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    semeiosisSEMITICA E TRANSDISCIPLINARIDADE EM REVISTA

    TRANSDISCIPLINARYJOURNALOFSEMIOTICS

    SETEMBRO/ 2010

    Em torno da potica da pesquisa:

    semiosfera como epistemologia

    ROCHA, Reuben da Cunha; Mestrando do Programa de

    Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da ECA/USP.

    Editor executivo de semeiosis| [email protected]

    resumoCom a semiosfera os estudos de semitica da cultura xam em metfora conceitualsua vocao para investigar processos dinmicos de gerao de sentidos. Umacompreenso do objeto os textos da cultura que altera potencialmente oproceder da pesquisa, uma vez que se passa a enxergar nos produtos textuais

    os processos de signicao no seio dos quais est a prpria investigao. Apartir de alguns traos distintivos deste campo de conhecimento, este ensaio seprope a uma reviso de pressupostos epistemolgicos organizados em torno darelao entre pesquisador e fenmeno pesquisado, e de noes clssicas como asde objeto, mtodo e sujeito da pesquisa, repensadas a partir de um pensamentoassumido como potica e produo de sentidos.

    PALAVRAS-CHAVE:semiosfera; epistemologia; semitica da cultura

    abstract

    With the proposition of semiosphere, the Semiotics of Culture settles a conceptualmetaphor for its vocation to the investigation of the dynamic meaning-generation

    processes. Its comprehension of the object as a text of culture potentially

    modies the conduction of research, since it becomes necessary to observe not

    textual products, but the processes within texts, which include the investigation

    itself. Beginning with some of the elds distinctive marks, this essay proposes

    a revision of epistemological assumptions regarding the relation between the

    researcher and the researched phenomenon, and also of classic conceptions

    such as object, method and subject of research, re-proposed from the point of

    view of the research assumed as poetics and production of meaning.

    KEYWORDS:semiosphere; epistemology; semiotics of culture

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    Seria possvel pensar em uma epistemologia que, afastando-se da abstrao

    ou do modelo cientco, se aproximasse das caractersticas do objeto?

    Lucrcia DAlessio Ferrara

    No processo da comunicao dialgica com o objeto, este se transforma em sujeito.

    Mikhail Bakhtin

    O jogo elide sujeito e objeto.

    Waly Salomo

    a instabilidade, um princpioAplicar uma teoria a um objeto no o melhor modo de relacionar-se

    com ela caso o espao deste uso no sirva para alterar objeto, pesquisador ea prpria teoria na situao investigativa. Sendo assim nem se trataria maisde aplicao, mas da insero da teoria no seio de uma conversa em que sepriorizem os lances de complexidade do conhecimento, em que interesse mais odesejo do conhecer que o conhecido. Aplicar uma teoria no seno enrijec-la,despir do conceito o processo, domesticar o territrio das ideias pela tentativade torn-lo til, quer dizer, servil. Pois pesquisar propriamente experimentaralgo fora da jurisdio do que j foi dito, fora do que a teoria j circunscreveu,e a j no possvel submeter-se a nada que no seja rudo e risco.

    deste ponto de partida que se fala numa epistemologia, para alcanar

    uma potica: de rupturas incontornveis sugeridas pelo conceito de semiosfera para a fabricao de ideias e para a negociao com os fenmenos, em suma, parao modo de pesquisar na direo de um pensamento assumido como produode sentidos. No a decifrao de signicados pretensamente espera de algumdetetive de sinais cujo instrumental terico os desvele ou domine, mas umainvestigao assumida como signos gerados a partir de signos, jogo desenroladono mesmo territrio sobre o qual se debrua, ou seja, na linguagem.

    O conceito de semiosfera nasce da proposio duma inverso, a de no sero signo ou sua natureza o objeto da semitica, mas o prprio espao semitico,

    ele que precede e torna possvel a semiose, que pe signos, linguagens, textos,cdigos em contato. O continuumsemitico da cultura em que cabem e coexistemos signos em atividade numa poca: do ltimo romance do mais novo autorque projeta a literatura da prxima dcada ao manuscrito recm-descoberto norodap de uma pirmide que redenir o que se sabe sobre o Egito Antigo, dascores da estao s mudanas climticas, da descoberta de uma nova galxia de um alfabeto perdido, qualquer signo ou sistema reconhecvel (legvel,interpretvel) a uma cultura o apenas por integrar o espao semitico chamadosemiosfera.

    No parece haver uso em tratar essa ideia fora de certas implicaes

    cognitivas de longo alcance, a primeira pista sendo que, se os sentidos so

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    gerados nas relaes entre textos, nas redes que estabelecem, nos processosque desencadeiam e por meio dos quais so desencadeados, o espao dessas

    relaes abriga tambm a pesquisa que se empreende e que as investiga. Este o espao de uma teoria disposta a dialogar com o fragmento, o descontexto, orudo, o que no cabe, o que necessariamente sobra ao modelo explicativo natrajetria do pensamento de Lotman isto especialmente visvel no arco quevai da proposio do conceito at a ateno nal dada aos processos explosivose ao sonho da imprevisibilidade como objeto da pesquisa , e o primeiro atritoque preciso acolher (profcua, fecundamente) o de a semiosfera ser umconceito lanado sobre o objeto e relanado sobre o sujeito da pesquisa. Umainstabilidade fundamental, e um convite aventura.

    da semiosfera ao texto, do texto s linguagensA posio do espao semitico a de ser a prpria condio dedesenvolvimento da cultura e, inversamente, o resultado de sua complexidade,do processo histrico no m do qual os sistemas de signos se tornam capazes deautodescrio. A semiosfera menos um modelo descritivo do que uma espciede diagrama de funes e relaes hierrquicas, os textos convivem porosamenteno espao semitico e a dinmica de suas relaes possui mecanismos regularesde funcionamento (os uxos entre centros/periferias, o mecanismo bilngue dafronteira, a no-homogeneidade estrutural do espao semitico), mas sua regrageral o choque e a violao/recomposio de hierarquias entre linguagens(LOTMAN, 1996: 30). Textos se perdem de seus cdigos, rudos de comunicao

    produzem novidade de informao, mudanas de contexto alteram os modos deleitura dum texto, fragmentos de linguagem sobrevivem sem gramtica. Daque a topograa composta por estes espaos centros, periferias, fronteiras spossa ser a de uma dinmica em que os mecanismos semiticos de traduo/intraduzibilidade ponham textos em contato ativo, dialgico, responsivo.

    Isso como se sabe desloca perspectivas semiticas clssicas, como as queveem no signo uma unidade atmica em cuja natureza est a chave da decifraode signicados, ou as que a m de compreender o texto investem na descrioda hierarquia de suas funes internas. Pressupostos cuja consequncia que

    sistemas de signos sejam vistos como precedentes s formaes semiticasconcretas, ou que estas funcionem como exemplares dum ideal de estruturalidade,e em ambos os casos o fenmeno tomado como invlucro de algum contedo,quer o signicado, quer a estrutura.

    Mas no ato da leitura h o texto, a linguagem uma abstrao secundriaque no limite criada por ele prprio (e aqui penso especicamente no textoartstico, que trabalha no limite da expresso, do dizvel). A noo segundoa qual a posse prvia de chaves de leitura algo de fundamental pesquisapode ser posta na conta de uma precauo heursticaque ignora o fato de aconfeco das gramticas estar sempre no m do desenvolvimento da cultura

    (no estgio de sua autodescrio), no no incio, e acaba dizendo mais sobre o

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    campo investigativo que sobre os fenmenos. Precauo que esbarra exatamentenaquilo que mais caro investigao, as possibilidades e deslocamentos

    de critrios de anlise sugeridos pelos fenmenos. com os textos que nosdeparamos no espao vivo da signicao e os sentidos resultam sempre deum contato investigar a natureza do signo isolado diz muito pouco sobre seufuncionamento real, que anal o que importa semitica, o signo enquantosignica, isto a que se chama semiose.

    O texto no nem uma amostra exemplar das leis de funcionamentoda lngua nem um microcosmo autnomo e fechado em suas leis internasde funcionamento. algo composto na encruzilhada de diversos cdigos elinguagens (no de umcdigo, ou de umalinguagem) cuja estruturalidade inclui

    os uxos dinmicos que se movem entre texto e leitor, entre texto e outrostextos, ou entre textos e contextos diversos, uxos que so o prprio motor dosprocessos de signicao, fundador do espao de sentidos da cultura.

    A realidade dessas relaes a de que qualquer dado novo ativa sentidosque esto alm da mera decodicao duma mensagem, da decifrao daintencionalidade do que se quis dizer. Se h uma mensagem que se emite, elapassa por todo tipo de choques, conexes, atritos, rudos que lhe acrescentamsentido, que lhe enriquecem de maneiras imprevisveis aos pretensos emissorese receptores.

    Por isso Roland Barthes (2004) chamaria a ateno para a leitura quese faz erguendo os olhos, em que desviar-se do texto no rastro de associaes,reminiscncias, projees, no desaproveitar a leitura, mas poliniz-la: desviospor vezes vindos como que com o vento cujo contato fertiliza a ambos, ao textoe quilo a que ele remete, e os leva para alm de si. Deixar-se interromperpelo pensamento, por prazeres, leitura desrespeitosa (ela interrompe o texto,abandona-o, esquece-o) e ao mesmo tempo rica (ela responde ao texto,desenvolve-o), que participa da trama ampla da cultura como o prprio textoque l irreparavelmente aberto a outros cdigos e linguagens com que esbarree se ponha em fronteira.

    contra o mtodo, o sujeito e o objeto:pesquisar participar dos sentidos

    Assim o prprio funcionamento semitico da cultura, trama permissiva edialgica, tecido de muitos os desdobrado em novos os e texturas gerados pelaao dos signos. Pois o texto um dispositivo inteligente, mais do que o produtoda inteligncia de um autor. Promove encontros imprevistos que apontam parao imprevisvel, funciona como espao de relaes mais do que como depsitode mensagens. Dizer que contminformao no d conta de compreend-lonestes processos, no descreve mais do que uma de suas funes. Ele no stransmite algo que se quis depositar nele, tanto quanto no termina onde seu

    autor o pretendeu, no ponto nal. A linguagem capaz de auto-organizao, a

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    ao dos signos criadora e os mecanismos semiticos, dispositivos pensantes(LOTMAN, 2000). A cultura funciona como um crebro: armazena/transmite/

    cria informao atributos de uma inteligncia propriamente semitica, ou seja,inteligncia dos signos, libertada a noo de inteligncia da ladainha de nossoantropocentrismo.

    O exemplo de Lotman para a participao ativa dos textos na cognio o da traduo potica: traduzido um texto de um idioma a outro, a traduoreversa jamais equivaler ao original. Caso a linguagem dissesse respeito mera transmisso de contedos, caso a operao tradutria dependesse do quequer o tradutor, ela resultaria em textos coincidentes. Mas ocorre de o tradutorse debater o tempo todo com escolhas, com dilemas da intraduzibilidade (pois

    no h sinnimos: traduzir gerar interpretantes de um texto), com decises deforma que rearranjam sentidos e geram portanto nova informao.

    O mecanismo semitico visto assim se complica, exibe um elementode indeterminao que no cabe ser visto como indesejvel rudo no meiodo caminho do sentido, emboscada do entendimento , pois precisamente ocontrrio, aquilo que dene o texto. o olhar que se desloca, muda a imagem quese faz do objeto da pesquisa, no um artefato, mas teia de relaes exigindo umapostura de leitor no como a daquele que decifra algo, ou pior, desmascara, mascomo algum atento s possibilidades de sentido para as quais o texto aponta.Um leitor que trate com o texto, no que o disseque. O texto que se altera

    e amplica a cada relao que estabelece entra no espao da pesquisa comosujeito, conscincia autnoma no processo do conhecimento. Ele participa dosprocessos de signicao com personalidade, voz ativa tanto quanto a do leitorou autor. Preciso escut-lo.

    Pro pesquisador disposto conversa, o contato com o objeto perdequalquer carter de conversa encerrada, resolvida num ponto nal qualquer,para se aproximar da ideia de ato: cada leitura ativa conexes singulares, o quepor outro lado implica que no pode nunca pretender explicar o texto, caso issosignique uma exegese, uma decifrao, aquela espcie de revelao do que o

    texto quer dizer tpica de certo comportamento religioso. Como diz Bakhtin, omais produtivo que ambos, leitor e texto, saiam alterados da leitura.

    Tal conversa se d no prprio territrio dos signos, no sendo por outrarazo que Lotman se referiria s interpretaes como as variantesduma obra, omesmo a que Barthes chamaria oplural do texto. O que se espera da atividadeda pesquisa, assim, menos inquisio que participao, resposta semiticaaos signos. Ora, na semiosfera encontram-se desde os sinais dos satlitesat os versos dos poetas e os urros dos animais (a imagem de Lotman);considerar que a atividade da pesquisa esteja fora destas relaes alien-la,propor que sua linguagem possui uma pureza que no cabe na prpria denio

    de linguagem. No campo de estudos da semiosfera trata-se de compreender

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    processos relacionais produtores de linguagem (MACHADO, 2007), atividadede compreenso ela prpria relacional e sgnica a semiosfera se desdobra

    sobre o espao em que se realiza seu prprio estudo.

    Que signica isto? No mnimo um tiro no p duma pesquisa que se pretendaobservadora, distanciada, rigorosa na inteno de dominar objetos. Velhoparadigma de cienticidade que ainda faz a cabea de muitos pesquisadores,num exerccio de ilusionismo que ignora no s a historicidade da pesquisa,como sua poeticidade, a dimenso do seu fazer propriamente criadora. Porquefalar em produo de sentidos implica referir-se pesquisa como processodado na linguagem, proposio e jogo de interpretantes na cadeia semisicailimitada do pensamento, emprestando a expresso de Haroldo de Campos.

    Participardos sentidos do texto intervir no tecido da cultura, alter-lode dentro para dentro. Subverter a linguagem cientca no sentido barthesiano

    como no questionar a prpria linguagem que me serve para pesquisar alinguagem? ,propor pesquisa que ela se escreva, se critique e se contaminedo objeto. Se o que o texto oferece so lies de linguagem, como no seria apesquisa a primeira a aprend-las?

    pensar, deslocar, criar: breveantologia sobre a produo de sentidos

    Num ensaio conhecido, Kafka e seus precursores, Jorge Luis Borges

    exercita uma leitura reversa da histria literria, cujo ponto de partida identicar que ao longo dela h obras bastante heterogneas entre si aproximadasunicamente pela existncia dos textos de Kafka. Caso Kafka no tivesse escrito,diz Borges, jamais perceberamos as anidades secretas entre Han Yu, prosadorchins do sculo IX, alguns escritos de Kierkegaard e a poesia do ingls RobertBrowning, entre alguns outros. Isso porque no haveria anidade: ns adevemos a Kafka, pois cada escritor criaseus precursores, alterando com suaobra a leitura que fazemos do passado.

    Mas no Kafka quem aproxima retomando a lista de precursores

    o paradoxo de Zeno (onde estariam os primeiros personagens kafkianos daliteratura) de um conto de Lon Bloy, provvel que parte dos autores elencadospor Borges sequer estivesse no horizonte de leitura de Kafka. Reconhecemoso escritor onde Borges o aponta, e se queremos entramos com ele no jogo (euacrescentaria lista O crocodilo de Dostoivski), mas no h motivos paraacreditar que fosse assim a relao que o prprio Kafka estabelecia com atradio literria. Anal, investigar o que h de kafkiano na literatura anterior aKafka no seria possvel ao autor, j que s depois de sua obra ter sido realizada que pudemos conhecer o signicado de kafkiano.

    Este mapa de leitura preciso atribuir a Borges, e o que ele opera, muito

    sensivelmente, uma inverso total da ideia de inuncia, to recorrente

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    nos estudos literrios. H esta leitura mais ou menos padro, detetive desemelhanas, que investiga ecos de autores do passado no trabalho de autores

    do presente. Naquelas pginas Borges quer outra coisa. Trata com distinto traoa mesma questo, sem dar a menor bola para a linearidade fatal do cnone: opresente que lana luz sobre o passado, estabelece conexes inditas, manipulacriativamente a cronologia. Em suma, um poema de Browning profetiza a obrade Kafka, mas nossa leitura de Kafka ana e desvia sensivelmente nossa leiturado poema (p.130). Este desvio a prpria atividade crtica, que soma ao textolido toda uma histria pessoal de leitura. Atividade que Borges exercita at oestatuto de arte, como o caso quando o comentrio se torna to imprescindvelquanto o comentado. Se a partir de Kafka possvel a Borges a tese de que oescritor elege seus precursores, podemos pensar que somente a partir de Borges

    que os escritores podem experimentar conscientemente esta outra relao com atradio literria, feita de escolhas e conexes criativas mais do que de dbitosescolares.

    Os exemplos dessa antologia se multiplicam em atividades nem sempretidas como criadoras (para prejuzo delas prprias talvez), desde a epgrafe ou acitao, cujo contexto e chave de leitura j no esto no original, mas no textoque as apropria, at a atividade das Cincias Humanas, cuja realidade imediata o grande texto da cultura. Gilles Deleuze conceberia a histria da losoa comouma espcie de enrabada, fornecendo uma imagem corajosa ao descrever seuscomentrios (a Bergson, a Kant, a Hume) como lhos monstruosos feitos

    pelas costas dos lsofos. Filhos porque o autor precisava efetivamente ter ditotudo aquilo que eu lhe fazia dizer, e ainda assim monstruosos, porque erapreciso passar por toda espcie de descentramentos, deslizes, quebras, emissessecretas (1992: 14) em que residiria o carter nitidamente autoral daqueles textos.Deslocamentos de ideias esses lhos monstruosos, formas de dilatar sentidosque sintetizam o que a leitura (a pesquisa) pode chegar a ousar, a criao.

    risco, rudo, inveno: por uma potica da pesquisaAcreditar no carter dialgico da atividade da pesquisa, tanto quanto no do

    texto como mecanismo inteligente, encontra consequncia na abolio de quaisquer

    relaes de autoridade ou subordinao de um ao outro. O pesquisador o outrodotexto, os sentidos nascidos de seu contato so aquilo que excede de ambos.

    Enquanto se restringe aos domnios da explicao a pesquisa apenas dublaa voz do texto, repete o que ele j diz. certo que explicar atividade fundamental(no ensino, por exemplo), mas d conta apenas daquilo que pesquisador etexto tm de coincidente. O dilogo supe a diferena, e sua expectativa ade descentramento mtuo do texto se diz algo que o projeta para espaos desentido no previstos, e ao pesquisador se reserva a surpresa que acompanhaa leitura desapegada de certezas. Ele no subestima o texto e sabe que se noesperamos nada da palavra, se sabemos de antemo tudo o que ela pode dizer, ela

    sai do dilogo e se coisica (BAKHTIN, 2003). A potncia dessa pesquisa est

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    noutro lugar que no o da prtica que, a pretexto de rigor metodolgico, produzinndveis listas classicatrias, como jogos de encaixe em que o fenmeno se

    reconhea em categorias importadas de outros contextos investigativos.

    A anlise como reiterao de teorias no vivel no mbito de umaprtica conceitual que se pretende atenta ao movimento. Assumir o dinamismoda cultura e dos processos concernentes aos textos reivindica uma pesquisa quese esforce por similar dinmica, ou melhor, que se incluanessa dinmica. Umapesquisa que no esconda vontade predatria alguma atrs do libi do mtodo,este jargo herdado do positivismo (coisa que parecemos esquecer), e que noraro ainda serve paralisia e antecipao de todo susto.

    Ao vnculo semitico em que se d a produo de sentidos soma-se aquesto: como xar em texto o processo? Como expor na pgina a dinmica daideia, o pensamento que se desdobra e altera enquanto desdobra e altera o objeto?

    Pressupostos para a pesquisa que apontam, paradoxalmente, para umapesquisa nua de pressuposies. Porque suas estratgias se constroem noprprio tempo da leitura, elas integram o movimento, o trato do pesquisadorcom o texto, sem garantias prvias. uma exigncia do campo de estudos dasemiosfera que se entre nele com desconana da transposio de conceitos,teorias e conhecimentos cujas bases no estejam assentadas no movimentoda imprevisibilidade (MACHADO, 2007). D-se o caso de um territrio

    conceitual que organiza a pesquisa a partir de um modo prprio de conceber aatividade semitica no o objeto que se submete s expectativas do campo,mas o campo que a priorise desarma de tudo que no seja dvida, e permaneceaberto a exigncias investigativas que s surgiro no desenrolar da pesquisa.

    Uma epistemologia do saber semitico que no ignore sua realidadesgnica, processual e impura, como a de todo gesto que se faz na linguagem.Pois acreditar na escrita como instrumento do pensamento supor que huma neutralidade que lhe possvel discurso herdado do mito fundador daObjetividade, que talvez s possa responder a uma ingenuidade ou a uma m-f.

    Uma epistemologia no distante do que Flix Guattari (1990) imaginaao propor, noutro contexto, um paradigma esttico contra o fantasma dacienticidade. Para que o pesquisador no se faa nunca valer da autoridade deum grupo ou de um corpo conceitual consolidado, para que cada acontecimentode pesquisa tenha a potncia de reinventar o programa de ao da disciplina, deexpandi-lo, de inaugurar aberturas prospectivas, desinteressado de catecismose de jogos ganhos.

    Guattari tem em mente a disposio da arte moderna (seria necessrioacrescentar: de certa arte moderna, de certa noo de modernidade) para

    renovar sua matria expressiva e levar a um ponto extremo uma capacidade

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    de inveno de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades de serinditas (1992: 135). Assim como os procedimentos de composio de um texto

    artstico no possuem qualquer validade para alm dele, a pesquisa necessitarearticular suas bases a cada fenmeno, despir-se duma autoridade cannicarespaldada pela reiterao (que o argumento de toda autoridade) isto casono queira correr o risco de cristalizar conquistas em vcios de anlise e, pelocontrrio, esteja mais interessada no risco do afrontamento sem descanso (comodiria Deleuze) da inveno.

    Pois entender que se trata de pr a linguagem para trabalhar e no deobserv-la implica riscos, aos quais h sempre quem oponha um discurso deprudncia e responsabilidade. S que se trata de uma curiosa responsabilidade:

    ela no recai sobre o pesquisador e sim sobre a autoridade constituda dumcampo, duma metodologia, dum sistema. Ao contrrio, abrir mo das garantiasherdadas para sem deixar de dialogar com quaisquer conquistas de campoque forem relevantes aventurar-se a jogar o jogo proposto por cada fenmenoreserva no poucas implicaes tico-polticas ao pesquisador, porque quem falaem criao fala em responsabilidade da instncia criadora em relao coisacriada, em inexo de estado de coisas, em bifurcao para alm de esquemaspreestabelecidos (GUATTARI, 1992: 137).

    Esta pesquisa leva ao limite o que podem os signos, e se aproxima mesmo do texto artstico. Aqui remeto a Paul Zumthor (2007), que lembra haver

    uma natureza potica do encontro entre pesquisador e objeto e uma dimensocriadora, imaginativa e narrativa do texto que resulta da pesquisa, alm deque o acontecimento desse encontro e a linguagem que se debrua sobre elese ajustam reciprocamente numa relao de desejo (palavra to suspeita aosolhos da esttica de formulriode nossa produo textual universitria) quenecessita excluir o discurso que, pretendendo a transparncia, se esvazia detoda paixo, esmaga os frmitos da vida (p.100), cristaliza o olhar e disfaraem rigor metodolgico a falta de coragem.

    ainda um princpio, o imprevisvel

    enquantoprograma de ao, despido de resguardos, que o pensamentose poliniza e multiplica sobretudo se concordamos com Lotman quandodiz que a atroa das ideias tem incio quando o esforo dos que participamdela se concentra mais na conservao da pureza de seus princpios que emseu desenvolvimento (TOROP, 2003). Antdoto a isso a investigao que seremaneja a partir do acidente, retomando ainda o que diz Guattari, que desdobra,bifurca, multiplica seu projeto inicial em funo do imprevisto e refunda a cadavez a identidade do campo,pois se recusa a denir-se seno por seus critriosde indagao. Mais proposio de atritos (jamais esquecer a riqueza do rudo)que sntese, mais raridade que reiterao, produo sistemtica de dissenso como na arte, mais singularidade que verdade.

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    Resvala na imaginao crtica e na escritura a possibilidade de contestare quebrar, como deseja Barthes, a imagem teolgica imposta pela cincia,

    recusar o terror paterno espalhado pela verdade abusiva dos contedos e dosraciocnios, abrir para a pesquisa o espao completo da linguagem (2004: 10).No por acaso Barthes tambm chama a ateno para que apenas um deslocar-se incessante capaz de preservar qualquer discurso de ser tomado pelo poder

    ou tomado como poder, comentando em sua Aula Inaugural no Colgio deFrana algo que diz Pasolini, de que preciso ter coragem mesmo para abjuraraquilo que, nascido de nossa sinceridade, foi servilizado ou manipulado.

    o imprevisvel sonhado como objeto, como no sonho de Lotman,que introduz na pesquisa o elemento da arte. Um movimento dado na prpria

    linguagem, este deslocar-seque pode ser pensado nos termos da semiosferacomo um habitar permanente da fronteira, um ultrapassamento da distinohierrquica entre os atores da pesquisa em que metalinguagem e linguagem-objeto sejam tensionadas pela funo potica da escritura, e em que esta resultede fato de um comprometimento do pesquisador com o desconhecido.

    bibliografaBAKHTIN, Mikhail. Esttica da Criao Verbal. So Paulo: Martins Fontes,2003.

    BARTHES, Roland. Da cincia literatura. In: O rumor da lngua. So Paulo:

    Martins Fontes, 2004.

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    FERRARA, Lucrcia DAlessio. Epistemologia da comunicao: alm do sujeitoe aqum do objeto. In: Epistemologia da Comunicao. Maria ImmacolataVassallo de Lopes (org.). So Paulo: Loyola, 2003.

    GUATTARI, Flix. As trs ecologias. So Paulo: Papirus, 1990.

    _________. Caosmose. So Paulo: Ed. 34, 1992.

    LOTMAN, Iuri M. La Semiosfera I: Semitica de la cultura y del texto. Madrid:Ctedra, 1996.

    LOTMAN, Yuri M. Universe of the mind: A semiotic theory of culture. IndianaUP, 2000.

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    semeiosis

    como citar este ensaioROCHA, Reuben da Cunha. Em torno da potica da pesquisa: semiosfera comoepistemologia. Semeiosis: semitica e transdisciplinaridade em revista.Setembro de 2010. [suporte eletrnico] Disponvel em: ou Available from:. Acesso em dia/ms/ano.

    TOROP, Peeter. A Escola de Trtu como Escola. In: Machado, Irene. Escola deSemitica: A experincia de Trtu-Moscou para o estudo da cultura. So Paulo:

    Ateli/Fapesp, 2003

    ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo, leitura. So Paulo: Cosac Naify,2007.