Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS TEORIA DO ESTADO ARMANDO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA ILTON NORBERTO ROBL FILHO SÉRGIO URQUHART DE CADEMARTORI

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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

TEORIA DO ESTADO

ARMANDO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

ILTON NORBERTO ROBL FILHO

SÉRGIO URQUHART DE CADEMARTORI

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Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

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T314

Teoria do estado [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS;

Coordenadores: Ilton Norberto Robl Filho, Armando Albuquerque de Oliveira, Sérgio

Urquhart de Cademartori – Florianópolis: CONPEDI, 2015.

Inclui bibliografia

ISBN: 978-85-5505-066-4

Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações

Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de

desenvolvimento do Milênio

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Teoria do estado. I.

Encontro Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE).

CDU: 34

Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br

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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

TEORIA DO ESTADO

Apresentação

Na contemporaneidade, a discussão conjuntural de temas tais como os dilemas da

democracia, a globalização e seus desafios, as novas tecnologias e os impasses suscitados por

elas etc. não obstam - e até favorecem - a revisitação às bases teóricas que fundamentam a

política e o Direito. Trata-se de examinar mais uma vez os fundamentos ideológicos e - por

que não dizê-lo - lógicos que viabilizam o exercício do poder e a soberania populares. Daí a

extrema importância que o Grupo de Trabalho "Teorias do Estado", constituído no XXIV

Encontro Nacional do CONPEDI - UFS, adquiriu ao oportunizar a apresentação das mais

variadas reflexões sobre esse tema clássico. Relembre-se com Bobbio, abordando a obra de

Max Weber, que um clássico é aquele que por mais revisitado que seja, sempre deixa uma

lição para os estudiosos em todas as épocas. Sem dúvida este é o caso. Assim, a temática

enfrentada acerca das teorias do Estado apresentou-se bastante diversa, com estudos

envolvendo os seguintes assuntos: a) uma releitura das teorias clássicas, tais como a

separação de poderes, as bases contratualistas do Estado de Direito, a teoria weberiana do

Direito e do Estado, o liberalismo clássico e a abordagem kantiana da paz entre os Estados;

b) a adoção de uma perspectiva histórica, abrangendo um estudo comparativo entre os

Estados europeus e o brasileiro; c) estudos de conjuntura, tais como os que envolvem a

globalização, o neoliberalismo e a pós-modernidade; e d) enfoques pontuais, debatendo

temas específicos, tais como aquisição e perda da nacionalidade, papel dos militares,

princípio da subsidiariedade, exação fiscal, municipalismo como teoria da federação,

planejamento participativo etc. A riqueza dos debates suscitados pelas apresentações de todos

esses assuntos ficou evidente na extensão do tempo empregado para desenvolvimento de

todos os trabalhos: quase sete horas de candentes discussões, envolvendo não só os

apresentadores, como também os coordenadores do Grupo de Trabalho, todos entusiastas dos

temas ali postos em pauta.

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A SEPARAÇÃO DOS PODERES - REVISITANDO A TEORIA DO PRINCÍPIO

THE SEPARATION OF POWERS - REVIEWING THE THEORY OF THE PRINCIPLE

Gabriel Fliege de Lucena Stuckert

Resumo

O princípio da separação dos poderes permeia a teoria da constituição, do Estado e da

Ciência Política. O dogma da separação dos poderes ainda permanece válido? Sua aplicação

atual se coaduna com a racionalidade e a estrutura a que inicialmente se propunha? Como

equacionar a atual complexidade das relações sociais, políticas e do atual momento da teoria

constitucional se alguma dessas duas questões inicialmente propostas se depara com uma

resposta negativa? Para responder a essas perguntas, percorreremos os pensamentos

fundadores do constitucionalismo, do Estado Democrático de Direito e da própria doutrina da

separação dos poderes, buscando atualizar sua fundamentação em parâmetros mais

contemporâneos.

Palavras-chave: Separação de poderes, Teoria do estado, Teoria da constituição, Ciência política, Direito público

Abstract/Resumen/Résumé

The principle of the theory of separation of powers is found in the Constitution, the theory of

the State and Political Science. Is this doctrine still valid? Your current application is

consistent with the rationality and structure it was originally proposed? How to equate the

complexity of current social, political and constitutional theory if any of these two questions

is faced with a negative response? To answer these questions we will visit the founders of

constitutionalism, and the very doctrine of separation of powers, seeking to upgrade its

reasoning in more contemporary thoughts parameters.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Separation of powers, State theory, Constitutional theory, Political science, Public law

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Introdução

A Teoria da Constituição moderna, remonta sua origem no século XVIII1 e na

formação e consolidação dos Estados liberais. Seu arcabouço fundamental estrutura de

maneira principiológica, tanto a ciência jurídica, quanto a ciência política, imiscuindo-

se de forma inquestionável com a própria Teoria geral do Estado.

A separação dos poderes penetra na ciência jurídica pelo campo próprio do

Direito Constitucional e perpetrando de forma inegável e indissociável no Direito

Administrativo, fazendo ainda parte do interesse da ciência política.

O dogma da separação dos poderes ainda permanece válido? Sua aplicação atual

se coaduna com a racionalidade e a estrutura a que inicialmente se propunha? Como

equacionar a atual complexidade das relações sociais, políticas e do atual momento da

teoria constitucional se alguma dessas duas questões inicialmente propostas se deparar

com uma resposta negativa?

A questão não deve ser subestimada. Se há uma dogmática que pretende se

arvorar em respondê-la de forma simples e definitiva, uma investigação zetética dos

conceitos envolvidos demonstrará uma zona cinzenta maior que a esperada em uma

análise mais superficial. E uma análise meramente retórica de conceitos

substancialmente teóricos não deve desconsiderar nem verificações empíricas, nem uma

ponderação pragmática. Se assim o fizer, poderá até ditar máximas metafisicas

abstratas, mas arrisca-se a afastar-se irremediavelmente do real. Se nem a filosofia pura

deveria assim proceder, muito menos o Direito, que se insere no campo das ciências

sociais.

Com esse espirito e com essa metodologia é que se pretende aqui abordar o tema

proposto. O artigo passará por uma abordagem inicial da teoria da Constituição e

alguns de seus conceitos fundamentais, partindo para uma investigação da origem da

formulação da separação dos poderes e sua evolução, para ao final chegarmos a algumas

conclusões, decorrentes destas questões inicialmente propostas.

1 SILVA, Celso de Albuquerque, Interpretação Constitucional Operativa – Princípios e Métodos, Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2001, pag. 17.

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1- Teoria da Constituição – uma abordagem preliminar

Quando falamos em constituição e em sua teoria, estamos nos referindo a aquela

que surge com o Estado liberal burguês, ainda no século XVIII e sua evolução a partir

de então. Claro que não estamos querendo dizer com isso que não houve absolutamente

nenhuma constituição2 antes do século XVIII. Tão somente que a concepção do que

seria a constituição, seu estudo, sua formulação enquanto teoria, inegavelmente surge

desta época.

Podemos aqui dizer que esse Estado liberal burguês se inicia efetivamente no

século anterior, na Inglaterra, onde há de se destacar os pensamentos de Hobbes e

Locke. Ambos os filósofos tiveram influência não apenas no pensamento presente na

Revolução Gloriosa, mas nas revoluções francesa e americana, no século seguinte.

Ambos defendiam uma ideia de direito, calcada na razão e na ciência como instrumento

de liberdade.

Para Hobbes, a liberdade seria um direito natural. Nas palavras do filósofo:

Do Direito de Natureza, a que os autores geralmente chamam Jus

Naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder,

da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja,

da sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio

julgamento e razão lhe indiquem como meios mais adequados a esse fim3.

Essa liberdade seria alcançada principalmente pela obediência às Leis. A

obediência resulta em felicidade, pois a paz e a razão trariam o prazer. Assim os homens

deveriam cumprir os pactos, para afastar o estado de natureza do homem, que o levaria

ao caos.

Locke, por sua vez, infere na condição natural do homem, o desconhecimento do

teor da “lei natural”, a falta de um juiz e de alguém autorizado a executar a solução dos

conflitos e imposição das penas, como a razão fundante do Estado, dispondo a partir

daí, a necessidade de divisão de seus poderes. A partir de então decorreria, por exemplo,

2 Em 1890 foi encontrada a obra: Constituição de Atenas, publicada no ano seguinte, na qual Aristóteles

descreve como seria, entre mais ou menos 520 e 400 ac, como seria a referida constituição Ateniense,

como funcionavam seus poderes, suas leis, a magistratura e formas de governo. Quanto a formas de

governo, já se encontravam descrições Platão, A república, na forma de diálogos com Sócrates e outros

pupilos. 3 HOBBES, T. Leviatã: ou a matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. Trad.

J.P.Monteiro; M.B.Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003, Cap. XIV, pag. 112.

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a proteção da propriedade privada, que possui destaque em sua obra. Em seus próprios

termos, temos:

(...) As inconveniências a que estão expostos, pelo exercício irregular

e incerto do poder que todo o homem possui de punir as transgressões dos

outros, faz com que eles busquem abrigo sob as leis estabelecidas do governo,

e tentem assim salvaguardar sua propriedade. É isto que dispõem cada um a

renunciar tão facilmente seu poder de punir, porque ele fica inteiramente a

cargo de titulares nomeados entre eles, que deverão exercê-lo conforme as

regras, que a comunidade, ou aquelas pessoas por ela autorizados adotaram

de comum acordo. Aí, encontramos a base jurídica inicial e a gênese dos

poderes legislativo e executivo, assim como dos governos, e das próprias

sociedades4.

Para o autor, a quebra desse pacto, fosse por abuso de poder, ou legitimidade,

fosse por usurpação do poder, ou por legalidade, justificariam um direito de

desobediência civil. O pensamento de Locke influencia diretamente a teoria da

tripartição de poderes de Montesquieu.

Rousseau é influenciado pela obra de ambos, textualmente antagoniza

(virtualmente rivalizando) com Hobbes5 no sentido que o homem em sua origem, ou em

seu estado de natureza seria bom e virtuoso e que seus vícios e defeitos viriam

posteriormente, com a fundação da sociedade, enquanto Estado Civil6.

Ele irá também rivalizar com Locke, em suas considerações sobre o direito de

Propriedade. Nesse sentido, o autor faz grave crítica ao instituto da propriedade, da qual

merece citação:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é

meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro

fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e

horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as

estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: -Livrai-

4 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo Civil e outros escritos. Trad. Lopes, M. e de Costa, M. L.

Rio de Janeiro: Vozes, 1994. Parágrafo 127, pag. 157. 5 Quanto à distinção entre os pensamentos de Hobbes e Rousseau, ver os artigos: Quintana, Fernando,

Moral da obediência e ética hedonista (sobre Hobbes), e Ética da compaixão política (sobre Rousseau). 6 ROUSSEAU, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000053.pdf

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vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos

são de todos, e a terra de ninguém!7

Em sua obra Do Contrato Social, além de estabelecer as bases deste contrato,

Rousseau prossegue, estabelecendo então seu tratado de Direito político, percorrendo

temas como soberania, lei, legislador, povo, limites do poder soberano, governo,

representação, religião, entre outros. Quando fala dos sistemas de legislação, estabelece

que esse “se reduz a dois objetivos principais: liberdade e igualdade8”, máxima que irá

inspirar profundamente a revolução francesa. Sobre essas bases, afirma o autor que são

elas que tornam “a constituição de um Estado verdadeiramente sólido e durável9”.

Esses pensadores terão uma enorme influência na revolução francesa e no

processo de independência estadunidense e, por conseguinte em suas constituições,

enquanto norma fundante destes novos Estados liberais burgueses.

Completando então os principais pensadores do constitucionalismo desta

primeira fase, do Estado Liberal, como circunscreve Bonavides, viria Kant, que

completaria com sua filosofia política uma primeira noção de Estado de Direito10

. Para

nosso ilustre catedrático do Direito Constitucional e da Ciência Política, entretanto,

Kant não seria, em termos de organização política e social, propriamente um filósofo

alemão. Kant, profundamente influenciado pelo liberalismo da França seria “o mais

francês, o mais individualista de todos os teóricos ilustres do liberalismo burguês,

irmão, portanto, de Locke, Montesquieu e Rousseau11

”.

Kant inaugura a tese da Metafísica dos Costumes, que para ele se inicia com os

princípios metafísicos da doutrina do Direito. Não iremos a fundo nesta questão, para

não nos afastarmos demais do objeto de estudo deste artigo, mas em pouquíssimas

linhas, a metafísica trata de conhecimentos obtidos a partir da razão pura, partindo de

conhecimentos a priori dos quais independeriam a existência de dados empíricos. O

Direito natural corresponde a um conhecimento, de princípios12

a priori e as leis morais

7 Idem, Ibidem, pag. 29.

8 ROUSSEAU, Jean-Jacques, Do Contrato Social, pag. 6, disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv00014a.pdf 9 Idem, Ibidem, pag. 75.

10 BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social, Malheiros, 2013, 11º Edição, pag. 42

11 Idem, Ibidem, pag. 58. Para Bonavides a filosofia alemã estaria circunscrita conforme o pensamento de

Wolff e Hegel. 12

KANT, Immanuel, Introdução ao Estudo do Direito – Doutrina do Direito, São Paulo:Edipro, 2007, 1ª

Edição. Pag. 53

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correspondem a um imperativo categórico13

. Nas palavras do filósofo: “O direito é,

portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à

escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade14

”. Assim como era

para Rousseau, para Kant a constituição tem origem em um contrato original15

, e com a

idéia desse ato se legitimaria o Estado.

2- A Constituição e suas Concepções

Em seu curso de direito constitucional positivo, José Afonso da Silva, apresenta,

além de sua própria, três concepções16

de constituição: a constituição em seu sentido

sociológico, referenciada no pensamento de Ferdinand Lassale; a constituição em seu

sentido político, fundada no pensamento de Carl Schmitt e a constituição em seu sentido

jurídico, com base no pensamento de Hans Kelsen.

Para Lassale, a Constituição é, em síntese e em sua essência, “a soma dos fatores

reais de poder que regem uma nação17

”. Esses fatores reais de poder não poderiam se

afastar da realidade social, ainda que, como seu próprio exemplo, um incêndio apagasse

da face da terra todos os livros e leis de um Estado, e forçoso fosse uma reconstrução do

Estado, da Constituição e das leis, com a total liberdade que teoricamente adviria desta

situação extrema. O autor traz então as bases da distinção entre a Constituição formal e

material, sendo esta baseada nos fatores reais de poder, uma constituição real, e do

contrário, a constituição “folha de papel”, que fatalmente sucumbiria, pois desta

maneira iriam irromper, conflitos inevitáveis18

.

Segundo Schmitt, só seria possível um conceito de constituição, distinguindo-se

Constituição de lei constitucional19

. A Constituição em seu sentido positivo conteria

somente a decisão consciente da forma concreta de conjunto pela qual se o pronuncia,

13

Idem, Ibidem, pag. 34. 14

Idem, Ibidem, pag. 46. 15

Idem, Ibidem, pag. 128. 16

SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 2004, 9ª

Edição revista – 4ª tiragem, pags. 40 e 41. 17

LASSALE, Ferdinand, A Essência da Constituição, Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001, 6ª Edição. Pag.

17. 18

Idem, Ibidem, pag. 33. 19

SCHMITT, Carl, Teoria de la Constitucion, Madrid: Alianza Editorial, 1992. 1ª Ed, 1ª Reimpressão.

Pag. 45

35

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se decide a unidade política20

. Tudo o mais, que não corresponda a essa decisão política

fundamental, que se encontre no texto constitucional, seria meramente lei

constitucional.

De acordo com Kelsen o sistema jurídico possui um caráter dinâmico e de

autossuficiência, na medida em que, nas palavras do autor “o Direito regula a sua

própria criação, na medida em que uma norma jurídica determina o modo em que outra

norma é criada e também, até certo ponto, o conteúdo desta norma21

”.

Para este autor a distinção entre constituição formal e material é estritamente

jurídica, só podendo haver aquela quando se tratar de constituição escrita, pois seu

entendimento de constituição formal resume-se à maior dificuldade de alteração que

possuem as normas constitucionais22

.

Nosso ilustre constitucionalista, entretanto, amparado nos problemas que se

encontram em cada uma dessas concepções unilaterais, apresenta sua formulação de

concepção estrutural, baseado numa ideia de constituição total23

. Em suas palavras:

A constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas

(escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas

relações sociais (econômicas, políticas, religiosas, etc.); como fim, a

realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e

finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder que emana do povo.

Não pode ser compreendida e interpretada, se não tiver em mente essa

estrutura, considerada como conexão de sentido, como é tudo aquilo que

integra um conjunto de valores. Isso não impede que o estudioso dê

preferência a dada perspectiva. (...)

Temos aqui então, numa medida razoável, uma ideia clara do início do

constitucionalismo, partindo de sua inegável origem histórica com a fundação dos

Estados liberais e uma medida das concepções de constituição que se consolidaram a

partir de então. Não nos deteremos demais nessas questões que, embora fundamentais,

são aqui basilares, sob pena de fugirmos por demais da questão inicial que fundamenta a

presente pesquisa.

20

Idem, Ibidem, pag. 46. 21

KELSEN, Hans, Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo: Martins Fontes, 2005. 4ª ed, Pag. 129 22

Idem, Ibidem, pag. 130. 23

SILVA, José Afonso da, Op. Cit., idem.

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3.1- Separação dos Poderes – Aspectos iniciais

O Estado democrático de direito é uma evolução decorrente do Estado de

Direito, surgido do Estado liberal. Se da insuficiência do conceito inicial de Estado de

Direito se gerou o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre com o cunho

democrático como definição necessária, vemos a inserção da democracia enquanto

realização dos valores de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa24

.

Não iremos aqui nos aprofundar nas origens e distinções entre os termos, nem

nas ramificações jurídicas e históricas que perpassam o caminho entre o Estado liberal e

o estado social, mais uma vez para não fugir dos objetivos inicialmente traçados, mas

fazemos essa breve menção a estes conceitos aqui, e tão somente para sublinhar que a

partição dos poderes do estado, corresponde a uma das funções mais constantes de toda

a teoria constitucional.

Não se pretende, por assim dizer, que não haja distinções de formulações e

conceitos quanto à partição dos poderes, mas tão somente que a necessidade de uma

partição é um dos elementos mais constantes no pensamento constitucional.

Paulo Bonavides, entretanto, sublinha a existência de uma contradição na

doutrina originária sobre o tema, ressaltando que Rousseau não via no poder a antítese

necessária ao direito e transferia em sua filosofia política, este (poder) intacto do rei ao

povo, sem temer que este pudesse resultar no despotismo pelo povo25

. Revela então a

contradição em suas palavras da seguinte forma:

A contradição entre Rousseau e Montesquieu – contradição em que se

esteia a doutrina liberal-democrática do primeiro estado jurídico – assenta no

fato de Rousseau haver erigido como dogma a doutrina absoluta da soberania

popular, com as características essenciais da inalienabilidade,

imprescritibilidade e indivisibilidade, que se coaduna tão bem com o

pensamento monista de poder, mas que colide com o pluralismo de

Montesquieu e Constant, os quais abraçavam a tese de que os poderes

deveriam ser divididos.

24

SILVA, José Afonso da, Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a constituição, São Paulo:

Malheiros, 2007, 1ª Edição revista – 3ª tiragem, pag. 114. 25

BONAVIDES, Paulo, Op. Cit. Pag. 51

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Superada a contradição original, que não é enxergada por todos os autores26

,

temos que o dogma da separação dos poderes torna-se o caminho amplamente adotado

pela teoria constitucionalista majoritária, com trânsito livre, por assim dizer, entre os

diversos pensadores das mais diversas correntes e ideologias, indistintamente.

Geraldo Ataliba, ao lecionar sobre a separação dos poderes, ressalta a

importância da distinção (embora admitidamente, por vezes tênue) entre atos gerais e

atos e atos especiais, já abordada desde a filosofia aristotélica27

.

Desta distinção se justifica o fundamento da separação, melhor ainda, da

tripartição dos poderes. Nas palavras do ilustre e saudoso jurista temos:

(...) Assim, em última análise, para a teoria da divisão dos poderes há

três grupos distintos de órgãos: os que editam somente normas gerais, os que

apenas tomam medidas concretas nos limites traçados pelos primeiros e os

que, em caso de controvérsia, decidem da conformidade ou não de cada ato

particular em relação às normas gerais, sejam os atos praticados por

indivíduos ou por autoridades públicas28

.

Verifica-se, como senso relativamente pacífico na doutrina política e

constitucional, que os pensamentos originais sobre a separação encontram-se

inicialmente em Locke, e são aprimorados, ou ao menos mais afamados por

Montesquieu, recebendo posteriormente a contribuição mais instrumental de Madison

além do registro da derivação apresentada por Constant.

3.2- Separação dos Poderes em Locke

Para Locke, a separação de poderes estabelecida no seu tratado sobre o governo,

o poder legislativo seria mais que o poder supremo de uma sociedade29

. O poder

legislativo estaria limitado ao poder que as pessoas detinham no estado de natureza e

limitaria então toda a comunidade, pois a lei, limitando a todos, também estaria

limitando a ação dos governantes. A lei restringiria a tentação que o poder exerce nas

26

RANIERI, Nina, Teoria do Estado, São Paulo: Editora Manole, 2013, pag. 269 – A autora enxerga em

Rousseau uma separação de poderes distinta de Montesquieu, que teria inspirado os jacobinos na

revolução francesa. 27

ATALIBA, Geraldo, República e Constituição, São Paulo: Malheiros, 2011, 3ª Edição. Pag. 51 28

Idem, Ibidem, pags. 52 e 53. 29

LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Trad. Marins, Alex, 1ª edição, 1º reimpressão, São

Paulo: Martin Claret, 2011. Pag 90.

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pessoas pelo seu caráter de generalidade, mas também estaria ela própria limitada ao

interesse da sociedade, correspondendo a uma atividade indelegável, pois sua

delegação, feita pelo povo, só poderia dele decorrer30

. Diz o filósofo: “Por isso é

errôneo supor que o poder legislativo ou supremo de uma comunidade possa fazer o

que bem entenda e dispor arbitrariamente das propriedades do cidadão, ou tirar-lhes

qualquer parte delas à sua vontade31

”.

Locke então separa o poder executivo, atribuindo a este, a função permanente de

executar as leis em vigor. O filósofo distingue do poder executivo um poder

“federativo”, que seria a base do poder de “guerra e paz, de fazer e desfazer ligas e

alianças, e todas as transações com as pessoas e comunidades estranhas à sociedade32

”.

O poder “federativo” seria menos orientável por leis positivas, diferentemente do poder

executivo, mas o próprio autor pondera quanto à conveniência de que ambos sejam

exercidos pela mesma pessoa.

O poder executivo teria ainda o que o autor chama de “prerrogativa”, que

corresponderia a um “poder de agir com discrição em favor da ordem pública, sem a

prescrição da lei e, com frequência até contra ela”. A “prerrogativa” decorreria tanto da

incapacidade de previsão plena por parte do legislativo de prever por lei tudo o que

deveria ser normatizado, além da possibilidade do executivo de mitigar a severidade da

lei, possibilitando a concessão de anistia33

.

Devemos ainda ressaltar a preocupação de Locke com a produção excessiva de

leis, como um fator negativo para a sociedade e para a liberdade. O autor ressalva por

isso que as assembleias legislativas não deveriam ser necessariamente instituições

permanentes e que o executivo poderia convocá-las e dissolvê-las observando, para

tanto, a necessidade da produção legislativa.

3.2- Separação dos Poderes em Montesquieu

Montesquieu, em sua obra, se não a definitiva, ao menos a indubitavelmente

mais popular, pretende fazer uma reflexão profunda, complexa e sistemática sobre o que

30

Idem, Ibidem, pag. 96 31

Idem, Ibidem, pag. 94. 32

Idem, Ibidem, pags. 98 e 99. 33

Idem, Ibidem, pags. 108 e 109.

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intitulou de O Espírito das Leis. Para tanto, o autor percorre uma longa jornada,

abordando diversos períodos da história e diversas civilizações e culturas, depurando

suas estruturações politicas de modo a revelar o que se propõe.

Sua grande contribuição na separação dos poderes é alçar a esses o status de

tripartição, inserindo-se aquele que posteriormente será propriamente nominado de

poder judiciário. Enquanto Locke, apesar de observar a importância desta função, não

necessariamente a excluía dos poderes legislativo e executivo34

, e a seu turno, reservava

ao “povo” ou a “Deus” a competência para julgar os abusos do poder executivo (o

“príncipe”) e do legislativo35

, Charles-Louis de Secondat (ou o barão de Montesquieu)

eleva o “poder de julgar” a necessidade de separação obrigatória, para evitar o arbítrio e

a opressão36

.

Existiriam então para o autor, além do poder legislativo, dois tipos de “poder

executivo”, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder

executivo daquelas que dependem do direito civil. Assim, cada Estado possuiria três

tipos de poder, que em suas palavras, encontravam a seguinte descrição:

Com o primeiro o príncipe ou magistrado cria leis por um tempo ou

para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo ele

faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança,

previne invasões. Com o terceiro ele castiga os crimes ou julga as querelas

entre os particulares. Chamaremos a esse último poder e ao outro

simplesmente poder executivo do Estado37

.

O autor então descreve os inconvenientes que se encontram quando qualquer

combinação desses Poderes repousam em uma única pessoa ou num mesmo órgão.

Também encontramos em sua obra as ponderações quanto à necessidade da democracia

representativa, que de uma forma geral teria o dever de prestar contas ao povo,

decorrente de sua eleição38

.

34

Idem, Ibidem, pags. 92 e 93. 35

Idem, Ibidem, pag. 154. 36

MONTESQUIEU, O Espírito das Leis, Trad. Murachco, Cristina, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Pag. 168. 37

Idem, Ibidem, pags. 167 e 168. 38

Idem, Ibidem, pag. 171.

40

Page 15: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

3.3- Separação dos Poderes em Benjamin Constant

Para Constant, a divisão de poderes resulta em cinco partes das quais o autor

entende que possuem naturezas distintas, que seriam o poder real, o poder executivo, o

poder representativo da continuidade, o poder representativo da opinião e o poder de

julgar39

.

Os poderes representativos (de continuidade e de opinião) seriam o poder de

fazer leis. A distinção que o autor estabelece para os poderes representativos consiste

em que o de continuidade corresponderia ao poder de uma assembléia hereditária,

enquanto o de opinião residiria numa assembléia eleita.

A distinção mais relevante da teoria do autor está no que constitui o poder

executivo e o poder real. O poder executivo seria exercido pelos ministros e teria a

função de executar a lei. Já o poder real seria uma espécie de poder moderador, que

estaria acima dos outros com uma “autoridade ao mesmo tempo superior e

intermediária” que manteria o equilíbrio, sem substituir os outros poderes.

Para o autor, o defeito das constituições até então era o de não terem criado um

poder neutro. A questão da divisão dos poderes está ligada ao limite da soberania que

não pode ser apenas abstrato. Os depositários do poder devem respeitar os limites de

suas atribuições40

. Os poderes não deveriam transgredir nossos direitos, pois não se

justifica que com a autorização de um poder por outro se violassem os direitos41

.

Dessa forma o autor apresenta o seguinte problema em relação à separação dos

poderes:

É possível limitar a soberania? Existe algum poder que possa impedir

que se franqueiem as barreiras da própria soberania? Dir-se-á que se pode

restringir o poder dividindo-o mediante combinações engenhosas. Pode-se

opor e equilibrar suas diferentes partes. Mas, como se fará para que a soma

total não seja ilimitada? Como limitar o poder a não ser pelo próprio poder?

39

CONSTANT, Benjamin, Princípios Políticos Constitucionais, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014, 2ª

Edição, pag. 38

40

Idem, Ibidem, pag. 35. 41

Idem, Ibidem, pag. 33.

41

Page 16: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

Para o autor a solução estaria na existência deste poder moderado e neutro, que

manteria o equilíbrio entre os outros. Sua tese exerceu enorme influência na

constituição do império brasileiro de 1824. Parece-me, entretanto, que como o poder

executivo não se desloca efetivamente para os ministérios, residindo ainda na mesma

figura que possui o poder real, ou moderador, aumentou-se nesse caso em concreto, o

problema da suposta neutralidade deste poder.

3.4- Separação dos Poderes nos Federalistas

Para a ratificação da constituição estadunidense, John Jay, Alexander Hamilton e

James Madison escreveram uma série de artigos que posteriormente foram compilados

na obra O Federalista.

Nesses artigos, fortemente inspirados na obra de Montesquieu, o princípio da

separação de poderes receberá a contribuição teórica dos freios e contrapesos.

A divisão dos poderes dessa forma não se procederia por uma preocupação

maior quanto a hierarquias, mas sim, relativo às competências atribuíveis a cada um dos

poderes.

Para tanto, ao abordar o pensamento de Montesquieu e dele avançarem42

, além

de se valer de suas referências relativas à república federativa, justificando a União, ao

tratar da separação vão investigar sua fonte de inspiração, ou seja, a constituição da

Inglaterra43

.

Assim, demonstram inicialmente que a referida separação não ocorre de forma

absoluta, explorando as hipóteses concretas em que um poder atua diretamente em outro

(como quando um poder nomeia membro de outro poder, por exemplo). Dessa forma, as

influencias recíprocas não seriam apenas admissíveis, como também aconselháveis,

evitando-se por essa metodologia, usurpações recíprocas.

Se a solução para possíveis excessos cometidos pelos poderes não deveria

retornar ao povo, nem nos casos de crise44

, nem numa fórmula prévia determinada na

constituição45

, nem resolvida por uma composição entre os próprios poderes46

, a

42

JAY, John; HAMILTON, Alexander e MADISON, James, O Federalista, Belo Horizonte: Ed. Líder,

Pag.56 43

Idem, Ibidem, pag. 299. 44

Idem, Ibidem, pags. 311-313. 45

Idem, Ibidem, pags. 314-316

42

Page 17: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

fórmula para se defender os interesses das minorias em face da maioria estaria na prévia

fragmentação e interação recíproca e coordenada entre os poderes47

.

3.5- Separação dos Poderes em outro autores

Para Kant, a vontade unida geral consistiria de três pessoas (trias políticas): a

pessoa do legislador, que encerra o poder soberano, a pessoa do governante que encerra

o poder executivo e a pessoa do juiz, que encerra o poder judiciário. Desta forma, todo

o Estado se encerra em três poderes48

.

Para Duguit, o Estado é em essência um fim do direito, manifestando suas

atividades dentro dos domínios do direito e em sua conformidade. Desta forma,

distingue como funções do Estado, as atividades legislativa, jurisdicional e

administrativa49

.

Em seu projeto de declaração dos direitos naturais, civis e políticos dos homens,

Condorcet estabelece a separação de funções judiciária, legislativa e executiva como

norma em que nenhum dos órgãos poderia “em nenhum caso e sob nenhum pretexto50

exercer as funções do outro. Para o autor o despotismo dos tribunais seria o mais

odioso de todos, pois se sustentaria empregando a arma mais respeitável de todas, que

seria a lei51

.

Carl Schmitt, quando trata do conceito próprio de lei do Estado de direito, antes

de estabelecer seu conceito político de lei, investiga a separação de poderes em

Montesquieu, Locke e Kant, extraindo a ideia de que o “nervo essencial52

” de todo o

pensamento do estado de direito encontra-se na existência de uma lei geral, vinculante e

invulnerável.

Para Bobbio,53

a separação dos poderes é um dos dois remédios

constitucionalizados contra o abuso do poder, sendo o outro, a subordinação de todo o

46

Idem, Ibidem, pags. 310 e 311 47

Idem, Ibidem, pags. 317-321 48

KANT, Immanuel, Op. Cit., pag. 125. 49

DUGUIT, Léon, Fundamentos do Direito, Trad. Pugliesi, Márcio, São Paulo: Martin Claret, 2009, 3ª

Edição, Pags. 77 e 78 50

CONDORCET, Escritos Políticos – Constitucionais, São Paulo: Editora Unicamp, 2013, Pag. 170 e

171 51

Idem, Ibidem, pag. 35. 52

Schmitt, Carl, Op. Cit., pag. 151 53

BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Elselvier, 2004. Pag. 136

43

Page 18: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

poder estatal ao direito. Para o autor, a separação tem um sentido amplo, não

correspondendo apenas à separação vertical das principais funções do Estado. Dessa

forma, tanto a separação horizontal entre órgãos centrais e periféricos quanto à

descentralização político administrativa, quanto o próprio federalismo, estariam

inseridos na separação de poderes.

Para Celso de Albuquerque Silva, a separação dos poderes, enquanto postulado

essencial do Estado democrático de direito se circunscreveria à construção do princípio

da presunção de constitucionalidade das leis54

.

4- Crítica à separação dos poderes

Bonavides, em seu tratado de ciência política, já anuncia o declínio da

importância principiológica da separação e sua necessidade de reavaliação, em função

das responsabilidades sociais contraídas pelo Estado e que o verdadeiro poder se

centraria no povo organizado55

.

Em suas palavras, temos:

Desde, porém, que se desfez a ameaça de volver o Estado ao

absolutismo da realeza e a valoração política passou do plano individualista

ao plano social, cessaram as razões de sustentar um princípio que logicamente

paralisava a ação do poder estatal e criara consideráveis contra-sensos na

vida de instituições que se renovam e não podem conter-se, senão contrafeitas,

nos estreitíssimos lindes de uma técnica já obsoleta e ultrapassada56

.

Citando Coste-Cloret, o autor pondera que sendo a soberania una, não se poderia

conceber três poderes separados, ainda que exista a necessidade da diferenciação das

três funções do Estado (legislativa, executiva e judicial), exemplificando com a

metáfora de que o homem não faz com os olhos o que faz com o coração, ainda que

ambos, unos em si, componham também um corpo uno de partes diversas.

Parece-me, entretanto que até aqui a critica é mais teórica e conceitual do que

efetivamente prática ou pragmática. E ainda assim, verifica-se que o autor talvez tenha

se arrependido da crítica ao referido princípio.

54

SILVA, Celso de Albuquerque, Op. Cit., pag. 164 55

BONAVIDES, Paulo, Ciência Política, Rio de Janeiro: Forense, 1993, 9º Edição, pag. 160 56

Idem, Ibidem, pag. 161.

44

Page 19: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

Em sua obra Do País Constitucional ao País Neoliberal, Bonavides verifica que a

produção legislativa, decorrente do poder executivo, por meio de medidas provisórias,

vinha usurpando, no Brasil, as funções do legislador57

.

Em nota da 3ª edição desta obra de defesa da constituição e da soberania

nacional, o autor eleva o princípio da separação dos poderes ao “mais alto princípio de

conservação do Estado de Direito e das liberdades públicas, porque nele tem sede a

soberania da Constituição, bem como a legítima repartição das competências no

ordenamento jurídico do país58

”.

Iremos encontrar crítica mais contundente à separação dos poderes na obra de

Ackerman, onde o autor pretende apresentar uma “nova separação dos poderes”.

Resumiria as ponderações do autor em dois pontos fundamentais59

:

Primeiro, o fundamento da separação não mais seria a garantia da liberdade, mas

a concretização dos direitos fundamentais, baseado numa lógica de democracia e de

justiça distributiva. Nesse ponto, o autor encontra eco mais que autorizador em

Bobbio60

.

Segundo, o autor distingue a existência de outros poderes, que não teriam sido

identificados na doutrina original, ou que se tornariam necessários, a partir da evolução

natural do Estado e do exercício de suas competências. Nesse sentido, se inserem as

questões da legitimidade democrática e da especialização funcional.

Quanto à legitimidade democrática, demanda uma observação da composição

política do Estado, com as hipóteses de composições políticas decorrentes das eleições e

os arranjos institucionais que daí decorrem.

Quanto à especialização funcional, o autor identifica a burocracia como um

quarto poder, refletindo sobre os impactos da sua constituição por servidores de cargos

efetivos (permanentes) e de cargos políticos (temporários).

Para conter o problema da corrupção e de desvios das instituições haveria então

a necessidade de um poder independente, uma “instância de integridade com atribuições

57

BONAVIDES, Paulo, Do País Constitucional ao País Neoliberal, Malheiros, 2009, 4º Edição. Pag 41. 58

Idem, ibidem, pag. 3 59

ACKERMAN, Bruce, A nova separação dos poderes, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. O autor em

sua obra se propõe a elaborar três teses distintas e complementares, que aqui resumidamente

apresentamos extremamente condensadas, apresentando a última (direitos fundamentais) como

fundamento geral e as duas primeiras (legitimidade democrática e especialização funcional) como

metodologias desta nova separação. 60

Op. Cit. Pag. 21

45

Page 20: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

específicas em relação aos demais poderes61

”. Ackerman ressalta, entretanto a

possibilidade desse poder engessar os demais, servindo-se a uma espécie de

revanchismo62

.

Outro poder que deveria ser constituído modernamente seriam as instâncias

regulatórias, alçando o direito administrativo a uma importância constitucional,

admitindo como fato a ultrapassagem das normas administrativas aos estreitos limites

legais. Essa questão, que se dá na prática pela necessária especialização decorreria da

regulação moderna, que deveria justificar-se pelo conhecimento técnico efetivo,

legitimando-se pela participação pública e submetendo-se ao controle judicial63

.

Parece-me que, no Brasil, poderíamos encontrar efetivamente esses “poderes”

nas figuras do Ministério Público e das Agências Reguladoras.

Conclusão

O dogma da separação dos poderes ainda permanece válido? Sua aplicação atual

se coaduna com a racionalidade e a estrutura a que inicialmente se propunha? Como

equacionar a atual complexidade de relações sociais, políticas e do atual momento da

teoria constitucional se alguma dessas duas questões inicialmente propostas se depara

com uma resposta negativa? Percorremos esse longo caminho em busca de respostas a

essas questões, e acredito que assim podemos concluir:

Observamos então que toda a justificativa teórica preliminar para explicar a

teoria da partição dos poderes se baseia na defesa da liberdade. Se o poder absoluto e

unificado corrompe e leva ao despotismo, sua fragmentação seria a solução inicial.

Dessa solução inicial, decorrem novos problemas, tais como a possibilidade de

usurpação de um poder pelo outro. Assim, os poderes passam a se coordenar a partir de

áreas de influências (ou de competências) recíprocas, ou os chamados freios e

contrapesos.

A sociedade, entretanto, continua se tornando cada vez mais complexa e

especializada, e as fórmulas iniciais da divisão de poderes parecem não mais atender à

61

Idem, Ibidem, pag. 72 62

Idem, Ibidem, pag. 74 63

Idem, Ibidem, pag. 74 e 75

46

Page 21: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

defesa da liberdade para a qual se propunha. O dogma da separação dos poderes, para

permanecer válido, precisa coadunar sua aplicação atual com uma nova racionalidade de

estruturação.

Se o termo “poder” traz consigo uma significação simbólica de importância, tal

como o termo “ciência” traduziria essa importância a um dado tipo de conhecimento,

parece-me, entretanto, que para, além disso, não teria maiores valias.

Cada um dos três “poderes” pratica, em maior ou menor grau, atos que

corresponderiam ontologicamente às funções dos demais, sem que se lhes altere

nenhum fundamento de validade necessário.

A simples prática de um ato ou processo decisório, de um ato ou procedimento

normativo, ou a execução efetiva de uma norma não servem para distinguir em essência

nenhum dos “poderes”. A questão da preponderância de um em relação ao outro

parece-me muito mais afeta a uma determinação funcional de competência do que

propriamente de uma hierarquização ou de diferença de grau de valoração entre as

atividades executiva, legislativa e judicial.

Parece-me que ainda poderia ser melhor pesquisada a questão da legitimidade,

enquanto valor fundador da prática de uma determinada espécie de ato por um dado

poder, assim como seu grau de resistência e oposição por parte do “povo”, ou da

“sociedade” (usados aqui esses termos em um sentido lato).

As agências reguladoras, com seu poder normativo-executivo, assim como o

Ministério Público, enquanto custus legis, parecem ser respostas iniciais a essa

necessidade de lançarmos um novo olhar em relação à separação de poderes. Se as

primeiras atendem a uma necessidade pragmática de especialidade normativa, o

segundo parece cumprir uma função “moderadora”, solucionando um problema já

antevisto por Constant. Assim, poderíamos equacionar a atual complexidade de

relações sociais, políticas e do atual momento da teoria constitucional atualizando o

fundamento original da separação dos poderes.

47

Page 22: Revisitando a Teoria do Princípio (Páginas 30 a 49)

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