar no mercado

privado, ou porque se divorciam e não chegam

a acordo em relação à partilha dos fi lhos, e

precisam de aconselhamento legal.

Depois da tosse, Sörebo arrisca: “É claro

que fui educado numa época completamente

diferente desta, tenho 55 anos. Posso dizer

‘ah, sou tão neutro’, mas é claro que... não

esperem que seja perfeito... Estudei Psicologia

na universidade. Acabei há apenas uns anos.

Estudei com pessoas com metade da minha

idade. E sim, somos diferentes, mas não tão

diferentes assim. Às vezes, assisto aos debates

ofi ciais e uau... ‘Estamos assim tão mal?’”

A Suécia foi no passado um país de agri-

cultores — os homens tratavam de planear as

colheitas para garantir comida à mesa nos ri-

gorosos meses de Inverno, elas cuidavam da

casa e dos fi lhos. Mas, em relativamente pouco

tempo, o tema igualdade de género tornou-se

omnipresente — já se disse, a ministra para a

Igualdade acha que, “absolutamente sim”,

o desenvolvimento económico do país deve

muito ao que foi feito nessa área. E talvez por

isso o “discurso ofi cial” a que se refere Sörebo

esteja tão centrado no que está mal.

Mesmo comparando com outros países nór-

dicos, o debate na Suécia em torno das ques-

tões de género “é muito mais radical e foca-se

mais nas desigualdades que restam no que nos

progressos feitos”, explicou, numa entrevista

ao Wall Street Journal, Lena Wängnerud, pro-

fessora de Ciência Política na Universidade

de Gotemburgo.

Fredrik Sörebo tem difi culdade em perce-

ber: “Sinceramente, não acho que haja enor-

mes diferenças entre os homens e as mulheres

na Suécia. A minha ex-mulher é uma mulher

de negócios muito bem sucedida. E a minha

actual mulher tem uma empresa... Tenho dois

fi lhos que me parecem muito normais — e eles

seriam os primeiros a criticar-me se achassem

que eu era um homem da idade da pedra...

posso não ser um homem perfeito, mas acre-

dito no julgamento deles.”

Mesmo que à sua volta Sörebo

não as sinta, as diferenças es-

tão expressas nalguns indica-

dores que alimentam o de-

bate. O Eurostat diz que em

média as mulheres na União

Europeia ganham por hora

menos 16% do que os homens.

Na Suécia, o hiato é de 15% e

em Portugal de 13%. Dados de

2013. Estes cálculos limitam-se a comparar o

preço por hora de trabalho — não têm em con-

ta o tipo de trabalho, a experiência e o nível

de escolaridade do trabalhador, por exem-

plo, alerta Annika Creutzer. Se esses factores

forem tidos em conta, a diferença é de 7%,

segundo os últimos dados do instituto sueco

de estatística.

Sendo “um hiato salarial mais pequeno do

que outros países têm, a verdade é que existe e

está ao mesmo nível há dez anos”, lamenta Åsa

Regnér. E não há “paraíso da igualdade” que

aguente o facto de haver diferenças salariais

apenas baseadas no género e sectores do mer-

cado de trabalho onde a segregação é evidente

— 77% dos professores do ensino superior são

homens, 93% das educadoras de infância são

mulheres. Em profi ssões predominantemente

masculinas ganha-se melhor, naquelas onde

dominam as mulheres, pior, sublinha.

“Isto tem consequências para o resto da vi-

da”, prossegue Regnér. “Quanto às pensões

de reforma, as mulheres recebem cerca de

60% das pensões dos homens.” Simplesmente

porque salários mais baixos, e mais tempo em

casa, signifi cam contribuições mais baixas.

“Quando vemos as diferenças salariais entre

homens e mulheres antes do nascimento do

primeiro fi lho, nem são enormes. O nascimen-

to do primeiro fi lho é o momento-chave.”

Para lidar com o problema, o “Governo fe-

minista” vai obrigar os empregadores a ana-

lisarem anualmente os salários que pagam a

homens e a mulheres e a tornarem transpa-

rentes as suas políticas salariais. Se detectarem

diferenças, devem explicá-las nas inspecções

periódicas de que são alvo — a discriminação

com base no género é proibida.

Outro nó difícil de desatar é o da violência.

O país não se saiu bem numa mega-sondagem

divulgada no ano passado pela Agência Euro-

peia para os Direitos Fundamentais: 46% das

suecas inquiridas disseram já ter sido vítimas

de violência. É das maiores percentagens da

União Europeia. Outros países igualmente co-

nhecidos pelos bons indicadores relacionados

com a igualdade de género saíram-se ainda

pior: Dinamarca, 52%, Finlândia, 47%...

Alguns investigadores alertaram na altura

para a possibilidade de os dados poderem re-

fl ectir uma maior consciência do abuso nes-

tes países. Seja como for, outros números não

deixam margem para dúvidas: em média, 17

suecas por ano são mortas por pessoas com

quem tinham uma relação íntima — em Por-

tugal, no ano passado, foram 35. “Nos últimos

15 anos investimos em legislação, em casas

de abrigo, em educação, na formação das au-

toridades, no sistema judicial, nos hospitais,

para que prestem um bom serviço às vítimas

de violência doméstica”, diz Åsa Regnér. “É

preciso fazer muito mais.” A começar nas es-

colas. Åsa Regnér quer reforçar os currículos

nestas áreas.

O “Governo feminista” tem mais planos,

inclusive além-fronteiras. Anunciou uma

“agenda feminista” para a política externa.

Os direitos humanos em geral e os das mu-

lheres em particular devem estar presentes

quando o Estado sueco debater com outros

países política e negócios, quando cooperar

em cenários de confl ito e ajudar na recons-

trução.

O feminismo está na ordem do dia. “É óp-

timo que os meus colegas de Governo acor-

dem de manhã e se sintam feministas. Mas é

óptimo também que ao longo do resto do dia

trabalhem de forma feminista, e deverão fazê-

lo”, diz Åsa Regnér. No fi nal da legislatura,

os suecos avaliarão. “E vai ter de se perceber

qual a diferença entre um governo feminista

e outro governo qualquer.”

SOFIA SABEL/IMAGE BANK SWEDEN

População

Composição dos parlamentos nacionais (2014), em %

Governadores e vice-governadoresdo banco central do país (2014), em %

Peso dos homens e das mulheres com título de ministro nos governos nacionais (2014), em %

Quanto ganham a menos as mulheres em relação aos homens (preço/hora não ajustado)

Cátia Mendonça e Andreia Sanches

Licença parental* Líderes de partidos políticos com uma representação eleitoralde 5% ou mais (2014)

Mulheres com diploma superior por cada 100 homens (2012)

HomensMulheres

31 69

56

72

44

28

197620052013

98 dias4 ou 5 meses4/5/6 meses

Duração

6 meses16 meses16 meses

Portugal

Suécia

Composição dos conselhos de administração das maiores companhias listadas na bolsa (2014), em %

Portugal

Portugal Suécia UE

Portugal Suécia UE

Portugal

Portugal

*Os dois países têm bónuspara casais que partilham

Portugal

Suécia

Suécia

Suécia

UE

UE

UE

Suécia

UE

Portugal

SuéciaUE

991

2872

2080

20

80

50 5028

72

15,70%15,90%

16%

100

6040

20

80

0

4.ºSuécia

4.790.131

4.810.248

100

7822

13 87 no ranking da Igualdade de Género de 2014 do Fórum Económico Mundial

30 153 160 143

100 homens

199520052013

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18 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 19

“O BOMBISTA SUICIDA ISLAMISTA DE HOJE É UMA MISTURA DO ANARQUISTA DO SÉCULO XIX COM O MÁRTIR”

JAIME NOGUEIRA PINTO

Vai começar uma guerra de civilizações? Alguma vez existiu um mundo bipolar en-tre o islão e a cristandade? Até que ponto o confl ito é construído com mitos e men-tiras? Qual a genealogia do Estado Islâ-mico? Quem são os jihadistas e o que pre-tendem? Será possível compreendê-los? Jaime Nogueira Pinto escreveu um livro, O Islão e o Ocidente, sobre as andanças históricas da “grande discórdia”

PAULO MOURA TEXTO DANIEL ROCHA FOTOGRAFIA

Page 19: Revista-2015_05_17

20 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

Jaime Nogueira Pinto, histo-

riador, doutorado pelo Ins-

tituto Superior de Ciências

Sociais e Políticas, é um ho-

mem com uma perspectiva

sobre a realidade política e

histórica. Poder-se-ia pensar

que o seu posicionamento,

na direita conservadora, o

levaria a olhar o terrorismo

islâmico com desprezo e in-

tolerância. A verdade é que

o “fascista de serviço”, como ele gosta, com

um sorriso, de se defi nir, respeita Bin Laden

e acha que vale a pena tentar compreender

o Estado Islâmico. É o que tenta fazer em O

Islão e o Ocidente — A Grande Discórdia, pu-

blicado pela D. Quixote.

Quando Napoleão atacou os egípcios,

disse-lhes que era para os libertar. O

Ocidente traiu o mundo muçulmano

desde sempre?

O Ocidente quer sempre libertar e há sempre

gente para ser libertada. Os próprios conquis-

tadores espanhóis das Américas, para irmos

a um caso limite de selvajaria, fi zeram isso.

Cortez aliou-se com muitas tribos de índios

que eram oprimidos pelos aztecas. Napoleão,

que estava a começar uma guerra contra o

Império Britânico, tentou aparecer como um

libertador. Mais tarde, o Lawrence da Arábia

fez o mesmo, ao serviço do Exército inglês,

prometendo coisas aos árabes que os seus

próprios chefes já estavam a atraiçoar com-

pletamente.

Era o acordo Sykes-Picot.

Exactamente. Já tinham dividido os territó-

rios entre a Inglaterra e a França. E prome-

tido arranjar um espaço para a comunidade

judaica. Tinham prometido a mesma coisa

a três ou quatro entidades diferentes e não

se importaram muito com isso. Em suma: o

Ocidente sempre usou e manipulou toda esta

região. E fê-lo mais facilmente a partir do mo-

mento em que o Império turco ia decaindo,

durante todo o século XIX, culminando com

a derrota na Primeira Grande Guerra.

Hoje os integristas islâmicos referem-

se sempre ao Império Otomano como

um período de glória perdida. Essa

foi a grande humilhação do mundo

muçulmano?

Os muçulmanos tiveram uma ascensão rapi-

díssima. Entre o início da pregação de Mao-

mé e a conquista do seu império, vai pratica-

mente um século. Maomé morre em 632, em

711 eles estão na Península Ibérica. Têm um

século em que é sempre a crescer. Da Ásia,

ao Império Bizantino, o Egipto, o Magrebe,

numa grande cavalgada que é um misto de

conquista e conversão. Isso leva-os a um pico

de grandeza, a uma época, do califado, nos

séculos VIII e IX, de grande fulgor civiliza-

cional. Depois entram num ciclo de alguma

decadência, desde a expulsão da Península

Ibérica, em 1492, e é o império turco, os oto-

manos, que vai tomar as rédeas da liderança

do mundo muçulmano. E durante os séculos

que se seguem há uma espécie de confron-

tação com o mundo cristão, mas que não é

permanente.

Não se trata propriamente de um

mundo bipolar.

As guerras dentro do islão e as guerras dentro

da cristandade são muito mais permanentes

do que o choque entre os dois blocos. Houve

alguns momentos de coligação em cada um

dos campos, para combater o outro, mas são

raros. Quando os turcos tomam Constanti-

nopla, em 1453, quando os cristão derrotam

os turcos em Lepanto, em 1571, ou quando

os turcos ameaçam Viena, nos fi nais do sé-

culo XVII.

Exactamente. E depois há uma série de diri-

gentes do Terceiro Reich que escapam para

o mundo árabe e fi cam por lá.

Alguns estão na génese dos partidos

baasistas?

Não chegam a estar. Mas aparecem vários,

como uma espécie de consultores.

Há uma ligação ideológica com o

fascismo?

Mais com o fascismo italiano. Nos anos 30,

Mussolini tinha criado em Roma o Instituto

para o Oriente, para onde procurou atrair

uma série de líderes, teóricos e académicos

do mundo árabe, para encontrar uma certa

afi nidade.

Durante a Guerra Fria, a ideia do islão

não existia?

Estava adormecida.

Quando acorda?

O ano da viragem é 1979. No Irão, que era uma

autocracia monárquica modernizante, com

o Xá, chega ao poder o Ayatollah Khomeini,

em Fevereiro. Em Novembro, dá-se o ataque

à Grande Mesquita de Meca, pelos integristas,

contra a família real saudita, que acusavam

de atraiçoar os princípios do islão e deixar

os estrangeiros ocuparem a terra sagrada da

Arábia. Por fi m, a invasão soviética do Afega-

nistão, com uma guerra que terminará meia

dúzia de anos depois e, de certa forma, vai

determinar o colapso da URSS. Aliás a reti-

rada é já no tempo de Gorbatchov.

A Perestroika começa aí. É a queda

da União Soviética que vai fazer

o islamismo prevalecer sobre o

arabismo?

Os sauditas começam a apoiar no exterior,

através de fundações de caridade, a reisla-

mização das populações, no sentido funda-

mentalista.

Como resposta ao Irão xiita?

Também por isso. Há uma preocupação com

o crescimento do xiismo, que até aí não man-

dava em nada. Mas principalmente para acal-

mar o clero wahabita e o movimento integris-

ta interno. O efeito no mundo islâmico é o

nascimento de um sentimento identitário is-

lâmico, cada vez mais poderoso. Esta atitude

saudita e o combate no Afeganistão estão na

genealogia dos movimentos radicais recen-

tes, como a Al-Qaeda. Formam-se naquele

internacionalismo religioso anti-soviético.

Com o apoio americano.

Sim, muito alimentado pelos EUA, a Grã-

Bretanha, os sauditas, o Irão. Coexistiram

ajudas muito estranhas.

O interessante é que a grande

fractura era entre o mundo

comunista, ateu, e o mundo religioso.

A afi nidade que os americanos

encontram e promovem com

os “selvagens” mujahedin é a

religiosidade.

Sim, é a religião. Bill Casey, que era direc-

tor da CIA nessa época, quando começou

as conversações com o embaixador saudita

em Washington, disse-lhe: “Nós temos uma

causa comum.”

Contra o materialismo ateu.

Sim. Casey, que era católico praticante e que

ouvia missa todos os dias, viajava sempre

com o seu capelão, no avião da CIA. Na Ará-

bia Saudita não era fácil, mas ele dizia: “Se

não o posso trazer, não venho cá.”

Nessa altura, não havia guerra de

civilizações, havia uma proximidade

entre cristãos e muçulmanos contra os

ateus.

A linha era: nós, os crentes, temos um inimi-

go comum, que é o materialismo soviético

ateu. Já tinha havido outra situação histórica

parecida, menos conhecida. Na guerra civil

espanhola, uma das bases fundamentais do

exército de Franco foram os regulares marro-

quinos. Eram uns milhares de soldados mar-

roquinos do exército espanhol. E o sultão, e

os ulemas, fi zeram na altura uma declaração

encorajando esses soldados marroquinos a

combater os materialistas ateus. Tal como

aconteceu na guerra de Espanha, com o fe-

nómeno das brigadas internacionais, também

houve esse voluntariado ideológico no Afega-

nistão. Essa cruzada anti-soviética mobilizou

muçulmanos de todo o mundo.

Que depois da guerra fi caram

desocupados.

Sim, e é interessante que dez anos depois,

quando Saddam Hussein invade o Kuwait,

Osama Bin Laden escreve uma carta ao rei

Fahd da Arábia Saudita…

Dizendo que não quer lá os

americanos.

E que ele levantará um exército de dezenas

de milhares de crentes para expulsar Saddam

do Kuwait. O rei nem sequer respondeu.

Porque tinha desde há muito uma

aliança com os americanos.

Desde o tempo em que Roosevelt se encon-

trou com o rei Saud, nos fi nais da guerra do

canal de Suez. O rei viu que seriam os ame-

ricanos a mandar, e não os ingleses, e fez o

shift. Roosevelt aproveita a oportunidade.

Porque o petróleo começava a ser

importante.

Claro. Já tinha sido. Aliás, uma das causas da

derrota da Alemanha hitleriana é a questão

energética. Andaram à procura de petróleo

por todo o lado. É por isso que ainda hoje

os alemães estão na vanguarda das energias

alternativas. Porque não tinham petróleo.

Mas foi decisivo esse rompimento de

Bin Laden com o rei saudita?

Sim, foi aí que começaram os atentados, nos

anos 90, contra bases americanas na Arábia

Saudita, etc. Eu li com muita atenção os es-

critos de Bin Laden, porque é uma pessoa

que vale a pena ler.

Há uma grande diferença entre ele e os

teóricos do actual Estado Islâmico?

Osama Bin Laden é um homem de princípios.

Vê-se que tem uma concepção do mundo.

Não interessa qual é, mas tem. Há diferenças

até sociais. Bin Laden vem da elite, herdou

uma fortuna colossal. E vê-se que há ali uma

linha teológica.

É um homem a quem conseguimos

compreender o pensamento?

Sim, tem um pensamento muito político. A

ideia dele é tomar o poder no mundo árabe.

Tirar de lá o que ele considera serem as eli-

tes ilegítimas. E tem uma teoria do inimigo

próximo e do inimigo distante. A tese dele é

a de que a Casa de Saud se aguenta graças ao

apoio americano. Portanto, se os americanos

forem expulsos, se se assustarem e fugirem…

Convenceu-se de que o fariam depois do ata-

que ao quartel dos Marines no Líbano, no

tempo de Reagan, e da retirada da Somália,

depois do episódio de Mogadíscio, em que

foram mortos 18 americanos. Concluiu que

os americanos fogem quando começam a ver

cadáveres. Por isso lançou o grande ataque

à América, de 11 de Setembro. Enganou-se

profundamente.

Subestimou os americanos.

Quando os ataques eram longe, era uma coi-

sa. Mas se os atacamos em casa, não há para

onde fugir.

A estratégia de Bin Laden falhou.

Não só não conseguiu afugentar os

americanos, mas trouxe-os em força

para a região. Foi por isso que nasceu o

Estado Islâmico?

A seguir ao 11 de Setembro, [o então primeiro-

ministro israelita] Ariel Sharon disse que era

bom que os americanos vissem o que era ter

Mas a luta, se virmos bem, é mais das po-

tências católicas, sobretudo a Espanha dos

Habsburgo, por vezes Portugal, a Santa Sé.

Já a França, por exemplo, tem uma posição

ambígua. A maior parte das vezes está do

lado dos turcos. E os ingleses também.

Mas houve uma bipolarização ao nível

mental? Foi construída uma imagem do

turco, do árabe.

Ao nível mental houve, de facto, na Idade

Média, antes da Reforma, um mundo que é

a Respublica Christiana, defi nido por valores

ideológicos e religiosos, que levou por exem-

plo ao fenómeno das Cruzadas. Mas à medida

que os estados se começam a formar, o in-

teresse estatal passa à frente dessa unidade

religiosa, que entretanto se quebrou.

A própria Reforma quebra essa

unidade.

Exactamente, a partir de 1519. Aliás, é inte-

ressante que os pintores protestantes, como

Durer, e como esse Mathias Gerung, que ilus-

tra a capa do meu livro, representam muitas

vezes nas suas obras, lado a lado, os grande

inimigos da fé e de Deus: O Grande Turco e o

Papa. Aparecem juntos, pintados como uns

demónios, ou lagartos.

Mítica ou não, essa ideia de uma

idade de ouro prevaleceu no mundo

muçulmano.

O passado é sempre um produto da nossa

imaginação. No século XIX, com os nacio-

nalismos, a maior parte das nações euro-

peias…

Foram inventadas.

Foram inventar uns pais fundadores, um

Viriato, ou um Vercingetorix [que liderou a

grande revolta gaulesa contra os romanos em

53 a.C.]. A História é sempre um campo muito

mobilizável para essas ideias. A História e a

Arte. Wagner por exemplo, foi buscar aquela

mitologia dos Nibelungos, todos aqueles he-

róis ou semideuses germânicos pagãos, que

não tinham existência histórica. No mundo

muçulmano, passou-se algo paralelo.

Mas essa identifi cação do mundo

muçulmano como uma unidade

nem sempre existiu. É ela própria

uma construção? Durante muito

tempo, o elemento unifi cador era o

arabismo.

Há um certo esplendor, que se tornou mítico,

e depois toda essa decadência do império tur-

co, a partir de princípios do século XIX, em

que são colonizados, dominados, explorados,

e que culmina com a Grande Guerra. Depois,

é o pacto Sykes-Picot que decide a sorte do

império turco. Deixa os sauditas tranquilos,

permite a criação dos reinos do Iraque e

da Jordânia, mas há um grande vazio, que

é ocupado essencialmente pelos ingleses e

franceses. Ora depois vem a Segunda Grande

Guerra e a seguir um movimento de descolo-

nização. Aí nascem os nacionalismos árabes.

Nasser faz a revolução dos jovens ofi ciais no

Egipto, etc. Nacionalismos de cada nação.

Que geralmente são movimentos laicos.

Sim, laicos, socialistas, que evocam o pa-

narabismo. Na Síria, no Iraque, surgem os

partidos Baas, cujo teórico, aliás, é Michel

Afl ac, que é um cristão. Esses movimentos

não são islamizantes, pelo contrário. O Egipto

de Nasser acaba por enforcar os líderes da

Irmandade Muçulmana, Hassan Al Banna e

Said Qutb.

E têm como aliado a URSS e o seu bloco

da Guerra Fria.

Sim, vão buscar a União Soviética, cuja sim-

patia, curiosamente, ia, em 1948, mais para

o Estado de Israel, porque ideologicamente

era socialista, igualitário.

E porque os judeus tinham sido vítimas

dos alemães.

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 21

As guerras dentro do islão e as guerras dentro da cristandade são muito mais permanentes do que o choque entre os dois blocos

Uma coisa é a gente morrer numa guerra de civilizações, porque tem de morrer. Outra coisa é morrer estupidamente

o terrorismo dentro de portas. “Nós temos

isto todos os dias.” Os EUA foram trazidos de

novo para o centro do vulcão. Envolvem-se

na guerra do Afeganistão, depois no Iraque,

que obviamente não tinha nada que ver com

terrorismo. Saddam era o líder mais laico da

região. E começou um capítulo de desarranjo

de todo o Médio Oriente. Surge a Al-Qaeda e

depois o Estado Islâmico, liderado pelo qua-

dros dissidentes mais violentos daquela. E

formado, além disso, pelos quadros militares,

laicos, do exército de Saddam Hussein.

E combatentes que vão chegando de

todo o lado.

A novidade do Estado Islâmico é a territoria-

lidade. A Al-Qaeda não tem território, o que

implica uma maior difi culdade de recruta-

mento. Para os internacionalistas que qui-

sessem alistar-se, era complicado. Vão para

onde? Agora é fácil. Chegando às fronteiras

do Estado Islâmico, são encaminhados, e lá

fi cam.

Mas é preciso também ter capacidade

de atracção.

Eles jogam na propaganda. Não querem ser

um grupo selectivo, com uma grande estra-

tégia. Não, eles querem ir buscar as massas.

Há 1600 milhões de muçulmanos no mundo,

e eles vão apelar aos deserdados dessa mas-

sa, que podem ser os que vivem nos estados

islâmicos e se sentem marginalizados, ou os

que vivem nas comunidades cristãs da Eu-

ropa ou EUA, e que estão desenquadrados

socialmente. O Estado Islâmico dá-lhes uma

identidade. Diz-lhes: fi quem connosco. Nós

aterrorizamos os infi éis.

A ideia do terror é importante?

Os grandes movimentos totalitários, como o

comunismo ou o próprio nacional-socialis-

mo, jogaram nessa ideia do terror.

Vê uma semelhança entre esses

movimentos e o Estado Islâmico?

Têm como objectivo seduzir e atrair as mas-

sas. Não apresentam grandes construções

intelectuais, são mensagens simples com dois

objectivos: aterrorizar os inimigos e cativar

as camadas menos politizadas, os deserda-

dos.

Comunismo e nacional-socialismo eram

idênticos nisso, apesar de terem causas

diferentes?

O modelo é muito parecido. A causa do comu-

nismo é o proletariado mundial, humilhado

e explorado. Tu, proletário argentino que

sofres, explorado, tens aqui a União Soviéti-

ca que te vai libertar. O nacional-socialismo

explorou o patriotismo dos alemães, humi-

lhados pelo tratado de Versalhes. Tu, cidadão

alemão, que estiveste na guerra, foste ferido,

foste humilhado, tens o teu país ocupado, nós

vamos levantar-te. O Estado Islâmico diz: os

muçulmanos estão a ser humilhados, explora-

dos. Tu, jovem muçulmano, que estás aí per-

dido no meio da Europa, onde te desprezam,

te marginalizam, se vieres para aqui, tens

aqui o Estado Islâmico para te defender.

São os únicos que fazem frente ao

poder ocidental e dos americanos.

Sim, por isso eles fazem aquelas paradas,

demonstrações de força.

Um artigo de Andre Glucksman, citado

no seu livro, compara os combatentes

do ISIS aos nihilistas russos que são os

protagonistas da obra Os Demónios, de

Dostoievski.

Exactamente. É o nihilismo que volta a per-

sonifi car-se nestes voluntários. Não há uma

tradição suicida no mundo islâmico.

De onde vem isso, então?

Dos nihilistas russos e dos anarquistas euro-

peus. E até os nossos Buiça e Costa [assas-

sinos do rei D.Carlos] são suicidas, porque

sabem perfeitamente que não vão escapar.

É aí que vão buscar o modelo dos

bombistas suicidas? Não à tradição

islâmica?

Os primeiros kamikazes islâmicos, que apare-

cem nos movimentos radicais palestinianos,

que não eram religiosos, mas marxistas, usa-

vam um lenço branco à volta da cabeça, como

os pilotos kamikazes japoneses. Não é uma

tradição islâmica. É uma coisa nova, intro-

duzida. E há uma reconciliação disso com a

ideia do mártir, que vem muito do xiismo.

De Hussein, fi lho de Ali.

O Hussein que os companheiros abandonaram.

Daí a autofl agelação, para se castigarem.

Também há o culto dos mártires no cris-

tianismo.

O mártir cristão deixa-se matar pela sua fé,

mas não mata. O bombista suicida islamista

de hoje é uma mistura do anarquista do sé-

culo XIX com o mártir. Aquele que arremessa

uma bomba para a frente do czar, o que mata

a arquiduquesa a sangue-frio, sabe que a se-

guir vão ser presos ou mortos. Tal como na

tomada da Grande Mesquita, os que foram

presos seriam todos mortos, decapitados.

Mas com essa ideia de ser um martírio por

Deus.

Essa combinação de jihadismo

com integrismo não é também

um fenómeno novo? Os Irmãos

Muçulmanos nunca quiseram o poder.

Há duas linhas que são contraditórias. Há um

lado purista, dos Irmãos Muçulmanos, que

estão contra o poder. Desprezam o “faraó”, o

governante ilegítimo. Por outro lado, o clero

wahabita, na Arábia Saudita, está com o re-

gime. Quando surgiu a Al-Qaeda e o Estado

Islâmico, as autoridades religiosas islâmicas,

como a universidade egípcia de Al Azhar, con-

denaram os seus actos. Mas depois é evidente

que para um movimento funciona melhor in-

vocar motivos religiosos nobres do que deixar

transparecer a ambição política.

A separação da religião e do Estado tem

alguma tradição no mundo islâmico?

Os primeiros califas eram chefes militares e

chefes religiosos. São sucessores do profeta,

e assumem esses dois gládios. Que no cristia-

nismo se separam a partir de certo momento

histórico, embora também tenha havido polé-

mica. A dada altura, os papas querem mandar

nos estados e os estados querem mandar na

Igreja, como fez Henrique VIII. Houve ten-

sões, mas o problema resolveu-se no século

XVI ou XVII. Passou a prevalecer a ideia da

Igreja livre no Estado livre. O laicismo francês

é uma coisa diferente.

Tem uma natureza diferente das outras

nações europeias? É mais do que a

separação da Igreja do Estado?

No mundo anglo-saxónico, o laicismo é en-

tendido como a separação da Igreja e do Es-

tado. A Igreja trata das almas, o Estado dos

corpos. Depois lá se entendem, têm os seus

pactos, negociados historicamente, com mais

ou menos violência. Em França, a herança

é diferente. A Revolução perseguiu a Igreja

Católica. O laicismo era entendido, tal como

foi aqui, pelo dr. Afonso Costa, não como a

Igreja para um lado, o Estado para o outro.

Era mais…

Acabar com eles.

Acabar com eles, exactamente. Esmaguemos

a infâmia, dizia Voltaire. E como entretanto

o catolicismo francês perdeu muito da sua

força, e a sociedade se secularizou, o laicismo

francês voltou-se contra o islão. Não por ser

o islão, mas por ser uma religião.

Porque os católicos já não davam

luta? Foi por isso que os humoristas

do Charlie Hebdo se metiam com

Maomé, para poderem continuar a ser

provocadores?

Aqueles bonecos que os levaram à desgraça,

faziam-nos há muito tempo com o Papa. De-

senhavam Bento XVI agarrado a um guarda

suíço, com uma criancinha, etc. Mas os ca-

tólicos não tugiam nem mugiam.

Há um capítulo do seu livro

que parece uma justifi cação do

atentado contra o jornal satírico

Charlie Hebdo.

Não é uma justifi cação, apenas uma explica-

ção. Se tivermos uma publicação que siste-

maticamente insulta os negros, os homosse-

xuais, ou as mulheres, embora no uso da sua

liberdade de imprensa, irá decerto provocar

indignação e ter problemas.

São coisas distintas. Criticar ou

ridicularizar um líder não é o mesmo

que insultar um grupo.

Eu sou católico apostólico romano. Se alguém

fi zer uma caricatura de Cristo numa posição…

uma coisa homossexual, um cristão sente-se

profundamente… Cristo é nosso irmão, nosso

pai. É uma ofensa gravíssima.

Se o retratado for um líder político,

já não é ofensivo?

O líder é uma representação política. Aqui

estamos a falar de uma coisa sagrada.

Um ateu não reconhece isso. Um

líder político pode ser igualmente

importante para ele.

Se for um ateu comunista e lhe fi zessem isso

ao Lenine, ou um ateu nacional-socialista e

insultassem o Hitler, ele também ia lá pôr

uma bomba.

Claro, se forem ateus fanáticos.

O Emanuel Todd escreveu agora um livro ex-

plicando que se trata daquela classe média

e média-alta francesa, fi losofi camente cép-

tica, que não acredita em coisa nenhuma e

que acha graça ter como alvo as crenças do

próximo. Ora as crenças, para quem tem fé,

são o mais importante da vida.

Sim, mas que tem isso que ver com o

ataque ao Charlie Hebdo?

Não justifi ca, mas explica. Eles estavam a

pôr-se em risco, com o permanente desafi o

a uns tipos que não eram propriamente pê-

ras doces.

Acha que a reacção que

houve foi apenas promovida

pela classe jornalística, que

se sentiu atacada nas suas

prerrogativas?

Os jornalistas nunca ligam nenhuma aos ata-

ques que há por todo o mundo. Aqui tocaram

numa coisa que é sagrada para eles. Assim

como para mim é sagrado Nosso Senhor Je-

sus Cristo, para os jornalistas, é a liberdade

de expressão.

A liberdade de expressão não é

um valor sagrado para a sociedade

ocidental?

Não acho. É para uma parte dela. Para outra,

não é. O risco que corremos é o de a represen-

tação do islão fi car nas mãos destes radicais

e a representação do Ocidente fi car entregue

a este laicismo agressivo, que apesar de tudo

é minoritário.

É possível compreender os

actos de pura barbárie, como as

decapitações gravadas em vídeo?

Temos de compreender tudo, mesmo que

seja para depois o combatermos.

Não há coisas tão intoleráveis que

nem são dignas do nosso esforço de

compreensão?

Isso é uma atitude que não teria muita uti-

lidade, nem para nos defendermos. Temos

de perceber as razões. Isto é uma paranóia?

Uma hiperdefesa de qualquer coisa anormal?

Uma coisa é a gente morrer numa guerra de

civilizações, porque tem de morrer. Outra

coisa é morrer estupidamente.

Page 21: Revista-2015_05_17

22 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

ŽNo Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história

de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Conto inédito de

Alexandra Lucas Coelho

I. BELGRADOÐ ligou para Lisboa, no seu português fl uente,

pedindo-me que reconstituísse a história de

Ž. Eu encontrara Ž duas vezes e estava inte-

ressada no assunto, como Ð sabia através de

um amigo comum. De resto, Ð e eu não nos

conhecíamos, mas ele saltou, alegre, por ci-

ma disso:

— Quando podes vir a Belgrado?

Foi assim que na noite de 2014 para 2015

me achei na colina do Kalemegdan, a fortale-

za da capital sérvia que já foi celta, romana,

bizantina, otomana. O cigarro de Ð apontou a

confl uência do Sava com o Danúbio, em breve

o frio daria para andar sobre as águas. Quem

nos ofereceu um gole de rakija disse que esta-

vam doze negativos, mas já bebera meia gar-

rafa. Acho que deviam estar pelo menos vinte

negativos quando Ð e eu caímos na neve, ele

de costas, eu de bruços. Um snipper não faria

melhor, ao primeiro beijo.

Notas iniciais sobre Ž: tinha quinze anos a

4 de Maio de 1980, o dia em que a Jugoslávia

começou o seu luto (e não era artifi cial, nem

o luto, nem a Jugoslávia). Um antigo vizinho

lembra-se de estar com Ž no Centro Cultural

de Estudantes quando chegou a notícia: Tito

morrera. Apanharam o autocarro de volta a

casa e foram para a garagem da fi lha do futu-

ro presidente ensaiar uma nova canção dos

Jungle Anarchists, a banda que haviam funda-

do com outro vizinho. Porque eram punks de

Dedinje, o bairro-bosque dos aparatchiks, hie-

rarquia acima até à mansão de Tito. Os punks

do centro chamavam-lhes mesmo punks de

Dedinje como se lhes chamassem ricos. Só que

os pais deles eram pequenos aparatchiks em

pequenos apartamentos no fi m da hierarquia,

prédios feios até hoje. Aos quinze, Ž partilhava

o quarto com dois irmãos, e tinha de negociar

com eles o tráfego de namoradas. Portanto,

punks de Dedinje mas não menos punks por

isso, fuck off .

Em 1981, a fi lha do então já ex-presidente

fundou a sua própria banda, e dois anos de-

pois explodia na rádio com o álbum Perfektan

Dan Za Banana Ribe. O título era uma home-

nagem à primeira das Nove Histórias de J. D.

Salinger, Um dia perfeito para o peixe banana,

que Ž terá oferecido à futura musa quando

tinham dezoito anos: sabia-o de cor. Muito

sofi sticado para dezoito anos, mas aos dezoi-

to Ž já se achava um fracasso desde os treze,

que foi quando começou a partir guitarras e

a cheirar cola. Aos treze, cola; aos dezoito,

heroína. A fi lha do ex-presidente morreu nem

dez anos depois, a irmã dela também, e eram

só os ícones de uma longa lista. Belgrado pa-

recia mais perto de Londres que da Cortina

de Ferro. Os anos 1980 foram a década em

que o New Musical Express vinha cobrir a cena

cool jugoslava, e os adolescentes morriam a

solo, deixando o tal belo cadáver. Vista des-

sa Jugoslávia, a ideia de guerra não passava

de uma farsa entre Moscovo e Washington. A

Jugoslávia era a praia e a montanha dos não-

alinhados, um sudeste ao mesmo tempo medi-

terrânico, eslavo, otomano e centro-europeu.

Os jugoslavos viajavam, os jugoslavos viviam

bem, os jugoslavos recebiam os Rolling Stones

(Zagreb 1976, Ž fechou-se no quarto porque

não o deixaram ir). Até os meus tios-avós pas-

saram férias na Jugoslávia: nem se dava pela

repressão, Tito era um esteta. Então, claro,

quem na geração de Ž acreditava mesmo que

nos anos 1990 a Europa teria de novo campos

Page 22: Revista-2015_05_17

2 | Domingo 17 Maio 2015 | 23

de concentração, genocídios, valas comuns,

deportações, violações em série, e que tudo

isso aconteceria justamente ali, na costura do

socialismo de rosto humano? As únicas bom-

bas que os punks de Dedinje conheciam eram

as dos Clash (The hillsides ring with ‘Free the

people’ / Or can I hear the echo from the days of

‘39? / With trenches full of poets (...) I’m hearing

music from another time). Se a letra anuncia a

guerra, é porque a ouço no futuro, e de fora.

Sou de fora, eis o que levou Ð a procurar-

me: essa seria a minha vantagem e o meu li-

mite. O trabalho dele é convencer-me de que

a vantagem é maior do que o limite, o meu tra-

balho é saber que à partida já perdi. Pois que

poderia eu dizer sobre Ž a quem cresceu nas

mesmas trincheiras de Ž, e conhece cada nu-

ance entre a neve e a lama, como a neve é uma

ilusão que queima, tudo o que a neve cobre,

tudo o que a neve adia, porque o frio retém a

revelação, e é o sol que traz os mortos.

Assim aterro em Belgrado no começo do

Inverno para uma espécie de garimpo, de fora

para dentro. Se ninguém detém a narrativa

de outro, esta história de Ž será só a minha,

como o meu anfi trião sabe há muito. Quando

Tito morreu, já Ð estava a milhas, bolseiro de

estudos pós-coloniais, aluno de Edward Said.

E nem a América fez dele um ex-fumador.

A 25 de Dezembro, uma quinta-feira banal

para os ortodoxos, apanho um táxi até à antiga

mansão de Tito em Dedinje. O primeiro nevão

deve acontecer no fi m de semana, por enquan-

to copas negras, céu dourado, nem uma folha.

O táxi pára junto ao muro, mais alto do que

eu mas muito mais baixo do que as árvores

lá dentro. Extenso parque, sim senhor, se é

para receber Elizabeth Taylor há que fazer as

coisas bem, embora para esses casos também

houvesse a Casa de Verão, na ilha. A Taylor, a

Lollobrigida, a Loren, o Burton, assim do que

me lembro. Tito era pop.

Já Milošević foi o anti-pop mundial. Deu ca-

bo da telegenia sérvia ao ser o mais podero-

so protagonista de uma violência inédita na

Europa desde a Segunda Guerra, dezenas de

milhares de cadáveres para todos os lados, até

aos bombardeamentos da NATO sobre a Sér-

via. Ainda hoje, em Belgrado, Milošević parece

o-homem-do-saco na infância de milhares de

sérvios, só que real até à morte. Um caso de

ascensão máxima da paranóia. E quem era a

multidão que o seguia?, perguntei ontem a um

dos velhos amigos de Ž. Ele suspirou, creio que

até o cão a seus pés suspirou (um rafeiro que

aprendeu a encantar estranhos para sobrevi-

ver, de preferência raparigas, até hoje encanta

e já é senhor da casa, questão de feitio). Ah, o

lumpen-proletariado, respondeu enfi m o ve-

lho amigo de Ž. Ao pé da letra, homens-trapo,

sem consciência política, à mercê de quem os

manipule. Não é com eles que se fará a revo-

lução, e a revolução não se fará também por

causa deles, mas isto já não é Marx que diz,

nem o velho amigo de Ž. Tão sérvio de pai e

mãe como Ž, o velho amigo rematou: horror,

horror dessa Sérvia.

(De qualquer massa infl amada, além do

lumpen-proletariado, não? A velha questão

da banalidade do mal. O paranóico coman-

da e o mal banaliza-se pela massa. A massa

é o sistema digestivo do paranóico. Processa

tudo.)

Não, não me perdi, estou bem em frente

à mansão de Tito, mas Milošević instalou-se

aqui nos anos 90, então é impossível não me

lembrar dele também. Os imperialistas têm

um fetichismo pelo metro quadrado de quem

os antecedeu, tal como os europeus de 1500

tiveram pelos templos indígenas, um eterno

retorno igual à guerra. Milošević morar na

mansão de Tito era a Grande Sérvia a ocupar

a casa da Jugoslávia. A História ia recomeçar

nele.

(Esta noite, saindo de uma kafana para ou-

tra num eterno retorno à rakija de marmelo,

Ð há-de contar-me que existem internados em

hospícios convencidos de que ainda estão na

Jugoslávia. Imaginar um destes internados a

ter alta dava um romance, se calhar já deu.)

Caminho ao longo do muro da mansão. O

táxi espera do outro lado da estrada. Ninguém

nos passeios, nenhum cartaz, nenhuma ta-

buleta, a jugo-nostalgia contemporânea não

parece chegar aqui, talvez porque não se possa

entrar, talvez porque Milošević morou lá den-

tro, e se Tito deu vida à Jugoslávia, Milošević

enterrou-a, ou talvez por a casa ter sido bom-

bardeada pela NATO em 1999. Os destroços

continuam à vista, através do rendilhado de

um portão.

(Há uns curto-circuitos assim no meio de

Belgrado, subitamente numa avenida dois edi-

fícios bombardeados, lado a lado. Não sei se

é uma decisão ou a ausência dela, e até hoje

não perguntei.)

Esta rua — Užička — entrou para a história

do século XX à bomba ( já na Segunda Guer-

ra, os Aliados bombardearam os alemães que

a tinham ocupado), mas o que me interessa

hoje é como ela coincide com o mapa de Ž.

Eles, os proto-punks de Dedinje, vinham dos

prédios com bicicletas, com trenós, com gui-

tarras, com namoradas, consoante a estação

e a idade. Em Dezembro caíam os primeiros

nevões, fi cava tudo fofo, depois duro, e depois

pedregulhos podiam cair se a temperatura

subisse de repente, desprendendo o gelo dos

telhados, morre-se disso em Belgrado, como

nos trópicos de um coco. Árvores em ponto de

fuga, silêncio de bosque mais que de bairro:

não é Tito nem Milošević que suponho a atra-

vessar a estrada (também não atravessariam a

estrada, imagino), mas sim Ž, as longas pernas

de Ž com aquelas calças de pinças, aqueles

ténis, aqueles blazers, aqueles pins no blazer,

aquelas franjas dos anos 1980 tapando olhos

de ressaca, de quem não dá trela a ninguém.

Vai fazer vinte anos amanhã, e mais um amigo

acaba de morrer.

Quem ainda cá está em 2014 confi rma: nes-

se grupo, nesse tempo, a morte era mais real

do que a guerra. Aos vinte, Ž via-se como um

velho sobrevivente, entre overdoses e hiv. A

lista das partidas aumentava dessas e de outras

formas, Londres, Roma, Viena. Não sufi ciente-

mente longe para ele, segundo um contempo-

râneo que não chegou a tomar drogas, e hoje

mora num casarão. Os anos 1990 fi zeram a

fortuna de quem teve jeito, Ž teria morrido

de tédio, se não tivesse chutado tudo antes.

No Verão de 1985 desembarcou na praia catalã

de Blanes porque uma amiga de Belgrado que

emigrara para Barcelona acabava de conhecer

um beatnik sul-americano lá. Eis como, depois

de uma semana a beber com o beatnik — um

tal de Roberto Bolaño, que vendia pulseiras

mas tinha cem livros na cabeça —, Ž decidiu

ir para o México.

Estudar fotografi a, disse aos pais.

A vida mexicana de Ž terá de esperar pelo

meu próprio regresso ao México. O que posso

registar agora é que foram duas temporadas, a

primeira, entre os vinte e os vinte e um (1985-

86), de facto a morar no formidável campus da

Universidade Nacional Autónoma, enquanto

estudava fotografi a, entre biscates vários. E

a segunda, aos trinta e quatro (1999), a foto-

grafar a violência das fábricas de Ciudad Ju-

árez para a revista do New York Times. A sua

nota biográfi ca desse ano resumia: “Cobriu

confl itos no Irão, Iraque, Roménia, Líbano,

Ruanda, Irlanda do Norte, Sudão, Afeganistão,

Rússia, Serra Leoa, Argélia, Israel-Palestina

e nas repúblicas da ex-Jugoslávia.” Ou seja,

em apenas treze anos, Ž catapultou-se para

a linha da frente do fotojornalismo, de trin-

cheira em trincheira. A primeira vez que o vi

foi em Sarajevo.

Portanto, vou voar para Sarajevo este sá-

bado, 27 de Dezembro, ao começo da tarde.

Hora perfeita, se não estamos interessados em

mudar um ritmo nocturno que já vem de há

dias. Ainda ontem, porque era quinta, e é algo

que só acontece às quintas, Ð levou-me a uma

catacumba onde cavalheiros de cerca de oiten-

ta e quatro anos trazem rakija de casa em gar-

rafas de plástico que oferecem a toda a gente,

começando pelas senhoras. As senhoras têm

grandes toucados. As paredes estão cobertas

de fotografi as. Pareceu-me ver Amália Rodri-

gues numa esquina e quando olhei melhor era

Amália Rodrigues. Um cavalheiro de cerca de

oitenta e quatro anos recitou-me Octavio Paz,

outro disse-me que tocara bateria com Charlie

Haden quando ele cá esteve em 1971. Isto, na

véspera de Haden ter ido tocar no primeiro

Cascais Jazz, onde dedicou as cordas do seu

contrabaixo às lutas africanas de libertação,

o que lhe valeu ser levado pela polícia política

da ditadura. Este octogenário até se lembra

de como Haden depois festejou Abril com a

sua própria versão da Grândola Vila Morena.

E para que eu não duvide, canta. Como não

amar Belgrado.

Nem de propósito, um amigo de Lisboa

manda-me, de boas festas, essa Grândola

porque o pai tinha estado no Cascais Jazz e

aparece numa fotografi a a olhar para Charlie

Haden (também me manda a fotografi a). A

sintonia cósmica é tal que quando entram os

sopros julgo ouvir uma nota balcânica.

Sábado, com a alegria e o cigarro de sem-

pre, Ð vem pôr-me no táxi para o aeroporto,

não vá o motorista achar que sou uma turista

sem amigos. Isto, claro, apesar de os taxistas

sérvios serem meninos comparados com os de

Lisboa. Asseguro a Ð que no fi m-de-semana vai

nevar, ele ri da minha autoridade no assunto,

fecha a porta do táxi e fi ca a ver-me arrancar.

Eu fi co a vê-lo cada vez mais pequeno.

(Até cair nos braços de Ð não me passa pela

cabeça cair nos braços de Ð, mas pela primeira

vez ainda estou a pensar nele quando ele já

saiu de vista.)

II. SARAJEVOBelgrado-Sarajevo são 45 minutos de viagem

a tão baixa altitude que podemos observar

a passagem da planície sérvia para as mon-

tanhas bósnias como se de súbito o mundo

se levantasse num movimento interminável.

Uma imagem de contornos esfumados, com

a cor e a consistência de um desenho a car-

vão. O carvão são as árvores, o papel é a neve.

Que poderia eu dizer sobre Ž a quem cresceu nas mesmas trincheiras de Ž, e conhece cada nuance entre a neve e a lama, como a neve é uma ilusão que queima, tudo o que a neve cobre, tudo o que a neve adia, porque o frio retém a revelação, e é o sol que traz os mortos

Page 23: Revista-2015_05_17

24 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

Depois, o avião desce, curva para a esquerda

e começa a percorrer o vale de Sarajevo na

última hora de sol. Tudo me espanta, a paz

alpina de casinhas, o rio incandescente, os

prédios de espelho, talvez porque a última vez

que aqui vim foi num avião militar, a cidade

estava cercada, entrei no Holliday Inn à luz de

velas, e entre o aeroporto e o hotel só havia

uma coisa a fazer: acelerar.

(Se por um momento esqueces

que tens de correr rápido

as balas avisam-te

e se não avisarem

quer dizer que estás morto)

Até o Oslobodenje tem uma fachada de espe-

lho, vejo do lado direito. O jornal que nunca

deixou de sair em três anos e meio de cerco,

nem um só dia, agora é propriedade de um

homem de negócios e vizinho de um outdoor

da Coca-Cola.

Sarajevo estende-se como uma grande recta

ao longo do rio Miljacka, montanhas de um

lado e do outro e ao fundo. Lá mais para o

fundo começa o pedaço austro-húngaro, pa-

lacetes e pracetas, igrejas e pontes, incluindo

a graciosa Ponte Latina junto à qual foi assas-

sinado o arquiduque Franz Ferdinand, que as-

sim, tão involuntariamente, teve para sempre

o seu nome associado ao início da Primeira

Guerra, em 1914. Na esquina em frente há um

mini-museu onde podemos ver, por exemplo,

como as armas do assassino — Gavrilo Princip

— eram mínimas. Um revólver menor do que

a palma da minha mão. Ele próprio parece

um homem pequeno, de olhar melancólico.

Um sérvio da Bósnia, tão anti-austríaco como

anti-otomano, que acreditou febrilmente nu-

ma futura Jugoslávia.

Paralela ao rio, mais para dentro, está a ave-

nida a que toda a gente ainda chama Titova.

No monumento da Chama Eterna, sigo pela

rua pedonal. De um lado, a megastore da Be-

netton em saldos; do outro, uma feirinha com

carrossel, baloiços, quiosques de doces; por

cima, pontudos domos ortodoxos contra o

lusco-fusco; e fi nalmente a montanha nevada,

cheia de janelas acesas, que há dezanove anos

era o antro dos snippers. Há dezanove anos,

cá em baixo, também era Dezembro mas não

havia meias vermelhas, bonecos de gengibre,

luzinhas a piscar. A vida era urgente, furtiva,

subterrânea, uma aposta contra o atirador.

Agora olho os bonecos animados deste pos-

tal de 2014 que são os bósnios atafulhados de

casacos, de golas, de barretes, de luvas, com

grandes botas a patinhar na neve, porque na

neve andamos todos como bonecos (ou pin-

guins, diz aquele velho amigo de Ž, o do cão

encantador), e penso que cada um deles sabe

tudo sobre a guerra, e que isso jaz em cada

conversa, como a morte sob a neve. Eles es-

tavam cá, e cá estão.

MARX, leio em letras garrafais. Depois por

baixo: CLOTHES FOR THE PEOPLE. Como

a Benetton, só que Marx. A catedral católi-

ca, pouco adiante, tem um João Paulo II de

alumínio no pátio. Foi inaugurado em Abril,

para celebrar a sua passagem a santo. E no

prédio ao lado, em letras garrafais, leio SRE-

BRENICA.

Não me lembro ao certo como conheci Da-

vid Rohde em 1995, talvez tenhamos partilha-

do um transporte entre Sarajevo e Mostar, mas

estou a ver a cara de escuteiro dele, correcto,

discreto. Aos vinte e tal anos, nesse Outono-

Inverno, já era o repórter que meses antes

revelara o massacre de Srebrenica nas pági-

nas do Christian Science Monitor. É sobretudo

disso que me lembro, a densa sobriedade com

que me contou como chegara a Srebrenica em

Agosto, um mês depois das tropas do sérvio

bósnio Ratko Mladić, e encontrara ossos de

bósnios muçulmanos. As primeiras testemu-

nhas apontavam para uma morte em massa, e

quando a investigação acabou a Europa estava

perante o seu maior massacre desde o Holo-

causto: mais de oito mil bósnios muçulmanos,

separados das mulheres e dos fi lhos e exe-

cutados, sob o comando de Ratko, e perante

a total incapacidade dos capacetes azuis da

ONU, um pelotão de holandeses que estavam

lá para proteger os civis e hoje hão-de vaguear

em qualquer inferno quando fecham os olhos.

Penso em David Rohde por causa deste cartaz

agora, na praça da catedral, anunciando um

trio de imagens de guerra (Srebrenica, 1995;

Sarajevo, 1992-1996; Síria, em curso). E por-

que, numa daquelas noites de cerco a Saraje-

vo, num bar onde alguém tocava trompete, foi

Rohde quem me apresentou a Ž. Eu já o vira

por aqui, era difícil não reparar nele, tão alto,

tão mudo, tão zangado, franja sobre os olhos,

nuca rapada. Duas horas depois já não me

parecia tão alto, tão mudo nem tão zangado.

Separámo-nos logo na manhã seguinte mas em

Janeiro, de volta a casa, eu estava grávida.

A exposição sobre Srebrenica, Sarajevo, Síria

começa no elevador da galeria, frases que se

prolongam na parede do terceiro andar, quan-

do a porta abre: milhares de nomes, branco

sobre preto. Depois caras, centenas de caras.

Depois, ossos, o puzzle do DNA para dar sepul-

tura aos mortos, ciência aplicada à tragédia

grega. Antropólogos forenses penaram a com-

binar crânios, tíbias, ilíacos e falangetas das

valas comuns de Srebrenica. Um fi lme mostra

uma das mulheres no momento em que lhe di-

zem que há noventa e nove e algo de hipóteses

de aquele ser o marido dela (restam os ossos

e o casaco). Filmagens de 1995 mostram os

incapazes de capacete que a ONU não julgou

necessário reforçar. Ratko aparece a rosnar

para a câmara, vamos lá vingar a Sérvia. Isto

aconteceu na Europa, e toda a gente deixou.

Todos mataram, todos morreram, todos ti-

veram os seus loucos, os seus déspotas, sér-

vios, croatas, bósnios, mas em nenhum lugar

da ex-Jugoslávia se morreu como na Bósnia nos

anos 1990, onde sobretudo sérvios mataram

sobretudo bósnios de origem muçulmana. E

até hoje, em Sarajevo, muita gente faz questão

de distinguir entre sérvios da Sérvia e sérvios

da Bósnia, porque estes últimos é que eram

vistos como nacionalistas radicais, associados

a paramilitares, milícias e snippers.

A propósito de snippers, e porque estou

prestes a encontrar o autor, eis o poema com-

pleto:

Jogo de guerra

No topo da torre mais alta

da Cidade Velha

um franco-atirador

tem o seu ninho

a distância entre

ele e o lugar

onde atravessamos

é cerca de cinquenta

metros em linha

recta

se por um momento

esqueces

que tens de correr rápido

as balas avisam-te

e se não avisarem

quer dizer que estás morto

Podia ser a Pequena História do Cerco de

Sarajevo, mas no caso de Faruk Šehić é a Pe-

quena História do Cerco de Bihać (extremo no-

roeste da Bósnia e Herzegovina), em qualquer

dos casos não menos de três anos de cerco.

Quero pensar em Faruk antes da guerra, este

rapaz ainda vagamente louro que agora en-

tra num bar do bairro otomano de Sarajevo

por gentileza para comigo, porque estou na

cidade, porque temos um amigo comum, e

tudo isto apesar de ele estar com uma gripe

daquelas. Sim, este rapaz mais ou menos da

minha idade mas há vinte e tal anos, quan-

do, imagino, se poderia dizer, sem dúvida,

que era um rapaz louro, um rapaz com uma

profi ssão, um rapaz que estudara Veterinária

em Zagreb, bósnio mas formado na Croácia

porque, claro, as pessoas iam e vinham, uma

moeda, uma língua, um país, e além disso,

para quem é de Bihać, Zagreb era um pulinho.

Ele ia tratar cães, gatos ou cavalos, quem sa-

be, os anos 1990 apenas começavam. E então

começaram. Primeiro, em 1991, independên-

cia da Eslovénia; guerra e independência da

Croácia. Depois, em Abril de 1992, a Bósnia.

Até hoje, neste bar pesado de fumo, Faruk

sabe o dia exacto em que voltou a casa, 15 de

Abril de 1992. Fácil de saber, porque a 21 de

Abril os sérvios atacaram Bihać e ele já esta-

va no exército bósnio como voluntário. Em

Este conto foi escrito e publicado em Belgrado, em Janeiro de 2015, no âmbito da residência de escrita Krokodil em parceria com o Centro de Língua Portuguesa de Belgrado/Instituto Camões. Esta é a primeira publicação do original português

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 25

ALE

XAN

DRA

LU

CAS

CO

ELH

O/A

ND

RÉ C

UN

HA

, BEL

GRA

DO

20

15 uma bandeira da Palestina e um ecrã de fute-

bol. Podia ser Ramallah, Beirute ou o Cairo.

Neva toda a noite. Domingo de manhã, os

carros são contornos brancos nos passeios,

difícil distinguir o passeio da estrada. Um re-

pórter veterano, antigo parceiro de Ž, leva-me

pelas montanhas. Vejo então Sarajevo de onde

a viam os atiradores, com os seus restos de

castelos otomanos, o seu casario, as suas fl o-

restas, como se um cozinheiro celeste tivesse

derramado açúcar-glacé por cima de todos

nós, e dos séculos.

Foram os dias mais felizes da minha vida,

diz-me a melhor amiga de Ž em Sarajevo, so-

bre os últimos meses do cerco. Ela passara os

primeiros meses sem dormir, a inventar tudo

o que era possível, teatro, concertos, leitu-

ras. Em Abril de 1993 veio Susan Sontag, fi ca-

ram amigas, Sontag voltou em Julho, fi zeram

aquele Godot no pátio do Teatro Nacional de

Sarajevo, junto ao qual estou a dormir, vejo-o

da janela do quarto. Veio 1994, o cerco conti-

nuava, era preciso continuar. Até que em 1995

ela se viu com trinta e oito anos e um amante.

Queria ter um fi lho? Talvez, antes precisava de

respirar. Foi ter com Sontag à América, visitou

amigos, era para ser uma viagem de meses

mas em Maio ela já sabia, sim ia ter um fi lho,

ia voltar. Tal como Faruk, sabe o dia exacto

em que voltou a casa, 22 de Maio. Na manhã

seguinte o amante veio e ela acredita que en-

gravidou nesse dia mesmo. A fi lha nasceu em

Março de 1996, primeiro mês depois do cer-

co, o que quer dizer que a gravidez coincidiu

com os últimos nove meses de cerco. Por isso

foram os dias mais felizes da sua vida, o bebé

ia protegê-la de tudo.

Segunda-feira, 29 de Dezembro, continua

a nevar. Passeio ao longo do rio com o fi lho

de um soldado que Ž fotografou em 1993, e a

que depois voltou várias vezes. Atravessamos

a Ponte Latina, e voltamos à direita para o

parque do coreto (que aqui se chama pavi-

lhão musical). Teria mais de cem anos, não

fosse ter sido bombardeado e reconstruído,

mas a neve fi ca-lhe bem. O meu parceiro de

caminhada tem 27 anos. Todas as suas pri-

meiras memórias são de guerra. Aos cinco

já se escondia de snippers e sabia distinguir

granadas. Volta e meia tinham de ir para uma

cave a noite inteira, todo o bairro ia. Muitos

prédios tinham abrigos, vinha do tempo da

Jugoslávia. Ele ia com a mãe e a irmã bebé,

porque o pai estava a combater, operava um

lança-chamas, fi cava fora durante meses, vol-

tava por um mês, às vezes trazia latas de comi-

da. Às vezes também conseguiam comida da

ajuda humanitária, e a mãe tinha uma horta.

As pessoas escavavam para encontrar água

e toda a gente ia com recipientes, por trás

das casas, encostada aos prédios. As crian-

ças sabiam que não podiam brincar no meio

dos pátios. A escola também era numa cave,

mas ele ia às aulas quase todos os dias. Como

quase sempre não havia luz, acendiam velas,

candeeiros a gás e pedalavam uma bicicleta

até fazer o rádio funcionar, só cinco minutos

para ouvir as notícias, ora ele, ora a mãe. Em

suma, o que ele sabia era que os sérvios ataca-

vam e eles se defendiam: faz a tua coisa a cada

dia e espera que a cidade não caia. À custa de

tanto, Sarajevo não caiu. E aqui está ele hoje,

três palmos mais alto do que eu, senhor dos

céus. Não é metáfora, acaba de se diplomar

controlador aéreo. Um ano a viver em Bel-

grado, começou nervoso, depois passou. Os

responsáveis não eram aqueles, havia que pôr

a guerra para trás das costas e ter a certeza de

que não voltava a acontecer. Ter uma namora-

da sérvia ajudou, decerto a ambos. A guerra

que ela vivera directamente era a das semanas

em que a NATO bombardeou alvos sérvios em

1999. Quando ele lhe contou da infância em

Sarajevo foi uma surpresa porque os livros

na escola dela diziam coisas diferentes dos

livros aqui. De resto, ele nunca teve um pro-

blema em Belgrado com o nome, claramente

muçulmano. Tudo correu bem, voltou com

um trabalho bem pago, raridade na Bósnia,

onde o desemprego é o principal problema,

num sistema tão corrupto que ele nem vota.

E fará parte da primeira geração de bósnios a

controlar o espaço aéreo da nação, até agora

nas mãos de sérvios e croatas, fi fty-fi fty. Há

um mês, Sarajevo tomou conta da metade

inicial, 10.000 metros, em Fevereiro recebe

a segunda metade. Ele chegou no momento

certo e descobriu que tudo o preparara para

isso, a pressão de um trabalho onde não pode

haver erro, dos mais difíceis do mundo. Tudo

desde o cerco, numa rua de Sarajevo onde

metade dos amigos de infância se tornaram

junkies, numa casa onde o pós-guerra devol-

veu um pai alcoólico. O fi lho resume isto de

forma implacável, diz que teve de assumir o

controle das coisas muito cedo, e desde então

nunca deixou de o fazer. Um dia avisou o pai

de que o mataria se voltasse outra vez a casa

embriagado, o pai desapareceu uma semana

mas nunca mais bebeu. Agora está tudo ok,

tanto quanto depende dele. Arranjou o seu

próprio apartamento. Não vai à mesquita, é

ateu. Continua a namorar a rapariga de Bel-

grado, ela vem para a passagem de ano, ele

fi cará a morar aqui, é certo. Adora a adrenali-

na do que faz, todos os dias aviões diferentes,

a diferentes altitudes, a diferentes velocida-

des, que não podem chocar, ou entrar numa

daquelas nuvens com trovoada. O trabalho

dele é pensar depressa.

III. BELGRADOTerça, 30 de Dezembro: também nevou aqui.

Branco ao aterrar, branco até à entrada de

casa. Tenho de me agarrar ao braço de Ð pa-

ra não cair nos passeios. Ou não tenho, mas

é muito melhor.

Gosto daquele velho amigo de Ž (o do cão

encantador). Diz coisas tão inesperadas para

um sérvio como ter sido a favor das bombas da

NATO sobre os alvos de Milošević (apesar dos

erros, apesar dos erros, incluindo um hospi-

tal). A capacidade autocrítica destes sérvios só

se compara ao humor negro dos bósnios, que

fazem da morte a mais escandalosa anedota.

Mas nada é mais escandaloso, mesmo.

(E viciante? Toda uma bibliografi a sobre

como a guerra pode ser aditiva, toda uma

medicina, endorfi nas, dopamina. A urgên-

cia, a intensidade, a alucinação. A segunda

oportunidade que é a compaixão? A certe-

za de, enfi m, ter um coração? Ð sabia que o

assunto me interessava, era esse o assunto

que levava a Ž: a guerra como única forma

de estar vivo.)

Toda a gente fuma três maços por dia em

Belgrado, em virtualmente todos os lugares

fechados, incluindo o elevador do meu prédio.

O tabaco é barato, as rendas são baratas, a ci-

dade tem dois rios e os homens são grandes.

Do que entendi até agora parece que o único

impedimento de Belgrado é que se eu beijar

uma mulher na rua dá insulto, e homem com

homem dá hooligans. Ó gente viril, é mesmo

isso, não basta Putin? Se os hooligans não têm

objectivo, qual é o objectivo dos não-hooli-

gans? Cura, limpeza, salvação? Hitler era um

homossexual reprimido. Matou seis milhões

mas manteve-se virgem. Isso dá-lhe créditos

no inferno?

Já agora, em que inferno penará Arkan, que

chegou a comandar uma claque do Estrela Ver-

melha quando já tinha uma sólida carreira de

bandido internacional, e depois fez dos seus

hooligans a mais temida milícia dos Balcãs,

raptos, torturas, execuções, extorsões? Fas-

cinante imaginar as conversas dele com deus

quando se refugiava num mosteiro ortodoxo

com os seus tigres armados, todos bem acolhi-

dos, quem sabe até o seu tigre bebé.

Mais um rapaz de Dedinje, Arkan, mas uma

geração antes de Ž. A única vez que se cru-

zaram foi quando Ž o fotografou no instante

da morte, coincidência raríssima na história

da fotografi a. Porque, por acaso, às cinco da

tarde de 15 de Janeiro de 2000, Ž estava no

foyer do Hotel InterContinental de Belgrado

à espera de alguém. Como não vinha para

fotografar, tinha só uma pequena câmara na

mochila, com um fi lme já a meio, e pegou nela

discretamente ao avistar o gangue de Arkan:

os homens que o guardavam, a interacção com

tudo em volta. Minutos depois os assassinos

entraram no seu campo de visão. Em 38 ti-

ros, três foram fatais, boca, têmpora, olho.

A última imagem de Ž capta o momento em

que a senhora Arkan — Ceca, infl ada diva do

turbo-folk — vem a correr da loja onde fazia

compras. Depois, o fi lme acaba.

Ž publicou as fotografi as, com uma curta

declaração sobre o acaso que o levara ao hotel,

mas recusou-se uma vez mais a dar entrevis-

tas. Anos de especulação mundial. Uns viram

nisso uma ligação de Ž ao assassinado, outros

uma ligação de Ž aos assassinos. Os acasos têm

péssima fama.

A segunda vez que vi Ž, em 2002, ele contou-

me como o caso Arkan gerou nele uma repulsa

que o afastou da ex-Jugoslávia para sempre.

Estávamos bem longe daqui, numa Ramallah

invadida por tanques israelitas, sob recolher

obrigatório. Não lhe contei o que acontecera

da primeira vez, não valia a pena. Eu decidira

sozinha, e neste fi m de 2014, em Belgrado,

brindo a isso de nenhuma portuguesa ainda

ter de abortar clandestinamente.

Rakija de alperce: amanhã, antes de o ano

acabar e subirmos ao Kalemegdan, vou dizer

a Ð que não consigo reconstituir a história de

Ž. Cada vez tenho menos certezas sobre ele,

o que provavelmente signifi ca que ele será

cada vez mais ele próprio. Portanto a história

continua, Ž só decidiu desaparecer no mundo,

como o seu herói J. D. Salinger. Mas eu também

não gostaria de escrever a história de Salinger

contra o seu próprio silêncio.

Uma banda de outro planeta ataca numa

antiga igreja transformada em teatro, clube,

bar. Eu achava que ia só ouvir jazz, mas em

Belgrado nunca é tão simples. Eles têm um

DJ, eles misturam Marvin Gaye com música

iraniana, eles querem que a gente dance. E

quando vou lá perguntar se já gravaram um

disco dizem que não estão interessados, que

é só pelo gozo de estarmos todos vivos, ao

mesmo tempo, aqui.

Coitado do Kusturica.

Quem?

Maio, a cidade fi cou cercada pelos sérvios. E

durante 45 meses — quase quatro anos — es-

te rapaz manteve-se em Bihać, ao comando

de 130 homens. Quando foi ferido por um

morteiro no pé, passou meio ano de muletas,

nada, um arranhão, comparando com a morte

à volta, os amigos que perdeu. Então, depois

da guerra, cut the bullshit, toda a tralha non

sense, as metáforas de quando ia ser um poeta

louro. E além dos poemas começou a escrever

contos, uma prosa decomposta, fragmentá-

ria. Foi publicado, traduzido, premiado. Teve

uma namorada meio-sérvia em Belgrado. Sim,

mais fácil estar com um sérvio de Belgrado

do que com um sérvio daqui. Mas só acredito

na responsabilidade individual, diz ele, não

há culpa colectiva.

Bairro otomano, turco, muçulmano, como

chamar à Baščaršija, este pedacinho de Sara-

jevo no fi m da recta, quase colado às mon-

tanhas: casinhas de madeira com lâmpadas

orientais, serviços de café, briquebraque para

os turistas que se alojam em hostels chamados

Franz Ferdinand, e fazem o tour dos túneis, do

cerco, dos snippers, suvenires de guerra. Mas

à noite há bares cheios de gente que estava a

nascer quando a guerra acabou, raparigas mu-

çulmanas com lenço/sem lenço, com rapazes/

sem rapazes, a fumarem/sem fumarem, entre

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26 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

DESIGN OBJECTOS EM VOLTA

Samantha Cristoforetti é a astronauta italiana que tomou a primeira bica em órbita. A máquina pesa entre 20 e 25 kg

EIS O PRIMEIRO ESPRESSO ITALIANO TIRADO NO ESPAÇOJOANA AMARAL CARDOSO

O dia 3 de Maio de 2015 fi cou na história

da exploração espacial e na história do

consumo de café italiano. Foi o dia em

que culminaram 18 meses de trabalho da

Lavazza, da também italiana Argotec (for-

necedora de refeições para consumo no

espaço e especializada no design de sistemas ae-

roespaciais) e da Agência Espacial Italiana (AEI).

Uma máquina de café desenhada para o espaço,

baptizada como ISSpresso para juntar o nome

do produto, o café espresso italiano, e a sigla em

inglês da Estação Espacial Internacional (EEI, ou

International Space Station) onde foi instalada,

capaz de tirar café italiano em condições de mi-

crogravidade.

A partir das mesmas cápsulas da marca italia-

na que são usadas com os pés bem assentes na

Terra, foi então feito o primeiro expresso — isto

porque já se bebia café no espaço, mas não ge-

nuinamente italiano, como assinala a Lavazza,

orgulhosa do seu feito e da imagem partilhada

por Samantha Cristoforetti, a primeira italiana no

espaço a beber a primeira bica italiana em órbita,

e pela NASA no Twitter. Não há, porém, uma chá-

vena bonita a envolver o líquido castanho escuro

e sua espuma creme — uma saqueta de plástico

transparente com uma palhinha faz as vezes da

porcelana branca do costume.

A máquina será um prodígio da engenharia e do

design de equipamento para situações extremas,

mas não é um prodígio do design italiano no que

ao invólucro concerne: não foi feita para ser bela,

mas sim funcional. Afi nal, o design é também uma

disciplina que se dedica a resolver problemas e a

deslindar busílis. “Todos os componentes essen-

ciais são redundantes por motivos de segurança,

tal como é exigido pelas especifi cações da AEI”,

justifi ca a Lavazza em comunicado sobre a má-

quina que pesa entre 20 e 25 kg.

As cápsulas são as mesmas, o circuito é similar,

mas muita pesquisa foi feita em torno da dinâmica

de fl uidos no ambiente espacial, muito diferen-

te da superfície terrestre. Foi necessário

pensar na alta pressão e nas temperatu-

ras muito elevadas envolvidas na feitura

de um café — a pressurização da estação

espacial permite que a temperatura a que

se ferve o café seja a mesma. Até a possibi-

lidade de sentir o aroma do café acabado

de fazer foi pensada.

Como se faz então um café italiano no

espaço? “Não é fácil”, admite a Lavazza.

Primeiro, uma astronauta instala a má-

quina — e este processo era mesmo uma

das nove experiências previstas pela AEI

para a Missão Futura em que se integra

Samantha Cristoforetti. Uma embalagem com

água é inserida na máquina, o líquido é aspirado

para o seu interior e aquecido. Insere-se a cáp-

sula no topo da máquina e carrega-se no botão,

claro está, e o café é servido através de um no-

vo sistema em que o tubo de

plástico terrestre que fornece

a água quente é substituído por

um de aço que suporta elevadas

pressões. Depois de aquecida,

a água passa por um novo siste-

ma que a aspira e pressuriza até

a verter na saqueta de plástico

— que a Lavazza descreve como

“chávena de expresso espacial”

— encimada por um tubo ou pa-

lha que permite não só o seu

consumo mas também sentir o

cheiro do café.

A ISSpresso também faz café lungo — um ex-

presso a que se acrescenta mais água numa se-

gunda etapa da confecção —, chás e aquece água

ou caldos para desidratar alimentos no espaço.

Este projecto, defende em comunicado Roberto

Battiston, presidente da AEI, “terá benefícios psi-

cológicos imediatos para os astronautas” e “me-

lhorou o nosso conhecimento sobre a dinâmica

de fl uidos”, completou o director da Argotec,

David Avino.

Lá em cima, Samantha Cristoforetti resume tu-

do com humor. “Café: a melhor suspensão orgâ-

nica alguma vez inventada”, brincou no Twitter

a astronauta. “Um expresso acabado de fazer na

nova chávena Zero-G [ravidade]”, prosseguiu,

fazendo ainda alusão à frase-lema de Star Trek

“To boldly go where no man has gone before” adap-

tando-a à arte da infusão rematando o seu tweet

com “To boldly brew…”.

AEI

e t e 0 e 5 ge e c a o está, e o

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 27

No conjunto da fi losofi a antiga

— longo período histórico-

fi losófi co de mais de 12

séculos, que começa com

Tales de Mileto, nos séculos

VII-VI a.C. e só termina

com os últimos fi lósofos

neoplatónicos, na viragem

do século VI para o século

VII d.C. —, costuma reservar-

se a expressão “pré-

socráticos” para designar os

primeiros fi lósofos de todos,

aqueles que, na esteira de

Tales, introduziram o tipo

de refl exão, investigação e especulação a que

se veio a chamar “fi losofi a”.

No período pré-socrático, o tema da luz

obteve dois tratamentos diversos por parte

dos fi lósofos: em clave científi ca, enquanto

fenómeno natural a explicar ou ela própria

elemento integrante de determinada teoria

explicativa; e em clave simbólica, enquanto

ingrediente narrativo de carácter mitopoético

ou alegórico.

Curiosamente, em contexto científi co, as

primeiras referências a este tema não são

directamente à luz (phaos, phôs), mas sim ao

relâmpago (astrapê).

Parece, de facto, que Anaximandro e

Anaxímenes de Mileto, os imediatos sucessores

de Tales, na primeira metade do século VI

a.C., se interessaram pelos relâmpagos e

propuseram uma teoria engenhosa para

os explicar. De acordo com essa teoria, os

relâmpagos, tal como os demais fenómenos

meteorológicos da mesma família, como os

raios, os trovões, os redemoinhos e os tufões,

não seriam, todos eles, senão o resultado de

diferentes manifestações do ar e do vento.

Como nos conta um doxógrafo, “Anaximandro

diz que todos estes fenómenos acontecem

como resultado do vento: pois, sempre que

este é encerrado numa nuvem densa e depois

irrompe para fora dela à força, graças à sua

subtileza e leveza, o rebentamento produz o

estrondo, ao passo que a fenda em contraste

com o negrume da nuvem produz o clarão”.

Por isso, como diz outro autor, “o relâmpago

origina-se sempre que o vento se desencadeia

e fende as nuvens”.

Um outro aspecto que muito interessou e

estimulou a actividade científi ca dos primeiros

fi lósofos foi a explicação da luz da Lua.

Segundo uma tradição, hoje desacreditada,

teria sido o mesmo Anaxímenes a descobrir o

carácter refl exo da luz lunar. É provável que

essa descoberta tenha sido de facto feita no

período pré-socrático, mas um pouco mais

tarde, uma vez que fi lósofos das gerações

seguintes, como Parménides, Empédocles

e Anaxágoras, entre a segunda metade do

século VI e o último quartel do século V a.C.,

conhecem todos o facto de que a Lua não tem

luz própria, antes a recebe do Sol.

Estava, no entanto, destinado a Empédocles

de Agrigento, no século V a.C., conceber a

primeira teoria científi ca onde a luz comparece

como tal. Trata-se da sua teoria da percepção

como conhecimento do semelhante pelo

Especial Aniversário

A LUZ COMO MEIO E LIMITE ANTÓNIO PEDRO MESQUITA

A ORIGEM DO RELÂMPAGOsemelhante, pela emissão de efl úvios através

dos poros que cobrem a totalidade do corpo

humano e que, ao atingir as partículas

equivalentes do objecto, permitem percebê-lo,

teoria no quadro da qual a visão é explicada,

analogamente, pela emissão de luz através da

pupila.

Eis como, de acordo com um testemunho

de Aristóteles, ele se teria expressado: “Assim

como quando alguém, ao planear uma viagem

numa noite de invernia, prepara uma luz,

uma chama de ardente fogo, ao acender para

qualquer espécie de tempo uma lanterna

de linho, que dispersa o sopro do ventos,

quando sopram, mas a luz mais ténue jorra

para o exterior e brilha através do limiar

da porta com raios que não vacilam: assim

também, nessa altura, ela Afrodite [deusa

do amor e fi gura cosmogónica na obra de

Empédocles] deu à luz a redonda pupila, fogo

primevo confi nado ao interior de membranas

e delicadas roupagens e foram estas que

contiveram a água profunda que fl uía em

redor, mas consentiram que para fora passasse

o fogo mais subtil.”

Este texto é sugestivo porque mostra como,

nos tempos de Empédocles, já no fi nal do

período pré-socrático, a natureza poética da

expressão não impedia ainda a pretensão

científi ca da explicação.

Porém, um pouco antes de Empédocles,

na viragem do século VI para o século V a.C.,

Parménides de Eleia, um dos mais infl uentes

pensadores do seu tempo — e ele próprio

também autor de um Poema, mas de cariz

fortemente conceptual e abstracto —, é, a

este respeito, particularmente interessante,

porque, não apenas formula em termos

poéticos uma explicação científi ca, como

aquele, mas inclusive fala da luz nos dois

registos que acima distinguimos, a saber,

tanto em registo científi co, como em registo

simbólico.

De facto, nas interpretações mais correntes

do Poema de Parménides, este consta das

seguintes três partes: um proémio de natureza

alegórica, onde se narra, em linguagem

cifrada, a viagem de um jovem até uma deusa

que, ao acolhê-lo, lhe promete contar “todas

as coisas”, a saber, “tanto o ânimo inabalável

da rotunda verdade, como as opiniões dos

mortais, em que não há verdadeira confi ança”;

uma segunda parte, conhecida como “Via da

Verdade”, onde a deusa cumpre a primeira

secção do seu programa, desenvolvendo

o seu “pensamento acerca da verdade”; e,

fi nalmente, uma terceira parte, conhecida

como “Via da Opinião”, onde ela faz o jovem

aceder às crenças enganadoras dos mortais,

correspondentes, de acordo com as mesmas

interpretações correntes, a uma cosmologia de

carácter assaz convencional.

Ora, na terceira parte, a cosmologia

proposta, de que restam pouquíssimos

elementos, surge toda ela fundada na distinção

originária de duas “formas”, justamente a luz,

“chama etérea do fogo, branda e muito leve”, e

a “noite escura, densa na aparência e pesada”,

a cuja diversidade competiria explicar todos os

fenómenos cósmicos, estando, como ele diz,

todo o Cosmo, “a um tempo, repleto de luz e

de noite sombria”.

Todavia, se na terceira parte está reservada

à luz um papel de carácter científi co, também

na primeira parte intervém a luz, só que aqui

carregada de fortíssimo valor simbólico. De

facto, a própria viagem narrada no proémio

é toda ela vista como um trajecto da mansão

da Noite, simbolizando a ignorância, para a

mansão da Luz, morada da deusa que acolhe o

jovem, simbolizando o conhecimento, trajecto

em que ele é sugestivamente conduzido pelas

“fi lhas do Sol”.

Bem entendido, este valor simbólico da luz

e o próprio signifi cado que lhe é atribuído no

Poema de Parménides tinham já, no tempo

deste, uma larga e antiga tradição na cultura

grega, bem testemunhada na Teogonia de

Hesíodo (século VII a.C.) e, se pelo menos a

inspiração deles for arcaica, nos textos órfi cos.

Um dos momentos onde, já no interior

do pensamento fi losófi co, tal está patente

é na “tábua dos contrários” pitagórica,

onde, de acordo com Aristóteles, a luz e a

obscuridade fi guram no conjunto dos dez

princípios opostos que os pitagóricos teriam

concebido: “Limite e ilimitado, ímpar e par,

uno e pluralidade, direito e esquerdo, macho

e fêmea, estático e dinâmico, recto e curvo,

luz e escuridão, bom e mau, quadrado e

rectangular.”

Não queremos terminar sem fazer referência

a um pequeno texto, que, como é timbre

do seu autor — o fi lósofo pré-socrático mais

rebelde a classifi cações —, não poderia ser

catalogado em nenhum dos dois registos por

que distribuímos o tema da luz no período pré-

socrático.

Trata-se do fr. 26 de Heraclito de Éfeso

(século VI a.C.), que, dado o seu imbricamento

com a totalidade do seu pensamento fi losófi co,

nos limitamos aqui a citar, sem nos atrevermos

a sequer propor um início de interpretação.

Diz assim: “De noite, o homem acende uma

luz para si próprio, ao extinguir-se-lhe a visão;

em vida, está em contacto com o que é morto,

quando dorme, e com o que dorme, quando

acordado.”

Que fi que apenas como um testemunho

do encantamento muito especial do texto

heracliteano e não menos do justifi cado

epíteto que a tradição lhe atribuiu: Heraclito,

“o obscuro”.

(Todas as traduções são retiradas de Kirk –

Raven –Schofi eld, Os Filósofos Pré-Socráticos,

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.)

a António Pedro Mesquita é professor de Filosofi a

Antiga na Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa e investigador do Centro de Filosofi a da

mesma universidade. Tem diversas obras publica-

das neste domínio, sobretudo sobre Platão e Aris-

tóteles, e é o coordenador do projecto de tradução

anotada das obras completas de Aristóteles, pelo

qual está sendo publicada, em Portugal (Impren-

sa Nacional-Casa da Moeda) e no Brasil (Editora

Martins Fontes), a totalidade dos escritos incluídos

na colecção atribuída a este fi lósofo

A série A Luz como Meio e Limite apresenta quinzenalmente um artigo escrito por um autor oriundo dos mais variados campos do conhecimento ou da criação artística, sob orientação de Pedro Lapa, professor universitário e director artístico do Museu Colecção Berardo. Esta semana, a refl exão é do professor de Filosofi a Antiga António Pedro Mesquita

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28 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

ALEXANDRA LUCAS COELHONÃO FICÇÕES

O VESTIDO PÓS-11 DE SETEMBRO 1

Quatorze anos depois, voltei a pôr o meu pri-

meiro vestido pós-11 de Setembro no aeroporto

de Istambul, entre vir de Lisboa e voar para o

Iraque. Isso aconteceu na quarta-feira, e vesti-o

todos os dias até hoje, sábado. Aliás, de ontem

para hoje nem cheguei a tirá-lo, dormi com

ele no chão de uma sala de mulheres peshmergas,

combatentes curdas que se têm revezado na linha

da frente contra o “Estado Islâmico”. O resultado

disso foi um rasgão de lado, tão esgarçado está

o tecido, quatorze anos depois. É, no mínimo, o

que se pode dizer desta parte do mundo quatorze

anos depois, e pode bastar um vestido para alguém

perder a cabeça. Foi por isso que o meu tradutor

curdo fi cou aliviado quando lhe mostrei o rasgão,

dando o vestido por acabado.

2. O meu tradutor não me disse logo de início o

que achava do vestido. Nem sequer o que o irmão,

nosso condutor, achou ao avistar-me no parque de

estacionamento do aeroporto de Suleymaniah,

enquanto ele me procurava nas chegadas. Eu não

sabia que ele lá estaria à espera, muito menos que

haveria um irmão. Quando ele, porque não me

localizava, ligou ao irmão que continuava lá fora,

o irmão respondeu-lhe que, assim com as minhas

características, só vira uma iraniana.

3. Claro que a iraniana era eu, mas só percebi

isso muitas horas e quilómetros depois de aterrar,

ao cair da noite em Erbil, a capital do Curdistão

iraquiano. O meu tradutor acabava de, fi nalmente,

DR

Pior do que paquistanesa (do ponto de vista curdo): eu podia ser iraniana. Portanto, que tal comprar algo ali para vestir?

4. O comandante curdo que nos ia receber agora

estava num ponto dessa linha, perto de Nimrud,

a mítica cidade da Assíria cuja destruição o “Es-

tado Islâmico” recentemente fi lmou ao melhor

estilo Rambo. Tínhamos de lá chegar às dez da

manhã, anunciou-me o meu tradutor. E a sorrir,

como bom oriental, perguntou então se eu só tinha

aquele vestido.

5. Por acaso sim, porque o resto da roupa, que já

não era muita, fi cara em Suleymaniah. Mas, argu-

mentei, eu comprara aquele vestido no Paquistão

uma semana depois do 11 de Setembro, era um ves-

tido igual ao de milhões de muçulmanas, que me

cobria até aos joelhos, por cima de calças devida-

mente largas. Pois, mas o problema era justamente

ser um vestido paquistanês, explicou ele. Que me

cobrisse mais ou menos não era tão importante,

mas ser paquistanês, sim, mais do que importan-

te, perigoso. Paquistanês, iraniano, afegão, o meu

vestido parecia qualquer uma destas coisas, talvez

árabe, em última análise marroquino, e qualquer

uma destas coisas podia inspirar mais desconfi ança

do que eu ser uma ocidental descoberta. Isto, do

ponto de vista curdo, que frequentemente prefere

Bush a Obama, porque Bush acabou com Saddam

e ninguém é um monstro maior do que Saddam do

ponto de vista curdo, pelo menos até ao apareci-

mento do “Estado Islâmico”. E, para reforçar o seu

ponto, o meu tradutor contou-me o que o irmão

lhe contara no aeroporto. Pior do que paquistanesa

(do ponto de vista curdo): eu podia ser iraniana.

Portanto, que tal comprar algo ali para vestir?,

perguntou, apontando as lojas ainda abertas.

6. Eis como o puzzle desta parte do mundo só

fi cou mais complexo e sectário nos últimos quator-

ze anos. A “guerra contra o terror” com que Bush

respondeu ao 11 de Setembro multiplicou os de-

mónios, e um dos exemplos é a latente guerra civil

no Iraque (curdos sunitas, árabes sunitas, árabes

xiitas, e as suas diversas áreas de infl uência exter-

na), que só não reemerge porque há a emergência

do “Estado Islâmico”.

7. Corremos as montras femininas até o meu

tradutor admitir que, de facto, nada daquilo ser-

via, variava entre roupa de parturiente e fancaria

fl amejante. OK, concedeu, grave, se não havia nada

a fazer, eu iria com o meu vestido.

8. Prossegui as sondagens: o recepcionista do

hotel onde dormi alvitrou que eu vinha de Marro-

cos, e a recepcionista concordou, mas uma cliente

sentada no átrio contrapôs em voz alta: Paquistão!

O meu tradutor sorriu. Entre as peshmergas que

me alojaram na noite seguinte, Índia, Marrocos e

Afeganistão fi caram empatados no segundo lugar

com um voto. Vitória para o Paquistão.

9. Entretanto, fomos à Linha da Frente, onde o

vestido não assumiu nenhum papel nos aconte-

cimentos: nem nos checkpoints nem na linha da

frente alguém me tomou por paquistanesa, ira-

niana ou marroquina. Mas também não passou

despercebido. Em plena trincheira, o meu tradutor

decifrou os sussurros e teve de rir para dentro.

Porque junto aos sacos de areia de onde fazem

mira contra o “Estado Islâmico”, a menos de dois

quilómetros, os soldados discutiam de onde diabo

vinha eu. E certamente porque, por alguns dias,

um terramoto ultrapassou o Califado nas notícias,

a teoria militar era esta: eu vinha do Nepal.

receber um telefonema con-

fi rmando que um comandan-

te peshmerga nos receberia

na linha da frente na manhã

seguinte. Erbil fi ca apenas a

80 quilómetros de Mossul, a

cidade que o “Estado Islâmi-

co” tomou em Junho de 2014,

deslocando o mapa do Médio

Oriente, e o foco do mundo,

de um momento para o ou-

tro. Ao longo das centenas

de quilómetros de linha da

frente entre o Curdistão e

o “Estado Islâmico”, a zona

entre Erbil e Mossul é a mais

simbólica. Exército iraquia-

no, milícias pró-iranianas,

coligação internacional e

peshmergas curdos estão a

tentar cozinhar a retomada conjunta de Mossul.

Uma aliança de inimigos, impensável antes de o

“Estado Islâmico” ter batido recordes de crueldade

desde que há Internet. Mas até que uma aliança

aconteça, os curdos é que seguram a sua linha da

frente no terreno, tentando que as trincheiras se

mantenham mais perto de Mossul que de Erbil. E

há um mês a capital curda tremeu quando enviados

do “Estado Islâmico” detonaram um carro-bomba

junto ao Consulado Americano, em pleno bairro

cristão. Um sinal de como o Califado conseguia

matar bem além da linha da frente.

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2 | Domingo 17 Maio 2015 | 29

NUNO PACHECOEM PÚBLICO

Anacleto estava radiante. Já lhe tinham dito

lá na repartição mas ele não acreditava. No

dia 13, o das aparições lá de Fátima, já po-

dia escrever com menos letras, que alívio.

Agora era lei, já não podiam gozar com ele

quando escrevia “coação” e lhe pergunta-

vam onde é que tinha comprado o coador. Só podia

ser mesmo bênção dos pastorinhos. Ele tinha-se

informado, sabia tudo. Até ao dia 13, havia na escrita

portuguesa duas ortografi as. Uma para Portugal e

outra para o Brasil. Um excesso! Agora, a partir de

dia 13, passa haver só duas ortografi as. Reparem

bem na subtileza: duas e “só duas”. Completamente

diferente. As duas antigas tinham muitas palavras

diferentes, e além disso eram duas. As novas tam-

bém têm palavras diferentes (não exactamente as

mesmas, porque é preciso variar, a escrita tem de

vencer o tédio) e são “só duas”. Ora é com este “só

duas” que o português vai fi nalmente ser aceite lá

na ONU, na UE, na CEDEAO e nessas coisas todas

importantes. Mesmo na colectividade lá do bairro,

onde os comunicados já estavam a ser escritos em

mandarim, ia passar a imperar o “só duas”. Que é

uma escrita comum, como está bom de ver.

Ele, Anacleto, até já se precavera. Comprara um

dossier daqueles de argolas, bem bonito, de capa

colorida, para começar a coleccionar os precio-

sos documentos escritos em “só duas”. Claro que

nem toda a gente ia aceitar aquilo, havia muitos

conspiradores, sediciosos, sempre prontos a pôr

em causa os altos interesses da Pátria. Para isso,

ele tinha um remédio: o capitão Windows. Era

como o capitão Falcão do

fi lme, o que dava pancada

a torto e a direito nos que

desafi avam o poder do se-

nhor doutor, mas este era

mais hábil e efi caz. Mesmo

sem capa, voava; e, mes-

mo sem ser o velhinho de

barbas brancas assessora-

do por renas a cada Natal,

conseguia entrar em todas

as casas ao mesmo tempo.

Fosse onde fosse, aqui ou

noutros continentes. Bem

podiam queixar-se de que

isto estava a “desarrumar o português”, como ou-

vira a um jornalista africano descontente com a

nova lei. O capitão Windows ri-se do matraquear

no teclado e corrige as más vontades. Só dedos

muito atentos e hábeis conseguem despistá-lo.

Mas até esses hão-de cansar-se, vão ver!

Feliz com o 13 de Maio, Anacleto sabia que a coisa

não ia fi car por ali. Que havia já, no Brasil, quem

anunciasse mais simplifi cações. Escrever como se

fala, claro, como é que ninguém tinha pensado nis-

so. Ou tinha? Na verdade, soube ele depois de ir

ao Google, houve em tempos um militar paladino

da simplifi cação ortográfi ca, o general Bertoldo

Klinger (1884-1969), que assinava “jeneral Klinjer”

e que, muito antes de apoiar o golpe que instaurou

a ditadura em 1964, escreveu uma ousada obra inti-

tulada Ortografi a Simplifi cada Brazileira. Aí, dando

largas à ortografi a que ele próprio inventara, escre-

veu: “Etimolojia e Uso têm seu relevante papel, sine

qua non, na constituisão, no recrutamento do voca-

bulário; feito isso, termina, porêm, seu papel: entra

em asão a Ortografi a, para fi csar fi elmente para os

olhos o ce a boca emitiu, o ouvido persebeu. Portanto,

a Ortografi a alfabética só póde ser pronunsiativa,

fonética. Seu instrumento é o Ortoalfabéto, de símbo-

los nesesários e bastantes, sônicos, simples, diretos e

imvariáveis. Direto, cér dizer ce o nome do símbolo é

ezatamente o do próprio fonema ce ele representa.”

Anacleto entrara em êxtase. Era aquilo, e aquilo era

a luz. Agora, havia um movimento que ressuscitara

o espírito de “Klinjer” e, além de propor simplifi -

car o mais possível a escrita, defendia alterações

fantásticas (Anacleto leu tudo, ávido, na página do

movimento Acordar Melhor). Homem passaria a

“omem”; Passa a “pasa”; Excelência a “eselênsia”;

Chuva a “xuva”; Asa a “aza”; Faça a “fasa”; Exame

a “ezame”; e quero a “qero”. “Tudo o que se quer,

consegue-se, quando se tem convicção”, leu ele no

fi m do manifesto da coisa. É assim mesmo: com mi-

litarões destes, ainda conquistamos o mundo!

P.S. — Na crónica anterior, Preciosas “jazzidas”,

omitiu-se involuntariamente um programa de tele-

visão que também contribuiu para fazer a história

do jazz em Portugal: aTensãoJAZZ, de Rui Neves e

Paulo Seabra, documentário feito para a RTP em

2011, com quase seis horas divididas por dez epi-

sódios. Está parcialmente disponível no YouTube.

Aqui fi ca a rectifi cação.

O CAPITÃO WINDOWS E O GENERAL KLINGER

O capitão Windows ri-se do matraquear no teclado e corrige as más vontades

Torna-se cada vez mais necessário ouvir pessoas com prestígio na Educação, Saúde e Justiça, capazes de inspirar um programa diferente mas realista

garantir à partida. Já todos percebemos como a

nossa economia está dependente da Europa e não

temos possibilidade de caminhar sozinhos, como

o caso da Grécia exemplarmente demonstra.

Costa caminha num desfi ladeiro estreito, de um

lado cercado por uma extrema-esquerda irrealista

porque longe do poder, do outro rodeado por uma

direita que se organiza cada vez melhor à volta de

um discurso simples, mas efi caz: “Nós herdámos

a bancarrota, equilibrámos as contas e não pode-

mos dar o poder àqueles que nos conduziram à

necessidade de apoio externo.” Com a prisão de

Sócrates a surgir como uma sombra nesse caminho

apertado, Costa necessita de toda a sua argúcia e

experiência política para conseguir uma vitória

folgada, que permita a necessária negociação para

um governo estável.

Torna-se cada vez mais necessário ouvir, depois

dos economistas, pessoas com prestígio na Educa-

ção, na Saúde e na Justiça, capazes de inspirar um

programa diferente mas realista, em que o respeito

pelas pessoas em difi culdades ocupe de facto o

primeiro plano, sem regresso ao despesismo de

outrora.

Para todos aqueles que aspiram ao fi m do cons-

trangimento penoso que nos asfi xiou nestes últi-

mos quatro anos, impõe-se um movimento cívi-

co que guie Costa no seu labirinto e o conduza

à vitória.

DANIEL SAMPAIOPORQUE SIM

COSTA NO SEU LABIRINTO J

á todos percebemos que António Costa vive

numa encruzilhada difícil: é fundamental

que nos convença de que pode fazer dife-

rente e melhor, mas também precisa de nos

demonstrar como as suas propostas são re-

alistas e não abrirão a porta ao descontrolo

fi nanceiro de outros tempos.

O memorando dos economistas foi uma excelen-

te iniciativa. Embora a grande maioria dos portu-

gueses não compreenda os pormenores com que

economistas e politólogos de serviço nos invadem

no quotidiano televisivo, fi cou claro para todos

que Costa tem uma margem de manobra muito

estreita. Fazer diferente e melhor será diminuir o

impacto da austeridade, sem deixar por comple-

to de a praticar. Se economistas de prestígio nos

demonstram ser possível devolver algum poder

de compra aos cidadãos e reanimar a economia,

também se percebeu que alguma austeridade e

contenção nos gastos públicos são cruciais para

o futuro do país. É por isso que o memorando foi

uma saudável demonstração de um bom contribu-

to técnico para um programa político, ao clarifi car

como as frases gritadas nos comícios de “Fim à

austeridade!” não passam o teste da realidade que

um programa de governo sempre implica.

Costa tem de compreender depressa que aqueles

que o apoiam nas reuniões partidárias pelo país fora

representam apenas o entusiasmo militante, mistu-

rado com muita gente

que só aspira a um lu-

gar de protagonismo

partidário. Essas pes-

soas não compreen-

dem a sua encruzilha-

da, são apenas críticos

do governo por tradi-

ção. Noutros locais,

contudo, não faltam

os verdadeiros apoian-

tes: todos aqueles que

sofreram na pele a po-

lítica de destruição do

emprego ou viveram a

diminuição dos apoios

sociais que caracteri-

zaram a prática da co-

ligação no poder.

As preocupações dos portugueses não são o ce-

nário macroeconómico, os jogos partidários ou os

discursos dos deputados. Centram-se no desem-

prego, na educação e no futuro de fi lhos e netos,

na protecção dos idosos e das crianças, no acesso

mais rápido ao Serviço Nacional de Saúde, nas con-

dições de habitação e na rapidez e menor custo dos

transportes. É sobre estas questões que António

Costa tem de falar diferente, sem fazer promessas

avulso e sem acenar com resultados que não pode

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30 | Domingo 17 Maio 2015 | 2

CRÓNICA URBANABAIRRO DO RIOBOM, PORTO

Numa escarpa com vista para o Douro, o bairro foi sobrevivendo com vários moradores sem água, sem visitas do carteiro e com hortas improvisadas

Há um bairro abandonado pelo resto da cidade onde moram cerca de 20 pessoas. Não pagam renda e alimentam-se do que cultivam naqueles terrenos encharcados por anos de lavagem de peles da fábrica de curtumes. Texto de Patrícia Carvalho e Ilustração de Nuno Sousa

GENTE ATRÁS DA LINHA DO COMBOIO

Parece impossível. Parece impossível que

ali haja gente, que ali vivam velhos, que ali

morem sonhos e esperanças. Parece, de fac-

to, que “ali” nem sequer existe, porque, à

primeira vista, não há forma de lá chegar.

Como explicar que numa escarpa portuense

sobre o rio Douro, naquele pedaço de encosta que

acaba junto à abandonada Ponte D. Maria Pia, haja

pessoas mais abandonadas do que esta famosa

vizinha de ferro? Como explicar que para chegar

ali é preciso atravessar um outro bairro-tipo-“ilha”

e passar por cima da linha de comboio por onde

circulam, diariamente, as composições que ligam

as estações de Campanhã e de S. Bento? Como

explicar que este acesso, perigoso e escondido,

seja o único que existe? O Bairro do Riobom não

existe, de certeza. Mas está ali.

O Bairro do Riobom é a casa de Conceição, de

Acácio, de “Didi” Preto e de cerca de outras 20 pes-

soas. Mudaram-se para aquele terreno escarpado,

com construções esquecidas da antiga fábrica de

curtumes de José Riobom dos Santos, quando já

ninguém sabia exactamente quem era o proprie-

tário dos terrenos e sem que alguém, algum dia,

lhes tenha pedido renda ou satisfações. As obras,

se as houve, foram feitas pelos próprios. Quem

não pôde fazer nada, por falta de meios ou forças,

como Conceição, fi cou presa a quatro paredes de

cimento cobertas com uma chapa metálica, onde

deve meter medo estar em dias de temporal. E

onde os dias de sol também a fazem verter lágri-

mas, porque sabe que aquelas paredes quase não

merecem ser chamadas “casa”.

Do outro lado da linha do comboio, o Riobom

deixou-se esquecer pela cidade e a cidade não se

fez rogada em esquecer-se de quem vive enclausu-

rado. O carteiro deixou de aparecer. Os baldes que

fazem as vezes das casa de banho são despejados

ao longo da linha, nos intervalos da passagem dos

comboios. Os que agonizam morrem antes de os

bombeiros conseguirem chegar ou são levados em

braços pelos moradores, através da linha do com-

boio, através do bairro vizinho, até à rua, onde o

socorro talvez chegue a tempo, vamos lá ver.

Ainda assim, quem ali vive não desiste de trans-

formar a escarpa com vista aberta sobre o Douro

em aconchego. Quem não tem água em casa vai

buscá-la aos vizinhos. Levantaram-se muros onde

as pedras tinham caído. Nos bocados de terra que

sobram entre as pedras crescem cebolas, alfaces,

couves e favas. De Cabo Verde, país de origem de

grande parte dos moradores, chegaram bananeiras

e cana-de-açúcar. É certo que um dos motivos pe-

los quais José Riobom dos Santos instalou ali a sua

fábrica de curtumes, em meados do século XIX,

foi pela inclinação do terreno, que permitia que as

águas sujas de lavar as peles pudessem rolar, livres,

até ao rio. É certo que se desconhece a existência

de análises à qualidade das terras, encharcadas

durante anos por essas águas sujas que desciam

até ao Douro. Um dos rectângulos de terreno de

Acácio, onde deviam nascer alhos, não deu mais

que uns canos raquíticos que nunca chegarão a

um prato e ele acha que a razão são essas águas

manchadas.

Também é certo que as cabras de “Didi” vivem

no meio do lixo e se alimentam dele. “Salubrida-

de” é uma palavra sem signifi cado neste pedaço

de Porto.

Mas os moradores insistem. Não pagam ren-

da, não chegam drogas nem discussões (ou, pelo

menos, eles dizem que assim é), têm sossego. O

carteiro não entra, mas entrega as cartas numa

loja próxima. Ali apanham sol com o Douro e a

ponte como companhia. É para ali que as netas

de Acácio correm, mal terminam a catequese ao

sábado de manhã, recusando abandonar os avós

durante todo o fi m-de-semana. Têm 13 e 11 anos e

levam com elas a irmã de dois. Sim, elas cruzam

sozinhas a linha de comboio até chegarem ao sofá

do avô, aos terrenos que ele cultiva, aos coelhos

novos que se aninham atrás da mãe na coelheira.

Elas já conhecem os horários dos comboios e, de

certeza, que nada de mal irá acontecer.

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