Revista Científica ECOCIENCIA - Revista Cientifica ECOCIENCIA
Revista-2015_05_17
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PÚBL
ICO,
DOM
INGO
17 M
AIO
2015
SUÉCIA OS CAMPEÕES DA IGUALDADE CONTINUAM A LUTAR
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 3
DR
DRDANIEL ROCHA
Objectos em volta: ISSpresso, a máquina de café desenhada para o espaço
A Revista 2 acompanhou a viagem de Lara Nogueira e Marco Nunes até Phaskot, uma pequena aldeia a três horas de viagem de Katmandu que sem eles pouco ou nada teria. Pela sua história, conta-se também a de um país em que a terra ainda não parou de tremer
No Inverno de 2014-15, uma
mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história
de Ž, um fotógrafo de guerra
desaparecido. Conto inédito deAlexandra Lucas
Coelho
Vai começar uma guerra de civilizações? Alguma vez existiu um mundo bipolar entre o islão e a cristandade? Jaime Nogueira Pinto escreveu O Islão e o Ocidente, sobre as andanças históricas da “grande discórdia”
REVISTA 2 ÍNDICE26
22
18
08
Directora Bárbara Reis Editoras
Francisca Gorjão Henriques fgh@
publico.pt, Paula Barreiros paula.
[email protected] Copydesk
Rita Pimenta Design Mark Porter
e Simon Esterson Directora de
Arte Sónia Matos Designers
Helena Fernandes, Sandra Silva
Email [email protected]
Este suplemento faz parte
integrante do Público e não pode
ser vendido separadamente
FICHA TÉCNICA
04 IMAGEM/PALAVRAJorge Almeida Fernandes
Nepal — Sunt lacrimae
rerum
Rita Pimenta
Acordo — (Des)entendimento
ortográfi co
06 PERSONAGENS DE FICÇÃO
Manuel Metódico
Desleixado Loureiro
Por Rui Cardoso Martins
07 DIÁRIO DE VHILSO desenvolvimento da peça
Olhar de Alexander Farto
12 COMO A IGUALDADE DE GÉNERO FEZ DA SUÉCIA UM PAÍS MAIS RICO
O país tem um Governo
“feminista”, quer impor
quotas nas maiores
empresas obrigando-as
a ter 40% de mulheres a
mandar e quer pressionar
os casais a partilhar mais
as licenças parentais.
Contudo, ainda ninguém
está satisfeito
27 A LUZ COMO MEIO E LIMITE Phaos. Por António Pedro
Mesquita
30 CRÓNICA URBANABairro do Riobom, Porto
CRÓNICASJosé Diogo Quintela
Não TAP os ouvidos: aviões
parados não fazem barulho 5
Alexandra Lucas Coelho
O vestido pós-11
de Setembro 28
Nuno Pacheco
O capitão Windows
e o general Klinger 29
Daniel Sampaio
Costa no seu labirinto 29
Capa: Cartaz da década de 1970, quando a Suécia se tornou o primeiro país do mundo a criar a “licença parental”
AEI
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Explica o dicionário que “acordo” significa “entendimento recíproco” e também “parecer favorável”. O mesmo é dizer “aprovação”, “consentimento”. No dia 13 de Maio, impôs-se oficialmente a adopção do Acordo Ortográfico de 1990. Em teoria, estamos a falar (e sobretudo a escrever) de “concordância”, “assentimento”, “convenção”, “pacto”. Na prática, nem tanto. E não é teimosia, é apreço pela
legibilidade e compreensão.“O comboio para o Porto para em Coimbra.” Percebeu o que se queria dizer? O segundo “para” significa “pára”. Agora imagine o que fazer a este slogan de um clube desportivo que até aqui gritava: “Ninguém pára o Vitória!” A versão oficial será: “Ninguém para o Vitória!” Se o desempenho atlético não os salvar, o contexto linguístico ainda menos.Outro exemplo: “Passar a mão pelo pelo.” Esta é mais
óbvia, mas ainda assim… que mal fazia deixar o acento circunflexo no “pêlo”?O “acordo” de que aqui se fala valoriza a fonética e subestima a etimologia. É um critério discutível, mas que já de pouco adianta discutir. Os organismos oficiais vão continuar a redigir de acordo com o acordo (e tantas vezes tão mal que nem se percebe de acordo com quê), as editoras prosseguirão na produção de dicionários (facturando de acordo) e
os alunos serão avaliados segundo as novas regras ortográficas (mesmo com professores em desacordo).“Tino”, “juízo”, “reflexão” também são traduções de “acordo”. Mas o sentido que mais nos agrada nada tem que ver com isto: “Instrumento italiano, espécie de rabecão, de doze a quinze cordas, que tangidas simultaneamente produziam sons acordes.” Outra música, portanto. “Alto e para... o baile.” Rita Pimenta
ACORDO(DES)ENTENDIMENTO ORTOGRÁFICO
IMAG
EMPA
LAVR
A
NEPAL Há lágrimas nas coisas. “Sunt lacrimae re-
rum et mentem mortalia tangunt” (Virgílio,
Eneida, Livro I, verso 459). Podemos tra-
duzir quase à letra: “Há lágrimas nas coisas
e tocam a alma dos mortais.” Mas há deze-
nas de propostas de tradução ou interpre-
tação. Eneias contempla, num templo de Cartago,
imagens da Guerra de Tróia, uma tragédia históri-
ca. Nós contemplamos as fotografi as de uma tra-
gédia natural e humana — no Nepal.
O Nepal tornou-se um país de homelesses, escreve
um jornalista nepalês. O sismo de 25 de Abril não
fez apenas 8 mil mortos, 20 mil feridos e centenas
de milhares de desalojados: “Seiscentas mil casas
destruídas, 22 mil escolas em ruínas, edifícios go-
vernamentais em escombros. É como se tivessem
recebido um tapete de bombas. E tudo isto antes
do segundo sismo, na terça-feira, que acabou por
arrasar o que ainda estava de pé.”
Nem os deuses resistiram. Nos templos vêem-se
por terra estátuas e imagens. O Nepal tem uma his-
tória própria, fruto da mistura de culturas e religiões
— hindu, budista e tântrica, diz a UNESCO no seu
site. “Katmandu, com a sua herança arquitectónica
única, os seus palácios, templos e pátios interiores,
inspirou escritores, artistas e poetas, estrangeiros
ou nepaleses.” Parte do património cultural fi cou
reduzida a pó.
Foi um país fechado aos estrangeiros durante
128 anos. Reabriu as portas em 1951. Tornou-se o
eldorado dos alpinistas e, depois, dos hippies. O tu-
rismo é vital para um dos países mais pobres do
mundo. Mas tem faces ocultas. Dezenas de milhares
de adolescentes trabalham como prostitutas nos
hotéis. Lugares de desportos de montanha são hoje
depósitos de lixo.
Encurralado ente dois gigantes, a Índia e a China,
o Nepal está instalado sobre um abismo — a sul, a
placa tectónica indiana, a norte, a placa tectónica
da Eurásia. Foi a colisão entre estes dois blocos que,
há 50 milhões de anos, fez nascer os Himalaias.
Entre 1996 e 2006, o Nepal viveu uma feroz guer-
ra civil entre uma guerrilha maoísta (inspirada no
Sendero Luminoso peruano e não em Mao) e uma
brutal repressão militar e policial: 13 mil mortos.
Em Junho de 2001, o rei Birendra e quase toda a
família real foram massacrados pelo príncipe her-
deiro. Sucedeu-lhe o irmão Gyanendra, despótico
e suspeito de ter inspirado o regicídio. O Nepal in-
surgiu-se e, em 2006, o rei afastou-se e a guerrilha
abandonou a violência. Em 2008, foi instaurada
uma república federal. Os nepaleses julgavam-se
em paz. A Natureza declarou-lhes guerra.
Ninguém chora nesta fotografi a. Tal como na
Eneida, as lágrimas estão gravadas na própria ima-
gem. Jorge Almeida Fernandes
ROBERTO SCHMIDT/AFP
Lak Bahadur Tamany toma conta da sua filha de três anos nesta fotografia de quarta--feira, um dia depois do segundo terramoto no NepalSUNT LACRIMAE RERUM
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JOSÉ DIOGO QUINTELAÉ MUITO ISTO
NÃO TAP OS OUVIDOS: AVIÕES PARADOS NÃO FAZEM BARULHO
Não sei porque é que o Governo insis-
te em privatizar a TAP. Não se consegue
privatizar uma empresa que não perten-
ce ao Estado. Para a poder privatizar, há
que nacionalizá-la primeiro. Só depois
de expropriar o Sindicato dos Pilotos de
Aviação Civil é que se pode tentar arranjar donos
novos.
Há quem julgue que os pilotos estão em greve
porque, há quase 20 anos, João Cravinho lhes ga-
rantiu 20% numa futura privatização. Não faz senti-
do. Espero que os pilotos não estejam em luta para
trocar os actuais 100% que detêm por 20% que
possam vir a ter. Revelaria um péssimo domínio
da matemática por parte de quem se espera que
efectue cálculos complexos para acertar em cheio
com um caixote de ferro alado de 500 toneladas
no meio de 1km de asfalto.
A TAP é-nos é muito querida. A sua proximi-
dade aos portugueses é comovente. Mas não é a
proximidade entre compatriotas. É a proximida-
de muito pouco habitual entre proprietários e os
clientes. Em que outra companhia aérea é que os
voos começam com o comandante a dizer: “This
is the owner speaking”?
Diz-se que a TAP perdeu prestígio. É falso. Acon-
teceu justamente o contrário, a greve granjeou
prestígio. Que pássaro possui mais prestígio no
céu: um pombo ou uma águia? Pombos há aos
pontapés, já a águia é muito mais exclusiva. Neste
momento, da minha janela, avisto 27 pombos e
zero águias (se visse alguma, já não ia ver nenhum
pombo). Ora, exclusividade é prestígio. Os aviões
da TAP são as águias da aviação, na medida em
que são difíceis de observar. Mais um bocadinho e
transformam-se nos dodós da aviação, na medida
em que estarão extintos. Mais prestígio é difícil.
(Nota para depois: fazer o remake da Ilha da Fan-
tasia, a série dos anos 80 em que todos os epi-
sódios começavam com
um o pequeno Tatoo num
campanário a tocar um si-
no e a gritar: “The plane!
The plane!” Com aviões da
TAP, a série sai baratíssi-
ma porque o avião nunca
chega com as personagens.
Não se gasta dinheiro em
actores e guionistas, cada
episódio tem só um senhor
de fato branco e um anão a
conversarem.)
Tudo isso concorre pa-
ra a valorização da TAP,
que está a liderar o lucra-
tivo segmento comercial
das férias de aventura. Se
quer ir com a família para
um resort com pulseirinha,
quarto marcado e refeições
à hora certa, a TAP não é
para si. Mas se gosta de par-
tir à descoberta, se quer ser surpreendido e nunca
saber o que o espera, escolha a TAP. Ou terá férias
de sonho, ou sonhos com férias.
A TAP é também a única companhia aérea que
tem um cartão de fi delidade em que se podem
acumular metros. Aquelas voltas irritadas entre
o check in, o guichet das informações e a porta de
embarque podem ser acumuladas e trocadas por
mais voltas irritadas entre o check in o guichet das
informações e a porta de embarque.
Não se pode dizer que a TAP não tenha avisado.
Em 2011, lançou uma música cantada pela Mariza,
Paulo Flores e Roberta Sá. Chamava-se De braços
abertos. Sabe-se agora que era a avisar os passagei-
ros que, se querem viajar na TAP, mais vale abrirem
os braços e voar.
Os aviões da TAP são as águias da aviação, na medida em que são difíceis de observar. Mais um bocadinho e transformam--se nos dodós da aviação
IMAG
EMPA
LAVR
A
Pedro Madeira Pinto
16°53’02.7”N 24°59’25.2”WMindelo, São Vicente, Cabo Verde
16°52’41.7”N 24°59’46.8”WMindelo, São Vicente, Cabo Verde
GPS iPHONEBARCO
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PERSONAGENS DE FICÇÃO MANUEL METÓDICO DESLEIXADO LOUREIRORUI CARDOSO MARTINS
SOMOS O QUE ESCONDEMOS SERA 13 de Maio de 2015, algo de estranho se passava com a página na Wikipédia do distinto Dias Loureiro. Surgia por lá uma espécie de excesso de transparência na verdade, para falar como agora eles falam. Passos Coelho suspendeu a sua “voz de barítono” e alguém pegou na caneta, escrevendo de improviso a um empresário que correu mundo
Ao Manel Dias Loureiro, uma carta sincera
de O Imperfeito:
Meu caro amigo que, nas palavras trans-
parentes de alguém*, “conheceu mundo, é
um empresário bem-sucedido, viu muitas
coisas por este mundo fora e sabe que se
queremos vencer na vida, se queremos ter uma
economia desenvolvida, pujante, temos de ser
exigentes e metódicos”. Como sabes, umas das
estratégias comunicacionais que mais utilizo é co-
meter supostas gaff es e amadorismos improvisados,
mandando para o ar brutalidades cada vez maiores
(pieguice dos portugueses, custo incomportável
das doenças mortais dos pobres, denúncias das
cavaquices, “chibanços” das sms irrevogáveis do
Portas, elogios ao Dias Loureiro… etc.) Posso assim
atacar o que me dá jeito e acrescentar que nem
tenho estratégia comunicacional porque estou
sempre concentrado (e muito cansado) em, com
sangue-frio e abnegação, resolver os verdadeiros
problemas do país. É um truque velho que vai fu-
rando como a gota de água fura a pedra, como a
mentira fura a verdade.
Sei que também tens a tua escola. Dizeres no
Parlamento que fi zeste negócios ruinosos para o
BPN, pagos pelos portugueses, com um tal El-Assir
sem nunca saberes que ele era um famoso trafi can-
te de armas libanês, é um mimo de descaramento
que só te fi ca bem. Mas desleixaste-te um pouco
na vigilância, meu exigente e metódico Manel. No
dia 13 de Maio. passei os olhos pela tua página na
Wikipédia, onde aparecias (se calhar porque era
o dia das Aparições de Fátima…) citado a dizer ao
Diário de Notícias coisas estranhas como (mando
screen-shot): “As pessoas vêem que ganhei dinhei-
ro, mas não vêem que trabalhei sempre muito a
roubar o dinheiro dos outros, principalmente dos
contribuintes portugueses. E fi z negócios bem su-
cedidos, como roubar à farta os portugueses, que
tiveram de abdicar das suas reformas miseráveis
para pagarem o calote biliões que eu e os meus
muchachos do PSD criámos no BPN.”
Ora isto, não sei porquê, dá-me a impressão que
também me envolve. E dá-me tantas comichões
como dizer-se por aí que o Estado deve valer aos
mais necessitados e às pessoas sem empreendedo-
rismo. Ou que eu menti nas últimas eleições sobre
aumento de impostos, eu que só sei verdades.
Manel, não será boa ideia rever essa biografi a
pública? Posso dar-te um conselho de amigo que
ainda vai precisar de ti (vê como sou sincero e trans-
parente): contrata alguém e publica uma biografi a
sentimental e cheia de apologética messiânica, di-
fi culdades monetárias, tuberculoses e cancros da
mulher em marcha, com depoimentos giros. Deves
seguramente ter visto o livro — Somos o Que Escolhe-
mos Ser — com este lindo rapaz na capa a apertar
o nó da gravata para ir salvar a pátria. Ou a corda
do enforcado inocente, ou Martim Moniz quando
defende a sua honra, de baraço ao pescoço. Gostas
destas frases? Bom, não fui eu que as escrevi, foi
a biógrafa que está aqui ao meu lado. Foi ela que
conseguiu inventar, sem se rir, na página 68, sobre
*Passos Coelho: “O seu jeito para a escrita, certa-
mente herdado do pai…” e despachar que ele (este
teu criado) é “um afi cionado da perfeição”, duas
páginas depois de ter dito que “não é um homem
perfeito”. E em duas ou três frases lavar os dinhei-
ros da Tecnoforma “em que pôs-se em causa a inte-
gridade de uma pessoa” (pág. 135) e o Miguel Relvas
(pág. 136) e despachar ainda o Ângelo Correia. E
fi nalmente admitir que entre 1999 e 2004, quando
me fi z trânsfuga da Segurança Social, “foram anos
em que este cidadão foi mais imperfeito”.
Estás a ver o género? Isto é só um apanhado, o
resto tem mais sumo. Ora, não tendo tu qualquer
imperfeição meu caro Manel (eh, eh), vou dar-te
alguns defeitos convenientes. Queres uma pequena
biografi a irmã da minha? Cá vai:
“Manuel Dias Loureiro é um advogado, político e
empresário que nasceu em 1951 em Aguiar da Beira
numa enfermaria ou em casa. Morto politicamente
nos anos 2000, renasceu numa queijaria da mesma
Aguiar da Beira pela voz providencial de *Passos
Coelho, homem que sabe que, durante a sua infân-
cia em Angola, antes do 25 de Abril, nunca houve
guerra colonial mas “uma guerra de extermínio
entre MPLA e UNITA”. Mais tarde, e Dias Loureiro
deveria seguir o seu conselho, “nunca confundiu
política com poder” e “sempre teve uma sede, uma
vontade, quase aditiva, pelo conhecimento”. Dias
Loureiro, que uma vez terá gritado ao telefone “Pai,
sou ministro!” e que em 1994 tramou Cavaco man-
dando a polícia de choque desbloquear a Ponte
25 de Abril, devia explicar os desfalques no BPN e
na SLN com verdade, mesmo correndo o risco de
“a transparência se poder confundir com frieza.”
Ele também há-de ser um abnegado e sentimental
pai de família, só que é este o Manuel “que não se
deixa conhecer”. Fala muito do golfe e dos janta-
res com Bill Clinton e o Rei de Espanha, quando
seria mais sábio elogiar Massamá e o restaurante
O Comilão.
Em resumo, entre 1951 e 2015, foram os anos
em que o cidadão Dias Loureiro “foi mais imper-
feito”. Mas, para nosso bem, ainda vai a tempo
de piorar.
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 7
Especial Aniversário
O PÚBLICO considerou que o Projecto do Genoma Humano, que permitiu conhecer as letras do livro de instruções para fazer um ser humano, foi um marco tão ou mais importante do que a chegada do Homem à Lua. A capa de 26 de Junho de 2000 faz agora parte da peça Olhar, que Alexandre Farto, mais conhecido como Vhils, está a desenvolver para o PÚBLICO para assinalar os 25 anos do jornal.
DIÁRIO DE VHILSUM OLHO DE 25 CORES
FOTOS ALEXANDER SILVA
MASAYUKI KONDO/MAKING OF
8 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
NEPAL A ALDEIA ONDE SÓ CHEGOU A AJUDA DE DOIS PORTUGUESES
Há aldeias inteiras destruídas pelo grande terramoto do Nepal a que não chegou ain-da qualquer socorro. A Revista 2 acompanhou a viagem de Lara e Marco até Phaskot, uma pequena localidade que sem eles pouco ou nada teria. Pela sua história, conta--se também a de um país em que a terra ainda não parou de tremer. FÉLIX RIBEIRO
NICOLAS ASFOURI/AFP
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 9
Dia 25 de Abril. Por volta do meio-
dia, Lara Nogueira e Marco Nunes
almoçam nas imediações do lago
Phewa, uma das zonas turísticas
mais populares de Pokhara, a se-
gunda cidade do Nepal, quando
o chão começa a tremer. Estão
ambos em terreno descoberto e
os únicos edifícios em volta eram
cabanas de palha. Ao início nem
se apercebem muito bem do que se havia pas-
sado. No Nepal, os terramotos são frequentes.
Mas os habitantes locais percebem que o sis-
mo que se sentira não era um tremor habitu-
al. O epicentro aconteceu em Ghorka, a meio
do caminho entre aquela cidade e Katman-
du, sensivelmente 80 quilómetros de parte a
parte. Pokhara escapa praticamente ilesa, tal
como Lara e Marco.
“Começámos a ver que os locais estavam
assustadíssimos, de olhos arregalados e com
as crianças ao colo”, explica Lara à Revista 2,
por telefone. “Nessa altura os turistas estavam
mais calmos do que os próprios nepaleses.
Depois percebemos o porquê. Eles não sen-
tiam um sismo tão grande há 80 anos. Os mais
velhos eram crianças, nem se lembram. Ou
seja, das pessoas de lá, nunca ninguém tinha
vivido um terramoto daquela dimensão. Nos
dias que se seguiram vieram dormir para a
rua. Estavam cheios de medo.”
A história de Lara e Marco começa em Por-
tugal, a 8500 quilómetros de distância. Mar-
co terminava o mestrado em Neurociências
Computacionais e Lara acabara há dois anos
o mestrado em Arquitectura Paisagista. Tra-
Um quarto de Katmandu fi cou então destru-
ído e morreram entre 10 e 12 mil pessoas. A
aritmética deu uma folga de pouco mais de
cinco anos ao país.
Pokhara é uma fracção da devastação cau-
sada pelo sismo. Passadas três semanas, as
autoridades nepalesas contaram já mais de
oito mil mortos e cerca de 19 mil feridos em
todo o país. O sismo atingiu com severidade
o Vale de Katmandu, a zona com maior den-
sidade populacional, e, sobretudo, as zonas
rurais nas montanhas, onde aldeias inteiras
fi caram devastadas pelo abalo e pelas mais de
cem réplicas que se sentiram desde então. As
estradas foram bloqueadas com deslizes de
terra e escombros. Milhares de pessoas fi ca-
ram completamente isoladas nas suas aldeias,
sem socorro para os feridos, comida, água e
abrigo. O Governo do Nepal percebeu imedia-
tamente que não dispunha de meios para lidar
com o desastre e pediu ajuda à comunidade
internacional.
Depois do terramoto, Pokhara fi cou numa
situação de relativa normalidade. Lara e Mar-
co pensam em Rikesh e Anil e na sua aldeia.
Tentam contactá-los no próprio dia, mas as
ligações telefónicas estavam em baixo. Só no
dia seguinte conseguem falar com Rikesh, o
irmão mais velho. Estão a salvo. A sua casa em
Katmandu fi cou com algumas fendas, nada
de muito grave, mas confi rma-se o pior para
Phaskot. Rikesh pinta então a Lara e Marco o
retrato que, passadas quase duas semanas,
contará à Revista 2, por telefone, num inglês
sofrido do qual pouco, muito pouco, passava
pelas falhas de rede.
balhavam os dois na cooperativa Biovilla, um
projecto de turismo e agricultura sustentáveis,
mas, de resto, as perspectivas de trabalho não
eram muito felizes. Ele, 31 anos, e ela, 32, de-
cidiram abandonar os empregos, sair do país
e viajar. Havia alguma coisa nas poupanças e,
depois de semanas de planeamento, o casal
partiu. Viajaram pela Índia durante um mês
antes de entrar no país vizinho.
Nepal, 8 de Abril. Marco e Lara viajaram
de cidade em cidade até chegarem à capital,
Katmandu. É lá que conhecem dois irmãos
nepaleses, Rikesh e Anil Thapa. São ambos
naturais de Phaskot, uma pequena aldeia com
cerca de 300 habitantes a três horas de via-
gem de Katmandu, para leste, que sobrevive
sobretudo à base da agricultura e da criação de
gado. Marco e Lara planeavam passar apenas
uma noite na casa deles, mas acabam por fi car
quase seis. Partem depois para oeste, por on-
de planeavam entrar novamente na Índia, mas
mantêm-se em contacto com os dois irmãos.
Ao cabo de duas semanas chegam a Pokhara.
No dia seguinte, o terramoto explode com um
impacto mortal.
Ninguém o poderia prever com exactidão,
embora já há muito se esperasse um sismo
de grandes dimensões no país. O Nepal está
acima da linha por onde a placa tectónica da
Índia se vai enterrando sob a placa euroasiáti-
ca, numa tremenda progressão de 45 milíme-
tros por ano. É, por isso, uma das zonas com o
maior risco sísmico do mundo e calcula-se que
um grande terramoto atinja o Nepal a cada 75
anos. O último já se passara há pouco mais de
80, em 1934, com 8,3 pontos de magnitude.
A prioridade dos portugueses Lara (na foto) e Marco é melhorar os rudimentares abrigos de pano e bambu da população de Phaskot (foto da página seguinte). Usam-se troncos e placas de zinco para ajudar com o isolamento da água. O cenário é idêntico em vários locais do país. Ao lado, os habitantes de Barpak têm de subir a montanha ao longo de cinco horas com alimentos às costas
DR
10 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
“Nada restou da minha casa. Até as funda-
ções desapareceram. Tudo caiu numa fracção
de segundo: a nossa casa, o nosso gado, as
nossas colheitas. As pessoas mais novas estão
à chuva, nos campos, à procura das colheitas
que não fi caram destruídas. É muito, muito
difícil. Perdemos tudo.”
Não houve mortos em Phaskot,
apesar de a maioria das casas te-
rem desabado. Das cerca de 100
habitações na aldeia, 70 caíram.
Eram as casas das famílias mais
pobres, construídas da maneira
tradicional, com pedra, madeira
e barro. Mas mesmo sem mortos
ou feridos graves, Phaskot teria
agora de abrigar mais de uma
centena de desalojados, com falta de comida,
água potável e sem materiais para construir
acampamentos. Com o grosso das operações
de resgate concentradas no Vale de Katmandu,
Phaskot, tal como a maioria das localidades ru-
rais no Nepal, estava entregue a si própria.
Face ao apelo de Rikesh, Lara e Marco deci-
dem fi car no Nepal e ajudar a aldeia. A vontade
inicial era ir imediatamente para Phaskot e,
uma vez lá, contribuir para os trabalhos de
reconstrução. Mas cedo se apercebem de que
não teriam dinheiro sufi ciente para comprar
materiais, comida e os medicamentos de que
a aldeia precisava. Havia ainda uma agravan-
te: os seus vistos de turistas perderiam a va-
lidade no dia 8 de Maio. Teriam de esperar
até esse dia para renovarem as autorizações
e para isso teriam de ir para a fronteira com a
Índia, no Sul. E isso signifi caria que, ao longo
desses dias, a população de Phaskot fi caria
sem apoio.
Tal como Rikesh fi zera com eles, Lara e Mar-
co lançam um apelo aos seus amigos. Através
do Facebook pedem dinheiro para ajudar a
aldeia. Em pouco mais de duas horas, con-
seguem 300 euros. No dia seguinte eram já
quase mil. Depois, as contribuições começam
a cair. Como explica, a mensagem deve ter
chegado por enquanto apenas “aos amigos e
aos amigos dos amigos” — o apelo mantém-se,
contudo, e Lara continua a aceitar doações
através do seu Número de Identifi cação Ban-
cária: 0035 0736 00010 8982007 3.
5 de Maio. Marco e Lara vão a Lumbini, uma
das principais cidades de peregrinação bu-
dista no Nepal, a apenas 20 quilómetros da
fronteira com a Índia, para renovar o visto. É
lá que a Revista 2 fala pela primeira vez com o
casal, a poucos dias de viajarem para a aldeia
de Rikesh e Anil. Desde então, os contactos
são diários. Com Lara e Marco, ou com Rikesh,
que viajara para Phaskot imediatamente de-
pois do terramoto.
No dia seguinte, a 48 horas do início da via-
gem, Lara explica as suas expectativas. “Estou
ansiosa. Acho que vai ser duro. Há cinco anos
houve um terramoto no Haiti e ainda estão a
reconstruir. Mas quanto mais ajuda [houver],
mais fácil será para eles. Estamos cheios de
vontade de ajudar.” O plano do casal portu-
guês é passar três meses em Phaskot e auxiliar
no que for possível.
Enquanto Lara e Marco esperavam pelos
seus vistos, Rikesh enfrenta com Phaskot o
isolamento em que caíram as zonas rurais no
Nepal depois do terramoto. Rikesh só consegue
comprar comida, água e medicamentos para a
aldeia quando recebe a primeira transferência
enviada por Lara e Marco, ainda em Lumbini:
cerca de 500 euros que permitiram dar susten-
to à aldeia por alguns dias. O resto dos materiais
e mantimentos serão comprados em Katmandu
quando Lara e Marco voltarem do Sul.
Foi a primeira vez que a aldeia recebeu al-
gum tipo de ajuda depois do sismo. Viesse ela
por isso, melhorar os rudimentares abrigos
de pano e bambu que a população construiu
antes da chegada de novos materiais. Usam-se
agora troncos e placas de zinco para ajudar
com o isolamento da água.
Estas placas de metal são o material mais
procurado no momento, diz-nos Marco, e,
se não fossem as doações, os habitantes de
Phaskot não teriam dinheiro para as comprar.
Servirão para se alargar alguns dos galinheiros
que sobreviveram e assim alojar as dezenas
dos que não têm tecto. Não há outra alternati-
va. Quem tinha mais dinheiro construiu casas
com tijolo e cimento, mas não recebe lá ne-
nhum dos desalojados. “Parece-me a mim que
quem está bem não vê nenhuma necessidade
de estar pior”, diz Marco. O casal português
está a viver num dos três acampamentos, divi-
didos intuitivamente por grupos que já se co-
nheciam. Marco e Lara estão com os familiares
de Rikesh e com mais sete outras famílias.
Quando chegaram, não sabiam o que espe-
rar. As pessoas são amigáveis e de confi ança,
diz Marco, mas o desastre deixou muitos deles
sem vontade. Quando atende o telefone, no
seu terceiro dia em Phaskot, tinha acabado de
deixar a casa do tio de Rikesh, onde tentavam
recuperar algumas coisas dos destroços. En-
quanto o faziam, o tio começou a chorar.
“Há dois sentimentos evidentes. Encon-
tram-se na rua pessoas com o olhar perdido.
O Rikesh diz que os mais velhos preferiam ter
morrido. É com os mais novos que está tudo a
andar, mas não há muitos como eles.”
Entre Junho e Agosto, choverá quase
todos os dias e nada garante que
mesmo os abrigos que estão agora
a ser construídos sobrevivam. Mar-
co acredita que não e a população
da aldeia parece partilhar das su-
as dúvidas. A água, que entretan-
to tem chegado à aldeia através de
uma nascente — é depois fervida
e bebida como chá — vai tornar-se
um problema grave com as chuvas. As doen-
ças respiratórias vão alastrar-se e as latrinas
improvisadas vão fi car a descoberto. Não se
sabe quem sobreviverá às monções de entre
os mais velhos e os cerca de dez bebés com
menos de um ano de idade. Marco resume: “A
esperança deles é sobreviverem às monções
para depois reconstruírem as suas casas.”
Em Phaskot sobrevive-se. Sobreviveu-se ao
primeiro e fez-se o mesmo com o segundo gran-
de terramoto. No dia 12 de Maio, uma poderosa
réplica de 7,3 pontos de magnitude explodiu
por entre as mesmas placas que vagarosamente
vão deslizando, cumprindo ano a ano os seus
costumados cinco centímetros continentais. Na
quinta-feira contavam-se mais 80 mortos, mas
as contas não eram ainda defi nitivas. Phaskot
escapou novamente à mortandade.
Marco e Lara estavam numa cidade a algu-
mas horas de viagem de Phaskot. Compravam
material para distribuir pela aldeia quando
a réplica se deu. Escaparam novamente sem
ferimentos e, numa questão de minutos, vi-
ram as ruas da cidade encherem-se de lonas
e bambus. O medo surgira novamente. Re-
gressaram a Phaskot, mas não foi medo que
viram. “Apesar de terem perdido tudo, agora
sentem que a vida tem muito valor. No acam-
pamento em que estamos, este novo abalo
desencadeou uma celebração da vida com
direito a arroz- doce”, conta Lara à 2. As casas
periclitantes e as quase caídas caíram agora
por completo. Mais ou menos dez, segundo
Rikesh. Quanto a Governo e organizações hu-
manitárias, parecem ainda não ter reencon-
trado o caminho para Phaskot desde que lá
foram oferecer uma tenda e que de lá volta-
ram com ela ainda nos braços.
Esse sentimento de revolta é palpável em
Phaskot, “há 13 dias sem comida ou sem ten-
das disponíveis. Há seis dias que chove con-
tinuamente sem termos um telhado sobre as
nossas cabeças”, conta Rikesh à Revista 2 nu-
ma altura em que Marco e Lara estão já em
viagem para Katmandu. “Ninguém nos ajuda”,
prossegue, “toda a gente diz que nos vai aju-
dar, a Cruz Vermelha, blá, blá, blá”. “Aposto
que a Cruz Vermelha nunca foi às pessoas que
precisavam de ajuda e que o dinheiro vai todo
para as pessoas que têm poder no Governo, ou
para quem trabalha nas organizações.”
9 de Maio. Lara e Marco chegam a Katman-
du. Encontram-se com Rikesh e Anil na capital
para comprarem comida, água e materiais pa-
ra construírem tendas. Arrendam uma carri-
nha de caixa aberta e partem para Phaskot.
À chegada à aldeia, a população quer sa-
ber de onde vêm os estrangeiros. Ou, melhor,
quer assegurar-se de que não fazem parte do
Governo. Dizem a Rikesh, segundo o que ele
contará depois aos dois portugueses: “Se são
teus amigos, podem fi car. Mas não chamem
o Governo.” Distribuem a ajuda. Segundo as
suas contas, deve dar para 35 famílias durante
15 dias. Não se pode comprar mantimentos em
grande quantidade. O período das monções
está prestes a chegar e há o risco de a água se
infi ltrar pelas tendas rudimentares e apodre-
cer os alimentos.
Pelos olhos de Lara e Marco, Phaskot é uma
aldeia dividida entre velhos e novos, pobres e
menos pobres, mas em que sobre todos pen-
de o presságio das monções. A prioridade é,
do Governo ou de uma organização humani-
tária. Apenas uma excepção: no dia que se
seguiu ao terramoto, o exército nepalês surgiu
na aldeia com uma tenda, uma apenas, para
oferecer a quem perdera a sua casa e dormia
na rua. Mesmo quem não perdera a sua ca-
sa optava então por dormir ao relento com o
receio de que uma réplica forte acontecesse
durante a noite. Uma tenda não chegava para
todos. Nem perto disso. Revoltados, os habi-
tantes de Phaskot recusaram a única ajuda que
o Governo do Nepal lhes oferecera.
Mesmo com o apoio de deze-
nas de países e organizações
humanitárias, há milhares de
pessoas no Nepal que não têm
acesso a socorro. É um dos pa-
íses mais pobres da Ásia e há
décadas que vive em clima
de instabilidade política e so-
cial. Atravessou uma década
de guerra civil que terminou
apenas em 2006, cujas marcas ainda se fazem
sentir na organização política do país. Des-
de 2008, por exemplo, que o país tem uma
Assembleia Constituinte sectária que até ao
momento foi incapaz de aprovar uma nova
Constituição.
O Governo mobilizou a polícia e quase todo
o seu exército de 100 mil efectivos para aju-
darem com as operações de resgate. Mas isso
não tem impedido a população nepalesa de
protestar contra o executivo e de o acusar de
estar a fazer pouco.
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12 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 13
COMO A IGUALDADE DE GÉNERO
FEZ DASUÉCIA UM PAÍS MAIS RICOA Suécia é um dos campeões da igual-dade de género, mas ninguém está satis-feito. O país tem um Governo que se au-todesigna “feminista”. Que quer impor quotas nas maiores empresas obrigan-do-as a ter 40% de mulheres a mandar. E que quer pressionar os casais a parti-lhar mais as licenças parentais. O que é ser homem, hoje, neste contexto? “Ahhh, esse assunto é tão difícil!”
ANDREIA SANCHES, EM ESTOCOLMO
BÁRB
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RAQ
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MO
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14 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
Um folheto que promove Estocolmo
como destino turístico e de negó-
cios fala da reconhecida qualida-
de do ar que aqui se respira e das
águas límpidas dos lagos. Explica
que esta é uma capital com mui-
to talento, uma cidade “aberta”
e cosmopolita. Fala da moda, da
gastronomia, das lojas de design
e de como é seguro viver aqui. E
mais isto: “50% da população é solteira, por
isso há uma forte possibilidade de encontrar
a sua alma gémea em Estocolmo!”
A frase que segue o ponto de exclamação
acrescenta que esta é “a cidade ideal para
constituir família”. Afi nal, “os pais têm direi-
to a 480 dias de licença parental por cada fi lho
e as crianças pequenas têm acesso a jardins
de infância subsidiados”. E posto isto: “Bem-
vindo a Estocolmo!”
Sim, falar de licenças parentais é sufi ciente-
mente “sexy” para se colocar em duas páginas
destinadas aos visitantes estrangeiros num
texto da responsabilidade da agência pública
que faz a promoção da cidade. Pelo menos
na Suécia é.
O país que ocupa o 4.º lugar (em 142) no
ranking do Fórum Económico Mundial que
mede a igualdade de género (depois da Islân-
dia, da Finlândia e da Noruega) era, nos anos
60 do século passado, um dos que tinham
piores taxas de natalidade na Europa. Hoje
é dos que têm das mais elevadas — Portugal
é a que tem a mais baixa da União Europeia
dos 28. O que é que igualdade de género tem
que ver com os bebés que nascem? E com a
performance económica de um país?
“A nossa ideia sobre a igualdade de género
é que é uma questão de direitos, sem dúvida,
mas é também algo que permite uma série
de ganhos sociais, que permite atingir vários
objectivos”, diz a muito pragmática ministra
sueca para a Igualdade, Åsa Regnér, numa tar-
de chuvosa de Abril num encontro com um
grupo de jornalistas estrangeiros na sede do
seu ministério. “Desde logo, o objectivo do
crescimento económico. A possibilidade de
usar toda a competência e capacidade da mão-
de-obra existente — e havendo mais mulheres
a sair das universidades com graus académi-
cos, mais do que homens, temos de fazer uso
desse investimento que se está a fazer nelas.
Isto é bom para os indivíduos, mas também
para toda a sociedade.”
Depois, quando podem escolher, em situa-
ção de igualdade, “homens e mulheres estu-
dam, trabalham... e também têm mais fi lhos
do que nos países do Sul da Europa, que se
dizem orientados para a família”, prossegue
a ministra que tem a seu cargo ainda as pastas
das Crianças e dos Idosos. É consensual que,
sem uma situação demográfi ca positiva, difi -
cilmente há crescimento económico.
Nos anos 70, quando a Suécia começou a
construir “o seu famoso Estado social”, muitas
das decisões partiam desta ideia: era preciso
que as mulheres entrassem em força no mer-
cado de trabalho, “a indústria precisava muito
de mão-de-obra, o sector público também”.
Estava em jogo o crescimento económico. E
hoje, com o país a revelar a sua “resiliência”
face aos últimos anos de crise na Europa — a
palavra “resiliência” é da OCDE —, a necessi-
dade permanece: “Precisamos de muita gente
a trabalhar, para que possam tomar decisões
nas suas vidas e desenvolverem-se como in-
divíduos, mas também para poderem pagar
impostos, porque todo o nosso modelo se ba-
seia nos impostos”, diz a ministra. Há um site
governamental que explica, com graça, que “a
Suécia é tão conhecida pelos elevados impos-
tos como pelos móveis Ikea e os Abba”, sendo
que a Skatteverket, a agência responsável por
taxar os contribuintes, é a segunda instituição
pública mais apreciada pela população depois
da que trata das questões relacionadas com
os consumidores.
Os suecos pagam muito (os impostos repre-
sentam 44,2% do PIB, 32,4% em Portugal). Mas
acham que recebem bastante.
No Centro Täppan, um jardim-de-infância
de Estocolmo conhecido pelo seu “trabalho
na área da igualdade de género” com as crian-
ças, quase não há carrinhos e não se avistam
Barbies. Aqui, aposta-se em brinquedos “mais
neutros” do ponto de vista do género, explica
Yvonne Häll, a coordenadora da instituição
que todos os dias recebe 80 crianças entre os
12 meses e os cinco anos.
Yvonne Häll mostra como se trabalham “ou-
tros materiais” — panos, papel, madeiras, ade-
reços vários, de chapéus a sapatos antigos,
de vestidos de bailarina a fatos de pirata. Faz
parte de um plano: “Encorajamos as crianças
a ter tolerância e respeito umas pelas outras.
Não construímos espaços para rapazes ou para
raparigas. Utilizamos diferentes tipos de mate-
riais e tentamos que as crianças os explorem.
Se um rapaz veste um vestido, a menina não
diz: ‘Ah, não podes usar isso porque és rapaz’
— aqui eles não têm essa atitude, são crianças
Nas últimas quatro décadas tem-
se canalizado muito do muito
dinheiro que os suecos pagam
em impostos precisamente para
apoiar as famílias — o que permi-
tiu às mulheres ir trabalhar, sem
pensar em deixar de ter fi lhos.
Alguns resultados: o país tem
a maior taxa (80%) de emprego
da União Europeia e a maior taxa
de emprego feminino (77,6%). É também dos
que têm maior representação de mulheres
na política e no Governo — apesar de nunca
ter imposto quotas aos partidos. Assiste ao
nascimento de mais 30 mil bebés por ano do
que Portugal (tendo menos de dez milhões de
habitantes). E é um dos países onde homens
e mulheres mais partilham os cuidados com
as crianças (por exemplo, na hora de contar
o número de pais e mães que em 2013 tiraram
dias, pagos, para fi car com os fi lhos doentes,
57% foram mulheres e 43% homens).
Conseguiu-se outra coisa: “A possibilidade
de as crianças terem os dois pais presentes e
não apenas um deles, o que é importante”,
diz Åsa Regnér. Que avisa, contudo: “Parece
que estamos no paraíso da igualdade, mas
não.”
Ouviremos isto várias vezes nesta viagem a
Estocolmo. “A sociedade sueca ainda é uma
sociedade desigual...”, diz Annika Creutzer,
60 anos, colunista, especialista em Finanças
pessoais e também “mãe solteira, adoptiva,
de uma menina chinesa”.
“Há discriminação. Há diferenças salariais.
Há a violência doméstica. Não! Isto não é o
paraíso da igualdade”, declara enfaticamente
Gudrun Schyman, 66 anos, secretária-geral do
partido FI (sigla para Iniciativa Feminina) que,
por pouco, não elegeu, nas últimas eleições,
no ano passado, o seu primeiro deputado pa-
ra o Parlamento nacional. A imprensa estran-
geira deu destaque a este pequeno partido
com dez anos de vida durante uma campanha
eleitoral onde o debate sobre a igualdade de
género foi intenso.
O Eurobarómetro, que periodicamente
muito pequenas, não trazem isso com elas, e
nós não alimentamos estereótipos.”
A ideia é libertar as crianças das expectativas
e das exigências que a sociedade tem, tradicio-
nalmente, em relação a rapazes, por um lado,
e raparigas, por outro. E se o menino chega a
casa e diz aos pais que andou a experimentar
vestidos, não lhe vêm pedir explicações?
A educadora de infância sorri: “Imaginem
um círculo onde estão várias qualidades que
uma pessoa pode ter: a bondade, a inteligên-
cia, etc… aqui, queremos oferecer a cada
criança todas as boas qualidades. Não dize-
mos assim: ‘Esta qualidade é de menina e esta
de menino.’ Damos tudo a todos e eles farão
depois as suas escolhas sobre o que querem
ser. Quando se explica isto aos pais, ninguém
contesta. Porque é simples.”
No máximo, uma família com mais rendi-
mentos, e apenas um fi lho, paga 131 euros de
mensalidade no Centro Täppan. A tabela é a
mesma para qualquer “pré-escola” — försko-
la — do país. Quantos mais fi lhos uma família
tem, menos paga. O quarto fi lho tem direito a
frequentar gratuitamente. Famílias com baixos
rendimentos não pagam nada. Mais de metade
das crianças de um ano e 90% das de cinco
anos frequentam um jardim-de-infância.
STINA GULLANDER/IMAGE BANK SWEDEN
LENA GRANEFELD/IMAGE BANK SWEDEN
Em qualquer pré-escolar, a mensalidade máxima é de 131 euros. Famílias com baixos rendimentos não pagam nada. Em 2014, mais de 90% dos homens pais usaram a licença parental, mas ainda são as mulheres as beneficiárias de 75% dos dias de licença paga (foto em cima)
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 15
faziam com os bebés. Havia mesmo quem dis-
sesse que se estava a prejudicar as mulheres.
Em 1996, o número de homens a não gozar
nenhum dia de licença desceu para menos
de 15%.
Em 2002, o Governo sueco deu mais um
passo: a “quota intransmissível” cresceu para
dois meses. E é assim até hoje: a licença pa-
rental é de 480 dias (uma licença longa com-
parada com a prática europeia), a maioria
pagos a 80% do salário; dois meses são des-
tinados a ser gozados pelo pai e outros dois
pela mãe, os restantes 12 podem ser reparti-
dos pelos dois membros do casal (a mesma
regra aplica-se a casais de pessoas do mesmo
sexo com fi lhos), por inteiro ou em part-time,
até a criança fazer 8 anos.
O impacto da nova “quota” voltou a ser evi-
dente. Em 2014, mais de 90% dos pais ho-
mens usaram a licença parental. Em média,
88 dias, se se fi zer as contas aos dias usufru-
ídos até 2013 pelos que foram pais em 2008.
(Em Portugal, 42% dos benefi ciários de algum
tipo de licença parental, incluindo os 10 dias
“exclusivos do pai” já são homens, fez saber
a Segurança Social portuguesa, mas os que
dividem a licença de 150 dias/180 com as mu-
lheres rondam os 24%, sem contar com fun-
cionários públicos, faz saber o Observatório
das Políticas de Família).
Para a ministra para a Igualdade sueca, os
níveis de partilha no seu país sabem a pouco.
É que, feitas as contas, ainda só um quarto
dos dias de licença parental que o Estado pa-
ga anualmente é pago a homens. Por isso, o
“Governo feminista” prepara-se para agir de
novo. Ainda este ano apresentará uma pro-
posta de lei que aumenta de dois para três
meses as quotas intransmissíveis. “Temos da-
dos para dizer que, se tivermos uma partilha
maior da licença parental, também teremos
uma partilha maior do trabalho doméstico e
dos cuidados com as crianças”, diz a ministra
para a Igualdade.
Não é consensual, uma vez mais. “Para os
partidos conservadores, não deveria haver
sequer uma parte da licença só para a mãe e
outra só para o pai”, refere Niklas Lofgren. E
a nova medida não deverá trazer ao Executivo
muitos votos, sublinha. E mais crianças, trará?
Lofgren reconhece que não são só as políticas
natalistas e igualitárias que levam as pessoas
a ter fi lhos. O ambiente económico ajuda.
Gudrun Scyman, do FI, enfurece-se quando
se lhe fala desta proposta do Governo. “Mais
um mês não vai mudar nada!” Defende que
a licença devia ser dividida ao meio, ponto
fi nal, metade para o homem, metade para a
mulher. “Não, eu não sou contra a liberdade
de escolha. Mas simplesmente não há liber-
dade de escolha porque ainda vivemos numa
sociedade patriarcal. Se há, como há, uma
norma social que diz que cuidar das crian-
ças é uma responsabilidade da mulher, não
se pode falar de escolha, fi cam as mulheres
em casa!”
“O trabalho não pago não é devidamente
dividido entre homens e mulheres”, conce-
de a ministra Åsa Regnér. “Mas sabemos que
estas mudanças, destinar mais um mês a um
dos membros do casal, colocam uma grande
pressão sobre as famílias e que elas, de facto,
acabam por mudar o seu comportamento. Co-
loca também pressão sobre os empregadores,
que passam a esperar que os homens fi quem
em casa e que as mulheres não fi quem tanto
tempo em casa.”
E dividir a licença ao meio, como reclama
Gudrun Scyman? “Somos um governo mino-
ritário. E se quiséssemos avançar já para os
50-50, a lei não passaria. Acredito que as posi-
ções estão a mudar e parece-me que as novas
gerações já serão a favor do 50-50.”
Niklas Lofgren mostra um cartaz de um
homem supermusculado, cabeleira e bigo-
des enormes, ruivo — um Viking, portanto
—, a segurar nos braços um bebé. Em letras
grandes, vermelhas, lê-se: “Papá em licença
parental!”
Muitos suecos lembram-se bem deste cartaz
(que faz a capa desta edição da Revista 2). Foi
lançado na década de 70 do século passado,
quando a Suécia se tornou o primeiro país do
mundo a acabar com a “licença de maternida-
de”, a criar a mais neutra “licença parental”
de seis meses, paga a 90%, e a dizer que esta
devia ser repartida entre homens e mulheres.
O sorriso do bebé no cartaz mostrava como
isso era bom também para a criança.
O cartaz, hoje, suscita risos, mas não mais
do que isso — a campanha não teve grande
sucesso, concede Lofgren, 45 anos, pai de
dois fi lhos. Em 1993, quase metade dos pais
não gozaram “um único dia de licença”.
Em 1995, o Governo decidiu criar “a quota
do pai”. Ou seja, se o recém-papá não gozas-
se, pelo menos, um mês da licença parental
que, até ali, era quase um exclusivo feminino,
esse mês subsidiado perdia-se. Houve quem
achasse que era uma intromissão do Estado,
que deviam ser pais e mães a escolher como
analisa a opinião dos europeus sobre os mais
diversos assuntos, também mostra esta apa-
rente contradição: no país que aparece siste-
maticamente entre os primeiros no ranking
mundial da igualdade, 72% da população acha
que a desigualdade de género está dissemi-
nada na sociedade. É mais do que os 63% de
insatisfeitos registados em Portugal, que está
mais de 30 lugares abaixo no dito ranking.
Foi neste cenário que Stefan Löfven, 57
anos, o novo primeiro-ministro, que tomou
posse no fi nal do ano, declarou solenemente
no Parlamento que a Suécia teria um “Gover-
no feminista”.
Constituído por 12 mulheres e 12 homens,
resultado de uma coligação entre o Partido
Social Democrata e os Verdes, o novo “Go-
verno feminista” já anunciou várias medidas.
Em primeiro lugar, se, ao longo deste ano,
as maiores companhias suecas listadas na
bolsa não garantirem que os seus conselhos
de administração têm, pelo menos, 40% de
mulheres, em 2016 sairá uma lei que as obri-
ga a ter.
Actualmente, a Suécia já é dos países com
maior peso de mulheres nas administrações
das grandes companhias do mercado bolsis-
ta (mais de 28% segundo dados da Comissão
Europeia, contra 9% em Portugal, por exem-
plo). Mas o Governo acha que isso é escan-
dalosamente pouco. “Vá, aproveitem agora!
Vão buscar todo esse talento feminino!”, diz
a sorrir Åsa Regnér. Não disfarça a ironia.
Sim, é o Governo a intrometer-se no sector
privado. E isso não é pacífi co, como nota Kris-
tina Fjelkestam, directora do departamento
de estudos de género na Universidade de Es-
tocolmo. Mas outras medidas pró-igualdade
não o foram no passado. “Às vezes, não se
pode esperar pela mudança da consciência
social”, diz a investigadora.
Às vezes, os políticos têm de caminhar “à
frente” da população, diz também Niklas Lo-
fgren, especialista em políticas de família, na
Agência para a Segurança Social Sueca. E têm
mesmo caminhado em alguns aspectos, na
opinião de Annika Creutzer.
Tens o direito de trabalhar em part-time, para estar mais com os filhos, sem que seja feita qualquer pergunta”Karin Nylund
CORTESIA KARL OSCARSSON
LIAM KARLSSON/IMAGE BANK SWEDEN
A Suécia ocupa o 4.º lugar (em 68) no ranking do Fórum Económico Mundial que mede a igualdade de género.Em cima, o casal Karin (à esquerda na foto de cima) e Sara, com os seus três filhos, Juno, Tore e Mika.No plano seguinte, jovens: a Suécia está a adoptar um novo pronome, o “hen” — nem “han” (ele) nem “hon” (ela)
16 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
No Centro Täppan, as casas de ba-
nho são unissexo mas, ao con-
trário do que se passa noutros
jardins-de-infância na Suécia,
ainda não se adoptou o prono-
me “hen” — nem “han” (ele) nem
“hon” (ela), “hen” é um pronome
neutro que se destina a diluir a
carga do género na forma como
nos referimos às pessoas. “Ainda
não é uma coisa que surja de forma natural”,
concede Yvonne Häll.
“Mas os jovens estão a usar muito”, conta.
“Tenho dois fi lhos, de 18 e 23 anos, que estão
sempre a usar, surge a toda a hora. No outro
dia, perguntei ao meu fi lho, que tinha acaba-
do de falar com alguém ao telefone: ‘Estavas
a falar com um ele ou com uma ela?’ E ele
respondeu: ‘Por que é que não perguntas se
tem o cabelo ruivo?’ Ok, eu percebo. É uma
nova forma de pensar. É uma discussão inte-
ressante.”
Vários jornais já adoptaram o “hen”, bem
como muitos livros para crianças. A introdu-
ção no dicionário da Academia Sueca estava
anunciada para Abril.
Por muito que haja quem considere “ridí-
culo” o “caso” em torno do pronome neutro,
sobre o qual já tanto foi escrito e dito no país,
este ilustra bem como o debate em torno do
género está presente na sociedade sueca —
uma sociedade onde há muito deixou de ser
aceitável dizer que as mulheres são melho-
res a cuidar de crianças do que os homens
(mesmo que haja quem ainda acredite nisso,
como reconhece a ministra) ou achar que as
famílias onde há duas mães ou dois pais são
diferentes das restantes.
“Algumas pessoas até podem não achar bem
este modelo de família, mas não se atrevem a
dizê-lo”, diz Karin Nylund, 41 anos. Ela e Sa-
ra Nylund, 42, casaram-se “numa cerimónia
tradicional”, com a família e amigos, “cerca
de 100 convidados”. Compraram uma mora-
dia construída em 1946, em Älvsjö, um bairro
tranquilo a meia hora de comboio do centro de
Estocolmo. E puseram em prática o seu plano
de ter fi lhos, com quem haveriam de passar
as férias na casa de campo dos pais de Karin.
“Somos uma família sueca normal.”
Para a fi lha mais velha, Juno, hoje com cinco
anos, Karin recorreu a uma clínica na Dina-
marca onde se faz inseminação artifi cial. Os
mais novos, Tore (um rapaz que está agora
com três anos e meio) e Mika (uma menina de
três meses), nasceram depois de uma insemi-
nação feita num hospital sueco.
Legalmente, Karin e Sara são ambas mães
das três crianças, exactamente com os mesmos
direitos e deveres. “As crianças chamam-nos
às duas ‘mãe’. Ou ‘mãe Sara’ ou ‘mãe Karin’.
Um dia, quando fi zerem 18 anos, poderão, se
quiserem, ter acesso à identidade dos dadores.
Nós não sabemos quem são.”
Karin trabalha no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, 40 horas por semana, que é “o
horário normal”, e Sara numa empresa de
marketing britânica que tem uma fi lial em
Estocolmo. Os seus salários juntos somam
9062 euros por mês. Depois dos impostos,
fi cam com pouco menos de 6200 euros.
Acrescentam a isto o abono de família das
três crianças, cerca de 400 euros mensais li-
vres de impostos — para explicar que o abono
de família é universal, para todas as crianças,
independentemente de quanto ganham os
pais, Niklas Lofgren da Segurança Social gosta
de utilizar uma expressão: “Até os fi lhos do
rei recebem.”
Quando os miúdos forem mais velhos, terão
acesso a escola gratuita, a refeições gratuitas
e a actividades extracurriculares a baixo cus-
to. Se quiserem, Sara e Karin poderão ainda
contratar uma empregada doméstica, para
ajudar nas tarefas caseiras, e terão benefícios
fi scais por isso.
Recentemente, Karin e Sara decidiram
acrescentar um piso à casa — para dar mais
conforto à família cada vez mais numerosa. E
para já é aqui, nesta casa luminosa com vista
para um pequeno quintal com relva, que pas-
sam bastante tempo. Têm dividido entre as
duas as licenças parentais de cada criança e,
quando a de Mika se esgotar (neste momento
é Karin quem está a gozar a sua parte, tendo
Sara, a que deu à luz, voltado ao trabalho),
planeiam passar a trabalhar em part-time du-
rante uns tempos. “Pode ser trabalhar a 80%
ou a 90%, só o sufi ciente para podermos ir
alternando os dias: num dia, uma de nós sai
um pouco mais cedo para ir buscar as crianças
à escola; noutro dia, outra”, diz Karin.
“Na Suécia, as empresas esperam que as
mulheres tirem licenças longas, ninguém es-
tranha”, explica ainda. “E tens o direito de
trabalhar em part-time, para estar mais com os
fi lhos, sem que seja feita qualquer pergunta.
É um bom sítio para se ter fi lhos: as crianças
têm acesso a cuidados médicos gratuitos (até
aos 20 anos), incluindo dentários. E pela Juno
e pelo Tore pagamos 200 euros por mês” no
pré-escolar.
A maioria das “pré-escolas” pertencem aos
municípios, mas também há várias geridas
por cooperativas de pais. Karin pertence à di-
recção daquela onde tem os fi lhos, a poucos
minutos de casa.
Por lei, explica, todas as “pré-escolas” têm
de estar preparadas para abrir às 6h30 da ma-
nhã e para acolher as crianças até às 18h30.
Os meninos comem, brincam e fazem a sesta
no jardim-de-infância — sendo que na Suécia
é hábito que mesmo no pico do Inverno, com
neve e temperaturas abaixo de zero, as crian-
ças durmam ao ar livre, “muito embrulhadas
em sacos-cama”.
Na prática, as direcções falam com cada um
dos pais para saber quais são as suas reais
necessidades em termos de horários. E não
é suposto que uma criança fi que 12 horas na
escola — também isso não é “bem visto”.
“Há esta ideia de que ser uma boa mãe é não
deixar as crianças no infantário muito tempo.
Algumas até contratam amas para as irem bus-
car às três da tarde. Há uma pressão enorme, a
pressão de ser supermãe”, lamenta a especialis-
ta em fi nanças pessoais, Annika Creutzer.
Então e os superpais — esses homens suecos
que aparecem retratados nas revistas inter-
nacionais com os bebés a tiracolo enquanto
aspiram a casa? Não sentem a pressão?
“As medidas adoptadas [nas últimas déca-
das] tornaram mais fácil às mulheres conciliar
a vida profi ssional e familiar, mas não desafi a-
ram verdadeiramente a distribuição do traba-
lho não pago entre homens e mulheres”, diz a
perita em igualdade de género Anita Nyberg,
investigadora na Universidade de Estocolmo.
A estatística mostra que desde 1990 elas re-
duziram o seu trabalho não remunerado em
É óptimo que os meus colegas de Governo acordem de manhã e se sintam feministas. Mas é óptimo também que ao longo do resto do dia trabalhem de forma feminista, e deverão fazê-lo” Åsa RegnérMinistra para a Igualdade
CORTESIA KRISTIAN POHL
UE
HOMENS E MULHERES, EM PORTUGAL E NA SUÉCIA
no ranking da Igualdade de Género de 2014 do Fórum Económico Mundial
39.º
População
Portugal
Taxa bruta de divórciosPor 1000 habitantes
Fontes: Comissão Europeia; Eurostat; Pordata; Instituto de Estatística da Suécia
1960 2000 2013
Part-time em 2013Em %
População empregada (2014)Em %, dos 20 aos 64 anos
8 11,7 8,1
64,2 67,6 80,077,6
63,5 69,2
16.600
44.30082,2
75,04.976.859 5.480.437
Índice Sintético de FecundidadeN.º médio de crianças nascidas por cada mulher em idade fértil
1968
2000
2012
1960
2000
2012
Total de casamentos
Homem
Méd
ia
Méd
ia
Méd
ia
Portugal
Portugal Suécia UEPortugal Suécia
Suécia UE
PIB per capita a preços de mercado (2014), em euros
3,22,07
1,551,54
1,281,91
69.45750.149
63.75239.895
34.42350.044
0,1
1,2
2,4 2,52,2
2,8
Portugal
Portugal
Suécia
71,3 28,30
Adultos sozinhos com crianças a cargo (2013)Por sexo
% %
9,30
90,70 71,70
SuéciaPortugal
Suécia
13,7 36,3 31,8
Mulher
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 17
média uma hora por semana e eles dedicam-
lhe mais... oito minutos.
O que signifi ca ser homem, hoje, na Suécia,
é uma pergunta que provoca um ataque de
tosse a Fredrik Sörebo, 55 anos. O que mudou
na ideia de masculinidade no país que sempre
aparece no topo dos rankings da igualdade?
“Ahhh, esse assunto é tão difícil!”
Sörebo é responsável pelo Mansjouren, em
Estocolmo — uma espécie de gabinete de apoio
para homens em difi culdades, seja porque
estão envolvidos em episódios de violência do-
méstica, como agressores ou vítimas, e procu-
ram ajuda, seja porque precisam de um psicó-
logo mas não o conseguem pagar no mercado
privado, ou porque se divorciam e não chegam
a acordo em relação à partilha dos fi lhos, e
precisam de aconselhamento legal.
Depois da tosse, Sörebo arrisca: “É claro
que fui educado numa época completamente
diferente desta, tenho 55 anos. Posso dizer
‘ah, sou tão neutro’, mas é claro que... não
esperem que seja perfeito... Estudei Psicologia
na universidade. Acabei há apenas uns anos.
Estudei com pessoas com metade da minha
idade. E sim, somos diferentes, mas não tão
diferentes assim. Às vezes, assisto aos debates
ofi ciais e uau... ‘Estamos assim tão mal?’”
A Suécia foi no passado um país de agri-
cultores — os homens tratavam de planear as
colheitas para garantir comida à mesa nos ri-
gorosos meses de Inverno, elas cuidavam da
casa e dos fi lhos. Mas, em relativamente pouco
tempo, o tema igualdade de género tornou-se
omnipresente — já se disse, a ministra para a
Igualdade acha que, “absolutamente sim”,
o desenvolvimento económico do país deve
muito ao que foi feito nessa área. E talvez por
isso o “discurso ofi cial” a que se refere Sörebo
esteja tão centrado no que está mal.
Mesmo comparando com outros países nór-
dicos, o debate na Suécia em torno das ques-
tões de género “é muito mais radical e foca-se
mais nas desigualdades que restam no que nos
progressos feitos”, explicou, numa entrevista
ao Wall Street Journal, Lena Wängnerud, pro-
fessora de Ciência Política na Universidade
de Gotemburgo.
Fredrik Sörebo tem difi culdade em perce-
ber: “Sinceramente, não acho que haja enor-
mes diferenças entre os homens e as mulheres
na Suécia. A minha ex-mulher é uma mulher
de negócios muito bem sucedida. E a minha
actual mulher tem uma empresa... Tenho dois
fi lhos que me parecem muito normais — e eles
seriam os primeiros a criticar-me se achassem
que eu era um homem da idade da pedra...
posso não ser um homem perfeito, mas acre-
dito no julgamento deles.”
Mesmo que à sua volta Sörebo
não as sinta, as diferenças es-
tão expressas nalguns indica-
dores que alimentam o de-
bate. O Eurostat diz que em
média as mulheres na União
Europeia ganham por hora
menos 16% do que os homens.
Na Suécia, o hiato é de 15% e
em Portugal de 13%. Dados de
2013. Estes cálculos limitam-se a comparar o
preço por hora de trabalho — não têm em con-
ta o tipo de trabalho, a experiência e o nível
de escolaridade do trabalhador, por exem-
plo, alerta Annika Creutzer. Se esses factores
forem tidos em conta, a diferença é de 7%,
segundo os últimos dados do instituto sueco
de estatística.
Sendo “um hiato salarial mais pequeno do
que outros países têm, a verdade é que existe e
está ao mesmo nível há dez anos”, lamenta Åsa
Regnér. E não há “paraíso da igualdade” que
aguente o facto de haver diferenças salariais
apenas baseadas no género e sectores do mer-
cado de trabalho onde a segregação é evidente
— 77% dos professores do ensino superior são
homens, 93% das educadoras de infância são
mulheres. Em profi ssões predominantemente
masculinas ganha-se melhor, naquelas onde
dominam as mulheres, pior, sublinha.
“Isto tem consequências para o resto da vi-
da”, prossegue Regnér. “Quanto às pensões
de reforma, as mulheres recebem cerca de
60% das pensões dos homens.” Simplesmente
porque salários mais baixos, e mais tempo em
casa, signifi cam contribuições mais baixas.
“Quando vemos as diferenças salariais entre
homens e mulheres antes do nascimento do
primeiro fi lho, nem são enormes. O nascimen-
to do primeiro fi lho é o momento-chave.”
Para lidar com o problema, o “Governo fe-
minista” vai obrigar os empregadores a ana-
lisarem anualmente os salários que pagam a
homens e a mulheres e a tornarem transpa-
rentes as suas políticas salariais. Se detectarem
diferenças, devem explicá-las nas inspecções
periódicas de que são alvo — a discriminação
com base no género é proibida.
Outro nó difícil de desatar é o da violência.
O país não se saiu bem numa mega-sondagem
divulgada no ano passado pela Agência Euro-
peia para os Direitos Fundamentais: 46% das
suecas inquiridas disseram já ter sido vítimas
de violência. É das maiores percentagens da
União Europeia. Outros países igualmente co-
nhecidos pelos bons indicadores relacionados
com a igualdade de género saíram-se ainda
pior: Dinamarca, 52%, Finlândia, 47%...
Alguns investigadores alertaram na altura
para a possibilidade de os dados poderem re-
fl ectir uma maior consciência do abuso nes-
tes países. Seja como for, outros números não
deixam margem para dúvidas: em média, 17
suecas por ano são mortas por pessoas com
quem tinham uma relação íntima — em Por-
tugal, no ano passado, foram 35. “Nos últimos
15 anos investimos em legislação, em casas
de abrigo, em educação, na formação das au-
toridades, no sistema judicial, nos hospitais,
para que prestem um bom serviço às vítimas
de violência doméstica”, diz Åsa Regnér. “É
preciso fazer muito mais.” A começar nas es-
colas. Åsa Regnér quer reforçar os currículos
nestas áreas.
O “Governo feminista” tem mais planos,
inclusive além-fronteiras. Anunciou uma
“agenda feminista” para a política externa.
Os direitos humanos em geral e os das mu-
lheres em particular devem estar presentes
quando o Estado sueco debater com outros
países política e negócios, quando cooperar
em cenários de confl ito e ajudar na recons-
trução.
O feminismo está na ordem do dia. “É óp-
timo que os meus colegas de Governo acor-
dem de manhã e se sintam feministas. Mas é
óptimo também que ao longo do resto do dia
trabalhem de forma feminista, e deverão fazê-
lo”, diz Åsa Regnér. No fi nal da legislatura,
os suecos avaliarão. “E vai ter de se perceber
qual a diferença entre um governo feminista
e outro governo qualquer.”
SOFIA SABEL/IMAGE BANK SWEDEN
População
Composição dos parlamentos nacionais (2014), em %
Governadores e vice-governadoresdo banco central do país (2014), em %
Peso dos homens e das mulheres com título de ministro nos governos nacionais (2014), em %
Quanto ganham a menos as mulheres em relação aos homens (preço/hora não ajustado)
Cátia Mendonça e Andreia Sanches
Licença parental* Líderes de partidos políticos com uma representação eleitoralde 5% ou mais (2014)
Mulheres com diploma superior por cada 100 homens (2012)
HomensMulheres
31 69
56
72
44
28
197620052013
98 dias4 ou 5 meses4/5/6 meses
Duração
6 meses16 meses16 meses
Portugal
Suécia
Composição dos conselhos de administração das maiores companhias listadas na bolsa (2014), em %
Portugal
Portugal Suécia UE
Portugal Suécia UE
Portugal
Portugal
*Os dois países têm bónuspara casais que partilham
Portugal
Suécia
Suécia
Suécia
UE
UE
UE
Suécia
UE
Portugal
SuéciaUE
991
2872
2080
20
80
50 5028
72
15,70%15,90%
16%
100
6040
20
80
0
4.ºSuécia
4.790.131
4.810.248
100
7822
13 87 no ranking da Igualdade de Género de 2014 do Fórum Económico Mundial
30 153 160 143
100 homens
199520052013
18 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 19
“O BOMBISTA SUICIDA ISLAMISTA DE HOJE É UMA MISTURA DO ANARQUISTA DO SÉCULO XIX COM O MÁRTIR”
JAIME NOGUEIRA PINTO
Vai começar uma guerra de civilizações? Alguma vez existiu um mundo bipolar en-tre o islão e a cristandade? Até que ponto o confl ito é construído com mitos e men-tiras? Qual a genealogia do Estado Islâ-mico? Quem são os jihadistas e o que pre-tendem? Será possível compreendê-los? Jaime Nogueira Pinto escreveu um livro, O Islão e o Ocidente, sobre as andanças históricas da “grande discórdia”
PAULO MOURA TEXTO DANIEL ROCHA FOTOGRAFIA
20 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
Jaime Nogueira Pinto, histo-
riador, doutorado pelo Ins-
tituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, é um ho-
mem com uma perspectiva
sobre a realidade política e
histórica. Poder-se-ia pensar
que o seu posicionamento,
na direita conservadora, o
levaria a olhar o terrorismo
islâmico com desprezo e in-
tolerância. A verdade é que
o “fascista de serviço”, como ele gosta, com
um sorriso, de se defi nir, respeita Bin Laden
e acha que vale a pena tentar compreender
o Estado Islâmico. É o que tenta fazer em O
Islão e o Ocidente — A Grande Discórdia, pu-
blicado pela D. Quixote.
Quando Napoleão atacou os egípcios,
disse-lhes que era para os libertar. O
Ocidente traiu o mundo muçulmano
desde sempre?
O Ocidente quer sempre libertar e há sempre
gente para ser libertada. Os próprios conquis-
tadores espanhóis das Américas, para irmos
a um caso limite de selvajaria, fi zeram isso.
Cortez aliou-se com muitas tribos de índios
que eram oprimidos pelos aztecas. Napoleão,
que estava a começar uma guerra contra o
Império Britânico, tentou aparecer como um
libertador. Mais tarde, o Lawrence da Arábia
fez o mesmo, ao serviço do Exército inglês,
prometendo coisas aos árabes que os seus
próprios chefes já estavam a atraiçoar com-
pletamente.
Era o acordo Sykes-Picot.
Exactamente. Já tinham dividido os territó-
rios entre a Inglaterra e a França. E prome-
tido arranjar um espaço para a comunidade
judaica. Tinham prometido a mesma coisa
a três ou quatro entidades diferentes e não
se importaram muito com isso. Em suma: o
Ocidente sempre usou e manipulou toda esta
região. E fê-lo mais facilmente a partir do mo-
mento em que o Império turco ia decaindo,
durante todo o século XIX, culminando com
a derrota na Primeira Grande Guerra.
Hoje os integristas islâmicos referem-
se sempre ao Império Otomano como
um período de glória perdida. Essa
foi a grande humilhação do mundo
muçulmano?
Os muçulmanos tiveram uma ascensão rapi-
díssima. Entre o início da pregação de Mao-
mé e a conquista do seu império, vai pratica-
mente um século. Maomé morre em 632, em
711 eles estão na Península Ibérica. Têm um
século em que é sempre a crescer. Da Ásia,
ao Império Bizantino, o Egipto, o Magrebe,
numa grande cavalgada que é um misto de
conquista e conversão. Isso leva-os a um pico
de grandeza, a uma época, do califado, nos
séculos VIII e IX, de grande fulgor civiliza-
cional. Depois entram num ciclo de alguma
decadência, desde a expulsão da Península
Ibérica, em 1492, e é o império turco, os oto-
manos, que vai tomar as rédeas da liderança
do mundo muçulmano. E durante os séculos
que se seguem há uma espécie de confron-
tação com o mundo cristão, mas que não é
permanente.
Não se trata propriamente de um
mundo bipolar.
As guerras dentro do islão e as guerras dentro
da cristandade são muito mais permanentes
do que o choque entre os dois blocos. Houve
alguns momentos de coligação em cada um
dos campos, para combater o outro, mas são
raros. Quando os turcos tomam Constanti-
nopla, em 1453, quando os cristão derrotam
os turcos em Lepanto, em 1571, ou quando
os turcos ameaçam Viena, nos fi nais do sé-
culo XVII.
Exactamente. E depois há uma série de diri-
gentes do Terceiro Reich que escapam para
o mundo árabe e fi cam por lá.
Alguns estão na génese dos partidos
baasistas?
Não chegam a estar. Mas aparecem vários,
como uma espécie de consultores.
Há uma ligação ideológica com o
fascismo?
Mais com o fascismo italiano. Nos anos 30,
Mussolini tinha criado em Roma o Instituto
para o Oriente, para onde procurou atrair
uma série de líderes, teóricos e académicos
do mundo árabe, para encontrar uma certa
afi nidade.
Durante a Guerra Fria, a ideia do islão
não existia?
Estava adormecida.
Quando acorda?
O ano da viragem é 1979. No Irão, que era uma
autocracia monárquica modernizante, com
o Xá, chega ao poder o Ayatollah Khomeini,
em Fevereiro. Em Novembro, dá-se o ataque
à Grande Mesquita de Meca, pelos integristas,
contra a família real saudita, que acusavam
de atraiçoar os princípios do islão e deixar
os estrangeiros ocuparem a terra sagrada da
Arábia. Por fi m, a invasão soviética do Afega-
nistão, com uma guerra que terminará meia
dúzia de anos depois e, de certa forma, vai
determinar o colapso da URSS. Aliás a reti-
rada é já no tempo de Gorbatchov.
A Perestroika começa aí. É a queda
da União Soviética que vai fazer
o islamismo prevalecer sobre o
arabismo?
Os sauditas começam a apoiar no exterior,
através de fundações de caridade, a reisla-
mização das populações, no sentido funda-
mentalista.
Como resposta ao Irão xiita?
Também por isso. Há uma preocupação com
o crescimento do xiismo, que até aí não man-
dava em nada. Mas principalmente para acal-
mar o clero wahabita e o movimento integris-
ta interno. O efeito no mundo islâmico é o
nascimento de um sentimento identitário is-
lâmico, cada vez mais poderoso. Esta atitude
saudita e o combate no Afeganistão estão na
genealogia dos movimentos radicais recen-
tes, como a Al-Qaeda. Formam-se naquele
internacionalismo religioso anti-soviético.
Com o apoio americano.
Sim, muito alimentado pelos EUA, a Grã-
Bretanha, os sauditas, o Irão. Coexistiram
ajudas muito estranhas.
O interessante é que a grande
fractura era entre o mundo
comunista, ateu, e o mundo religioso.
A afi nidade que os americanos
encontram e promovem com
os “selvagens” mujahedin é a
religiosidade.
Sim, é a religião. Bill Casey, que era direc-
tor da CIA nessa época, quando começou
as conversações com o embaixador saudita
em Washington, disse-lhe: “Nós temos uma
causa comum.”
Contra o materialismo ateu.
Sim. Casey, que era católico praticante e que
ouvia missa todos os dias, viajava sempre
com o seu capelão, no avião da CIA. Na Ará-
bia Saudita não era fácil, mas ele dizia: “Se
não o posso trazer, não venho cá.”
Nessa altura, não havia guerra de
civilizações, havia uma proximidade
entre cristãos e muçulmanos contra os
ateus.
A linha era: nós, os crentes, temos um inimi-
go comum, que é o materialismo soviético
ateu. Já tinha havido outra situação histórica
parecida, menos conhecida. Na guerra civil
espanhola, uma das bases fundamentais do
exército de Franco foram os regulares marro-
quinos. Eram uns milhares de soldados mar-
roquinos do exército espanhol. E o sultão, e
os ulemas, fi zeram na altura uma declaração
encorajando esses soldados marroquinos a
combater os materialistas ateus. Tal como
aconteceu na guerra de Espanha, com o fe-
nómeno das brigadas internacionais, também
houve esse voluntariado ideológico no Afega-
nistão. Essa cruzada anti-soviética mobilizou
muçulmanos de todo o mundo.
Que depois da guerra fi caram
desocupados.
Sim, e é interessante que dez anos depois,
quando Saddam Hussein invade o Kuwait,
Osama Bin Laden escreve uma carta ao rei
Fahd da Arábia Saudita…
Dizendo que não quer lá os
americanos.
E que ele levantará um exército de dezenas
de milhares de crentes para expulsar Saddam
do Kuwait. O rei nem sequer respondeu.
Porque tinha desde há muito uma
aliança com os americanos.
Desde o tempo em que Roosevelt se encon-
trou com o rei Saud, nos fi nais da guerra do
canal de Suez. O rei viu que seriam os ame-
ricanos a mandar, e não os ingleses, e fez o
shift. Roosevelt aproveita a oportunidade.
Porque o petróleo começava a ser
importante.
Claro. Já tinha sido. Aliás, uma das causas da
derrota da Alemanha hitleriana é a questão
energética. Andaram à procura de petróleo
por todo o lado. É por isso que ainda hoje
os alemães estão na vanguarda das energias
alternativas. Porque não tinham petróleo.
Mas foi decisivo esse rompimento de
Bin Laden com o rei saudita?
Sim, foi aí que começaram os atentados, nos
anos 90, contra bases americanas na Arábia
Saudita, etc. Eu li com muita atenção os es-
critos de Bin Laden, porque é uma pessoa
que vale a pena ler.
Há uma grande diferença entre ele e os
teóricos do actual Estado Islâmico?
Osama Bin Laden é um homem de princípios.
Vê-se que tem uma concepção do mundo.
Não interessa qual é, mas tem. Há diferenças
até sociais. Bin Laden vem da elite, herdou
uma fortuna colossal. E vê-se que há ali uma
linha teológica.
É um homem a quem conseguimos
compreender o pensamento?
Sim, tem um pensamento muito político. A
ideia dele é tomar o poder no mundo árabe.
Tirar de lá o que ele considera serem as eli-
tes ilegítimas. E tem uma teoria do inimigo
próximo e do inimigo distante. A tese dele é
a de que a Casa de Saud se aguenta graças ao
apoio americano. Portanto, se os americanos
forem expulsos, se se assustarem e fugirem…
Convenceu-se de que o fariam depois do ata-
que ao quartel dos Marines no Líbano, no
tempo de Reagan, e da retirada da Somália,
depois do episódio de Mogadíscio, em que
foram mortos 18 americanos. Concluiu que
os americanos fogem quando começam a ver
cadáveres. Por isso lançou o grande ataque
à América, de 11 de Setembro. Enganou-se
profundamente.
Subestimou os americanos.
Quando os ataques eram longe, era uma coi-
sa. Mas se os atacamos em casa, não há para
onde fugir.
A estratégia de Bin Laden falhou.
Não só não conseguiu afugentar os
americanos, mas trouxe-os em força
para a região. Foi por isso que nasceu o
Estado Islâmico?
A seguir ao 11 de Setembro, [o então primeiro-
ministro israelita] Ariel Sharon disse que era
bom que os americanos vissem o que era ter
Mas a luta, se virmos bem, é mais das po-
tências católicas, sobretudo a Espanha dos
Habsburgo, por vezes Portugal, a Santa Sé.
Já a França, por exemplo, tem uma posição
ambígua. A maior parte das vezes está do
lado dos turcos. E os ingleses também.
Mas houve uma bipolarização ao nível
mental? Foi construída uma imagem do
turco, do árabe.
Ao nível mental houve, de facto, na Idade
Média, antes da Reforma, um mundo que é
a Respublica Christiana, defi nido por valores
ideológicos e religiosos, que levou por exem-
plo ao fenómeno das Cruzadas. Mas à medida
que os estados se começam a formar, o in-
teresse estatal passa à frente dessa unidade
religiosa, que entretanto se quebrou.
A própria Reforma quebra essa
unidade.
Exactamente, a partir de 1519. Aliás, é inte-
ressante que os pintores protestantes, como
Durer, e como esse Mathias Gerung, que ilus-
tra a capa do meu livro, representam muitas
vezes nas suas obras, lado a lado, os grande
inimigos da fé e de Deus: O Grande Turco e o
Papa. Aparecem juntos, pintados como uns
demónios, ou lagartos.
Mítica ou não, essa ideia de uma
idade de ouro prevaleceu no mundo
muçulmano.
O passado é sempre um produto da nossa
imaginação. No século XIX, com os nacio-
nalismos, a maior parte das nações euro-
peias…
Foram inventadas.
Foram inventar uns pais fundadores, um
Viriato, ou um Vercingetorix [que liderou a
grande revolta gaulesa contra os romanos em
53 a.C.]. A História é sempre um campo muito
mobilizável para essas ideias. A História e a
Arte. Wagner por exemplo, foi buscar aquela
mitologia dos Nibelungos, todos aqueles he-
róis ou semideuses germânicos pagãos, que
não tinham existência histórica. No mundo
muçulmano, passou-se algo paralelo.
Mas essa identifi cação do mundo
muçulmano como uma unidade
nem sempre existiu. É ela própria
uma construção? Durante muito
tempo, o elemento unifi cador era o
arabismo.
Há um certo esplendor, que se tornou mítico,
e depois toda essa decadência do império tur-
co, a partir de princípios do século XIX, em
que são colonizados, dominados, explorados,
e que culmina com a Grande Guerra. Depois,
é o pacto Sykes-Picot que decide a sorte do
império turco. Deixa os sauditas tranquilos,
permite a criação dos reinos do Iraque e
da Jordânia, mas há um grande vazio, que
é ocupado essencialmente pelos ingleses e
franceses. Ora depois vem a Segunda Grande
Guerra e a seguir um movimento de descolo-
nização. Aí nascem os nacionalismos árabes.
Nasser faz a revolução dos jovens ofi ciais no
Egipto, etc. Nacionalismos de cada nação.
Que geralmente são movimentos laicos.
Sim, laicos, socialistas, que evocam o pa-
narabismo. Na Síria, no Iraque, surgem os
partidos Baas, cujo teórico, aliás, é Michel
Afl ac, que é um cristão. Esses movimentos
não são islamizantes, pelo contrário. O Egipto
de Nasser acaba por enforcar os líderes da
Irmandade Muçulmana, Hassan Al Banna e
Said Qutb.
E têm como aliado a URSS e o seu bloco
da Guerra Fria.
Sim, vão buscar a União Soviética, cuja sim-
patia, curiosamente, ia, em 1948, mais para
o Estado de Israel, porque ideologicamente
era socialista, igualitário.
E porque os judeus tinham sido vítimas
dos alemães.
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 21
As guerras dentro do islão e as guerras dentro da cristandade são muito mais permanentes do que o choque entre os dois blocos
Uma coisa é a gente morrer numa guerra de civilizações, porque tem de morrer. Outra coisa é morrer estupidamente
o terrorismo dentro de portas. “Nós temos
isto todos os dias.” Os EUA foram trazidos de
novo para o centro do vulcão. Envolvem-se
na guerra do Afeganistão, depois no Iraque,
que obviamente não tinha nada que ver com
terrorismo. Saddam era o líder mais laico da
região. E começou um capítulo de desarranjo
de todo o Médio Oriente. Surge a Al-Qaeda e
depois o Estado Islâmico, liderado pelo qua-
dros dissidentes mais violentos daquela. E
formado, além disso, pelos quadros militares,
laicos, do exército de Saddam Hussein.
E combatentes que vão chegando de
todo o lado.
A novidade do Estado Islâmico é a territoria-
lidade. A Al-Qaeda não tem território, o que
implica uma maior difi culdade de recruta-
mento. Para os internacionalistas que qui-
sessem alistar-se, era complicado. Vão para
onde? Agora é fácil. Chegando às fronteiras
do Estado Islâmico, são encaminhados, e lá
fi cam.
Mas é preciso também ter capacidade
de atracção.
Eles jogam na propaganda. Não querem ser
um grupo selectivo, com uma grande estra-
tégia. Não, eles querem ir buscar as massas.
Há 1600 milhões de muçulmanos no mundo,
e eles vão apelar aos deserdados dessa mas-
sa, que podem ser os que vivem nos estados
islâmicos e se sentem marginalizados, ou os
que vivem nas comunidades cristãs da Eu-
ropa ou EUA, e que estão desenquadrados
socialmente. O Estado Islâmico dá-lhes uma
identidade. Diz-lhes: fi quem connosco. Nós
aterrorizamos os infi éis.
A ideia do terror é importante?
Os grandes movimentos totalitários, como o
comunismo ou o próprio nacional-socialis-
mo, jogaram nessa ideia do terror.
Vê uma semelhança entre esses
movimentos e o Estado Islâmico?
Têm como objectivo seduzir e atrair as mas-
sas. Não apresentam grandes construções
intelectuais, são mensagens simples com dois
objectivos: aterrorizar os inimigos e cativar
as camadas menos politizadas, os deserda-
dos.
Comunismo e nacional-socialismo eram
idênticos nisso, apesar de terem causas
diferentes?
O modelo é muito parecido. A causa do comu-
nismo é o proletariado mundial, humilhado
e explorado. Tu, proletário argentino que
sofres, explorado, tens aqui a União Soviéti-
ca que te vai libertar. O nacional-socialismo
explorou o patriotismo dos alemães, humi-
lhados pelo tratado de Versalhes. Tu, cidadão
alemão, que estiveste na guerra, foste ferido,
foste humilhado, tens o teu país ocupado, nós
vamos levantar-te. O Estado Islâmico diz: os
muçulmanos estão a ser humilhados, explora-
dos. Tu, jovem muçulmano, que estás aí per-
dido no meio da Europa, onde te desprezam,
te marginalizam, se vieres para aqui, tens
aqui o Estado Islâmico para te defender.
São os únicos que fazem frente ao
poder ocidental e dos americanos.
Sim, por isso eles fazem aquelas paradas,
demonstrações de força.
Um artigo de Andre Glucksman, citado
no seu livro, compara os combatentes
do ISIS aos nihilistas russos que são os
protagonistas da obra Os Demónios, de
Dostoievski.
Exactamente. É o nihilismo que volta a per-
sonifi car-se nestes voluntários. Não há uma
tradição suicida no mundo islâmico.
De onde vem isso, então?
Dos nihilistas russos e dos anarquistas euro-
peus. E até os nossos Buiça e Costa [assas-
sinos do rei D.Carlos] são suicidas, porque
sabem perfeitamente que não vão escapar.
É aí que vão buscar o modelo dos
bombistas suicidas? Não à tradição
islâmica?
Os primeiros kamikazes islâmicos, que apare-
cem nos movimentos radicais palestinianos,
que não eram religiosos, mas marxistas, usa-
vam um lenço branco à volta da cabeça, como
os pilotos kamikazes japoneses. Não é uma
tradição islâmica. É uma coisa nova, intro-
duzida. E há uma reconciliação disso com a
ideia do mártir, que vem muito do xiismo.
De Hussein, fi lho de Ali.
O Hussein que os companheiros abandonaram.
Daí a autofl agelação, para se castigarem.
Também há o culto dos mártires no cris-
tianismo.
O mártir cristão deixa-se matar pela sua fé,
mas não mata. O bombista suicida islamista
de hoje é uma mistura do anarquista do sé-
culo XIX com o mártir. Aquele que arremessa
uma bomba para a frente do czar, o que mata
a arquiduquesa a sangue-frio, sabe que a se-
guir vão ser presos ou mortos. Tal como na
tomada da Grande Mesquita, os que foram
presos seriam todos mortos, decapitados.
Mas com essa ideia de ser um martírio por
Deus.
Essa combinação de jihadismo
com integrismo não é também
um fenómeno novo? Os Irmãos
Muçulmanos nunca quiseram o poder.
Há duas linhas que são contraditórias. Há um
lado purista, dos Irmãos Muçulmanos, que
estão contra o poder. Desprezam o “faraó”, o
governante ilegítimo. Por outro lado, o clero
wahabita, na Arábia Saudita, está com o re-
gime. Quando surgiu a Al-Qaeda e o Estado
Islâmico, as autoridades religiosas islâmicas,
como a universidade egípcia de Al Azhar, con-
denaram os seus actos. Mas depois é evidente
que para um movimento funciona melhor in-
vocar motivos religiosos nobres do que deixar
transparecer a ambição política.
A separação da religião e do Estado tem
alguma tradição no mundo islâmico?
Os primeiros califas eram chefes militares e
chefes religiosos. São sucessores do profeta,
e assumem esses dois gládios. Que no cristia-
nismo se separam a partir de certo momento
histórico, embora também tenha havido polé-
mica. A dada altura, os papas querem mandar
nos estados e os estados querem mandar na
Igreja, como fez Henrique VIII. Houve ten-
sões, mas o problema resolveu-se no século
XVI ou XVII. Passou a prevalecer a ideia da
Igreja livre no Estado livre. O laicismo francês
é uma coisa diferente.
Tem uma natureza diferente das outras
nações europeias? É mais do que a
separação da Igreja do Estado?
No mundo anglo-saxónico, o laicismo é en-
tendido como a separação da Igreja e do Es-
tado. A Igreja trata das almas, o Estado dos
corpos. Depois lá se entendem, têm os seus
pactos, negociados historicamente, com mais
ou menos violência. Em França, a herança
é diferente. A Revolução perseguiu a Igreja
Católica. O laicismo era entendido, tal como
foi aqui, pelo dr. Afonso Costa, não como a
Igreja para um lado, o Estado para o outro.
Era mais…
Acabar com eles.
Acabar com eles, exactamente. Esmaguemos
a infâmia, dizia Voltaire. E como entretanto
o catolicismo francês perdeu muito da sua
força, e a sociedade se secularizou, o laicismo
francês voltou-se contra o islão. Não por ser
o islão, mas por ser uma religião.
Porque os católicos já não davam
luta? Foi por isso que os humoristas
do Charlie Hebdo se metiam com
Maomé, para poderem continuar a ser
provocadores?
Aqueles bonecos que os levaram à desgraça,
faziam-nos há muito tempo com o Papa. De-
senhavam Bento XVI agarrado a um guarda
suíço, com uma criancinha, etc. Mas os ca-
tólicos não tugiam nem mugiam.
Há um capítulo do seu livro
que parece uma justifi cação do
atentado contra o jornal satírico
Charlie Hebdo.
Não é uma justifi cação, apenas uma explica-
ção. Se tivermos uma publicação que siste-
maticamente insulta os negros, os homosse-
xuais, ou as mulheres, embora no uso da sua
liberdade de imprensa, irá decerto provocar
indignação e ter problemas.
São coisas distintas. Criticar ou
ridicularizar um líder não é o mesmo
que insultar um grupo.
Eu sou católico apostólico romano. Se alguém
fi zer uma caricatura de Cristo numa posição…
uma coisa homossexual, um cristão sente-se
profundamente… Cristo é nosso irmão, nosso
pai. É uma ofensa gravíssima.
Se o retratado for um líder político,
já não é ofensivo?
O líder é uma representação política. Aqui
estamos a falar de uma coisa sagrada.
Um ateu não reconhece isso. Um
líder político pode ser igualmente
importante para ele.
Se for um ateu comunista e lhe fi zessem isso
ao Lenine, ou um ateu nacional-socialista e
insultassem o Hitler, ele também ia lá pôr
uma bomba.
Claro, se forem ateus fanáticos.
O Emanuel Todd escreveu agora um livro ex-
plicando que se trata daquela classe média
e média-alta francesa, fi losofi camente cép-
tica, que não acredita em coisa nenhuma e
que acha graça ter como alvo as crenças do
próximo. Ora as crenças, para quem tem fé,
são o mais importante da vida.
Sim, mas que tem isso que ver com o
ataque ao Charlie Hebdo?
Não justifi ca, mas explica. Eles estavam a
pôr-se em risco, com o permanente desafi o
a uns tipos que não eram propriamente pê-
ras doces.
Acha que a reacção que
houve foi apenas promovida
pela classe jornalística, que
se sentiu atacada nas suas
prerrogativas?
Os jornalistas nunca ligam nenhuma aos ata-
ques que há por todo o mundo. Aqui tocaram
numa coisa que é sagrada para eles. Assim
como para mim é sagrado Nosso Senhor Je-
sus Cristo, para os jornalistas, é a liberdade
de expressão.
A liberdade de expressão não é
um valor sagrado para a sociedade
ocidental?
Não acho. É para uma parte dela. Para outra,
não é. O risco que corremos é o de a represen-
tação do islão fi car nas mãos destes radicais
e a representação do Ocidente fi car entregue
a este laicismo agressivo, que apesar de tudo
é minoritário.
É possível compreender os
actos de pura barbárie, como as
decapitações gravadas em vídeo?
Temos de compreender tudo, mesmo que
seja para depois o combatermos.
Não há coisas tão intoleráveis que
nem são dignas do nosso esforço de
compreensão?
Isso é uma atitude que não teria muita uti-
lidade, nem para nos defendermos. Temos
de perceber as razões. Isto é uma paranóia?
Uma hiperdefesa de qualquer coisa anormal?
Uma coisa é a gente morrer numa guerra de
civilizações, porque tem de morrer. Outra
coisa é morrer estupidamente.
22 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
ŽNo Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história
de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Conto inédito de
Alexandra Lucas Coelho
I. BELGRADOÐ ligou para Lisboa, no seu português fl uente,
pedindo-me que reconstituísse a história de
Ž. Eu encontrara Ž duas vezes e estava inte-
ressada no assunto, como Ð sabia através de
um amigo comum. De resto, Ð e eu não nos
conhecíamos, mas ele saltou, alegre, por ci-
ma disso:
— Quando podes vir a Belgrado?
Foi assim que na noite de 2014 para 2015
me achei na colina do Kalemegdan, a fortale-
za da capital sérvia que já foi celta, romana,
bizantina, otomana. O cigarro de Ð apontou a
confl uência do Sava com o Danúbio, em breve
o frio daria para andar sobre as águas. Quem
nos ofereceu um gole de rakija disse que esta-
vam doze negativos, mas já bebera meia gar-
rafa. Acho que deviam estar pelo menos vinte
negativos quando Ð e eu caímos na neve, ele
de costas, eu de bruços. Um snipper não faria
melhor, ao primeiro beijo.
Notas iniciais sobre Ž: tinha quinze anos a
4 de Maio de 1980, o dia em que a Jugoslávia
começou o seu luto (e não era artifi cial, nem
o luto, nem a Jugoslávia). Um antigo vizinho
lembra-se de estar com Ž no Centro Cultural
de Estudantes quando chegou a notícia: Tito
morrera. Apanharam o autocarro de volta a
casa e foram para a garagem da fi lha do futu-
ro presidente ensaiar uma nova canção dos
Jungle Anarchists, a banda que haviam funda-
do com outro vizinho. Porque eram punks de
Dedinje, o bairro-bosque dos aparatchiks, hie-
rarquia acima até à mansão de Tito. Os punks
do centro chamavam-lhes mesmo punks de
Dedinje como se lhes chamassem ricos. Só que
os pais deles eram pequenos aparatchiks em
pequenos apartamentos no fi m da hierarquia,
prédios feios até hoje. Aos quinze, Ž partilhava
o quarto com dois irmãos, e tinha de negociar
com eles o tráfego de namoradas. Portanto,
punks de Dedinje mas não menos punks por
isso, fuck off .
Em 1981, a fi lha do então já ex-presidente
fundou a sua própria banda, e dois anos de-
pois explodia na rádio com o álbum Perfektan
Dan Za Banana Ribe. O título era uma home-
nagem à primeira das Nove Histórias de J. D.
Salinger, Um dia perfeito para o peixe banana,
que Ž terá oferecido à futura musa quando
tinham dezoito anos: sabia-o de cor. Muito
sofi sticado para dezoito anos, mas aos dezoi-
to Ž já se achava um fracasso desde os treze,
que foi quando começou a partir guitarras e
a cheirar cola. Aos treze, cola; aos dezoito,
heroína. A fi lha do ex-presidente morreu nem
dez anos depois, a irmã dela também, e eram
só os ícones de uma longa lista. Belgrado pa-
recia mais perto de Londres que da Cortina
de Ferro. Os anos 1980 foram a década em
que o New Musical Express vinha cobrir a cena
cool jugoslava, e os adolescentes morriam a
solo, deixando o tal belo cadáver. Vista des-
sa Jugoslávia, a ideia de guerra não passava
de uma farsa entre Moscovo e Washington. A
Jugoslávia era a praia e a montanha dos não-
alinhados, um sudeste ao mesmo tempo medi-
terrânico, eslavo, otomano e centro-europeu.
Os jugoslavos viajavam, os jugoslavos viviam
bem, os jugoslavos recebiam os Rolling Stones
(Zagreb 1976, Ž fechou-se no quarto porque
não o deixaram ir). Até os meus tios-avós pas-
saram férias na Jugoslávia: nem se dava pela
repressão, Tito era um esteta. Então, claro,
quem na geração de Ž acreditava mesmo que
nos anos 1990 a Europa teria de novo campos
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 23
de concentração, genocídios, valas comuns,
deportações, violações em série, e que tudo
isso aconteceria justamente ali, na costura do
socialismo de rosto humano? As únicas bom-
bas que os punks de Dedinje conheciam eram
as dos Clash (The hillsides ring with ‘Free the
people’ / Or can I hear the echo from the days of
‘39? / With trenches full of poets (...) I’m hearing
music from another time). Se a letra anuncia a
guerra, é porque a ouço no futuro, e de fora.
Sou de fora, eis o que levou Ð a procurar-
me: essa seria a minha vantagem e o meu li-
mite. O trabalho dele é convencer-me de que
a vantagem é maior do que o limite, o meu tra-
balho é saber que à partida já perdi. Pois que
poderia eu dizer sobre Ž a quem cresceu nas
mesmas trincheiras de Ž, e conhece cada nu-
ance entre a neve e a lama, como a neve é uma
ilusão que queima, tudo o que a neve cobre,
tudo o que a neve adia, porque o frio retém a
revelação, e é o sol que traz os mortos.
Assim aterro em Belgrado no começo do
Inverno para uma espécie de garimpo, de fora
para dentro. Se ninguém detém a narrativa
de outro, esta história de Ž será só a minha,
como o meu anfi trião sabe há muito. Quando
Tito morreu, já Ð estava a milhas, bolseiro de
estudos pós-coloniais, aluno de Edward Said.
E nem a América fez dele um ex-fumador.
A 25 de Dezembro, uma quinta-feira banal
para os ortodoxos, apanho um táxi até à antiga
mansão de Tito em Dedinje. O primeiro nevão
deve acontecer no fi m de semana, por enquan-
to copas negras, céu dourado, nem uma folha.
O táxi pára junto ao muro, mais alto do que
eu mas muito mais baixo do que as árvores
lá dentro. Extenso parque, sim senhor, se é
para receber Elizabeth Taylor há que fazer as
coisas bem, embora para esses casos também
houvesse a Casa de Verão, na ilha. A Taylor, a
Lollobrigida, a Loren, o Burton, assim do que
me lembro. Tito era pop.
Já Milošević foi o anti-pop mundial. Deu ca-
bo da telegenia sérvia ao ser o mais podero-
so protagonista de uma violência inédita na
Europa desde a Segunda Guerra, dezenas de
milhares de cadáveres para todos os lados, até
aos bombardeamentos da NATO sobre a Sér-
via. Ainda hoje, em Belgrado, Milošević parece
o-homem-do-saco na infância de milhares de
sérvios, só que real até à morte. Um caso de
ascensão máxima da paranóia. E quem era a
multidão que o seguia?, perguntei ontem a um
dos velhos amigos de Ž. Ele suspirou, creio que
até o cão a seus pés suspirou (um rafeiro que
aprendeu a encantar estranhos para sobrevi-
ver, de preferência raparigas, até hoje encanta
e já é senhor da casa, questão de feitio). Ah, o
lumpen-proletariado, respondeu enfi m o ve-
lho amigo de Ž. Ao pé da letra, homens-trapo,
sem consciência política, à mercê de quem os
manipule. Não é com eles que se fará a revo-
lução, e a revolução não se fará também por
causa deles, mas isto já não é Marx que diz,
nem o velho amigo de Ž. Tão sérvio de pai e
mãe como Ž, o velho amigo rematou: horror,
horror dessa Sérvia.
(De qualquer massa infl amada, além do
lumpen-proletariado, não? A velha questão
da banalidade do mal. O paranóico coman-
da e o mal banaliza-se pela massa. A massa
é o sistema digestivo do paranóico. Processa
tudo.)
Não, não me perdi, estou bem em frente
à mansão de Tito, mas Milošević instalou-se
aqui nos anos 90, então é impossível não me
lembrar dele também. Os imperialistas têm
um fetichismo pelo metro quadrado de quem
os antecedeu, tal como os europeus de 1500
tiveram pelos templos indígenas, um eterno
retorno igual à guerra. Milošević morar na
mansão de Tito era a Grande Sérvia a ocupar
a casa da Jugoslávia. A História ia recomeçar
nele.
(Esta noite, saindo de uma kafana para ou-
tra num eterno retorno à rakija de marmelo,
Ð há-de contar-me que existem internados em
hospícios convencidos de que ainda estão na
Jugoslávia. Imaginar um destes internados a
ter alta dava um romance, se calhar já deu.)
Caminho ao longo do muro da mansão. O
táxi espera do outro lado da estrada. Ninguém
nos passeios, nenhum cartaz, nenhuma ta-
buleta, a jugo-nostalgia contemporânea não
parece chegar aqui, talvez porque não se possa
entrar, talvez porque Milošević morou lá den-
tro, e se Tito deu vida à Jugoslávia, Milošević
enterrou-a, ou talvez por a casa ter sido bom-
bardeada pela NATO em 1999. Os destroços
continuam à vista, através do rendilhado de
um portão.
(Há uns curto-circuitos assim no meio de
Belgrado, subitamente numa avenida dois edi-
fícios bombardeados, lado a lado. Não sei se
é uma decisão ou a ausência dela, e até hoje
não perguntei.)
Esta rua — Užička — entrou para a história
do século XX à bomba ( já na Segunda Guer-
ra, os Aliados bombardearam os alemães que
a tinham ocupado), mas o que me interessa
hoje é como ela coincide com o mapa de Ž.
Eles, os proto-punks de Dedinje, vinham dos
prédios com bicicletas, com trenós, com gui-
tarras, com namoradas, consoante a estação
e a idade. Em Dezembro caíam os primeiros
nevões, fi cava tudo fofo, depois duro, e depois
pedregulhos podiam cair se a temperatura
subisse de repente, desprendendo o gelo dos
telhados, morre-se disso em Belgrado, como
nos trópicos de um coco. Árvores em ponto de
fuga, silêncio de bosque mais que de bairro:
não é Tito nem Milošević que suponho a atra-
vessar a estrada (também não atravessariam a
estrada, imagino), mas sim Ž, as longas pernas
de Ž com aquelas calças de pinças, aqueles
ténis, aqueles blazers, aqueles pins no blazer,
aquelas franjas dos anos 1980 tapando olhos
de ressaca, de quem não dá trela a ninguém.
Vai fazer vinte anos amanhã, e mais um amigo
acaba de morrer.
Quem ainda cá está em 2014 confi rma: nes-
se grupo, nesse tempo, a morte era mais real
do que a guerra. Aos vinte, Ž via-se como um
velho sobrevivente, entre overdoses e hiv. A
lista das partidas aumentava dessas e de outras
formas, Londres, Roma, Viena. Não sufi ciente-
mente longe para ele, segundo um contempo-
râneo que não chegou a tomar drogas, e hoje
mora num casarão. Os anos 1990 fi zeram a
fortuna de quem teve jeito, Ž teria morrido
de tédio, se não tivesse chutado tudo antes.
No Verão de 1985 desembarcou na praia catalã
de Blanes porque uma amiga de Belgrado que
emigrara para Barcelona acabava de conhecer
um beatnik sul-americano lá. Eis como, depois
de uma semana a beber com o beatnik — um
tal de Roberto Bolaño, que vendia pulseiras
mas tinha cem livros na cabeça —, Ž decidiu
ir para o México.
Estudar fotografi a, disse aos pais.
A vida mexicana de Ž terá de esperar pelo
meu próprio regresso ao México. O que posso
registar agora é que foram duas temporadas, a
primeira, entre os vinte e os vinte e um (1985-
86), de facto a morar no formidável campus da
Universidade Nacional Autónoma, enquanto
estudava fotografi a, entre biscates vários. E
a segunda, aos trinta e quatro (1999), a foto-
grafar a violência das fábricas de Ciudad Ju-
árez para a revista do New York Times. A sua
nota biográfi ca desse ano resumia: “Cobriu
confl itos no Irão, Iraque, Roménia, Líbano,
Ruanda, Irlanda do Norte, Sudão, Afeganistão,
Rússia, Serra Leoa, Argélia, Israel-Palestina
e nas repúblicas da ex-Jugoslávia.” Ou seja,
em apenas treze anos, Ž catapultou-se para
a linha da frente do fotojornalismo, de trin-
cheira em trincheira. A primeira vez que o vi
foi em Sarajevo.
Portanto, vou voar para Sarajevo este sá-
bado, 27 de Dezembro, ao começo da tarde.
Hora perfeita, se não estamos interessados em
mudar um ritmo nocturno que já vem de há
dias. Ainda ontem, porque era quinta, e é algo
que só acontece às quintas, Ð levou-me a uma
catacumba onde cavalheiros de cerca de oiten-
ta e quatro anos trazem rakija de casa em gar-
rafas de plástico que oferecem a toda a gente,
começando pelas senhoras. As senhoras têm
grandes toucados. As paredes estão cobertas
de fotografi as. Pareceu-me ver Amália Rodri-
gues numa esquina e quando olhei melhor era
Amália Rodrigues. Um cavalheiro de cerca de
oitenta e quatro anos recitou-me Octavio Paz,
outro disse-me que tocara bateria com Charlie
Haden quando ele cá esteve em 1971. Isto, na
véspera de Haden ter ido tocar no primeiro
Cascais Jazz, onde dedicou as cordas do seu
contrabaixo às lutas africanas de libertação,
o que lhe valeu ser levado pela polícia política
da ditadura. Este octogenário até se lembra
de como Haden depois festejou Abril com a
sua própria versão da Grândola Vila Morena.
E para que eu não duvide, canta. Como não
amar Belgrado.
Nem de propósito, um amigo de Lisboa
manda-me, de boas festas, essa Grândola
porque o pai tinha estado no Cascais Jazz e
aparece numa fotografi a a olhar para Charlie
Haden (também me manda a fotografi a). A
sintonia cósmica é tal que quando entram os
sopros julgo ouvir uma nota balcânica.
Sábado, com a alegria e o cigarro de sem-
pre, Ð vem pôr-me no táxi para o aeroporto,
não vá o motorista achar que sou uma turista
sem amigos. Isto, claro, apesar de os taxistas
sérvios serem meninos comparados com os de
Lisboa. Asseguro a Ð que no fi m-de-semana vai
nevar, ele ri da minha autoridade no assunto,
fecha a porta do táxi e fi ca a ver-me arrancar.
Eu fi co a vê-lo cada vez mais pequeno.
(Até cair nos braços de Ð não me passa pela
cabeça cair nos braços de Ð, mas pela primeira
vez ainda estou a pensar nele quando ele já
saiu de vista.)
II. SARAJEVOBelgrado-Sarajevo são 45 minutos de viagem
a tão baixa altitude que podemos observar
a passagem da planície sérvia para as mon-
tanhas bósnias como se de súbito o mundo
se levantasse num movimento interminável.
Uma imagem de contornos esfumados, com
a cor e a consistência de um desenho a car-
vão. O carvão são as árvores, o papel é a neve.
Que poderia eu dizer sobre Ž a quem cresceu nas mesmas trincheiras de Ž, e conhece cada nuance entre a neve e a lama, como a neve é uma ilusão que queima, tudo o que a neve cobre, tudo o que a neve adia, porque o frio retém a revelação, e é o sol que traz os mortos
24 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
Depois, o avião desce, curva para a esquerda
e começa a percorrer o vale de Sarajevo na
última hora de sol. Tudo me espanta, a paz
alpina de casinhas, o rio incandescente, os
prédios de espelho, talvez porque a última vez
que aqui vim foi num avião militar, a cidade
estava cercada, entrei no Holliday Inn à luz de
velas, e entre o aeroporto e o hotel só havia
uma coisa a fazer: acelerar.
(Se por um momento esqueces
que tens de correr rápido
as balas avisam-te
e se não avisarem
quer dizer que estás morto)
Até o Oslobodenje tem uma fachada de espe-
lho, vejo do lado direito. O jornal que nunca
deixou de sair em três anos e meio de cerco,
nem um só dia, agora é propriedade de um
homem de negócios e vizinho de um outdoor
da Coca-Cola.
Sarajevo estende-se como uma grande recta
ao longo do rio Miljacka, montanhas de um
lado e do outro e ao fundo. Lá mais para o
fundo começa o pedaço austro-húngaro, pa-
lacetes e pracetas, igrejas e pontes, incluindo
a graciosa Ponte Latina junto à qual foi assas-
sinado o arquiduque Franz Ferdinand, que as-
sim, tão involuntariamente, teve para sempre
o seu nome associado ao início da Primeira
Guerra, em 1914. Na esquina em frente há um
mini-museu onde podemos ver, por exemplo,
como as armas do assassino — Gavrilo Princip
— eram mínimas. Um revólver menor do que
a palma da minha mão. Ele próprio parece
um homem pequeno, de olhar melancólico.
Um sérvio da Bósnia, tão anti-austríaco como
anti-otomano, que acreditou febrilmente nu-
ma futura Jugoslávia.
Paralela ao rio, mais para dentro, está a ave-
nida a que toda a gente ainda chama Titova.
No monumento da Chama Eterna, sigo pela
rua pedonal. De um lado, a megastore da Be-
netton em saldos; do outro, uma feirinha com
carrossel, baloiços, quiosques de doces; por
cima, pontudos domos ortodoxos contra o
lusco-fusco; e fi nalmente a montanha nevada,
cheia de janelas acesas, que há dezanove anos
era o antro dos snippers. Há dezanove anos,
cá em baixo, também era Dezembro mas não
havia meias vermelhas, bonecos de gengibre,
luzinhas a piscar. A vida era urgente, furtiva,
subterrânea, uma aposta contra o atirador.
Agora olho os bonecos animados deste pos-
tal de 2014 que são os bósnios atafulhados de
casacos, de golas, de barretes, de luvas, com
grandes botas a patinhar na neve, porque na
neve andamos todos como bonecos (ou pin-
guins, diz aquele velho amigo de Ž, o do cão
encantador), e penso que cada um deles sabe
tudo sobre a guerra, e que isso jaz em cada
conversa, como a morte sob a neve. Eles es-
tavam cá, e cá estão.
MARX, leio em letras garrafais. Depois por
baixo: CLOTHES FOR THE PEOPLE. Como
a Benetton, só que Marx. A catedral católi-
ca, pouco adiante, tem um João Paulo II de
alumínio no pátio. Foi inaugurado em Abril,
para celebrar a sua passagem a santo. E no
prédio ao lado, em letras garrafais, leio SRE-
BRENICA.
Não me lembro ao certo como conheci Da-
vid Rohde em 1995, talvez tenhamos partilha-
do um transporte entre Sarajevo e Mostar, mas
estou a ver a cara de escuteiro dele, correcto,
discreto. Aos vinte e tal anos, nesse Outono-
Inverno, já era o repórter que meses antes
revelara o massacre de Srebrenica nas pági-
nas do Christian Science Monitor. É sobretudo
disso que me lembro, a densa sobriedade com
que me contou como chegara a Srebrenica em
Agosto, um mês depois das tropas do sérvio
bósnio Ratko Mladić, e encontrara ossos de
bósnios muçulmanos. As primeiras testemu-
nhas apontavam para uma morte em massa, e
quando a investigação acabou a Europa estava
perante o seu maior massacre desde o Holo-
causto: mais de oito mil bósnios muçulmanos,
separados das mulheres e dos fi lhos e exe-
cutados, sob o comando de Ratko, e perante
a total incapacidade dos capacetes azuis da
ONU, um pelotão de holandeses que estavam
lá para proteger os civis e hoje hão-de vaguear
em qualquer inferno quando fecham os olhos.
Penso em David Rohde por causa deste cartaz
agora, na praça da catedral, anunciando um
trio de imagens de guerra (Srebrenica, 1995;
Sarajevo, 1992-1996; Síria, em curso). E por-
que, numa daquelas noites de cerco a Saraje-
vo, num bar onde alguém tocava trompete, foi
Rohde quem me apresentou a Ž. Eu já o vira
por aqui, era difícil não reparar nele, tão alto,
tão mudo, tão zangado, franja sobre os olhos,
nuca rapada. Duas horas depois já não me
parecia tão alto, tão mudo nem tão zangado.
Separámo-nos logo na manhã seguinte mas em
Janeiro, de volta a casa, eu estava grávida.
A exposição sobre Srebrenica, Sarajevo, Síria
começa no elevador da galeria, frases que se
prolongam na parede do terceiro andar, quan-
do a porta abre: milhares de nomes, branco
sobre preto. Depois caras, centenas de caras.
Depois, ossos, o puzzle do DNA para dar sepul-
tura aos mortos, ciência aplicada à tragédia
grega. Antropólogos forenses penaram a com-
binar crânios, tíbias, ilíacos e falangetas das
valas comuns de Srebrenica. Um fi lme mostra
uma das mulheres no momento em que lhe di-
zem que há noventa e nove e algo de hipóteses
de aquele ser o marido dela (restam os ossos
e o casaco). Filmagens de 1995 mostram os
incapazes de capacete que a ONU não julgou
necessário reforçar. Ratko aparece a rosnar
para a câmara, vamos lá vingar a Sérvia. Isto
aconteceu na Europa, e toda a gente deixou.
Todos mataram, todos morreram, todos ti-
veram os seus loucos, os seus déspotas, sér-
vios, croatas, bósnios, mas em nenhum lugar
da ex-Jugoslávia se morreu como na Bósnia nos
anos 1990, onde sobretudo sérvios mataram
sobretudo bósnios de origem muçulmana. E
até hoje, em Sarajevo, muita gente faz questão
de distinguir entre sérvios da Sérvia e sérvios
da Bósnia, porque estes últimos é que eram
vistos como nacionalistas radicais, associados
a paramilitares, milícias e snippers.
A propósito de snippers, e porque estou
prestes a encontrar o autor, eis o poema com-
pleto:
Jogo de guerra
No topo da torre mais alta
da Cidade Velha
um franco-atirador
tem o seu ninho
a distância entre
ele e o lugar
onde atravessamos
é cerca de cinquenta
metros em linha
recta
se por um momento
esqueces
que tens de correr rápido
as balas avisam-te
e se não avisarem
quer dizer que estás morto
Podia ser a Pequena História do Cerco de
Sarajevo, mas no caso de Faruk Šehić é a Pe-
quena História do Cerco de Bihać (extremo no-
roeste da Bósnia e Herzegovina), em qualquer
dos casos não menos de três anos de cerco.
Quero pensar em Faruk antes da guerra, este
rapaz ainda vagamente louro que agora en-
tra num bar do bairro otomano de Sarajevo
por gentileza para comigo, porque estou na
cidade, porque temos um amigo comum, e
tudo isto apesar de ele estar com uma gripe
daquelas. Sim, este rapaz mais ou menos da
minha idade mas há vinte e tal anos, quan-
do, imagino, se poderia dizer, sem dúvida,
que era um rapaz louro, um rapaz com uma
profi ssão, um rapaz que estudara Veterinária
em Zagreb, bósnio mas formado na Croácia
porque, claro, as pessoas iam e vinham, uma
moeda, uma língua, um país, e além disso,
para quem é de Bihać, Zagreb era um pulinho.
Ele ia tratar cães, gatos ou cavalos, quem sa-
be, os anos 1990 apenas começavam. E então
começaram. Primeiro, em 1991, independên-
cia da Eslovénia; guerra e independência da
Croácia. Depois, em Abril de 1992, a Bósnia.
Até hoje, neste bar pesado de fumo, Faruk
sabe o dia exacto em que voltou a casa, 15 de
Abril de 1992. Fácil de saber, porque a 21 de
Abril os sérvios atacaram Bihać e ele já esta-
va no exército bósnio como voluntário. Em
Este conto foi escrito e publicado em Belgrado, em Janeiro de 2015, no âmbito da residência de escrita Krokodil em parceria com o Centro de Língua Portuguesa de Belgrado/Instituto Camões. Esta é a primeira publicação do original português
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 25
ALE
XAN
DRA
LU
CAS
CO
ELH
O/A
ND
RÉ C
UN
HA
, BEL
GRA
DO
20
15 uma bandeira da Palestina e um ecrã de fute-
bol. Podia ser Ramallah, Beirute ou o Cairo.
Neva toda a noite. Domingo de manhã, os
carros são contornos brancos nos passeios,
difícil distinguir o passeio da estrada. Um re-
pórter veterano, antigo parceiro de Ž, leva-me
pelas montanhas. Vejo então Sarajevo de onde
a viam os atiradores, com os seus restos de
castelos otomanos, o seu casario, as suas fl o-
restas, como se um cozinheiro celeste tivesse
derramado açúcar-glacé por cima de todos
nós, e dos séculos.
Foram os dias mais felizes da minha vida,
diz-me a melhor amiga de Ž em Sarajevo, so-
bre os últimos meses do cerco. Ela passara os
primeiros meses sem dormir, a inventar tudo
o que era possível, teatro, concertos, leitu-
ras. Em Abril de 1993 veio Susan Sontag, fi ca-
ram amigas, Sontag voltou em Julho, fi zeram
aquele Godot no pátio do Teatro Nacional de
Sarajevo, junto ao qual estou a dormir, vejo-o
da janela do quarto. Veio 1994, o cerco conti-
nuava, era preciso continuar. Até que em 1995
ela se viu com trinta e oito anos e um amante.
Queria ter um fi lho? Talvez, antes precisava de
respirar. Foi ter com Sontag à América, visitou
amigos, era para ser uma viagem de meses
mas em Maio ela já sabia, sim ia ter um fi lho,
ia voltar. Tal como Faruk, sabe o dia exacto
em que voltou a casa, 22 de Maio. Na manhã
seguinte o amante veio e ela acredita que en-
gravidou nesse dia mesmo. A fi lha nasceu em
Março de 1996, primeiro mês depois do cer-
co, o que quer dizer que a gravidez coincidiu
com os últimos nove meses de cerco. Por isso
foram os dias mais felizes da sua vida, o bebé
ia protegê-la de tudo.
Segunda-feira, 29 de Dezembro, continua
a nevar. Passeio ao longo do rio com o fi lho
de um soldado que Ž fotografou em 1993, e a
que depois voltou várias vezes. Atravessamos
a Ponte Latina, e voltamos à direita para o
parque do coreto (que aqui se chama pavi-
lhão musical). Teria mais de cem anos, não
fosse ter sido bombardeado e reconstruído,
mas a neve fi ca-lhe bem. O meu parceiro de
caminhada tem 27 anos. Todas as suas pri-
meiras memórias são de guerra. Aos cinco
já se escondia de snippers e sabia distinguir
granadas. Volta e meia tinham de ir para uma
cave a noite inteira, todo o bairro ia. Muitos
prédios tinham abrigos, vinha do tempo da
Jugoslávia. Ele ia com a mãe e a irmã bebé,
porque o pai estava a combater, operava um
lança-chamas, fi cava fora durante meses, vol-
tava por um mês, às vezes trazia latas de comi-
da. Às vezes também conseguiam comida da
ajuda humanitária, e a mãe tinha uma horta.
As pessoas escavavam para encontrar água
e toda a gente ia com recipientes, por trás
das casas, encostada aos prédios. As crian-
ças sabiam que não podiam brincar no meio
dos pátios. A escola também era numa cave,
mas ele ia às aulas quase todos os dias. Como
quase sempre não havia luz, acendiam velas,
candeeiros a gás e pedalavam uma bicicleta
até fazer o rádio funcionar, só cinco minutos
para ouvir as notícias, ora ele, ora a mãe. Em
suma, o que ele sabia era que os sérvios ataca-
vam e eles se defendiam: faz a tua coisa a cada
dia e espera que a cidade não caia. À custa de
tanto, Sarajevo não caiu. E aqui está ele hoje,
três palmos mais alto do que eu, senhor dos
céus. Não é metáfora, acaba de se diplomar
controlador aéreo. Um ano a viver em Bel-
grado, começou nervoso, depois passou. Os
responsáveis não eram aqueles, havia que pôr
a guerra para trás das costas e ter a certeza de
que não voltava a acontecer. Ter uma namora-
da sérvia ajudou, decerto a ambos. A guerra
que ela vivera directamente era a das semanas
em que a NATO bombardeou alvos sérvios em
1999. Quando ele lhe contou da infância em
Sarajevo foi uma surpresa porque os livros
na escola dela diziam coisas diferentes dos
livros aqui. De resto, ele nunca teve um pro-
blema em Belgrado com o nome, claramente
muçulmano. Tudo correu bem, voltou com
um trabalho bem pago, raridade na Bósnia,
onde o desemprego é o principal problema,
num sistema tão corrupto que ele nem vota.
E fará parte da primeira geração de bósnios a
controlar o espaço aéreo da nação, até agora
nas mãos de sérvios e croatas, fi fty-fi fty. Há
um mês, Sarajevo tomou conta da metade
inicial, 10.000 metros, em Fevereiro recebe
a segunda metade. Ele chegou no momento
certo e descobriu que tudo o preparara para
isso, a pressão de um trabalho onde não pode
haver erro, dos mais difíceis do mundo. Tudo
desde o cerco, numa rua de Sarajevo onde
metade dos amigos de infância se tornaram
junkies, numa casa onde o pós-guerra devol-
veu um pai alcoólico. O fi lho resume isto de
forma implacável, diz que teve de assumir o
controle das coisas muito cedo, e desde então
nunca deixou de o fazer. Um dia avisou o pai
de que o mataria se voltasse outra vez a casa
embriagado, o pai desapareceu uma semana
mas nunca mais bebeu. Agora está tudo ok,
tanto quanto depende dele. Arranjou o seu
próprio apartamento. Não vai à mesquita, é
ateu. Continua a namorar a rapariga de Bel-
grado, ela vem para a passagem de ano, ele
fi cará a morar aqui, é certo. Adora a adrenali-
na do que faz, todos os dias aviões diferentes,
a diferentes altitudes, a diferentes velocida-
des, que não podem chocar, ou entrar numa
daquelas nuvens com trovoada. O trabalho
dele é pensar depressa.
III. BELGRADOTerça, 30 de Dezembro: também nevou aqui.
Branco ao aterrar, branco até à entrada de
casa. Tenho de me agarrar ao braço de Ð pa-
ra não cair nos passeios. Ou não tenho, mas
é muito melhor.
Gosto daquele velho amigo de Ž (o do cão
encantador). Diz coisas tão inesperadas para
um sérvio como ter sido a favor das bombas da
NATO sobre os alvos de Milošević (apesar dos
erros, apesar dos erros, incluindo um hospi-
tal). A capacidade autocrítica destes sérvios só
se compara ao humor negro dos bósnios, que
fazem da morte a mais escandalosa anedota.
Mas nada é mais escandaloso, mesmo.
(E viciante? Toda uma bibliografi a sobre
como a guerra pode ser aditiva, toda uma
medicina, endorfi nas, dopamina. A urgên-
cia, a intensidade, a alucinação. A segunda
oportunidade que é a compaixão? A certe-
za de, enfi m, ter um coração? Ð sabia que o
assunto me interessava, era esse o assunto
que levava a Ž: a guerra como única forma
de estar vivo.)
Toda a gente fuma três maços por dia em
Belgrado, em virtualmente todos os lugares
fechados, incluindo o elevador do meu prédio.
O tabaco é barato, as rendas são baratas, a ci-
dade tem dois rios e os homens são grandes.
Do que entendi até agora parece que o único
impedimento de Belgrado é que se eu beijar
uma mulher na rua dá insulto, e homem com
homem dá hooligans. Ó gente viril, é mesmo
isso, não basta Putin? Se os hooligans não têm
objectivo, qual é o objectivo dos não-hooli-
gans? Cura, limpeza, salvação? Hitler era um
homossexual reprimido. Matou seis milhões
mas manteve-se virgem. Isso dá-lhe créditos
no inferno?
Já agora, em que inferno penará Arkan, que
chegou a comandar uma claque do Estrela Ver-
melha quando já tinha uma sólida carreira de
bandido internacional, e depois fez dos seus
hooligans a mais temida milícia dos Balcãs,
raptos, torturas, execuções, extorsões? Fas-
cinante imaginar as conversas dele com deus
quando se refugiava num mosteiro ortodoxo
com os seus tigres armados, todos bem acolhi-
dos, quem sabe até o seu tigre bebé.
Mais um rapaz de Dedinje, Arkan, mas uma
geração antes de Ž. A única vez que se cru-
zaram foi quando Ž o fotografou no instante
da morte, coincidência raríssima na história
da fotografi a. Porque, por acaso, às cinco da
tarde de 15 de Janeiro de 2000, Ž estava no
foyer do Hotel InterContinental de Belgrado
à espera de alguém. Como não vinha para
fotografar, tinha só uma pequena câmara na
mochila, com um fi lme já a meio, e pegou nela
discretamente ao avistar o gangue de Arkan:
os homens que o guardavam, a interacção com
tudo em volta. Minutos depois os assassinos
entraram no seu campo de visão. Em 38 ti-
ros, três foram fatais, boca, têmpora, olho.
A última imagem de Ž capta o momento em
que a senhora Arkan — Ceca, infl ada diva do
turbo-folk — vem a correr da loja onde fazia
compras. Depois, o fi lme acaba.
Ž publicou as fotografi as, com uma curta
declaração sobre o acaso que o levara ao hotel,
mas recusou-se uma vez mais a dar entrevis-
tas. Anos de especulação mundial. Uns viram
nisso uma ligação de Ž ao assassinado, outros
uma ligação de Ž aos assassinos. Os acasos têm
péssima fama.
A segunda vez que vi Ž, em 2002, ele contou-
me como o caso Arkan gerou nele uma repulsa
que o afastou da ex-Jugoslávia para sempre.
Estávamos bem longe daqui, numa Ramallah
invadida por tanques israelitas, sob recolher
obrigatório. Não lhe contei o que acontecera
da primeira vez, não valia a pena. Eu decidira
sozinha, e neste fi m de 2014, em Belgrado,
brindo a isso de nenhuma portuguesa ainda
ter de abortar clandestinamente.
Rakija de alperce: amanhã, antes de o ano
acabar e subirmos ao Kalemegdan, vou dizer
a Ð que não consigo reconstituir a história de
Ž. Cada vez tenho menos certezas sobre ele,
o que provavelmente signifi ca que ele será
cada vez mais ele próprio. Portanto a história
continua, Ž só decidiu desaparecer no mundo,
como o seu herói J. D. Salinger. Mas eu também
não gostaria de escrever a história de Salinger
contra o seu próprio silêncio.
Uma banda de outro planeta ataca numa
antiga igreja transformada em teatro, clube,
bar. Eu achava que ia só ouvir jazz, mas em
Belgrado nunca é tão simples. Eles têm um
DJ, eles misturam Marvin Gaye com música
iraniana, eles querem que a gente dance. E
quando vou lá perguntar se já gravaram um
disco dizem que não estão interessados, que
é só pelo gozo de estarmos todos vivos, ao
mesmo tempo, aqui.
Coitado do Kusturica.
Quem?
Maio, a cidade fi cou cercada pelos sérvios. E
durante 45 meses — quase quatro anos — es-
te rapaz manteve-se em Bihać, ao comando
de 130 homens. Quando foi ferido por um
morteiro no pé, passou meio ano de muletas,
nada, um arranhão, comparando com a morte
à volta, os amigos que perdeu. Então, depois
da guerra, cut the bullshit, toda a tralha non
sense, as metáforas de quando ia ser um poeta
louro. E além dos poemas começou a escrever
contos, uma prosa decomposta, fragmentá-
ria. Foi publicado, traduzido, premiado. Teve
uma namorada meio-sérvia em Belgrado. Sim,
mais fácil estar com um sérvio de Belgrado
do que com um sérvio daqui. Mas só acredito
na responsabilidade individual, diz ele, não
há culpa colectiva.
Bairro otomano, turco, muçulmano, como
chamar à Baščaršija, este pedacinho de Sara-
jevo no fi m da recta, quase colado às mon-
tanhas: casinhas de madeira com lâmpadas
orientais, serviços de café, briquebraque para
os turistas que se alojam em hostels chamados
Franz Ferdinand, e fazem o tour dos túneis, do
cerco, dos snippers, suvenires de guerra. Mas
à noite há bares cheios de gente que estava a
nascer quando a guerra acabou, raparigas mu-
çulmanas com lenço/sem lenço, com rapazes/
sem rapazes, a fumarem/sem fumarem, entre
26 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
DESIGN OBJECTOS EM VOLTA
Samantha Cristoforetti é a astronauta italiana que tomou a primeira bica em órbita. A máquina pesa entre 20 e 25 kg
EIS O PRIMEIRO ESPRESSO ITALIANO TIRADO NO ESPAÇOJOANA AMARAL CARDOSO
O dia 3 de Maio de 2015 fi cou na história
da exploração espacial e na história do
consumo de café italiano. Foi o dia em
que culminaram 18 meses de trabalho da
Lavazza, da também italiana Argotec (for-
necedora de refeições para consumo no
espaço e especializada no design de sistemas ae-
roespaciais) e da Agência Espacial Italiana (AEI).
Uma máquina de café desenhada para o espaço,
baptizada como ISSpresso para juntar o nome
do produto, o café espresso italiano, e a sigla em
inglês da Estação Espacial Internacional (EEI, ou
International Space Station) onde foi instalada,
capaz de tirar café italiano em condições de mi-
crogravidade.
A partir das mesmas cápsulas da marca italia-
na que são usadas com os pés bem assentes na
Terra, foi então feito o primeiro expresso — isto
porque já se bebia café no espaço, mas não ge-
nuinamente italiano, como assinala a Lavazza,
orgulhosa do seu feito e da imagem partilhada
por Samantha Cristoforetti, a primeira italiana no
espaço a beber a primeira bica italiana em órbita,
e pela NASA no Twitter. Não há, porém, uma chá-
vena bonita a envolver o líquido castanho escuro
e sua espuma creme — uma saqueta de plástico
transparente com uma palhinha faz as vezes da
porcelana branca do costume.
A máquina será um prodígio da engenharia e do
design de equipamento para situações extremas,
mas não é um prodígio do design italiano no que
ao invólucro concerne: não foi feita para ser bela,
mas sim funcional. Afi nal, o design é também uma
disciplina que se dedica a resolver problemas e a
deslindar busílis. “Todos os componentes essen-
ciais são redundantes por motivos de segurança,
tal como é exigido pelas especifi cações da AEI”,
justifi ca a Lavazza em comunicado sobre a má-
quina que pesa entre 20 e 25 kg.
As cápsulas são as mesmas, o circuito é similar,
mas muita pesquisa foi feita em torno da dinâmica
de fl uidos no ambiente espacial, muito diferen-
te da superfície terrestre. Foi necessário
pensar na alta pressão e nas temperatu-
ras muito elevadas envolvidas na feitura
de um café — a pressurização da estação
espacial permite que a temperatura a que
se ferve o café seja a mesma. Até a possibi-
lidade de sentir o aroma do café acabado
de fazer foi pensada.
Como se faz então um café italiano no
espaço? “Não é fácil”, admite a Lavazza.
Primeiro, uma astronauta instala a má-
quina — e este processo era mesmo uma
das nove experiências previstas pela AEI
para a Missão Futura em que se integra
Samantha Cristoforetti. Uma embalagem com
água é inserida na máquina, o líquido é aspirado
para o seu interior e aquecido. Insere-se a cáp-
sula no topo da máquina e carrega-se no botão,
claro está, e o café é servido através de um no-
vo sistema em que o tubo de
plástico terrestre que fornece
a água quente é substituído por
um de aço que suporta elevadas
pressões. Depois de aquecida,
a água passa por um novo siste-
ma que a aspira e pressuriza até
a verter na saqueta de plástico
— que a Lavazza descreve como
“chávena de expresso espacial”
— encimada por um tubo ou pa-
lha que permite não só o seu
consumo mas também sentir o
cheiro do café.
A ISSpresso também faz café lungo — um ex-
presso a que se acrescenta mais água numa se-
gunda etapa da confecção —, chás e aquece água
ou caldos para desidratar alimentos no espaço.
Este projecto, defende em comunicado Roberto
Battiston, presidente da AEI, “terá benefícios psi-
cológicos imediatos para os astronautas” e “me-
lhorou o nosso conhecimento sobre a dinâmica
de fl uidos”, completou o director da Argotec,
David Avino.
Lá em cima, Samantha Cristoforetti resume tu-
do com humor. “Café: a melhor suspensão orgâ-
nica alguma vez inventada”, brincou no Twitter
a astronauta. “Um expresso acabado de fazer na
nova chávena Zero-G [ravidade]”, prosseguiu,
fazendo ainda alusão à frase-lema de Star Trek
“To boldly go where no man has gone before” adap-
tando-a à arte da infusão rematando o seu tweet
com “To boldly brew…”.
AEI
e t e 0 e 5 ge e c a o está, e o
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 27
No conjunto da fi losofi a antiga
— longo período histórico-
fi losófi co de mais de 12
séculos, que começa com
Tales de Mileto, nos séculos
VII-VI a.C. e só termina
com os últimos fi lósofos
neoplatónicos, na viragem
do século VI para o século
VII d.C. —, costuma reservar-
se a expressão “pré-
socráticos” para designar os
primeiros fi lósofos de todos,
aqueles que, na esteira de
Tales, introduziram o tipo
de refl exão, investigação e especulação a que
se veio a chamar “fi losofi a”.
No período pré-socrático, o tema da luz
obteve dois tratamentos diversos por parte
dos fi lósofos: em clave científi ca, enquanto
fenómeno natural a explicar ou ela própria
elemento integrante de determinada teoria
explicativa; e em clave simbólica, enquanto
ingrediente narrativo de carácter mitopoético
ou alegórico.
Curiosamente, em contexto científi co, as
primeiras referências a este tema não são
directamente à luz (phaos, phôs), mas sim ao
relâmpago (astrapê).
Parece, de facto, que Anaximandro e
Anaxímenes de Mileto, os imediatos sucessores
de Tales, na primeira metade do século VI
a.C., se interessaram pelos relâmpagos e
propuseram uma teoria engenhosa para
os explicar. De acordo com essa teoria, os
relâmpagos, tal como os demais fenómenos
meteorológicos da mesma família, como os
raios, os trovões, os redemoinhos e os tufões,
não seriam, todos eles, senão o resultado de
diferentes manifestações do ar e do vento.
Como nos conta um doxógrafo, “Anaximandro
diz que todos estes fenómenos acontecem
como resultado do vento: pois, sempre que
este é encerrado numa nuvem densa e depois
irrompe para fora dela à força, graças à sua
subtileza e leveza, o rebentamento produz o
estrondo, ao passo que a fenda em contraste
com o negrume da nuvem produz o clarão”.
Por isso, como diz outro autor, “o relâmpago
origina-se sempre que o vento se desencadeia
e fende as nuvens”.
Um outro aspecto que muito interessou e
estimulou a actividade científi ca dos primeiros
fi lósofos foi a explicação da luz da Lua.
Segundo uma tradição, hoje desacreditada,
teria sido o mesmo Anaxímenes a descobrir o
carácter refl exo da luz lunar. É provável que
essa descoberta tenha sido de facto feita no
período pré-socrático, mas um pouco mais
tarde, uma vez que fi lósofos das gerações
seguintes, como Parménides, Empédocles
e Anaxágoras, entre a segunda metade do
século VI e o último quartel do século V a.C.,
conhecem todos o facto de que a Lua não tem
luz própria, antes a recebe do Sol.
Estava, no entanto, destinado a Empédocles
de Agrigento, no século V a.C., conceber a
primeira teoria científi ca onde a luz comparece
como tal. Trata-se da sua teoria da percepção
como conhecimento do semelhante pelo
Especial Aniversário
A LUZ COMO MEIO E LIMITE ANTÓNIO PEDRO MESQUITA
A ORIGEM DO RELÂMPAGOsemelhante, pela emissão de efl úvios através
dos poros que cobrem a totalidade do corpo
humano e que, ao atingir as partículas
equivalentes do objecto, permitem percebê-lo,
teoria no quadro da qual a visão é explicada,
analogamente, pela emissão de luz através da
pupila.
Eis como, de acordo com um testemunho
de Aristóteles, ele se teria expressado: “Assim
como quando alguém, ao planear uma viagem
numa noite de invernia, prepara uma luz,
uma chama de ardente fogo, ao acender para
qualquer espécie de tempo uma lanterna
de linho, que dispersa o sopro do ventos,
quando sopram, mas a luz mais ténue jorra
para o exterior e brilha através do limiar
da porta com raios que não vacilam: assim
também, nessa altura, ela Afrodite [deusa
do amor e fi gura cosmogónica na obra de
Empédocles] deu à luz a redonda pupila, fogo
primevo confi nado ao interior de membranas
e delicadas roupagens e foram estas que
contiveram a água profunda que fl uía em
redor, mas consentiram que para fora passasse
o fogo mais subtil.”
Este texto é sugestivo porque mostra como,
nos tempos de Empédocles, já no fi nal do
período pré-socrático, a natureza poética da
expressão não impedia ainda a pretensão
científi ca da explicação.
Porém, um pouco antes de Empédocles,
na viragem do século VI para o século V a.C.,
Parménides de Eleia, um dos mais infl uentes
pensadores do seu tempo — e ele próprio
também autor de um Poema, mas de cariz
fortemente conceptual e abstracto —, é, a
este respeito, particularmente interessante,
porque, não apenas formula em termos
poéticos uma explicação científi ca, como
aquele, mas inclusive fala da luz nos dois
registos que acima distinguimos, a saber,
tanto em registo científi co, como em registo
simbólico.
De facto, nas interpretações mais correntes
do Poema de Parménides, este consta das
seguintes três partes: um proémio de natureza
alegórica, onde se narra, em linguagem
cifrada, a viagem de um jovem até uma deusa
que, ao acolhê-lo, lhe promete contar “todas
as coisas”, a saber, “tanto o ânimo inabalável
da rotunda verdade, como as opiniões dos
mortais, em que não há verdadeira confi ança”;
uma segunda parte, conhecida como “Via da
Verdade”, onde a deusa cumpre a primeira
secção do seu programa, desenvolvendo
o seu “pensamento acerca da verdade”; e,
fi nalmente, uma terceira parte, conhecida
como “Via da Opinião”, onde ela faz o jovem
aceder às crenças enganadoras dos mortais,
correspondentes, de acordo com as mesmas
interpretações correntes, a uma cosmologia de
carácter assaz convencional.
Ora, na terceira parte, a cosmologia
proposta, de que restam pouquíssimos
elementos, surge toda ela fundada na distinção
originária de duas “formas”, justamente a luz,
“chama etérea do fogo, branda e muito leve”, e
a “noite escura, densa na aparência e pesada”,
a cuja diversidade competiria explicar todos os
fenómenos cósmicos, estando, como ele diz,
todo o Cosmo, “a um tempo, repleto de luz e
de noite sombria”.
Todavia, se na terceira parte está reservada
à luz um papel de carácter científi co, também
na primeira parte intervém a luz, só que aqui
carregada de fortíssimo valor simbólico. De
facto, a própria viagem narrada no proémio
é toda ela vista como um trajecto da mansão
da Noite, simbolizando a ignorância, para a
mansão da Luz, morada da deusa que acolhe o
jovem, simbolizando o conhecimento, trajecto
em que ele é sugestivamente conduzido pelas
“fi lhas do Sol”.
Bem entendido, este valor simbólico da luz
e o próprio signifi cado que lhe é atribuído no
Poema de Parménides tinham já, no tempo
deste, uma larga e antiga tradição na cultura
grega, bem testemunhada na Teogonia de
Hesíodo (século VII a.C.) e, se pelo menos a
inspiração deles for arcaica, nos textos órfi cos.
Um dos momentos onde, já no interior
do pensamento fi losófi co, tal está patente
é na “tábua dos contrários” pitagórica,
onde, de acordo com Aristóteles, a luz e a
obscuridade fi guram no conjunto dos dez
princípios opostos que os pitagóricos teriam
concebido: “Limite e ilimitado, ímpar e par,
uno e pluralidade, direito e esquerdo, macho
e fêmea, estático e dinâmico, recto e curvo,
luz e escuridão, bom e mau, quadrado e
rectangular.”
Não queremos terminar sem fazer referência
a um pequeno texto, que, como é timbre
do seu autor — o fi lósofo pré-socrático mais
rebelde a classifi cações —, não poderia ser
catalogado em nenhum dos dois registos por
que distribuímos o tema da luz no período pré-
socrático.
Trata-se do fr. 26 de Heraclito de Éfeso
(século VI a.C.), que, dado o seu imbricamento
com a totalidade do seu pensamento fi losófi co,
nos limitamos aqui a citar, sem nos atrevermos
a sequer propor um início de interpretação.
Diz assim: “De noite, o homem acende uma
luz para si próprio, ao extinguir-se-lhe a visão;
em vida, está em contacto com o que é morto,
quando dorme, e com o que dorme, quando
acordado.”
Que fi que apenas como um testemunho
do encantamento muito especial do texto
heracliteano e não menos do justifi cado
epíteto que a tradição lhe atribuiu: Heraclito,
“o obscuro”.
(Todas as traduções são retiradas de Kirk –
Raven –Schofi eld, Os Filósofos Pré-Socráticos,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.)
a António Pedro Mesquita é professor de Filosofi a
Antiga na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa e investigador do Centro de Filosofi a da
mesma universidade. Tem diversas obras publica-
das neste domínio, sobretudo sobre Platão e Aris-
tóteles, e é o coordenador do projecto de tradução
anotada das obras completas de Aristóteles, pelo
qual está sendo publicada, em Portugal (Impren-
sa Nacional-Casa da Moeda) e no Brasil (Editora
Martins Fontes), a totalidade dos escritos incluídos
na colecção atribuída a este fi lósofo
A série A Luz como Meio e Limite apresenta quinzenalmente um artigo escrito por um autor oriundo dos mais variados campos do conhecimento ou da criação artística, sob orientação de Pedro Lapa, professor universitário e director artístico do Museu Colecção Berardo. Esta semana, a refl exão é do professor de Filosofi a Antiga António Pedro Mesquita
28 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
ALEXANDRA LUCAS COELHONÃO FICÇÕES
O VESTIDO PÓS-11 DE SETEMBRO 1
Quatorze anos depois, voltei a pôr o meu pri-
meiro vestido pós-11 de Setembro no aeroporto
de Istambul, entre vir de Lisboa e voar para o
Iraque. Isso aconteceu na quarta-feira, e vesti-o
todos os dias até hoje, sábado. Aliás, de ontem
para hoje nem cheguei a tirá-lo, dormi com
ele no chão de uma sala de mulheres peshmergas,
combatentes curdas que se têm revezado na linha
da frente contra o “Estado Islâmico”. O resultado
disso foi um rasgão de lado, tão esgarçado está
o tecido, quatorze anos depois. É, no mínimo, o
que se pode dizer desta parte do mundo quatorze
anos depois, e pode bastar um vestido para alguém
perder a cabeça. Foi por isso que o meu tradutor
curdo fi cou aliviado quando lhe mostrei o rasgão,
dando o vestido por acabado.
2. O meu tradutor não me disse logo de início o
que achava do vestido. Nem sequer o que o irmão,
nosso condutor, achou ao avistar-me no parque de
estacionamento do aeroporto de Suleymaniah,
enquanto ele me procurava nas chegadas. Eu não
sabia que ele lá estaria à espera, muito menos que
haveria um irmão. Quando ele, porque não me
localizava, ligou ao irmão que continuava lá fora,
o irmão respondeu-lhe que, assim com as minhas
características, só vira uma iraniana.
3. Claro que a iraniana era eu, mas só percebi
isso muitas horas e quilómetros depois de aterrar,
ao cair da noite em Erbil, a capital do Curdistão
iraquiano. O meu tradutor acabava de, fi nalmente,
DR
Pior do que paquistanesa (do ponto de vista curdo): eu podia ser iraniana. Portanto, que tal comprar algo ali para vestir?
4. O comandante curdo que nos ia receber agora
estava num ponto dessa linha, perto de Nimrud,
a mítica cidade da Assíria cuja destruição o “Es-
tado Islâmico” recentemente fi lmou ao melhor
estilo Rambo. Tínhamos de lá chegar às dez da
manhã, anunciou-me o meu tradutor. E a sorrir,
como bom oriental, perguntou então se eu só tinha
aquele vestido.
5. Por acaso sim, porque o resto da roupa, que já
não era muita, fi cara em Suleymaniah. Mas, argu-
mentei, eu comprara aquele vestido no Paquistão
uma semana depois do 11 de Setembro, era um ves-
tido igual ao de milhões de muçulmanas, que me
cobria até aos joelhos, por cima de calças devida-
mente largas. Pois, mas o problema era justamente
ser um vestido paquistanês, explicou ele. Que me
cobrisse mais ou menos não era tão importante,
mas ser paquistanês, sim, mais do que importan-
te, perigoso. Paquistanês, iraniano, afegão, o meu
vestido parecia qualquer uma destas coisas, talvez
árabe, em última análise marroquino, e qualquer
uma destas coisas podia inspirar mais desconfi ança
do que eu ser uma ocidental descoberta. Isto, do
ponto de vista curdo, que frequentemente prefere
Bush a Obama, porque Bush acabou com Saddam
e ninguém é um monstro maior do que Saddam do
ponto de vista curdo, pelo menos até ao apareci-
mento do “Estado Islâmico”. E, para reforçar o seu
ponto, o meu tradutor contou-me o que o irmão
lhe contara no aeroporto. Pior do que paquistanesa
(do ponto de vista curdo): eu podia ser iraniana.
Portanto, que tal comprar algo ali para vestir?,
perguntou, apontando as lojas ainda abertas.
6. Eis como o puzzle desta parte do mundo só
fi cou mais complexo e sectário nos últimos quator-
ze anos. A “guerra contra o terror” com que Bush
respondeu ao 11 de Setembro multiplicou os de-
mónios, e um dos exemplos é a latente guerra civil
no Iraque (curdos sunitas, árabes sunitas, árabes
xiitas, e as suas diversas áreas de infl uência exter-
na), que só não reemerge porque há a emergência
do “Estado Islâmico”.
7. Corremos as montras femininas até o meu
tradutor admitir que, de facto, nada daquilo ser-
via, variava entre roupa de parturiente e fancaria
fl amejante. OK, concedeu, grave, se não havia nada
a fazer, eu iria com o meu vestido.
8. Prossegui as sondagens: o recepcionista do
hotel onde dormi alvitrou que eu vinha de Marro-
cos, e a recepcionista concordou, mas uma cliente
sentada no átrio contrapôs em voz alta: Paquistão!
O meu tradutor sorriu. Entre as peshmergas que
me alojaram na noite seguinte, Índia, Marrocos e
Afeganistão fi caram empatados no segundo lugar
com um voto. Vitória para o Paquistão.
9. Entretanto, fomos à Linha da Frente, onde o
vestido não assumiu nenhum papel nos aconte-
cimentos: nem nos checkpoints nem na linha da
frente alguém me tomou por paquistanesa, ira-
niana ou marroquina. Mas também não passou
despercebido. Em plena trincheira, o meu tradutor
decifrou os sussurros e teve de rir para dentro.
Porque junto aos sacos de areia de onde fazem
mira contra o “Estado Islâmico”, a menos de dois
quilómetros, os soldados discutiam de onde diabo
vinha eu. E certamente porque, por alguns dias,
um terramoto ultrapassou o Califado nas notícias,
a teoria militar era esta: eu vinha do Nepal.
receber um telefonema con-
fi rmando que um comandan-
te peshmerga nos receberia
na linha da frente na manhã
seguinte. Erbil fi ca apenas a
80 quilómetros de Mossul, a
cidade que o “Estado Islâmi-
co” tomou em Junho de 2014,
deslocando o mapa do Médio
Oriente, e o foco do mundo,
de um momento para o ou-
tro. Ao longo das centenas
de quilómetros de linha da
frente entre o Curdistão e
o “Estado Islâmico”, a zona
entre Erbil e Mossul é a mais
simbólica. Exército iraquia-
no, milícias pró-iranianas,
coligação internacional e
peshmergas curdos estão a
tentar cozinhar a retomada conjunta de Mossul.
Uma aliança de inimigos, impensável antes de o
“Estado Islâmico” ter batido recordes de crueldade
desde que há Internet. Mas até que uma aliança
aconteça, os curdos é que seguram a sua linha da
frente no terreno, tentando que as trincheiras se
mantenham mais perto de Mossul que de Erbil. E
há um mês a capital curda tremeu quando enviados
do “Estado Islâmico” detonaram um carro-bomba
junto ao Consulado Americano, em pleno bairro
cristão. Um sinal de como o Califado conseguia
matar bem além da linha da frente.
2 | Domingo 17 Maio 2015 | 29
NUNO PACHECOEM PÚBLICO
Anacleto estava radiante. Já lhe tinham dito
lá na repartição mas ele não acreditava. No
dia 13, o das aparições lá de Fátima, já po-
dia escrever com menos letras, que alívio.
Agora era lei, já não podiam gozar com ele
quando escrevia “coação” e lhe pergunta-
vam onde é que tinha comprado o coador. Só podia
ser mesmo bênção dos pastorinhos. Ele tinha-se
informado, sabia tudo. Até ao dia 13, havia na escrita
portuguesa duas ortografi as. Uma para Portugal e
outra para o Brasil. Um excesso! Agora, a partir de
dia 13, passa haver só duas ortografi as. Reparem
bem na subtileza: duas e “só duas”. Completamente
diferente. As duas antigas tinham muitas palavras
diferentes, e além disso eram duas. As novas tam-
bém têm palavras diferentes (não exactamente as
mesmas, porque é preciso variar, a escrita tem de
vencer o tédio) e são “só duas”. Ora é com este “só
duas” que o português vai fi nalmente ser aceite lá
na ONU, na UE, na CEDEAO e nessas coisas todas
importantes. Mesmo na colectividade lá do bairro,
onde os comunicados já estavam a ser escritos em
mandarim, ia passar a imperar o “só duas”. Que é
uma escrita comum, como está bom de ver.
Ele, Anacleto, até já se precavera. Comprara um
dossier daqueles de argolas, bem bonito, de capa
colorida, para começar a coleccionar os precio-
sos documentos escritos em “só duas”. Claro que
nem toda a gente ia aceitar aquilo, havia muitos
conspiradores, sediciosos, sempre prontos a pôr
em causa os altos interesses da Pátria. Para isso,
ele tinha um remédio: o capitão Windows. Era
como o capitão Falcão do
fi lme, o que dava pancada
a torto e a direito nos que
desafi avam o poder do se-
nhor doutor, mas este era
mais hábil e efi caz. Mesmo
sem capa, voava; e, mes-
mo sem ser o velhinho de
barbas brancas assessora-
do por renas a cada Natal,
conseguia entrar em todas
as casas ao mesmo tempo.
Fosse onde fosse, aqui ou
noutros continentes. Bem
podiam queixar-se de que
isto estava a “desarrumar o português”, como ou-
vira a um jornalista africano descontente com a
nova lei. O capitão Windows ri-se do matraquear
no teclado e corrige as más vontades. Só dedos
muito atentos e hábeis conseguem despistá-lo.
Mas até esses hão-de cansar-se, vão ver!
Feliz com o 13 de Maio, Anacleto sabia que a coisa
não ia fi car por ali. Que havia já, no Brasil, quem
anunciasse mais simplifi cações. Escrever como se
fala, claro, como é que ninguém tinha pensado nis-
so. Ou tinha? Na verdade, soube ele depois de ir
ao Google, houve em tempos um militar paladino
da simplifi cação ortográfi ca, o general Bertoldo
Klinger (1884-1969), que assinava “jeneral Klinjer”
e que, muito antes de apoiar o golpe que instaurou
a ditadura em 1964, escreveu uma ousada obra inti-
tulada Ortografi a Simplifi cada Brazileira. Aí, dando
largas à ortografi a que ele próprio inventara, escre-
veu: “Etimolojia e Uso têm seu relevante papel, sine
qua non, na constituisão, no recrutamento do voca-
bulário; feito isso, termina, porêm, seu papel: entra
em asão a Ortografi a, para fi csar fi elmente para os
olhos o ce a boca emitiu, o ouvido persebeu. Portanto,
a Ortografi a alfabética só póde ser pronunsiativa,
fonética. Seu instrumento é o Ortoalfabéto, de símbo-
los nesesários e bastantes, sônicos, simples, diretos e
imvariáveis. Direto, cér dizer ce o nome do símbolo é
ezatamente o do próprio fonema ce ele representa.”
Anacleto entrara em êxtase. Era aquilo, e aquilo era
a luz. Agora, havia um movimento que ressuscitara
o espírito de “Klinjer” e, além de propor simplifi -
car o mais possível a escrita, defendia alterações
fantásticas (Anacleto leu tudo, ávido, na página do
movimento Acordar Melhor). Homem passaria a
“omem”; Passa a “pasa”; Excelência a “eselênsia”;
Chuva a “xuva”; Asa a “aza”; Faça a “fasa”; Exame
a “ezame”; e quero a “qero”. “Tudo o que se quer,
consegue-se, quando se tem convicção”, leu ele no
fi m do manifesto da coisa. É assim mesmo: com mi-
litarões destes, ainda conquistamos o mundo!
P.S. — Na crónica anterior, Preciosas “jazzidas”,
omitiu-se involuntariamente um programa de tele-
visão que também contribuiu para fazer a história
do jazz em Portugal: aTensãoJAZZ, de Rui Neves e
Paulo Seabra, documentário feito para a RTP em
2011, com quase seis horas divididas por dez epi-
sódios. Está parcialmente disponível no YouTube.
Aqui fi ca a rectifi cação.
O CAPITÃO WINDOWS E O GENERAL KLINGER
O capitão Windows ri-se do matraquear no teclado e corrige as más vontades
Torna-se cada vez mais necessário ouvir pessoas com prestígio na Educação, Saúde e Justiça, capazes de inspirar um programa diferente mas realista
garantir à partida. Já todos percebemos como a
nossa economia está dependente da Europa e não
temos possibilidade de caminhar sozinhos, como
o caso da Grécia exemplarmente demonstra.
Costa caminha num desfi ladeiro estreito, de um
lado cercado por uma extrema-esquerda irrealista
porque longe do poder, do outro rodeado por uma
direita que se organiza cada vez melhor à volta de
um discurso simples, mas efi caz: “Nós herdámos
a bancarrota, equilibrámos as contas e não pode-
mos dar o poder àqueles que nos conduziram à
necessidade de apoio externo.” Com a prisão de
Sócrates a surgir como uma sombra nesse caminho
apertado, Costa necessita de toda a sua argúcia e
experiência política para conseguir uma vitória
folgada, que permita a necessária negociação para
um governo estável.
Torna-se cada vez mais necessário ouvir, depois
dos economistas, pessoas com prestígio na Educa-
ção, na Saúde e na Justiça, capazes de inspirar um
programa diferente mas realista, em que o respeito
pelas pessoas em difi culdades ocupe de facto o
primeiro plano, sem regresso ao despesismo de
outrora.
Para todos aqueles que aspiram ao fi m do cons-
trangimento penoso que nos asfi xiou nestes últi-
mos quatro anos, impõe-se um movimento cívi-
co que guie Costa no seu labirinto e o conduza
à vitória.
DANIEL SAMPAIOPORQUE SIM
COSTA NO SEU LABIRINTO J
á todos percebemos que António Costa vive
numa encruzilhada difícil: é fundamental
que nos convença de que pode fazer dife-
rente e melhor, mas também precisa de nos
demonstrar como as suas propostas são re-
alistas e não abrirão a porta ao descontrolo
fi nanceiro de outros tempos.
O memorando dos economistas foi uma excelen-
te iniciativa. Embora a grande maioria dos portu-
gueses não compreenda os pormenores com que
economistas e politólogos de serviço nos invadem
no quotidiano televisivo, fi cou claro para todos
que Costa tem uma margem de manobra muito
estreita. Fazer diferente e melhor será diminuir o
impacto da austeridade, sem deixar por comple-
to de a praticar. Se economistas de prestígio nos
demonstram ser possível devolver algum poder
de compra aos cidadãos e reanimar a economia,
também se percebeu que alguma austeridade e
contenção nos gastos públicos são cruciais para
o futuro do país. É por isso que o memorando foi
uma saudável demonstração de um bom contribu-
to técnico para um programa político, ao clarifi car
como as frases gritadas nos comícios de “Fim à
austeridade!” não passam o teste da realidade que
um programa de governo sempre implica.
Costa tem de compreender depressa que aqueles
que o apoiam nas reuniões partidárias pelo país fora
representam apenas o entusiasmo militante, mistu-
rado com muita gente
que só aspira a um lu-
gar de protagonismo
partidário. Essas pes-
soas não compreen-
dem a sua encruzilha-
da, são apenas críticos
do governo por tradi-
ção. Noutros locais,
contudo, não faltam
os verdadeiros apoian-
tes: todos aqueles que
sofreram na pele a po-
lítica de destruição do
emprego ou viveram a
diminuição dos apoios
sociais que caracteri-
zaram a prática da co-
ligação no poder.
As preocupações dos portugueses não são o ce-
nário macroeconómico, os jogos partidários ou os
discursos dos deputados. Centram-se no desem-
prego, na educação e no futuro de fi lhos e netos,
na protecção dos idosos e das crianças, no acesso
mais rápido ao Serviço Nacional de Saúde, nas con-
dições de habitação e na rapidez e menor custo dos
transportes. É sobre estas questões que António
Costa tem de falar diferente, sem fazer promessas
avulso e sem acenar com resultados que não pode
30 | Domingo 17 Maio 2015 | 2
CRÓNICA URBANABAIRRO DO RIOBOM, PORTO
Numa escarpa com vista para o Douro, o bairro foi sobrevivendo com vários moradores sem água, sem visitas do carteiro e com hortas improvisadas
Há um bairro abandonado pelo resto da cidade onde moram cerca de 20 pessoas. Não pagam renda e alimentam-se do que cultivam naqueles terrenos encharcados por anos de lavagem de peles da fábrica de curtumes. Texto de Patrícia Carvalho e Ilustração de Nuno Sousa
GENTE ATRÁS DA LINHA DO COMBOIO
Parece impossível. Parece impossível que
ali haja gente, que ali vivam velhos, que ali
morem sonhos e esperanças. Parece, de fac-
to, que “ali” nem sequer existe, porque, à
primeira vista, não há forma de lá chegar.
Como explicar que numa escarpa portuense
sobre o rio Douro, naquele pedaço de encosta que
acaba junto à abandonada Ponte D. Maria Pia, haja
pessoas mais abandonadas do que esta famosa
vizinha de ferro? Como explicar que para chegar
ali é preciso atravessar um outro bairro-tipo-“ilha”
e passar por cima da linha de comboio por onde
circulam, diariamente, as composições que ligam
as estações de Campanhã e de S. Bento? Como
explicar que este acesso, perigoso e escondido,
seja o único que existe? O Bairro do Riobom não
existe, de certeza. Mas está ali.
O Bairro do Riobom é a casa de Conceição, de
Acácio, de “Didi” Preto e de cerca de outras 20 pes-
soas. Mudaram-se para aquele terreno escarpado,
com construções esquecidas da antiga fábrica de
curtumes de José Riobom dos Santos, quando já
ninguém sabia exactamente quem era o proprie-
tário dos terrenos e sem que alguém, algum dia,
lhes tenha pedido renda ou satisfações. As obras,
se as houve, foram feitas pelos próprios. Quem
não pôde fazer nada, por falta de meios ou forças,
como Conceição, fi cou presa a quatro paredes de
cimento cobertas com uma chapa metálica, onde
deve meter medo estar em dias de temporal. E
onde os dias de sol também a fazem verter lágri-
mas, porque sabe que aquelas paredes quase não
merecem ser chamadas “casa”.
Do outro lado da linha do comboio, o Riobom
deixou-se esquecer pela cidade e a cidade não se
fez rogada em esquecer-se de quem vive enclausu-
rado. O carteiro deixou de aparecer. Os baldes que
fazem as vezes das casa de banho são despejados
ao longo da linha, nos intervalos da passagem dos
comboios. Os que agonizam morrem antes de os
bombeiros conseguirem chegar ou são levados em
braços pelos moradores, através da linha do com-
boio, através do bairro vizinho, até à rua, onde o
socorro talvez chegue a tempo, vamos lá ver.
Ainda assim, quem ali vive não desiste de trans-
formar a escarpa com vista aberta sobre o Douro
em aconchego. Quem não tem água em casa vai
buscá-la aos vizinhos. Levantaram-se muros onde
as pedras tinham caído. Nos bocados de terra que
sobram entre as pedras crescem cebolas, alfaces,
couves e favas. De Cabo Verde, país de origem de
grande parte dos moradores, chegaram bananeiras
e cana-de-açúcar. É certo que um dos motivos pe-
los quais José Riobom dos Santos instalou ali a sua
fábrica de curtumes, em meados do século XIX,
foi pela inclinação do terreno, que permitia que as
águas sujas de lavar as peles pudessem rolar, livres,
até ao rio. É certo que se desconhece a existência
de análises à qualidade das terras, encharcadas
durante anos por essas águas sujas que desciam
até ao Douro. Um dos rectângulos de terreno de
Acácio, onde deviam nascer alhos, não deu mais
que uns canos raquíticos que nunca chegarão a
um prato e ele acha que a razão são essas águas
manchadas.
Também é certo que as cabras de “Didi” vivem
no meio do lixo e se alimentam dele. “Salubrida-
de” é uma palavra sem signifi cado neste pedaço
de Porto.
Mas os moradores insistem. Não pagam ren-
da, não chegam drogas nem discussões (ou, pelo
menos, eles dizem que assim é), têm sossego. O
carteiro não entra, mas entrega as cartas numa
loja próxima. Ali apanham sol com o Douro e a
ponte como companhia. É para ali que as netas
de Acácio correm, mal terminam a catequese ao
sábado de manhã, recusando abandonar os avós
durante todo o fi m-de-semana. Têm 13 e 11 anos e
levam com elas a irmã de dois. Sim, elas cruzam
sozinhas a linha de comboio até chegarem ao sofá
do avô, aos terrenos que ele cultiva, aos coelhos
novos que se aninham atrás da mãe na coelheira.
Elas já conhecem os horários dos comboios e, de
certeza, que nada de mal irá acontecer.
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