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AUTO-REFLEXÃO E EDUCAÇÃO DO EDUCADOR: UM ESTUDO DA DISCIPLINA AVALIAÇÃO Henrique Garcia Sobreira (UERJ) Este trabalho visa apresentar um estudo sobre a disciplina Avaliação a partir dos conceitos desenvolvidos na pesquisa X, cujo objeto é a possibilidade de um processo emancipatório de educação do educador. No final do segundo semestre de 2000, noventa e seis estudantes de três turmas de sexto período do curso de Pedagogia 1 , responderam a duas situações-problema onde eram convocados a agir na reforma do sistema de avaliação. Relaciono aqui algumas das possíveis interpretações das respostas coletadas pelo primeiro instrumento. Na análise procuro evidenciar os possíveis “filtros” utilizados pelos estudantes na recontextualização dos conteúdos trabalhados na Disciplina. O processo de auto-reflexão deriva da intuição de que os destinatários dos processos de formação reelaboram o seu conteúdo a partir de suas experiências de vida e de trabalho. A maior parte das experiências de vida dos professores, quando estão fora da escola (antes e depois de se tornarem professores), é de difícil acesso. Apenas em casos extremos torna-se evidente, inclusive para os próprios sujeitos, o vínculo entre um modo insistente de responder aos fatos novos e as suas experiências afetivas pretéritas. Provavelmente está fora do campo da investigação pedagógica essa “pré-história” do sujeito que 1 Duas em Faculdade pública e uma em particular, sou profundamente grato à Professora Z por ter gentilmente participado da pesquisa tendo cedido tanto seus diários e planejamentos de curso, bem como por ser responsável pela aplicação dos instrumentos aos seus alunos. Inestimável, também foi a disponibilidade dos participantes em participar desta pesquisa.

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AUTO-REFLEXÃO E EDUCAÇÃO DO EDUCADOR: UM ESTUDO DA DISCIPLINA AVALIAÇÃO

Henrique Garcia Sobreira (UERJ)

Este trabalho visa apresentar um estudo sobre a disciplina Avaliação a partir dos

conceitos desenvolvidos na pesquisa X, cujo objeto é a possibilidade de um processo

emancipatório de educação do educador. No final do segundo semestre de 2000,

noventa e seis estudantes de três turmas de sexto período do curso de Pedagogia1,

responderam a duas situações-problema onde eram convocados a agir na reforma do

sistema de avaliação. Relaciono aqui algumas das possíveis interpretações das respostas

coletadas pelo primeiro instrumento. Na análise procuro evidenciar os possíveis

“filtros” utilizados pelos estudantes na recontextualização dos conteúdos trabalhados na

Disciplina.

O processo de auto-reflexão deriva da intuição de que os destinatários dos

processos de formação reelaboram o seu conteúdo a partir de suas experiências de vida

e de trabalho. A maior parte das experiências de vida dos professores, quando estão fora

da escola (antes e depois de se tornarem professores), é de difícil acesso. Apenas em

casos extremos torna-se evidente, inclusive para os próprios sujeitos, o vínculo entre um

modo insistente de responder aos fatos novos e as suas experiências afetivas pretéritas.

Provavelmente está fora do campo da investigação pedagógica essa “pré-história” do

sujeito que se tornará professor.

Porém, a vida dos professores na escola transcende o momento desde o qual lhes

foi outorgada a licença para lecionar. No caso dos estudantes de Pedagogia, ao ingressar

no curso, eles passaram ao menos doze anos como destinatários de experiências

educativas. Vários, em especial nos cursos noturnos (caso dos participantes desta

pesquisa), estão há alguns anos na ambígua posição de agentes e destinatários da

educação.

De certo, práticas educativas que dirigem a seleção, a organização e, mesmo, a

exposição dos conteúdos do trabalho pedagógico são permeadas por conceitos

imanentes no campo do social, do político, do étnico, da sexualidade etc... Meu

argumento é que há “algo” para além desses níveis de discurso, que inclusive pode ser o

seu ponto de ancoragem. Esse “algo” pode ser localizado no campo de motivos e de

representações no inconsciente, entendido na sua acepção freudiana. O problema é que 1 Duas em Faculdade pública e uma em particular, sou profundamente grato à Professora Z por ter gentilmente participado da pesquisa tendo cedido tanto seus diários e planejamentos de curso, bem como por ser responsável pela aplicação dos instrumentos aos seus alunos. Inestimável, também foi a disponibilidade dos participantes em participar desta pesquisa.

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tais representações possuem seu caráter “secreto”, visto estarem determinadas por ¾ e

serem determinantes de ¾ tendências profundas (ADORNO et alli, 1982).

Tais tendências, intransparentes aos próprios sujeitos, se apresentam como

“anterioridades” estruturantes de suas ações e reações, por isso mesmo exigem mais do

que a crítica racional para serem superadas. É esse um dos sentidos atribuídos por

ADORNO (1995) aos tabus sobre a profissão de ensinar2. O seu efeito se confunde

com sua capacidade transmissão e reprodução no campo da sociedade e da cultura em

geral e, no caso particular aqui analisado, nas práticas educativas e escolares cotidianas.

Para MILLOT:

Dado o poder que têm as representações inconscientes na determinação dos comportamentos, tal comunicação entre inconscientes deve ter capital importância (...) O inconsciente dos educadores pode ser considerado como mais determinante para o desenvolvimento da criança que a ação educacional programada. (1987: 73)

Aqui, a principal questão metodológica refere-se ao modo de acesso a esses

conteúdos secretos, inconscientes. Grosso modo, tratar dessa questão sem incorrer em

desvios no campo da Ética na pesquisa é uma tarefa complicada. Não basta informar aos

entrevistados sobre o compartilhamento desses conteúdos íntimos, muito menos manter

o seu anonimato. O problema permanece irresolvido, também, por salvaguardas

formais, seja a presença de Psicólogos credenciados no grupo de pesquisa, seja a

preocupação metodológica na elaboração dos instrumentos. Resta reconhecer o limite

das interpretações: elas remetem tanto às associações do pesquisador quanto às

respostas dos entrevistados. Isso por que não pode ser esquecida a comunicação

estabelecida entre pesquisador e pesquisados, da redação do texto, até as perguntas

sobre ele.

O pesquisador deve assumir as ambigüidades da sua mensagem (sempre

“engatadas” nas suas experiências) como fontes das respostas. Ao contrário das

perspectivas quantitativistas, que se preocupam com a validação de seus instrumentos3,

o interesse deve ser utilizar as respostas como ponto de partida para o processo de auto-

reflexão4. Só as perspectivas matematizantes ousam apresentar, como verdade

científica, um quadro estatístico de categorias recorrentes e validam, ou não, quaisquer

hipóteses levantadas aprioristicamente. A perspectiva metodológica assumida na

pesquisa foi a da Teoria Crítica (HORKHEIMER, 1975). Frente à impossibilidade de

2 Tabu refere-se tanto a uma proibição, muitas vezes introjetada como aversão, como à punição pela desobediência ao interdito. Além de ADORNO (1995) conferir também FREUD (s.d.-a) 3 Como legitimação de uma insuspeita neutralidade.4 Isso implica manter sempre suspensa, como irrespondível, a pergunta: quem educa o educador?

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dar conta do tema a partir da análise quantitativa, a ida ao campo empírico deve visar a

crítica imanente.

... o método da teoria crítica não pode ser o método indutivo da teoria tradicional, que ambiciona chegar à lei através da agregação de observações particulares, mas um método indutivo sui generis que procura o universal dentro do particular, e não acima ou além dele ... e mergulha nele cada vez mais profundamente, a fim de descobrir a lei universal que se manifesta nesse particular. (HORKHEIMER in ROUANET, 1989: 104)

Ao contrário do silenciamento da voz do particular (ainda mais porque, isso

realizado, ao mesmo tempo, o universal também emudece) tento devolver-lhe a palavra,

desfazendo essa anulação totalitária. A coleta de dados teve por objetivo estabelecer

uma chave para a interpretação da forma particular com que cada envolvido descreveu

os problemas e os impecilhos à tomada de decisão sugerida na situação-problema. Esses

foram entendidos como tabus que envolvem os conteúdos acadêmicos e as práticas

escolares relativos à Avaliação da Aprendizagem que, por sua vez, foi assumida como

elemento de uma cultura escolar. Para a Teoria Crítica a apropriação individual da

cultura e a reprodução da cultura nas consciências individuais são parte de um mesmo

movimento.

É por isso que, enquanto linguagem do particular, a psicanálise contém a chave para a decifração da cultura. Mas essa decifração supõe um código que transcende o mero particular, e que é imanente à cultura. O particular diz tudo sobre si mesmo e sobre o Todo, com a condição de deixar de ser, simplesmente o particular. (ROUANET, 1989: 120)

O procedimento da crítica imanente não se limita em reconhecer a servidão, mas

transformar tal reconhecimento em força de observação da própria coisa. Ao se deparar

com as insuficiências não as atribui precipitadamente ao indivíduo e sua psicologia, ou

à mera imagem encobridora do fracasso, mas procura derivá-las da irreconciabilidade

dos momentos do objeto (ADORNO, 1998: 23). Não há sentido, portanto, no veredicto

de que algo é “mera ideologia”. O discurso ideológico é homólogo ao discurso

racionalizante: uma hibridação em que a verdade é posta a serviço da mentira

(ROUANET, 1989). Descobrir o momento de verdade na ilusão é a tarefa da crítica

imanente.

Para HORKHEIMER o problema da compreensão dos motivos pelos quais uma

sociedade funciona, se mantém estável ou se desagrega passa pelo conhecimento da

constituição psíquica de seus homens (e mulheres, pode ser acrescentado hoje) nos

diversos grupos sociais. Nos eventos humano-sociais o processo econômico é concebido

como determinante, mas o que garante uma interpretação não-mecânica de tal

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determinação é sua análise em conjunto com as aptidões e disposições específicas dos

homens desenvolvidas decerto por ele mesmo. Dessa forma, a cultura também faz parte

da dinâmica histórica e, suas diversas esferas em seu entrelaçamento, sempre

constituem fatores dinâmicos na conservação ou ruptura de uma determinada estrutura

social. A própria cultura é, a cada momento isolado, um conjunto de forças na

alternação de culturas (1990: 180-1).

Tanto a compreensão freudiana como a frankfurteana sobre a possibilidade da

“psicologia de massas”, rejeitam a metafísica dos inconscientes coletivos. Na ausência

de um inconsciente cultural apriorístico, a crítica imanente deve descrever os sutis

mecanismos pelos quais se dão as interações, mutuamente transformadoras, entre

indivíduo e cultura.

Psicologia social, para Freud, significa, não o exame de uma “alma coletiva” distinta dos vários psiquismos individuais, mas os exames dos mecanismos pelos quais certos impulsos e tendências são ativados através de interações como outros indivíduos, no interior de um grupo, e através de sua relação com um líder... (ROUANET, 1989: 119)

As respostas fornecidas pelos estudantes foram a base da tentativa de crítica

imanente dessa apropriação individual e particular da cultura de Avaliação, bem como

serviram para evidenciar as formas de racionalização que permitem sua prática. Busco

compreender os motivos (e os significados) pelos quais acredita-se que a escola

funciona, se mantém estável ou se desagrega orbitando em torno do conceito de

“avaliação”.

Horizontes de interpretação: do empírico ao não-empírico

A primeira tarefa na elaboração dos instrumentos foi considerar que, aos

estudantes de Pedagogia, poder-se-ia aplicar o estatuto de grupo5. Tal conceito retira a

explicação da “psicologia das massas” do fator numérico viabilizando duas outras

possibilidades: a) o instinto social não é um instinto primitivo e, b) os primórdios de sua

evolução pode ser descoberto em um círculo mais estrito, tal como o da família

(FREUD, s.d.). No grupo, a superestrutura mental, cujo desenvolvimento é

dessemelhante nos indivíduos, é removida e as funções inconscientes, semelhantes a

todos, ficam expostas. FREUD acompanha a consideração de Le Bon sobre a condição

de autômato do indivíduo no grupo: hipnótica6.

5 Para FREUD A psicologia de grupo interessa-se assim pelo indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma multidão de pessoas que se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido (s.d.:82). O autor considera que raramente a psicologia individual pode desprezar as relações do indivíduo com os outros. Nesse sentido, a psicologia individual assume, ao mesmo tempo, o caráter de psicologia social.6 É importante lembrar, aqui, o conceito de sonambulismo desenvolvido por LUCKESI (1996) em suas pesquisas e trabalhos sobre Avaliação Escolar.

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Como um grupo só pode ser excitado por estímulos excessivos (FREUD, s.d.:

89) optei por apresentar a abolição da Avaliação como situação-problema sob duas

formas: por decisão individual devido aos estudos realizados na disciplina (Quadro I) e

por imposição de legislador externo (Quadro II). Duas perguntas foram realizadas:

relacionar, em ordem de importância, que outros atores da prática educativa eram

motivos de preocupação em relação à decisão e dois dos argumentos mais assustadores

que a serem levantados contra7.

QUADRO I

Os nove atores possivelmente interessados na decisão estão distribuídos em cinco

categorias: Alunos, Docentes, Administração, Família e Políticos. O objetivo era

estabelecer, por uma via indireta, a quem se destinava a Avaliação realizada (ou por

realizar) pelos envolvidos na pesquisa. Esse levantamento fornece o horizonte empírico

da pesquisa. Aqui foi inevitável a quantificação e um pequeno abandono do particular

em relação ao universal8. Mas isso não foi realizado sem método:

Antes que os membros de uma multidão ocasional de pessoas possam constituir algo semelhante a um grupo no sentido psicológico, uma condição tem de ser

7 Como já foi informado, neste trabalho, tanto devido ao espaço reservado pelas normas de inscrição como pela necessidade metodológica de dar voz ao particular, apresento apenas a análise das respostas ao instrumento que sugeria o professor como agente da reforma. 8 As informações obtidas a partir do ordenamento geral deixam de lado as interpretações que utilizassem como chave as associações presentes na cadeia de ordenamento, particular para cada estudante.

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A avaliação escolar, nas diversas formas em que costuma ser exercitada, tem sofrido várias críticas. Alguns concentram suas atenções às suas vinculações com a exclusão social. Outros criticam o seu uso abusivo como forma de controle da disciplina. Vários apontam-na como criadora de uma mentalidade de “estudar para passar e depois esquecer”.

Mas há os que ainda a defendem. Afinal de contas, como é que poderia o professor receber um feedback do seu trabalho. Os estudantes precisam ser preparados para um mundo competitivo e cheio de concursos. Que outra forma está disponível para garantirmos um ensino de qualidade.

Estes são apenas alguns dos argumentos contra e a favor das práticas cotidianas de avaliação que são praticadas nas escolas brasileira. Alguns outros poderiam ser arrolados. Você pessoalmente terá diversos argumentos, contra e a favor dos sistemas de avaliação. Pessoalmente também deve ter participada de algumas avaliações que marcaram sua carreira estudantil para sempre.

O objetivo dessa experiência é coletar suas impressões pessoais sobre esse tema.Suponha que após os diversos estudos que foram realizados nessa Disciplina você tenha se convencido

da inutilidade pedagógica da avaliação da aprendizagem que você vinha regularmente utilizando como recurso didático em suas aulas. Ora, essa idéia que é tão freqüente nos textos discutidos, a despeito de sua lógica, lhe parece de difícil realização. Apesar de tudo, você está disposta(o) a implantá-la!

Em outras palavras, você está se preparando para abolir provas, notas, testes, escalas de comparação, riscos vermelhos para erros e azuis para acertos etc.. Leituras teóricas você já realizou, desse ponto de vista você se considera bem preparada(o). Mas você está insegura(o). Sabe que podem surgir resistências. Mas está firme em sua decisão: abandonará a lógica que durante tanto tempo fez você aplicar diversos instrumentos com resultados duvidosos. Mas você está muito preocupado(a) com a proposta.

1 - Relacione, em ordem de importância, quem dentre as seguintes pessoas te preocupam mais:ex-alunos reprovados, atuais alunos, professoras da série seguinte, professoras das séries anteriores,

diretor(a), equipes pedagógicas, pai de alunos, mãe de alunos, políticos, outros (especifique quem)

2 – Descreva, na página seguinte, pelo menos dois dos argumentos mais assustadores, para você, que poderiam ser utilizados contra sua proposta, por essas pessoas:

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satisfeita: esses indivíduos devem ter algo em comum uns com os outros, um interesse comum num objeto, uma inclinação emocional semelhante numa situação ou noutra e (...)”certo grau de influência recíproca” (...). Quanto mais alto o grau dessa “homogeneidade mental”, mais prontamente os indivíduos constituem um grupo psicológico e mais notáveis são as manifestações da mente grupal. (FREUD, s.d.: 95)

Emerge da Tabela I a constatação de que o interlocutor (no campo da

“homogeneidade mental”) do professor, no caso da Avaliação, é a Família. Dentro da

Família a Mãe é mais convocada do que o Pai. Além de ser citada como primeira, outros

indicadores nas repostas corroboram essa afirmação: a Mãe é colocada antes do Pai em

48 questionários (o Pai é colocado 40 vezes antes da Mãe (quando a resposta foi o plural

genérico pais, não foi contado); só quando os indicadores de Família ocupam posições

de 5 a 9 no ordenamento (indicando que o respondente possui pouca preocupação com a

família) é que o Pai aparece mais vezes antes da Mãe, ao contrário de quando ocupa

posições de 1 a 4.

Tabela I – Ordem de PreocupaçãoOrdem 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Não citado

Mãe 24 18 19 19 13 4 5 3 1 5

Pai 15 28 15 12 9 2 4 4 1 10

Alunos atuais 14 8 6 7 7 9 2 9 4 30

Diretor 12 14 17 5 9 3 6 5 3 21

Ex-Alunos 11 6 5 6 8 12 9 10 2 22

Equipe Pedagógica 10 14 14 17 11 9 4 3 1 15

Professores Seguintes 8 5 10 20 17 14 7 1 0 15

Professores Antigos 1 4 3 5 10 11 19 7 1 37

Políticos 4 1 3 2 3 2 8 11 24 39

A preocupação dos professores com uma família que servisse de apoio ao seu

trabalho pedagógico já foi evidenciada em outras etapas da pesquisa (W, K, Y). A

novidade aqui é a percepção de que, ao menos para esses estudantes, quando se referem

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à Família dirigem sua atenção mais para a Mãe do que para o Pai. Isso exige um breve

excursão sobre alguns das possíveis tendências profundas que agem como alicerce da

Avaliação, nos indivíduos e na cultura escolar,

Talvez a origem da preocupação desses estudantes expresse um conceito mítico de

Mãe cuidadosa (ela é que fica em casa com os filhos, dá de comer, orienta para o banho,

verifica os cadernos etc.). Talvez, como a maioria dos estudantes de Pedagogia são

mulheres, refira-se tanto a sua vontade de cuidar de crianças como a sua necessidade de

prestar contas às mães de seus alunos. Mas não pode ser esquecida, como hipótese, a

sua relação com a progressiva fragilização da figura do Pai... Para HORKHEIMER

Entre as circunstâncias que influenciam de modo decisivo a formação psíquica da maior parte de todos indivíduos (...) a família tem uma importância predominante. O que ocorre nela plasma a criança desde a sua mais tenra idade e desempenha um papel decisivo no despertar de suas faculdades(...). A família cuida, como uma das componentes educativas mais importantes, da reprodução dos caracteres humanos tal como os exige a vida social, e lhes empresta em grande parte a aptidão imprescindível para o comportamento especificamente autoritário do qual depende amplamente a sobrevivência da ordem burguesa. (1990: 214)

Para o frankfurteano a tarefa de educar para o comportamento autoritário na

sociedade começa quando o pai (forte, rico, provedor) incumbe-se da tarefa de quebrar a

teimosia da criança, substituindo o desenvolvimento livre de seus impulsos pela

obrigação de cumprir o dever incondicionalmente. O direito moral do pai burguês sobre

seus filhos deriva mais de sua força do que de sua dignidade. Resta à criança submeter-

se ao pai como a única coisa racional, totalmente independente de qualquer idéia sobre

suas qualidades humanas (HORKHEIMER, 1990: 220). Porém, no capitalismo tardio:

... a função da família como promotora de autoridade reage duplamente a ela mesma: a estrutura econômica da sociedade,(...) converte o pai em patrão e produz espontaneamente nos descendentes a disposição a fundar uma nova família. Na família burguesa, (...) o homem era o patrão e o assalariado. Já que a emancipação da mulher era tardia (...) a atividade dela na vida profissional significava (...) um mero substituto. A "profissão" da mulher, para a qual é orientada intimamente através da educação e formação burguesa de caráter, não a empurra para trás do balcão da loja (...) mas para um casamento feliz, no qual é sustentada pelo marido e pode cuidar dos seus filhos. Por outro lado, esta emancipação chega tarde demais. Ocorre num período da sociedade atual em que o desemprego já se tornou estrutural. (HORKHEIMER, 1990: 231)

A análise do desenvolvimento histórico-social das funções da Família, bem

como o seu impacto na vida dos indivíduos, aponta para as possibilidades tanto da

manutenção do papel do Pai, mesmo com o desaparecimento da base material para isso,

quanto para a realização da tarefa histórica de criar um mundo em que eles e os outros

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terão uma vida melhor (p. 233). As mediações, em cada caso, são a idealização da

autoridade paterna como se emanasse de um decreto divino (p. 231) e o surgimento de

um sentimento de comunidade que une essas pessoas com os seus semelhantes também

fora da família (p. 233), sendo a última uma força criativa. Na etapa presente,

A família é na época burguesa tão pouco uma unidade quanto, por exemplo, o homem ou a nação. (...) Em especial, ela se transforma de maneira decidida sob as influências do desenvolvimento industrial. (...) No entanto, quanto mais esta sociedade, em conseqüência de suas leis imanentes, se aproxima de um estado crítico, tanto menos a família pode fazer justiça a este respeito à sua tarefa. (...) daí resultante, de que o Estado se ocupe da educação para a autoridade em maior grau que antes e que ele pelo menos encurte o tempo de que dispunha tanto a família quanto também a igreja. (...) Enquanto que no apogeu do período burguês havia uma fecunda interação entre família e sociedade, no sentido de que a autoridade do pai era fundamentada pelo seu papel na sociedade renovada com o auxílio da educação patriarcal para autoridade, a família naturalmente imprescindível torna-se agora um problema de mera técnica governamental. (HORKHEIMER, 1990: 235-6)

A perspectiva da pesquisa X investe na possibilidade da existência de algumas

interseções e um número maior de tangenciamentos entre a história do magistério e a

história dos professores. Ler a superestimação da Família como interlocutor (a partir das

formulações de HORKHEIMER a respeito da família burguesa e a sua

refuncionalização no Capitalismo Tardio) pode lançar luzes sobre o lugar ocupado pela

Avaliação na escola atual. Os estudos sobre esse tema investem contra as funções de

legitimação cumpridas pela Avaliação. Em geral conta-se a história da introdução

progressiva de testes e medidas educacionais na escola, nessa, a sua gênese é

apresentada a partir do desenvolvimento de uma preocupação com a qualidade do

ensino que se massificava.

Ora, poucas vezes se associa a superestimação desses instrumentos com outro

fenômeno coetâneo: a femininização da profissão. A massificação da escola de primeira

letras, primeiro passo para a presente organização do ensino, acontece utilizando-se

mão-de-obra feminina. A figura do Pai/Sacerdote distribuidor dos conteúdos e portador

da palmatória (conferir o estudo de ADORNO, 1995) é progressivamente substituída

pela mulher purificada (NÓVOA, 1991 e LOPES, 1991). Talvez, a presença da Mãe

como interlocutora da Avaliação seja uma primeira evidência para que a Avaliação deva

ser investigada como uma reminiscência masculina numa estrutura em que, a despeito

de todas suspeitas de que era (e ainda é) objeto, a presença da mulher se tornou

imprescindível. O processo de auto-reflexão pode ser uma das formas em que esse

caráter masculino seja confirmado, primeiro passo da destituição de seu lugar como

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emanação de um decreto divino

Voltando à Tabela I, há ambigüidades em relação ao Aluno Atual. A sua citação

quatorze vezes o coloca em terceiro lugar na ordem de preocupação; em contraste com

as trinta vezes que sequer foi mencionado. Isso pode ser interpretado como a percepção

de que o professor que abandona os atuais processos de Avaliação da Aprendizagem

tem diversas preocupações, nenhuma com o seu Aluno. A total despreocupação com os

políticos revela tanto o interesse dos estudantes apenas com os atores imediatos do

cenário escolar, como é um monumento ao senso comum que estabelece que os

Políticos não se interessam pela educação.

A Tabela II foi elaborada a partir de duas condensações. A primeira por

categorias (Pai e Mãe, Família; Diretor e Equipe, Administração e assim por diante), a

segunda reúne os indicadores 1, 2 e 3 como significando Muita Preocupação; 3, 4 e 5

como Preocupação Média e 7, 8, 9 e Não Citado como Pouca Preocupação. Há uma

modificação na ordem em relação à Tabela I, os aspectos Administrativos emergem

como segundo item de obstáculo à ação livre do docente em relação aos processos de

Avaliação.

Tabela II – Indicadores de Preocupação por Categoria

PREOCUPAÇÃO MUITA MÉDIA POUCA

Família 119 45 31

Administração 81 42 56

Aluno 50 40 81

Colegas 31 77 87

A Administração da Escola pode ser interpretada como Autoridade. A figura do

Diretor/Diretora é a preocupação principal da maior parte dos estudantes que assumem a

Administração Escolar como obstáculo. Chamo atenção para o fato de que se fosse

criada uma categoria que incluísse tanto Administração como os Colegas professores,

ainda assim a Família continuaria como principal destinatário da Avaliação. Salta do

horizonte empírico a constatação de que o professor que assume uma posição autônoma

em relação à Avaliação apresenta pouca preocupação com os Alunos e com os demais

Colegas da Escola.

Analisar as formas como os conceitos de Família e Autoridade se articulam na

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transformação da Avaliação em tabu exige a mudança para o horizonte não-empírico da

pesquisa. Para isso recorro aos dois argumentos mais assustadores compartilhados pelos

estudantes que priorizam a Família e a Administração como principais preocupações.

Argumentos assustadores para os que tem maior preocupação com a Família

Projeção9 e Racionalização são as categorias-chave para a interpretação dos

argumentos contrários. Projeção é utilizada no seu sentido lato, os argumentos

atribuídos ao outro são os argumentos introjetados pelo sujeito. O campo de

interpretações dos motivos pelos quais os estudantes escolheram esses determinados

outros como destinatários da Projeção não foi objeto desse estudo. O interesse da

pesquisa foi obter acesso à “mentira hibridizada com verdade” (Racionalização)

relacionadas pelos estudantes.

Das trinta e sete respostas que colocavam ou a Mãe ou o Pai em primeiro lugar

vinte e seis apresentaram os seguintes argumentos atribuídos a esses:

A mãe do aluno questionaria a eficácia, pois sem prova, sem a obrigação do estudo o aluno se desmotivaria e não aprenderia aquilo essencial para se inserir num mercado de trabalho competitivo e globalizado.Se meu filho (a) não tiver prova e se os seus trabalhos não forem corrigidos “corretamente”, como saberemos que ele aprendeu?Se meu filho não fizer prova, vou procurar a SME para cobrar meus direitos. Como vou saber se meu filho aprendeu se não tem prova.Eu não tenho como acompanhar o desenvolvimento do meu filho, e você não está preparando ele para a vida e os concursos que precisará enfrentar para ter um bom emprego.Em primeiro lugar os pais poderiam alegar que seus filhos não aprenderiam os conteúdos, pois não seriam cobrados através das provas e sim com o cotidiano.Como eu, responsável, saberei como está o desenvolvimento de meu filho se hão tenho nenhuma nota real ao meu alcance?Como vou saber se meu filho realmente aprendeu, se ele não tem nota para justificar sua aprendizagem.Os pais criticando o professor pela ausência da avaliação com o próprio aluno, assim não haveria o eixo entre família e escola.Principalmente pais e mães de alunos que não acharão que o seu filho ou filha estarão preparados para o mercado de trabalho e concursos. Dirão que, somente provas e testes estimulam o crescimento intelectual do aluno, o famoso “aperta ou aperto”, que somente assim a criança consegue alguma coisa. Dirão que eu estou maluco, e que estou transformando o filho deles em, digamos, um vagabundo sonhador. O principal motivo é a ausência da prova, e dos trabalhos, pois os pais estão preocupados coma a nota do aluno, e não com o desenvolvimento do mesmo.

9 No sentido propriamente psicanalítico, operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro ¾ pessoa ou coisa ¾ qualidades, sentimentos, desejos e mesmos "objetos" que ele desconhece ou recusa nele. Trata-se aqui de uma defesa de origem muito arcaica que vamos encontrar em ação particularmente na paranóia, mas também em modos de pensar "normais", como a superstição. (LAPLANCHE & PONTALIS, 1995: 374)

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Um dos argumentos, mais assustadores, seria o argumento dos pais e mães dos alunos preocupados com a aprendizagem e com o novo método.Os pais não saberão o desempenho real do aluo dentro da sala de aula.Eu não admito esta mudança, pois se eu consegui obter a situação financeira que eu tenho hoje como o modelo antigo de avaliação, o meu filho também tem que “receber” o mesmo.Os pais dos alunos cobrarem do professor as notas do aluno, como uma demonstração da aprendizagem.Acredito que pais e mães de alunos serão os primeiros a reclamarem dessa proposta. Pois de início, eles querem ver a nota na qual a criança foi avaliada, percebendo se pode ou não mudar de série. Não levam muito em conta o desenvolvimento, mas sim se a criança está apta para a turma superior.Revolta dos pais, percebendo que é quase que impossível a conscientização e atualização dos alunos, já que “professor competente” para eles, são aqueles que reprovarão ou dão notas baixas.Mãe de aluno que reclamaria da falta de muito deveres de casa. Os alunos não estão fazendo nada na sala de aula.Os pais de alunos poderiam reclamar a falta dos instrumentos abolidos, como, provas e testes em comparação como outros estabelecimentos de ensino.Por pai de alunos e mães: ”Escola boa é aquela que reprova e para isto é preciso ter prova.Prá que eu pago a escola? Quero ver as “notas” do meu filho! Como saberei se ele está aprendendo ou não? Lá na escola do meu sobrinho, ele tira 10 e eu adoraria comentar isso como o Junior ficará se não tem nota?Pais e mães não estariam preparados, teriam dificuldade de compreender e aceitar que os filhos não seriam avaliados periodicamente e que isso não garantiria que estivessem preparados para a série seguinteMeu filho deste jeito nunca irá aprender. Sem dever de casa.Sem provas, aluno nenhum aprende, está professora não quer é trabalharPai de Aluno, porque cobra muito do professor, se aluno chega em casa e diz pros seus pais que a professora aboliu as provas, notas, teste, para eles essa escola não serve para seu filho.Os pais acharem que seu filho só será avaliado se houver prova escrita (tradicional)

A principal reflexão que esses argumentos propiciam é o lugar que a Avaliação

ocupa nas complexas relações que envolvem Pais, Estudantes, Escola, Professor e

Aprendizagem. Emergem tanto a situação escolar como sendo natural e obrigatória

quanto a desconfiança que as práticas escolares sejam reflexo imediato dessa natureza.

Para FREUD

As provas da psicanálise demonstram que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo ¾ casamento, amizade, as relações entre pais e filhos ¾ contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção em conseqüência da repressão. Isso se acha menos disfarçado nas altercações comuns entre sócios comerciais ou nos

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resmungos de um subordinado em relação ao superior. A mesma coisa acontece quando os homens se reúnem em unidades maiores. (...) (s.d.: 112) (grifos meus)

O complemento da naturalização (reificação) das relações humanas mediadas

pelo fenômeno Educação é a compreensão da Escola como sendo um lugar de uma

espécie de amor consensual em benefício de um futuro perfeitamente administrável.

Sem algo que funcione reduzindo as tensões das hostilidades e das aversões surgidas

nesse processo (crianças que se sentem “presas” por ter que ir à Escola; mães e pais que

não sabem se “depositaram” seus filhos em um lugar confiável; professores que

“suspeitam” das famílias de suas crianças etc.) a Escola poderia se tornar um espaço

insustentável.

Quando essa hostilidade se dirige contra pessoas que de outra maneira são amadas, descrevêmo-la como ambivalência de sentimentos e explicamos o fato (...) por meio das numerosas ocasiões para conflitos de interesse que surgem precisamente em tais relações mais próximas. Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. (...)Mas quando um grupo se forma, a totalidade dessa intolerância se desvanece (...) dentro do grupo. (...) os indivíduos do grupo comportam-se como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades de seus outros membros, igualam-se a eles e não sentem aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo, (...) só pode ser produzida por um determinado fator, um laço libidinal com outras pessoas. (FREUD, s.d.: 113)

Minha hipótese é que a Avaliação (que, a despeito de toda modernização

cultural-conteúdistica com que tem sido tratada pelos textos acadêmico-formativos nas

últimas décadas, continua sendo representada, ao menos por uma parte considerável dos

professores, por meio do binômio dever de casa-prova escrita) cumpre uma função

econômica na elaboração das tensões desse grupo artificial: a escola. Por isso é que

torna-se difícil para os atores do cenário a abandonarem. Ela age como um instrumento

seguro na sustentação da convivência escolar, ao deslocar os conflitos (no campo do

narcisismo10) da formação do grupo educacional, para um instrumento neutro,

inquestionável, racional. O conjunto de afirmações vinculando a Avaliação como

garantia de Aprendizagem me permite interpretá-la como estruturante das formas

escolares que são praticadas quotidianamente. É ponto de apoio de um tipo de

identificação que constitui os laços entre os membros do grupo:

(...) terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma pessoa que não é objeto de instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bem sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um novo laço.

10 A grande quantidade de preocupações com como é que ficarei em comparação com os outros (seja escola, professores, pais etc.) é um bom indicador do vinculo da Avaliação com o narcisismo.

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Já começamos a adivinhar que o laço mútuo existente (...) é da natureza de uma importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder. (FREUD, s.d.: 117)

A idéia de Avaliação compartilhada pelos professores parece substituir o Líder

na formação do grupo escolar. Assim, as intervenções dirigidas à mudança dos

conceitos e práticas em relação à Avaliação da Aprendizagem encontram essa

disposição estruturante como “filtro”. Isso significa que os estudantes de Pedagogia (e,

por extensão, boa parte do conjunto de professores em exercício) absorverão os

conteúdos que não ameaçarem essa posição e estão predispostos a rejeitar, ou aplicar a

contragosto, as alternativas que não ofereçam um substituto viável para ocupar o seu

lugar na economia dos conflitos atualmente administrados por ela.

Para encerrar esta secção considero necessário apresentar três comentários

adicionais. Primeiro, a Avaliação, a despeito de me parecer o principal, não é o único

instrumento socialmente desenvolvido na administração dos conflitos do grupo escolar.

Segundo, a Avaliação ocupa esse lugar principal exatamente porque coaduna com uma

formação econômico-social capitalista que investe radicalmente na formação de

indivíduos predispostos a assumir a competição como a única forma de relação humano-

social11. Terceiro, para a psicanálise, a suspensão do recalque se torna possível por meio

da fala. Isso significa que fazer os estudantes falar, elaborar, as suas experiências com

Avaliação talvez seja a forma mais efetiva de transformá-los em sujeitos dessa prática,

sem o que, o esclarecimento teórico-metodológico sobre o tema corre o risco de

permanecer ocioso.

Argumentos assustadores para os que tem maiorpreocupação com a Administração

Ao escolher como indicadores da categoria Administração o Diretor e a Equipe

Pedagógica o objetivo era perceber as diferenças de representação perante a forma de

autoridade, se individual ou coletiva. Dos vinte e um estudantes preocupados com a

Administração, doze colocaram o Diretor em primeiro lugar apresentando quatro

argumentos assustadores:

11 Uma via de investigação aberta por essa constatação, no campo do freudo-marxismo seria aplicar à Avaliação da Aprendizagem um estudo homólogo ao realizado por MARCUSE em Eros e Civilização (s.d.). Nessa obra, MARCUSE postula o conceito de mais-Repressão pela seguinte via: Marx parte da analise da capacidade humana de criar Valor como sendo o ponto de partida para a expropriação capitalista por meio da mais-Valia; FREUD (s.d.-b) postula a necessidade de Repressão de Pulsões Sexuais como sendo constitutiva da civilização (Kultur); a inferência de MARCUSE é que o capitalismo estabelece a mais-Repressão como um de seus viabilizadores estruturais. Talvez, na escola, a partir da necessidade estrutural de se conhecer o resultado dos processos de ensino (Avaliação), terminamos por realizar uma mais-Avaliação. Nos três casos (mais-Valia, mais-Repressão e mais-Avaliação) o que está em tela é a alienação.

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Todos os anos a nossa escola sempre agiu de uma maneira e nós somos bem conceituados no bairro. E agoira? Que base voce me apresenta para que eu permita a mudança?Ameaça de demissão.Direção: receio na perda dos alunos frente a nova proposta, falta de apoio ao professor, um recuo.Não seguir os programas que a escola impõe, eu mesmo definir o programa que eu quero seguir para a turma.A equipe pedagógica pode ir contra alegando que toda estrutura pedagógica da escola será atingida, pois pode ocorrer coisas do tipo: alunos que não são dessa turma, no caso meus alunos se sentirão injustiças por não terem o mesmo tipo de avaliação12.Podia surgir a acusação, de que a motivação para a não utilização dos instrumentos tradicionais seria por vaidade, pelo desejo de ser “diferente” apenas para chamar a atenção ou se colocar numa posição de superioridade. Outro argumento assustador, seria a crença de que os instrumentos habitualmente utilizados para avaliar os alunos, seriam os únicos capazes de efetivamente demonstrar o nível de aprendizado em que estes encontram-se.

Ao contrário dos que se preocupam primeiro com a Família os argumentos que

mais assustam não são proferidos pelo objeto de sua preocupação. Só quatro das

respostas remetem ao Diretor como foco de resistência e uma se dirige à Equipe

Pedagógica. As outras expressões13 de receio confirmam a interpretação que situa a

Avaliação como essencial ao funcionamento da Escola.

Uma maior quantidade de receio é dirigida à Equipe Pedagógica. Dos quinze

argumentos assustadores seis partiriam dela. Duas questões merecem maior destaque

nessas respostas: a contradição entre o fato da Administração estar em primeiro lugar na

ordem de preocupação e isso não se expressar nos argumentos assustadores (ao

contrário dos estudantes que apontaram a Família) e a preocupação maior com os

argumentos da Equipe do que com os da Direção (autoridade coletiva como mais

preocupante do que a individual).

A equipe pedagógica por estar estacionada no tradicionalismo e o novo, necessitará de preparo para aprimorar e aprender.Imposição de métodos de avaliação de equipe pedagógica, sem a consulta antecipada com os professores, perguntando se a forma como a qual está sendo avaliada os educando é adequadoA equipe pedagógica pode alegar uma desestruturação de toda escola, causando vários conflitos que prejudicariam o ano letivoA Equipe pedagógica – que poderiam comprometer o trabalho a ser realizado, de maneira a interferir na minha forma de avaliação, mostrando-se de forma despreparada a aceitar uma maneira diferente que a avaliação tradicional

12 Esse argumento, e o seguinte, foram relatados pelo seu conteúdo sui generis. 13 Aqui omitidas por questão de espaço.

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colocando obstáculos a realização do trabalhoComo ficará a situação desses alunos no próximo ano quando eles vão pegar outra professora que vai utilizar o método tradicional de avaliação?Utilização da LDB em benefício próprio.

A primeira vista, a Administração escolar, embora seja um dos interlocutores do

professor no que diz respeito à autonomia para estabelecer suas formas de avaliar, não é

o seu destinatário. O que implica suspeitar que não seja o “representante da lei” que

sustenta a necessidade de avaliar. Isso confirma a imagem de que a Avaliação é uma

tarefa tão imanente ao funcionamento da escola que prescinde de legislador externo para

garantir sua execução. Essa introjeção da Avaliação pelos professores me parece

insuperável por meio de argumentos técnico-racionais.

Embora a presente forma de avaliação seja fenômeno recente14, as

representações coletadas a coloca como prática milenar. Interpreto esse caráter

primitivo (de “coisa” muito antiga) atribuído à avaliação como decorrente das primeiras

experiências desses indivíduos na escola. Quanto mais variados forem os motivos pelos

quais cada um deles introjetou a avaliação dessa forma, maior é a possibilidade dessa

prática servir de ponto a partir do qual os professores se constituem, atualmente,

enquanto grupo escolar.

Só com o compartilhamento e a auto-elaboração desses motivos, de forma

coletiva, o tabu da Avaliação pode ser superado pelos indivíduos, em particular, e pelos

professores, em geral. Exatamente por isso é que as Equipes Pedagógicas se tornam

fonte de mais argumentos do que a Direção. Boa parte de seu trabalho consiste em falar

e ouvir. Conversam, mais do que a Direção, com os Professores, com os Estudantes e

com os Pais. Elas estão mais próximas da sala-de-aula. Os conflitos que surgem após a

aplicação do instrumento que deveria servir como modo prático de evitar conflitos, a

Avaliação, em geral encontram seu lugar de administração nas salas de

Coordenação/Orientação Pedagógica (em algumas escolas particulares incumbem-se da

fiscalização desse processo). Não estar em consonância com suas emanações é muito

mais arriscado para o Professor do que ofender quaisquer outros atores. A Equipe é a

trincheira avançada, principalmente quando o Professor decide avançar contra a

Família15.

Algumas sínteses e novos caminhos de investigação possíveis...

A análise das informações compartilhadas pelos estudantes no primeiro

14 Conferir, por exemplo, BARRIGA (1999) um dos textos aplicados a esses estudantes na Disciplina. 15 Um maior esclarecimento desse papel será apresentado em uma futura apresentação da análise do segundo instrumento dessa pesquisa.

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instrumento dessa pesquisa evidenciam que a Avaliação é um tabu entre os professores.

Devido ao espaço regimental para apresentação dessa comunicação foi necessário

deixar de lado boa parte dos argumentos levantados como sendo assustadores em

relação à tomada de decisão de abolir as formas tradicionais de Avaliação16. Adianto

que os argumentos deixados de lado não invertem as interpretações apresentadas. Ao

contrário, o seu teor geral, além de sustentá-las, deixa a nítida impressão de que esta é

uma decisão que pelo menos noventa dos participantes não tomariam por si

mesmos, como sugeria a situação-problema.

Embora as formas pessoais como cada indivíduo introjetou o tabu possam ser

variadas, aparentemente todos o fizeram a partir de experiências muito antigas em sua

vida escolar. Esse tabu age como elemento de identificação entre os professores,

ocupando o lugar do Líder de grupo. Para a Psicanálise os tabus (FREUD, s.d.-a) têm

sua origem na culpa em relação ao assassinato do Pai da Horda Primitiva. O estudo deve

avançar em direção a elucidar que Pai Simbólico é esse desaparecido no processo de

conformação da Escola nas Sociedades do Capitalismo Tardio. As intuições permitidas

até aqui sugerem que, do ponto de vista da história da Educação esse desaparecimento

pode estar ligado ao processo de femininização do magistério na virada do Séc. XIX

para o XX. A única pista deixada é a curso sincrônico do crescimento da importância da

Avaliação com a retirada progressiva dos homens da tarefa de ensinar crianças.

Do ponto de vista da história dos indivíduos professores só com a elaboração das

experiências primitivas de cada um, esse tabu pode deixar de fazer efeito e abrir

caminho para uma postura emancipada em relação à Avaliação. Talvez o acesso a esse

Pai, desaparecido na produção das formas escolares presentes, possa acontecer no

processo de auto-reflexão dessas experiências individuais, tendo em vista que a forte

presença da Mãe como interlocutora prioritária no campo dos que apresentam maior

preocupação com a Família confere um caráter potencialmente masculino à Avaliação.

Assim, um processo de educação do educador que vise livrá-lo desse tabu deve

investir na produção de falas a respeito dos significados e afetos que envolvem o ato de

avaliar e ser avaliado. Elaborado esse "filtro" os conteúdos racionais-científicos a

respeito da Avaliação poderão encontrar solo fértil para sua aplicação nas experiências

de vida e de trabalho dos professores. Em outras palavras, esse é um caminho que pode

permitir aos estudantes aprenderem como avaliar, que remete ao genérico e social, a

partir de resposta, das questões por que ser (fui) avaliado e por que avaliar,

16 Uma versão mais completa dessas informações está sendo preparada pelo grupo de pesquisa.

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particulares a cada um.

Quadro II

Referências Bibliográficas

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BARRIGA, A. D. Uma polêmica em relação ao exame. In ESTEBAM, M. T. Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 1999 (51-81)

FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do Ego. In FREUD, S. Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud. vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., s.d. (79-156)

FREUD, S. Totem e tabu. In FREUD, S. Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud. vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., s.d.-a (13-167)

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In FREUD, S. Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., s.d.-b (67-150)

HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica. In Os Pensadores, vol. XLVIII. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, 1975 (121-162)

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LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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Convido a você que participou do primeiro levantamento de dados sobre alternativas em Avaliação Escolar a contribuir mais uma vez. A situação agora é a seguinte:

O Secretário de Educação, o Diretor da escola ou qualquer outra autoridade responsável pela gestão de uma instituição à qual você está vinculado convoca para uma reunião onde a pauta é debater a implantação de Avaliação Continuada por meio de Blocos Únicos.

1 – Relacione, em ordem de importância, os argumentos que você utilizaria contra essa proposta (justifique).

2 – Relacione, em ordem de importância, os argumentos que você utilizaria a favor dessa proposta (justifique).

3 – Percebendo que, independente da sua posição, e da dos demais colegas professores, tal programa será

implantado de qualquer forma, apresente uma avaliação o mais completa possível a respeito do futuro dessas

crianças.

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