RETÓRICA Chaim Perelman - Ética e Direito

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Livro de retórica

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  • ETICA E DIREITOChaim Perelman

    TraduoMARIA ERMANTINA GALVO G. PEREIRA

    tAarims FontesSo Paulo 1996

  • Esta obra fo i publicada originalmente em francs com o ttulo THIQUE ET DROIT

    por Editions de lUniversit de Bruxelles, em 1990 Copyright 1990 by Editions de YUniversit de Bruxelles

    Copyright Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, 1996, para a presente edio

    Ia ediojulho de 1996

    IVaduo Maria Ermantina Galvo G. Pereira

    Reviso da traduo Eduardo Brando

    Preparao do original Luzia Aparecida dos Santos

    Reviso grfica Andra Stahel M. da Silva

    Maria Cecilia de Moura Madars Maria de Ftima Cavallaro

    Ana Maria de Oliveira Mendes Barbosa Produo grfica

    Geraldo Alves Paginao

    Studio 3 Desenvolvimento Editorial Capa

    Katia H. Terasaka

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Perelman, Cham.tica e direito / Cham Perelman; traduo Maria Ermantina

    Galvo G. Pereira. - So Paulo : Martins Fontes, 1996.

    ISBN 85-336-0521-8

    1. Direito e tica 2. Direito - Filosofia 3. Direito - Metodologia 4. Justia I. Ttulo.

    96-2538 CDD-340.1

    ndices para catlogo sistemtico:1. Direito : Filosofia 340.1

    2. tica e direito 340.1

    Todos os direitos para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 So Paulo SP Brasil Telefone 239-3677

  • sndice

    Quadro de correspondncia.............................................. IXApresentao, de Alain Lempereur................................... XIII

    PRIMEIRA PARTE

    A TICA

    Captulo I - A justia ........................................................ 3

    1. Da justia................................................................ 31. Colocao do problema....................................... 32. A justia formal................................................... 143. As antinomias da justia e a eqidade............... 334. Igualdade e regularidade..................................... 415. Da arbitrariedade na justia................................. 516. Concluso............................................................. 66

    2. Os trs aspectos da justia..................................... 68 3. A regra de justia................................................... 85 4. O ideal de racionalidade e a regra de justia (se

    guido de uma discusso com Koyr, Guroult, Ri- coeur, Lacan,...)....................................................... 93

    5. Cinco aulas sobre a justia.................................... 1451. A justia e seus problemas.................................. 1462. A regra de justia e a eqidade.......................... 1563. Da justia das regras............................................ 168

  • 4. Justia e justificao............................................ 1815. Justia e razo...................................................... 194

    6. Justia e raciocnio................................................... 206 7. Igualdade e justia.................................................... 213 8. Liberdade, igualdade e interesse geral................... 219 9. Igualdade e interesse geral...................................... 227 10. As concepes concreta e abstrata da razo e da

    justia (A propsito de Theory o f Justice de JohnRawls)...................................................................... 236

    11. A justia reexaminada............................................ 247

    Captulo II - Consideraes m orais................................ 255

    12. Relaes tericas do pensamento e da ao......... 25513. Demonstrao, verificao, justificao............... 263 14. O raciocnio prtico................... .............................. 278 15. Juzo moral e princpios morais............................. 288 16. Cepticismo moral e filosofia moral........................ 29317. Direito e moral....................................................... 298 18. O direito e a moral ante a eutansia....................... 306 19. Direito, moral e religio.......................................... 312 20. Moral e livre exame................................................ 317 21. Autoridade, ideologia e violncia.......................... 328 22. Consideraes sobre a razo prtica...................... 33823. Desacordo e racionalidade das decises.............. 351

    SEGUNDA PARTE

    O DIREITO

    Captulo I - A racionalidade jurdica: para alm dodireito natural e do positivismo................ 361

    24. O que uma reflexo sobre o direito pode trazer aofilsofo...................................................................... 361

    25. O que o filsofo pode aprender com o estudo dodireito....................................................................... 372

    26. Direito positivo e direito natural............................ 386

  • 27. possvel fundamentar os direitos do homem?.... 392 28. A salvaguarda e o fundamento dos direitos humanos.... 400 29. Cincia do direito e jurisprudncia........................ 408 30. A propsito da idia de um sistema de direito...... 420 3 k O razovel e o desarrazoado em direito................. 427 32. Ontologia jurdica e fontes do direito.................... 437 33. A lei e o direito......................................................... 448 34. A reforma do ensino do direito e a nova retrica.... 458

    Captulo II - O raciocnio jurdico: uma lgica da argumentao ................................................ 469

    35. Lgica formal, lgica jurdica................................. 469 36. A teoria pura do direito e a argumentao............. 473 37. O raciocnio jurdico............................................... 480 38. Raciocnio jurdico e lgica jurdica...................... 490

    1 39. Que a lgica jurdica?............................................ 498 40. Direito, lgica e argumentao............................... 50541. Direito, lgica e epistemologia............................... 516 42. Consideraes sobre a lgica jurd ica................... 53243. Juzo, regras e lgica jurdica.................................. 542 44. Direito e retrica...................................................... 552

    Captulo III - Os lugares da argumentao ju rd ica .... 559

    45. A motivao das decises judiciais........................ 559 46. A distino do fato e do direito. O ponto de vista

    do lgico................................................................... 571* 47. A especificidade da prova jurdica.......................... 580

    48. A prova em direito.................................................... 591 49. Presunes e fices em direito.............................. 600 50. A propsito da regra de direito. Reflexes sobre

    mtodo...................................................................... 610 51. A interpretao jurdica........................................... 621 52. As antinomias em direito........................................ 632 53. O problema das lacunas em direito........................ 645 54. As noes com contedo varivel em direito........ 659 55. O uso e o abuso das noes confusas..................... 671

    I

    Notas 685

  • Quadro de correspondncia

    Convenes

    O pargrafo deste volume citado juntamente com o ano deprimeira publicao em forma de artigo, seguido da abreviao do nome da obra e das pginas nessa obra.

    Abreviaes

    JR: Justice et raison, Bruxelas, ditions de 1Universit deBruxelles, 1963.

    CA: Le Champ de VArgumentation, Bruxelas, ditions de 1Universit de Bruxelles, 1970.

    DMP: Droit, Morale et Philosophie, Paris, Librairie gnrale de Droit et de Jurisprudence, 1976.

    RD: Le Raisonnable et le Draisonnable en Droit. Au-del du Positivisme juridique, Paris, Librairie gnrale de Droit et de Jurisprudence, 1984.

    Parte I. A TICA

    Ca p t u l o I A justia

    1: (1945), JR, 10-80 2: (1957), JR, 155-174

  • X TICA E DIREITO

    3 (1960), JR, 224-233 4 (1960), CA, 287-336 5 (1966), DMP, 15-66 6 (1970), CA, 162-168 7 (1977), RD, 170-175 8 (1977), RD, 176-182 9 (1982), RD, 183-191 10 (1981), RD, 192-20211 (1984), RD, 164-169

    C a p t u l o II Consideraes morais

    12 (1958), JR, 175-183 13 (1968), CA, 193-206 14 (1968), CA, 183-19215 (1964), DMP, 87-9116 (1962), DMP, 83-8617 (1968), DMP, 185-19018 (1963), DMP, 179-18319 (1984), RD, 44-4820 (1984), DMP, 169-17721 (1969), CA, 207-21622 (1970), CA, 171-18223 (1966), DMP, 161-167

    Parte II. 0 DIREITO

    C a p t u l o I A racionalidade jurdica

    24 (1962), JR, 244-25525 (1976), DMP, 191-20226 (1976), RD, 20-2527 (1966), DMP, 67-7428 (1982), RD, 49-5529 (1970), CA, 150-161

    j

  • QUADRO DE CORRESPONDNCIA

    30 (1984), RD, 68-7431 (1978), RD, 11-1932 (1982), RD, 34-4333 (1982), RD, 26-3334

    (1975), RD, 75-84

    C a p t u l o II O raciocnio jurdico

    35 (1961), JR, 218-22336 (1964), DMP, 155-16037 (1965), DMP, 93-10038 (1966), CA, 123-13039 (1968), CA, 131-13840 (1968), CA, 139-14941 (1973), RD, 56-6742 (1976), RD, 91-10043 (1983), RD, 143-15144 (1984), RD, 85-90

    C a p t u l o III Os lugares da argumentao jurdica

    45 (1978), RD, 112-12346 (1961), DMP, 101-10847 (1959), JR, 206-21748 (1981), RD, 124-13149 (1974), DMP, 145-15450 (1971), DMP, 135-14451 (1972), RD, 101-11152 (1965), DMP, 109-11953 (1968), DMP, 121-13354 (1984), RD, 132-14255 (1978), RD, 152-163

  • Apresentao

    Chaim Perelman considerado um dos maiores filsofos do direito deste sculo. Sua originalidade se deve, em grande parte, vontade incessante de reabilitar a vida do direito e de tom-lo o fundamento de sua atividade. Aprazia-se ele em dizer que o direito deveria ser, para a nova filosofia, o que haviam sido as matemticas para a antiga, para a metafsica clssica. O direito, tal como praticado, o que nasce da controvrsia, no processo, e se cristaliza nas decises do juiz. Ao integrar esse empreendimento pragmtico no campo ampliado de seu estudo sobre a argumentao1, Perelman restabelece os vnculos com o gnero judicirio, que a antiga retrica valorizava; alm disso, enriquece-o com experincias tiradas da evoluo do direito.

    Comeada em 1945, sua obra de filosofia jurdica prossegue durante quarenta anos. Elabora-se em numerosas contribuies e artigos, que o prprio Perelman reedita em Justice et Raison (1963), Le Champ de LArgumentation (1970), Droit, Mor ale et Philosophie (1976) e Le Raisonnable et le Drai- sonnable en Droit (1984). As obras que nos servem de base para este volume so marcadas pelos mesmos temas: para reforar e aprimorar o edifcio, Perelman retoma incessantemente s questes da justia, dos valores, do razovel e importncia dos procedimentos argumentativos no raciocnio dos juizes. A meio caminho entre a obra de sntese, que apenas Perelman poderia ter escrito2, e a antologia, que no evita cer

  • XIV TICA E DIREITO

    tos textos anlogos3, pareceu-nos importante adotar essas grandes categorias que Perelman havia traado em seus diferentes livros e preservar tanto quanto o possvel a ordem cronolgica. O ttulo tica e direito faz referncia dupla preocupao perelmaniana de apoiar a filosofia moral com uma reflexo sobre o direito e de mostrar como o direito se ajusta realidade a partir dos valores morais. Essa complementaridade, esse movimento de vaivm ditou-nos as duas partes da obra.

    Na tica, o primeiro captulo consagrado Justia. Como abordar essa noo confusa e prestigiosa? Que papel atribuir igualdade? Tais perguntas, entre outras, constituem a interrogao inicial de Perelman depois da ltima guerra. Seus estudos mais recentes integram as respostas sugeridas perspectiva global da Nova Retrica, salientando a importncia de uma concepo no absolutista da justia, que se desenvolve a partir de uma argumentao racional, prudente, fundamentada no senso comum e no consenso.

    As consideraes morais se abrem para uma crtica da razo clssica exclusivamente preocupada com verdades imutveis. O discurso da ao e o raciocnio prtico se afastam dos procedimentos dedutivos e indutivos para privilegiar a justificao. Isso enseja a Perelman a ocasio de discutir as teses de Lvy-Bruhl, de distanciar-se do cepticismo moral e, ao mesmo tempo, de aconselhar abordar a moral pelo direito. O direito no , evidentemente, a moral; mas, na prtica, como no se reduz a um formalismo puro, ele pode ser de grande interesse para a razo prtica, at para a filosofia inteira. Nessa concepo da moral, no h regras irrefragveis, mandamentos divinos; os princpios morais so lugares-comuns, em concorrncia uns com os outros. Em suma, Perelman pe em relevo o exame que se deve renovar para cada situao particular: sempre que esperada uma escolha moral, cumpre apresentar razes com autoridade suficientemente persuasiva'para serem admitidas pelo auditrio universal.

    Na segunda parte, relativa ao Direito, somos confrontados a todo instante com o combate travado por Perelman contra as vises tradicionais da razo jurdica. Essas vises contesta

  • APRESENTAO XV

    das que crem, todas elas, na existncia de um ideo-direito - transcendente ou positivo - , projetam uma metafsica monsti- ca, que Perelman igualmente tem em linha de mira. Ele luta a um s tempo contra os partidrios do direito natural e contra os do juspositivismo.

    ' A nova racionalidade jurdica almeja romper com as iluses de uns e de outros. A rejeio do direito natural pode parecer menos ntida na aparncia, na medida em que Perelman, desejando um direito construdo sobre os valores, adota os princpios gerais do direito, assim como os direitos do homem. Mas Perelman os concebe no interior do sistema positivo; procede a uma secularizao, a uma integrao imanente do que dependia antes de uma fonte transcendente. Fundamentar os direitos do homem no absoluto no tem sentido para ele, porque existe realmente um acordo dos homens na sociedade sobre a necessidade deles. Se h dificuldade quanto sua hierarquia e sua respectiva definio, compete a cada homem, individualmente, resolv-la desenvolvendo a argumentao apropriada. No lado oposto, na vertente positivista, Perelman constata a impossibilidade, para a cincia, de explicar o direito e suas decises. As sentenas e os arestos no redundam em proposies verdadeiras tiradas de um silogismo, mas em respostas mais aceitveis e adaptadas, integradas numa argumentao. Se h sistema e cincia do direito, eles no podem esbo- ar-se fora da controvrsia permanente.

    Portanto, o direito no o lugar do irracional nem o do racionalismo tal como conhecido em cincia. O meio-termo proposto pela Nova Retrica o razovel e seu contraste, mais bem identificvel por seus efeitos sociais, o dezarrazoa- do. O filsofo de Bruxelas pleiteia, assim, que se leve em conta a atividade do direito, feita de debates, de trocas de argumentos e de questionamentos das ontologias assentes no real. O realismo radical de Perelman tem condies de explicar a evoluo no direito: suscitada por uma dialtica equilibrada entre formalismo e pragmatismo, entre legislador e juiz. Para encontrar a soluo mais adequada, o estatismo do prescrito legal adaptado pelo dinamismo da deciso judiciria.

  • XVI TICA E DIREITO

    No captulo sobre o raciocnio jurdico, reunimos o conjunto dos textos onde Perelman justifica a existncia de uma lgica especfica ao direito. Ele nota a distncia que separa os raciocnios matematizados aperfeioados pela lgica formal e os raciocnios jurdicos habituais descritos pela argumentao. Nem as estruturas dedutivas oriundas de um modelo kelsenia- no de direito puro, nem as frmulas denticas conseguem explicar a linguagem real do direito nem a tomada de deciso. Ao contrrio, a lgica jurdica, tal como compreendida por Perelman, a adotada pelos juizes na motivao de suas decises e a que permite levar um litgio a seu termo mediante a exposio de razes aceitveis. Essa lgica da argumentao, ou retrica, se insere num contexto sociojurdico, que contm certas coeres processuais e na qual o juiz j no simplesmente a boca da lei.

    O ltimo captulo, consagrado aos lugares da argumentao jurdica, examina as mltiplas ocasies de debate em direito. Pode-se falar de um espao onde se articula um conjunto de questes que sero resolvidas no processo... A argumentao desenvolvida quando falta ou contestada a evidncia sobre os fatos ou sobre o direito. Para abordar o assunto de modo inteiramente concreto, Perelman contou com o auxlio de numerosos tericos e prticos, pertencentes aos diferentes ramos do direito. O Centro Nacional Belga de Pesquisa Lgica era intimamente associado a esses trabalhos. Foi assim que Perelman pde situar os limites da verdade material no discurso judicirio, atravs dos estudos sobre a prova, sobre as presunes e as fices. Essa flexibilidade, da qual pode beneficiar-se a argumentao do juiz na apreciao soberana dos fatos, encontra-se tambm na evidenciao da lei que dever ser aplicada num caso especfico. As diferentes pesquisas sobre as leis, refiram- se elas interpretao, s lacunas ou s antinomias, levam-nos concluso de que as normas no so tambm proposies verdadeiras ou falsas, que se imporiam como axiomas matemticos; so diretrizes. A lei invocada serve para relacionar a soluo racional ao direito em vigor. Os fatos, as leis e mesmo os conceitos em direito, que so em geral maleveis ou de con

  • APRESENTAO XVII

    tedo varivel, se curvam ante a argumentao. Quando h uso correto ou abuso? Na resposta a esta pergunta, Perelman abandona totalmente a ambio positivista de definir ou de dar um critrio seguro.

    Perelman chega quase a reconhecer a problematicidade incontomvel do direito, a mesma que ns, de nossa parte, nos esforamos em pr em evidncia numa problematologia do direito e que permite encarar o direito como resoluo de problemas.

    Alain Lempereur

  • Captulo IA justia

    1. Da justia1

    1. Colocao do problema

    O presente estudo tem por objeto a anlise da noo de justia. Ele no se prope, de modo algum, a apelar generosidade inata do leitor, ao seu bom corao, parte nobre de sua alma, para lev-lo, de modo direito ou dissimulado, a conceber um ideal de justia que se deva venerar mais do que todos.

    No se deseja em absoluto convenc-lo de que determinada concepo da justia a nica boa, a nica que corresponde ao ideal de justia perseguido pelo corao dos homens, sendo todas as outras apenas embustes, representaes insuficientes que fornecem da justia uma imagem falsa e se servem de uma justia aparente que abusa da palavra justia para fazer que se admitam concepes real e profundamente injustas. No, este estudo no pretende apelar para os bons sentimentos do pblico; no quer nem elevar, nem moralizar, nem indicar ao leitor os valores que do vida todo o seu valor.

    Esta advertncia parece constituir um prembulo, se no indispensvel, pelo menos extremamente til. Com efeito, todas as vezes que se trata de uma palavra com ressonncia emotiva, de uma dessas palavras que se escrevem com maiscula para mostrar bem claramente todo o respeito que se tem por elas, trate-se da Justia, da Virtude, da Liberdade, do Bem, do

  • 4 TICA E DIREITO

    Belo, do Dever, etc., mister ficar alerta. Com demasiada freqncia, nosso interlocutor, conhecendo o apreo que temos pelos valores que essas palavras designam, procurar fazer-nos admitir a definio que ele nos apresenta como a nica verdadeira, a nica adequada, a nica admissvel, da noo discutida. s vezes, ele se empenhar em nos levar diretamente a aquiescer ao seu raciocnio, o mais das vezes usar de longos rodeios para nos conduzir ao objetivo que se prope atingir.

    Na realidade, uma mente no prevenida no d a importncia devida escolha de uma definio. Crendo ter cedido acerca do sentido de uma palavra, abandona, sem se dar conta, todo o mbil do debate. E tal desventura lhe acontecer tanto mais facilmente quanto mais esprito matemtico tiver, acostumado s dedues slidas a partir de definies arbitrrias.

    um grave erro crer que todas as definies so completamente arbitrrias. Se os lgicos admitem a natureza arbitrria das definies, porque elas no constituem, para eles, seno uma operao que permite substituir um grupo de smbolos conhecidos por um smbolo novo, mais curto e de manejo mais fcil do que o grupo de signos que o define. O nico sentido desse novo smbolo, perfeitamente arbitrrio, o conjunto de signos que lhe serve de definio. No tem ele outro sentido, e atribuir-lhe outro cometer o erro de lgica clssica conhecido pelo nome de definio dupla. Chega-se, de fato, aos piores sofismas ao servir-se de uma noo em dois sentidos diferentes, sem provar que eles coincidem. Ora, chega-se normalmente a um sofisma cada vez que se define uma noo com maiscula: o erro de lgica assim cometido imperceptvel para todos aqueles que se contentam em seus raciocnios com o esprito matemtico. Com efeito, essa falta no consiste numa definio dupla explcita e facilmente detectvel, mas no acoplamento definio que se quer fazer admitir do termo prestigioso (Justia, Liberdade, Bem, Virtude, Realidade) do sentido emotivo desse termo, que faz que se confira um valor ao que definido como sendo a justia, a liberdade, etc.2

    Todas as vezes que se trata de definir uma noo, que no constitui um signo novo, mas preexiste na linguagem, com

  • A TICA 5

    todo o seu sentido emotivo, com todo o prestgio que a ela vinculado, no se pratica um ato arbitrrio, logicamente indiferente. No , em absoluto, indiferente que se defina a justia, o bem, a virtude, a realidade, deste ou daquele modo, pois com isso se determina o sentido conferido a valores reconhecidos, acitos, a instrumentos muito teis na ao, que constituem verdadeiras foras sociais3. Admitir uma definio de uma noo assim , longe de praticaram ato indiferente, dizer o que estimamos e o que desprezamos, determinar o sentido de nossa ao, prender-se a uma escala de valores que nos permitir guiar-nos em nossa existncia.

    Toda definio de uma noo fortemente colorida do ponto de vista afetivo transporta essa colorao afetiva para o sentido conceituai que se decide atribuir-lhe. Ao considerar toda definio como a afirmao de um juzo analtico, que pode ser estabelecido de forma arbitrria, despreza-se essa transferncia da emoo do termo que se define para o sentido conceituai que lhe serve de definio. Todas as vezes que tal transferncia se opera, a definio no analtica nem arbitrria pois, por seu intermdio, afirma-se um juzo sinttico, a existncia de um vnculo que une um conceito a uma emoo.

    Da resulta que uma definio s analtica, portanto arbitrria, na medida em que nenhum sentido emotivo vinculado ao termo definido.

    As disciplinas filosficas se distinguem das disciplinas cientficas essencialmente pelo grau de emotividade vinculado s suas noes fundamentais. As cincias se separaram da filosofia na medida em que, pelo uso dos mtodos precisos, experimentais ou analticos, lograram pr o relevo e obter o acordo das mentes menos sobre o sentido emotivo das palavras do que sobre o seu sentido conceituai. Quanto mais consistncia adquire o sentido conceituai das palavras em todas as mentes, menos se discute sobre o sentido dessas palavras, mais se esfu- ma sua colorao emotiva4. Quando h mais vantagem em chegar a um acordo sobre o sentido conceituai de um termo do que em preconizar definies diferentes, o sentido emotivo desse termo se apaga e passa para o segundo plano. Foi isso que

  • 6 TICA E DIREITO

    aconteceu com as noes bsicas das cincias experimentais e matemticas.

    Se as cincias, chamadas sociais, o que os alemes chamam as cincias do esprito, Geisteswissenschaften, s muito dificilmente logram constituir-se, sobretudo porque a colorao afetiva de suas noes bsicas to forte que um acordo sobre o sentido conceituai se forma apenas numa fra- qussima medida. Com maior razo essas mesmas consideraes se aplicam filosofia. Isso porque o objeto prprio da filosofia o estudo dessas noes prestigiosas, fortemente coloridas no ponto de vista emotivo, constitudas pelos mais elevados valores, de sorte que o acordo sobre o sentido conceituai delas quase irrealizvel. Pois essas noes, por causa de seu sentido emotivo bem caracterizado, constituem o campo de batalha de nosso mundo espiritual. Foi por elas, pelo sentido conceituai que se lhes conceder, que sempre se travaram os combates do mundo filosfico.

    Quando se trata de definir esses termos carregados de sentido emotivo que surgem as discusses sobre o verdadeiro sentido das palavras. Ora, semelhantes discusses seriam absurdas se toda definio fosse arbitrria. Se, porm, concorda-se em reconhecer-lhes certo significado porque sua concluso determina um acordo sobre valores. ao querer fazer que admitam sua definio pessoal dessas noes prestigiosas que a pessoa procura impor sua concepo do mundo, sua prpria determinao do que vale e do que no vale. Cada qual definir, portanto, essas noes sua maneira, o que lhes acarretar a irremedivel confuso.

    Pode-se tirar da a concluso, que poderia parecer irreverente, de que o objeto prprio da filosofia o estudo sistemtico das noes confusas. Com efeito, quanto mais uma noo simboliza um valor, quanto mais numerosos so os sentidos conceituais que tentam defini-la, mais confusa ela parece. A tal ponto que nos perguntamos s vezes, e no sem razo, se o sentido emotivo no o nico que define essas noes prestigiosas e se no temos de resignar-nos, de uma vez por todas, confuso que se prende ao sentido conceituai delas.

  • A TICA 7

    Tentando estabelecer o acordo das mentes sobre o sentido conceituai de uma noo assim, seremos inevitavelmente levados a diminuir-lhe o papel afetivo: apenas a esse preo que se conseguir resolver o problema, se que se conseguir isso um dia. Ao mesmo tempo, a noo deixar de ser filosfica e admitir uma anlise cientfica, desprovida de paixo, mas dando mais satisfao ao lgico. Com isso, estender-se- o campo da cincia, sem restringir, todavia, o da filosofia. Como se ver, pelo exemplo do presente estudo, a colorao emotiva, retirada de uma noo tomada mais cientfica, vir prender-se a outra noo que enriquecer o campo das controvrsias filosficas. Isentando uma noo de qualquer colorao emotiva, transfere- se a emotividade para outra noo, complementar da primeira. Assim que o esforo do pensamento filosfico, que abre cincia um novo domnio do saber, lembra o dos engenheiros holandeses que, para proporcionar ao lavrador mais uma nesga de terra, recuam as guas do mar, sem as fazer desaparecer. ...

    Uma anlise lgica da noo de justia parece constituir uma verdadeira aposta. Isso porque, dentre todas as noes prestigiosas, a de justia parece uma das mais eminentes e a mais irremediavelmente confusa.

    A justia considerada por muitos a principal virtude, a fonte de todas as outras.

    O pensamento e a terminologia, diz E. Duprel5, desde sempre incitaram a confundir com o valor da justia o da moralidade inteira. A literatura moral e religiosa reconhece no justo o homem integralmente honesto e benfazejo; a justia o nome comum de todas as formas de mrito, e os clssicos expressariam sua idia fundamental dizendo que a cincia moral no tem outro objeto seno ensinar o que justo fazer e ao que justo renunciar. Ela diria tambm que a razo deve ensinar-nos a distino entre o justo e o injusto, em que consiste toda a cincia do bem e do mal. Assim, a justia que, de um lado, uma virtude entre as outras, envolve, do outro, toda a moralidade.

    E tomada neste ltimo sentido que a justia contrabalana todos os outros valores. Pereat mundus,fiat justitia.

  • 8 TICA E DIREITO

    Para Proudhon, a justia, sob diversos nomes, governa o mundo, natureza e humanidade, cincia e conscincia, lgica e moral, economia poltica, poltica, histria, literatura e arte. A justia o que h de mais primitivo na alma humana, de mais fundamental na sociedade, de mais sagrado entre as noes e o que as massas reclamam hoje com mais ardor. a essncia das religies, ao mesmo tempo que a forma da razo, o objeto secreto da f, e o comeo, o meio e o fim do saber. Que imaginar de mais universal, de mais forte, de mais perfeito do que a justia6?

    sempre til e importante poder qualificar de justas as concepes sociais que se preconizam. Todas as revolues, todas as guerras, todas as revoltas sempre se fizeram em nome da Justia. E o extraordinrio que sejam tanto os partidrios de uma ordem nova como os defensores da ordem antiga que clamam com seus votos pelo reinado da Justia. E, quando uma voz neutra proclama a necessidade de uma paz justa, todos os beligerantes ficam de acordo e afirmam que essa paz justa s ser realizada quando o adversrio for aniquilado.

    Note-se que pode no haver nenhuma m-f nessas afirmaes contraditrias. Cada um dos antagonistas pode estar sendo sincero e acreditar que sua causa a nica justa. E ningum se engana, pois cada qual fala de uma justia diferente.

    Como uma noo moral, escreve E. Duprel7, no corresponde nem a uma coisa que basta observar para verificar o que dela se afirma, nem a uma demonstrao qual basta render-se, mas realmente a uma conveno para defini-la de uma certa maneira, quando um adversrio tomou a ofensiva pondo de seu lado as aparncias da Justia, a outra parte ficar inclinada a dar da justia uma definio tal que sua causa se mostre conforme a ela.

    Cada qual defender uma concepo da justia que lhe d razo e deixa o adversrio em m posio.

    E se nos dissermos que faz milhares de anos que todos os antagonistas, nos conflitos pblicos e privados, nas guerras, nas revolues, nos processos, nas brigas de interesses, declaram sempre e se empenham em provar que a justia est do seu lado, que se invoca a justia todas as vezes que se recorre a um

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    rbitro, perceberemos imediatamente a incrvel multiplicidade dos sentidos que se atribuem a essa noo, e a confuso extraordinria que provocada por seu uso.

    ilusrio querer enumerar todos os sentidos possveis da noo de justia. Vamos dar, porm, alguns exemplos deles, que constituem as concepes mais correntes da justia, cujo carter inconcilivel veremos imediatamente:

    1. A cada qual a mesma coisa.2. A cada qual segundo seus mritos. ,3. A cada qual segundo suas obras.4. A cada qual segundo suas necessidades.5. A cada qual segundo sua posio.6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.Precisemos o sentido de cada uma dessas concepes.

    Ia A cada qual a mesma coisa.Segundo essa concepo, todos os seres considerados de

    vem ser tratados da mesma forma, sem levar em conta nenhuma das particularidades que os distinguem. Seja-se jovem ou velho, doente ou saudvel, rico ou pobre, virtuoso ou criminoso, nobre ou rstico, branco ou negro, culpado ou inocente, justo que todos sejam tratados da mesma forma, sem discriminao alguma, sem discernimento algum. No imaginrio popular, o ser perfeitamente justo a morte que vem atingir todos os homens, sem levar em considerao nenhum de seus privilgios.

    2a A cada qual segundo seus mritos.Eis uma concepo da justia que j no exige a igualdade

    de todos, mas um tratamento proporcional a uma qualidade intrnseca, ao mrito da pessoa humana. Como definir esse mrito? Qual medida comum encontrar entre os mritos e demritos de diferentes seres? Haver, em geral, semelhante medida comum? Quais sero os critrios que se devem levar em conta para a determinao desse mrito? Cumprir levar em conta o resultado da ao, a inteno, o sacrifcio realizado, e em que medida? Habitualmente, no s no respondemos a todas essas perguntas, mas nem sequer as formulamos. Se estamos embaraados, dize-

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    mo-nos que ser depois da morte que os seres sero tratados segundo seus mritos, que se determinar, com a ajuda de uma balana, seu peso de mrito e de demrito e que cTresltado dessa pesagem indicar, por assim dizer automaticamente, a sorte que lhes ser reservada. A vida do alm, o paraso e o inferno, constituem a justa recompensa ou o justo castigo da vida terrestre. Apenas o valor moral intrnseco do indivduo ser o critrio do juiz, cego a todas as outras consideraes.

    3a A cada qual segundo suas obras.Essa concepo da justia tampouco requer um tratamen

    to igual, mas um tratamento proporcional. S que o critrio j no moral, pois j no leva em conta a inteno, nem os sacrifcios realizados, mas unicamente o resultado da ao.

    O critrio, ao abandonar as exigncias relativas ao agente, satisfaz-nos menos do ponto de vista moral, mas se toma de uma aplicao infinitamente mais fcil e, em vez de constituir um ideal quase irrealizvel, essa frmula da justia permite s levar em conta, o mais das vezes, elementos sujeitos ao clculo, ao peso ou medida. E nessa concepo, que alis admite muitas variantes, que se inspira o pagamento do salrio dos operrios, por hora ou por pea, que se inspiram os exames e os concursos em que, sem se preocupar com o esforo fornecido, levam-se em conta apenas o resultado, resposta do candidato, o trabalho que apresentou.

    4A cada qual segundo suas necessidades.Essa frmula da justia, em vez de levar em conta mritos

    do homem ou de sua produo, tenta sobretudo diminuir os sofrimentos que resultam da impossibilidade em que ele se encontra de satisfazer suas necessidades essenciais. E nisso que essa frmula da justia se aproxima mais de nossa concepo de caridade.

    bvio que, para ser socialmente aplicvel, essa frmula deve basear-se em critrios formais das necessidades de cada qual, pois as divergncias entre tais critrios ocasionam diversas variantes dessa frmula. Assim, levar-se- em conta um

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    mnimo vital que cumprir assegurar a cada homem, seus encargos familiares, sua sade mais ou menos precria, os cuidados requeridos por sua pouca idade ou por sua velhice, etc. Foi essa frmula da justia que, impondo-se cada vez mais na legislao social contempornea, ps em xeque a economia liberal em que o trabalho, assimilado a uma mercadoria, estava sujeito s flutuaes resultantes da lei da oferta e da procura. A proteo do trabalho e do trabalhador, todas as leis sobre o salrio mnimo, a limitao das horas de trabalho, o seguro- desemprego, doena e velhice, o salrio-famlia, etc., inspiram- se no desejo de assegurar a cada ser humano a possibilidade de satisfazer suas necessidades mais essenciais.

    52 A cada qual segundo sua posio.Eis uma frmula aristocrtica da justia. Consiste ela em

    tratar os seres no conforme critrios intrnsecos ao indivduo, mas conforme pertena a uma ou outra determinada categoria de seres. Quod licet Jovi non licet bovi, diz um velho adgio latino. As mesmas regras de justia no se aplicam a seres pertencentes a categorias por demais diferentes. Assim que a frmula a cada qual segundo sua posio difere das outras frmulas da justia no fato de ela, em vez de ser universalista, repartir os homens em categorias diversas que sero tratadas de forma diferente.

    Na Antiguidade reservava-se um tratamento diferente aos indgenas e aos estrangeiros, aos homens livres e aos escravos; no incio da Idade Mdia, trataram-se diferentemente os senhores francos e os autctones galo-romanos; mais tarde, distin- guiram-se os nobres, os burgueses, os clrigos e os servos ligados gleba.

    Atualmente, trata-se de forma diferente, nas colnias, os brancos e os negros; no exrcito h regulamentos diferentes para os oficiais, os suboficiais e os soldados. Conhecem-se distines baseadas nos critrios de raa, de religio, de fortuna, etc., etc. O carter que serve de critrio de natureza social e, a maior parte do tempo, hereditrio, portanto independente da vontade do indivduo.

  • 12 TICA E DIREITO

    Se consideramos essa frmula da justia aristocrtica porque sempre preconizada e energicamente defendida pelos beneficirios dessa concepo, que exigem ou impem um tratamento deferente para as categorias de seres por eles apresentadas como superiores. E tal reivindicao habitualmente apoiada pela fora conferida quer pelas armas, quer pelo fato de ser uma maioria defrontada com uma minoria sem defesa.

    6a A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.Esta frmula a parfrase do clebre cuique suum dos

    romanos. Se ser justo atribuir a cada qual o que lhe cabe, cumpre, para evitar um crculo vicioso, poder determinar o que cabe a cada homem. Se atribumos expresso o que cabe a cada homem um sentido jurdico, chegamos concluso de que ser justo conceder a cada ser o que a lei lhe atribui.

    Esta concepo nos permite dizer que um juiz justo, ou seja, ntegro, quando aplica s mesmas situaes as mesmas leis (in paribus causis paria jura). Ser justo aplicar as leis do pas. Tal concepo da justia, contrariamente a todas as precedentes, no se arvora em juiz do direito positivo, mas se contenta em aplic-lo.

    E evidente que essa frmula admite em sua aplicao tantas variantes quantas legislaes diferentes houver. Cada sistema de direito admite uma justia relativa a esse direito. O que pode ser justo numa legislao, pode no o ser numa legislao diferente: com efeito, ser justo aplicar, ser injusto distorcer, em sua aplicao, as regras de um determinado sistema jurdico.

    E. Duprel ope essa concepo a todas as outras8. Qualifica-a de justia esttica, por ser baseada na manuteno da ordem estabelecida, e lhe ope todas as outras consideradas como as formas da justia dinmica, por poderem trazer a modificao dessa ordem, das regras que a determinam. Fator de transformao, a justia dinmica se mostra um instrumento do esprito reformador ou progressista, como ele se autodenomina. A justia esttica, propriamente conservadora, fator de fixidez.9

    A anlise sumria das concepes mais correntes da noo de justia mostrou-nos a existncia de pelo menos seis fr

  • A TICA 13

    mulas da justia - admitindo a maioria delas ainda numerosas variantes frmulas que so normalmente inconciliveis. Embora seja verdade que, graas a interpretaes mais ou menos foradas, a afirmaes mais ou menos arbitrrias, se pode querer relacionar essas diferentes frmulas umas com as outras,'elas no deixam de apresentar aspectos da justia muito distintos e o mais das vezes opostos.

    Ante tal estado de coisas, trs atitudes permanecem possveis.

    A primeira consistiria em declarar que essas diversas concepes da justia no tm absolutamente nada em comum, que abusivamente que as qualificam da mesma forma criando uma confuso irremedivel, que a nica anlise possvel consistiria na distino desses diferentes sentidos, admitindo ao mesmo tempo que no so unidos por nenhum vnculo conceituai.

    Se assim for, seremos levados, para evitar qualquer malentendido, a qualificar de forma diferente cada uma dessas seis concepes. Ou no reservaremos o nome de justia a nenhuma delas, ou ento consideraremos uma delas como a nica que possamos qualificar de justa.

    Esta ltima forma de proceder nos conduziria, por um rodeio, segunda atitude. Esta consiste na escolha, entre as diversas formas de justia, de uma s, da qual tentariam convencer-nos que a nica admissvel, a nica verdadeira, a nica real e profundamente justa.

    Ora, exatamente essa forma de raciocinar que queramos evitar a todo custo, contra ela que prevenimos o leitor. As razes que teramos de escolher uma frmula, os contraditores oporiam razes to vlidas quanto elas para escolher outra: o debate, em vez de levar ao acordo das mentes, s serviria para atrit-las de um modo ainda mais violento, porque cada um defenderia com mais energia a sua prpria concepo; de todo modo, a anlise da noo de justia no teria avanado muito mais com isso.

    E por esse motivo que damos nossa preferncia terceira atitude, que se imporia a delicadssima tarefa de pesquisar o que h em comum entre as diferentes concepes da justia

  • 14 TICA E DIREITO

    que se poderiam formular; ou, pelo menos, - para no nos impormos a irrealizvel condio de pesquisar o elemento comum a uma profuso infinita de concepes diferentes - buscaramos o que h em comum entre as concepes da justia mais correntes, que so as que distinguimos nas pginas precedentes.

    2. A justia formal

    Para que uma anlise lgica da noo de justia possa constituir um progresso incontestvel no esclarecimento dessa idia confusa, preciso que ela consiga descrever de um modo preciso o que h em comum nas diferentes frmulas da justia e mostrar os pontos em que diferem. Essa discriminao prvia permitir determinar uma frmula da justia sobre a qual ser realizvel um acordo unnime, frmula que levar em considerao tudo quanto h em comum entre as concepes opostas da justia.

    Da no resulta, em absoluto, que se v acabar com o desacordo existente entre os defensores das diversas concepes dessa noo. O lgico no um prestidigitador e sua funo no consiste em escamotear o que . Ao contrrio, ele deve fixar o ponto onde o desacordo ocorre, p-lo em plena luz, mostrar as razes pelas quais, a partir de uma certa noo comum da justia, chega-se, porm, a frmulas no s diferentes, mas mesmo inconciliveis.

    A noo de justia sugere a todos, inevitavelmente, a idia de certa igualdade. Desde Plato e Aristteles, passando por Santo Toms, at os juristas, moralistas e filsofos contemporneos, todos esto de acordo sobre este ponto. A idia de justia consiste numa certa aplicao da idia de igualdade. O essencial definir essa aplicao de tal forma que, mesmo constituindo o elemento comum das diversas concepes de justia, ela possibilite as suas divergncias. Isto s possvel se a definio da noo de justia contm um elemento indeterminado, uma varivel, cujas diversas determinaes ensejaro as. mais opostas frmulas de justia.

  • A TICA 15

    Em seu tratado sobre as Trois Justices10, de Tourtoulon procura estabelecer um nexo entre as diversas concepes da justia valendo-se da noo de limite.

    Para ele, a justia perfeita consistiria na igualdade completa de todos os homens. O ideal de justia corresponderia primeira de rtossas seis frmulas. Mas, essa igualdade perfeita, todo o mundo o percebe imediatamente, irrealizvel e s pode constituir, portanto, um ideal para o qual se pode tender, um limite do qual se pode tentar aproximar-se na medida do possvel. Todas as outras concepes da justia no passariam de tentativas imperfeitas de realizar tal igualdade: buscar-se-ia pelo menos realizar uma igualdade parcial, que tanto mais fcil de atingir quanto mais se afastar desse ideal de igualdade completa.

    Logicamente, diz de Tourtoulon11, as diversas concepes da justia-igualdade, muito longe de serem contraditrias, so da mesma essncia. Diferem apenas por sua possibilidade de realizao. Sendo a igualdade perfeita uma idia-limite, sua possibilidade de realizao nula. As possibilidades de realizao aumentam medida que as outras concepes igualitrias vo se afastando desse ponto situado no infinito.

    Poder-se-ia, diz ele12, chamar justia de caridade, igualdade de caridade, aquela que tende a vir em auxlio dos infelizes por natureza e a proporcionar-lhes uma parte to grande quanto o possvel das satisfaes que os outros podem usufruir.

    A justia distributiva tem por objeto outra igualdade, aquela que leva em conta capacidades e esforos individuais na atribuio das vantagens. Sua divisa : a cada qual segundo seus mritos; afastando-se da igualdade-limite, ela se aproxima das possibilidades de realizao.

    A justia comutativa j no se ocupa com a vida individual tomada em seu conjunto. Quer estabelecer a igualdade em cada ato jurdico, de tal modo que um contrato no arruine um para enriquecer o outro. Pode-se-lhe vincular a justia compensatria pela qual se restabelece uma igualdade lesada por culpa de outrem....

    Usa-se em geral como um argumento de ataque o fato de a igualdade contida na idia de justia aparecer sob numerosos

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    e diferentes aspectos, para rejeitar em bloco todas essas concepes como no tendo o menor valor lgico. uma argumentao por demais superficial. Entre essas diversas noes de igualdade no existe nenhuma contradio; ao contrrio, so implicadas umas pelas outras, so todas pontos tomados sobre uma abcissa cujo limite a igualdade perfeita e que se aproximam cada vez mais da ordenada que a possibilidade de realizao.

    A essa concepo, da qual no se pode negar que constitui um esforo meritrio para a compreenso da noo de justia, podemos dirigir duas objees.

    A primeira que ela escolhe arbitrariamente, entre as diferentes frmulas da justia, apenas uma que, merecidamen- te, parece para uma imensa quantidade das conscincias, se no para a maioria delas, perfeitamente inadmissvel. Cumprir tratar da mesma forma todos os homens sem levar em conta seus mritos, nem seus atos, nem suas origens, nem suas necessidades, nem seus talentos, nem seus vcios? Um nmero imenso de moralistas teria o direito de insurgir-se contra essa pseudojustia, da qual o menos que se pode dizer que no se impe a nenhum ponto de vista.

    A segunda objeo, que decisiva do ponto de vista lgico, que o nexo que de Tourtoulon deseja estabelecer entre as diferentes concepes da justia totalmente ilusrio. Com efeito, se as diferentes frmulas da justia devessem preconizar igualdades parciais, ou deveriam ter decorrido umas das outras -por silogismo, como uma parte que contida no todo, ou deveriam ter podido completar-se, como duas partes diferentes de um mesmo conjunto. Ora, com muita freqncia, diga o que disser de Tourtoulon, as diferentes frmulas da justia se contradizem. Habitualmente, impossvel conciliar, por exemplo, as frmulas a cada qual segundo seus mritos e a cada qual segundo suas necessidades, sem falar das outras frmulas que deveriam, todas juntas, formar um sistema coerente. Alis, a melhor prova de que impossvel fundir todas as frmulas da justia naquela que preconiza a igualdade perfeita de todos os homens a de que os protagonistas das outras concepes da

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    justia se insurgem contra ela considerando-a no somente arbitrria, mas tambm perfeitamente oposta ao nosso senso inato de justia.

    Ao invs da idia de de Tourtoulon, que considera serem as diferentes concepes da justia variantes que resultam de unia interpretao diferente da expresso a mesma coisa na frmula a cada qual a mesma coisa, poder-se-ia querer reduzir as divergncias a uma interpretao diferente da noo cada qual nessa mesma frmula.

    Aristteles j observara que necessrio existir certa semelhana entre os seres aos quais se se aplica a justia. Historicamente, alis, um fato plausvel que se tenha comeado por aplicar a justia aos membros de uma mesma famlia, para estend-la em seguida aos membros da tribo, aos habitantes da cidade, de um territrio, para chegar, finalmente, idia de uma justia para todos os homens.

    mister, diz Tisset num interessante artigo13, que haja entre os indivduos algo em comum pelo que seja estabelecida uma identidade parcial, para que se procure realizar entre eles a justia: quando no h medida comum, e portanto no h identidade, a questo da realizao da justia nem sequer tem de colocar-se. E pode-se notar que atualmente, no intelecto humano, esse princpio no variou: no se pode falar de justia, por exemplo, nas relaes entre homens e vegetais; e se a noo de justia recebeu hoje maior amplitude, se se aplica a todos os homens, porque o homem reconheceu semelhantes em todos os seus semelhantes; porque a noo de humanidade foi ficando pouco a pouco evidente...

    A priori, a rea de aplicao da justia no determinada, sendo, pois, suscetvel de variao. Todas as vezes que se fala de cada qual numa frmula da justia, pode-se pensar num grupo diferente de seres. Essa variao do campo de aplicao da noo cada qual a grupos variveis fornecer variantes no s da frmula a cada qual a mesma coisa mas tambm de todas as outras frmulas. No dessa forma porm que ser possvel resolver o problema que nos colocamos. Com efeito, em vez de mostrar a existncia de um elemento comum s diversas frmu

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    las da justia, as reflexes precedentes provam, ao contrrio, que cada uma delas pode ser de novo interpretada de diferentes formas e dar azo a um nmero imenso de variantes.

    Retomemos, portanto, depois dessas tentativas infrutuo- sas, nosso problema inicial. Trata-se de encontrar uma frmula da justia que seja comum s diversas concepes que analisamos. Essa frmula deve conter um elemento indeterminado, o que se chama em matemtica de uma varivel, cuja determinao fornecer ora uma, ora outra concepo da justia. A noo comum constituir uma definio da justia/erma/ ou abstrata; cada frmula particular ou concreta da justia constituir um dos inumerveis valores da justia formal.

    Ser possvel definir a justia formal? Haver um elemento conceituai comum a todas as frmulas da justia? Parece que sim. Com efeito, todos esto de acordo sobre o fato de que ser justo tratar de forma igual. S que surgem as dificuldades e as controvrsias to logo se trata de precisar. Cumprir tratar todos da mesma forma, ou cumprir estabelecer distines? E se for preciso estabelecer distines, quais sero as que ser necessrio levar em conta para a administrao da justia? Cada qual fornece uma resposta diferente a essas perguntas, cada qual preconiza um sistema diferente, para o qual ningum capaz de angariar a adeso de todos. Uns dizem que preciso levar em conta os mritos do indivduo, outros que preciso levar em considerao suas necessidades, outros ainda dizem que no se pode fazer abstrao das suas origens, da sua posio, etc.

    Mas, apesar das divergncias, todos eles tm algo em comum na sua atitude. Com efeito, aquele que reclama que se leve em conta o mrito, querer que se trate da mesma forma as pessoas de mrito igual; o segundo querer que se reserve um tratamento igual s pessoas com as mesmas necessidades; o terceiro reclamar um tratamento justo, ou seja, igual, para as pessoas de mesma posio social, etc. Seja qual for o desacordo deles sobre outros pontos, todos esto, pois, de acordo sobre o fato de que ser justo tratar da mesma forma os seres que so iguais em certo ponto de vista, que possuem uma mesma caracterstica, a nica que se deva levar em conta na administrao

  • A TICA 19

    da justia. Qualifiquemos essa caracterstica de essencial. Se a posse de uma caracterstica qualquer sempre permite agrupar os seres numa classe ou numa categoria, definida pelo fato de seus membros possurem a caracterstica em questo, os seres que tm em comum uma caracterstica essencial faro parte de um'a mesma categoria, a mesma categoria essencial.

    Portanto, pode-se definir a justia formal ou abstrata como um princpio de ao segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma.

    Observe-se imediatamente que acabamos de definir uma noo puramente formal que deixa intocadas todas as divergncias a propsito da justia concreta. Essa definio no diz nem quando dois seres fazem parte de uma categoria essencial nem como preciso trat-los. Sabemos que cumpre tratar esses seres no desta ou daquela forma, mas de forma igual, de sorte que no se possa dizer que se desfavoreceu um deles em relao ao outro. Sabemos tambm que um tratamento igual s deve ser reservado aos seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial.

    As seis frmulas de justia concreta, entre as quais procuramos uma espcie de denominador comum, diferem pelo fato de que cada uma delas considera uma caracterstica diferente como a nica que se deva levar em conta na aplicao da justia, de que elas determinam diferentemente a pertinncia mesma categoria essencial. Fornecem igualmente indicaes, de maior ou menor preciso, sobre a maneira pela qual devem ser tratados os membros da mesma categoria essencial.

    Nossa definio da justia formal porque no determina as categorias que so essenciais para a aplicao da justia. Ela permite que surjam as divergncias no momento de passar de uma frmula comum da justia formal para frmulas diferentes de justia concreta. O desacordo nasce no momento em que se trata de determinar as caractersticas essenciais para a aplicao da justia.

    Vamos retomar uma a uma as nossas diversas frmulas de justia concreta e mostrar como so, todas elas, determinaes diferentes da mesma concepo de justia formal:

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    \A cada qual a mesma coisa.A concepo da justia preconizada por esta frmula a

    nica concepo puramente igualitria, contrariamente a todas as outras, que exigem a aplicao de certa proporcionalidade. Com efeito, todos os seres aos quais se deseja aplicar a justia fazem parte de uma s e nica categoria essencial. Trate-se de todos os homens ou somente de alguns membros de uma famlia que participam de uma partilha, todos os que so visados quando se fala de cada qual j no so distinguidos por nenhuma outra caracterstica. Considera-se que nem todas as caractersticas diferentes das que serviram para determinar o conjunto dos seres aos quais cumpre aplicar a frmula a cada qual a mesma coisa podem entrar em linha de conta, que as diferenas entre esses seres no so, desse ponto de vista, essenciais.

    Isso nos leva a distinguir, dentre as qualidades que diferenciam os seres, as qualidades essenciais e as qualidades secundrias que so irrelevantes para a aplicao da justia. Concebe-se muito bem que o debate sobre a distino das qualidades essenciais e secundrias no possa ser dirimido de modo satisfatrio para todos, pois sua soluo acarretaria a soluo de todos os outros problemas concernentes aos valores.

    A frmula a cada qual a mesma coisa, que determina uma concepo igualitria da justia, no coincide necessariamente com um humanitarismo igualitrio. Com efeito, para que fosse esse o caso, cumpriria que a classe dos seres aos quais se desejaria aplicar essa frmula fosse constituda por todos os homens. Mas possvel que se restrinja essa aplicao a uma categoria bem mais limitada. Em Esparta, essa frmula igualitria era aplicada unicamente classe dos homoioi, os aristocratas, a classe superior da populao. No teria passado pela cabea dos homoioi espartanos querer aplicar essa concepo da justia s outras camadas da populao, com as quais no viam nenhuma medida em comum.

    Encontra-se o mesmo fenmeno numa instituio anloga, conquanto nascida em circunstncias muito diferentes de tempo e de espao: a dos pares da Frana e da Inglaterra. A

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    mais alta camada da aristocracia, que nada reconhece acima de si, deseja que se tratem da mesma forma todos os seus membros, iguais entre si e superiores a todos os outros.

    Logo, v-se que a frmula igualitria da justia pode, em vez de testemunhar um apego a um ideal humanitrio, no constituir seno um meio de fortalecer os laos de solidariedade entre os membros de uma classe que se considera incomparavelmente superior aos outros habitantes do pas.

    A possibilidade de determinar arbitrariamente a categoria de seres aos quais aplicvel a justia igualitria permite-nos mostrar em que essa frmula parece realizar, mais do que as outras, o ideal de justia perfeita.

    Com efeito, a partir dela, pode-se chegar a formular outra definio da justia formal. Basta precisar que se entende por cada qual os membros da mesma categoria essencial; obtm- se assim a frmula a cada membro da mesma categoria essencial, a mesma coisa, que , em todos os pontos, equivalente definio da justia formal que apresentamos antes. Talvez essa possibilidade que tenha sidb pressentida inconscientemente por de Tourtoulon quando ele cogitou em fazer da frmula igualitria o ideal irrealizvel da justia perfeita.

    2 A cada qual segundo seus mritos.Essa frmula da justia exige que os seres sejam tratados

    proporcionalmente aos seus mritos, ou seja, que os seres que fazem parte da mesma categoria quanto ao seu mrito - cujos graus serviro de critrio para o estabelecimento das categorias essenciais - sejam tratados da mesma forma.

    Note-se que a aplicao da justia proporcionalmente ao grau de intensidade de uma qualidade suscetvel de variao, como o mrito, levanta problemas de lgica elucidados por um notvel trabalho de Hempel e Oppenheim14.

    Para fazer parte da mesma categoria essencial, no importa possuir uma mesma caracterstica determinada, mas possu- la no mesmo grau. No basta, para serem tratados da mesma forma, que dois seres tenham mrito: cumpre ainda que tenham esse mrito no mesmo grau.

  • 22 TICA E DIREITO

    Logo, preciso, para a aplicao dessa frmula, dispor de um critrio que possibilite, seja medir o grau de mrito dos seres, se desejamos que as, recompensas sejam comparveis numericamente, seja ordenar os seres segundo a grandeza de seu mrito, se desejamos que a mais mrito caiba uma recompensa mais alta. bvio que a recompensa deve poder variar na mesma medida que o mrito, se desejamos uma proporcionalidade estrita.

    Se, na aplicao da justia, no nos contentamos em recompensar mas queremos tambm poder punir, h que ampliar a noo de mrito, de modo que abranja tambm o demrito.

    Para que dois seres tenham a mesma concepo da justia concreta, no basta que desejem ambos aplicar a frmula a cada qual segundo seus mritos, cumpre tambm que concedam o mesmo grau de mrito aos mesmos atos e que o seu sistema de recompensas ou de penas seja equivalente.

    Para julgar da mesma forma, aplicando a frmula a cada qual segundo seus mritos, dois seres devem no s ter o desejo de aplicar a mesma concepo da justia concreta, mas ainda ter a mesma representao dos fatos submetidos sua apreciao.

    Um julgamento poderia ser qualificado de injusto:le porque aplica uma frmula da justia concreta que no

    aceita;2e porque concebe a mesma frmula de modo diferente;3a porque, em sua base, se encontra uma representao

    inadequada dos fatos;42 porque infringe as prescries de justia formal que

    exigem que se trate da mesma forma os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial.

    H que notar, de imediato, que as duas primeiras razes so muito amide baseadas num equvoco. De fato, s so vlidas na medida em que o juiz obrigado observar certas regras de justia, o que ocorre em direito, jamais em moral. Em princpio, no se pode considerar algum injusto simplesmente

  • A TICA 23

    porque aplica uma outra frmula de justia concreta. No se pode exigir de algum que faa uma partilha igual quando, segundo ele, por exemplo, a partilha deveria ser feita proporcionalmente s necessidades de cada um dos beneficirios. Consistindo a injustia na violao das regras de justia concreta segundo as quais pretensamente se julga, no se pode considerar um ato injusto se a frmula de justia de que nos servimos para criticar o julgamento no a do juiz.

    Se o juiz viola regras de justia concreta aceitas por ele, injusto. Ele o involuntariamente se seu julgamento resulta de uma representao inadequada dos fatos. Ele s o voluntariamente quando viola as prescries da justia formal.

    3A cada qual segundo suas obras.Obtm-se a frmula de justia concreta a cada qual segun

    do suas obras ao considerar que fazem parte da mesma categoria essencial aqueles cuja produo ou cujos conhecimentos tm igual valor aos olhos do juiz. Se, colocando-se em certo ponto de vista, certas obras ou certos conhecimentos so considerados equivalentes, cumpre tratar da mesma forma os autores dessas obras ou aqueles cujos conhecimentos so examinados.

    Emprega-se habitualmente essa frmula de justia quando se trata de retribuir operrios ou de classificar candidatos por ocasio de um exame ou de um concurso.

    A vida social inventou um instrumento de medida comum do valor do trabalho e de seus produtos que o dinheiro. As noes de j?alrio justo e de preo justo no passam de aplicaes da frmula a cada qual segundo suas obras. Mas muito difcil determinar o salrio justo e o preo justo, visto os efeitos perturbadores da lei da oferta e da procura.

    Se se deseja proporcionar o salrio ao trabalho efetuado, pode-se levar em conta a durao do trabalho, seu rendimento e sua qualidade, variando esta, habitualmente, com a durao do tempo de aprendizagem. Mas s possvel obter certos resultados procedendo dessa maneira enquanto se trata de um trabalho cuja execuo no exige capacidades especiais. Pois, assim que preciso certo talento, sem falar de gnio, para realizar

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    uma obra, falta a medida comum. por isso que, nesse caso, prefere-se normalmente julgar a obra em si mesma, por meio de suas qualidades intrnsecas, apreciar o resultado do trabalho, em vez de basear-se no tempo necessrio para realizar a obra em questo. D-se o mesmo em todos os exames e concursos em que, em vez de procurarem determinar o esforo fornecido pelo candidato, os examinadores contentam-se em avaliar seus conhecimentos de acordo com as respostas ou as ' obras por ele apresentadas.

    Em todos esses casos renuncia-se a estabelecer uma medida comum entre todas as obras e se se contenta em comparar aquelas para as quais se admite um mesmo critrio, as obras da mesma espcie. No se procurar comparar quadros com obras literrias, sinfonias com obras de arquitetura. Se verdade que o preo dessas obras pode, primeira vista, parecer apresentar tal medida comum, isso s pode acontecer quando se tem a certeza de que esse preo justo, ou seja, que corresponde ao valor real delas. Ora, se o preo constitui o nico elemento de comparao entre as obras, no se v como determinar seu valor, para ter condies de saber se o preo justo ou no.

    Por outro lado, quando se trata de comparar no obras e sim conhecimentos, como por ocasio de um exame, o recurso ao dinheiro enquanto padro de medida no s insuficiente mas totalmente impossvel. O examinador no pode ento julgar os candidatos seno com relao a um critrio puramente interno, as exigncias que ele formula na matria. O exame permitir estabelecer uma relao entre tais exigncias e desempenho do candidato.

    O exame supe uma espcie de conveno entre as partes. Para poder submeter-se a ele, o candidato deve ter condies de conhecer as exigncias do juiz. por isso que este acusado de injustia todas as vezes que no observa as regras da conveno e formula uma pergunta que no est no programa.

    Para poder comparar candidatos, julgados por examinadores diferentes a partir de programas diferentes, cumpre poder estabelecer uma relao entre esses programas e supor que os juizes avaliam da mesma forma as insuficincias dos aspiran-

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    tes. Como tais comparaes s se fazem normalmente por razes prticas e puramente formais (equivalncia de diplomas, por exemplo), os programas comparados so comumente relativos a conhecimentos da mesma espcie, ao passo que, salvo em caso especial, faz-se abstrao das diferenas entre os examinadores.

    Enquanto a frmula a cada qual segundo seus mritos tem pretenses universalidade, declara poder constituir uma medida comum aplicvel a todos os homens, a aplicao da frmula a cada qual segundo suas obras tem habitualmente pretenses mais modestas e mais imediatamente teis. Compa- rem-se obras ou conhecimentos, esta ltima frmula da justia, uma das mais correntes na vida social, se limita, mngua de um critrio universal e por razes puramente prticas, comparao de obras e de conhecimentos da mesma espcie.

    4-A cada qual segundo suas necessidades.A aplicao desta frmula exige que sejam tratados da

    mesma forma aqueles que fazem parte da mesma categoria essencial do ponto de vista de suas necessidades.

    Na vida social, apenas deveras excepcionalmente que se far a aplicao dessa frmula ser precedida de um estudo psicolgico sobre as necessidades dos homens considerados. Com efeito, no se deseja levar em conta todas as fantasias do indivduo, e sim suas necessidades mais essenciais, as nicas que sero levadas em considerao na execuo da frmula. Esta deveria, antes, ser enunciada: a cada qual segundo suas necessidades essenciais. Essa restrio provocar imediatamente discusses sobre o que se deve entender por necessidades essenciais, pois as diferentes concepes ensejam variantes dessa frmula de justia.

    Com muita freqncia mesmo, para permitir uma aplicao fcil dessa frmula, seremos levados a no levar em conta necessidades consideradas importantes, mas cuja existncia difcil de detectar ou de controlar. Procurar-se-, habitualmente, determinar essas necessidades por intermdio de critrios puramente formais, baseando-se nas exigncias do organismo

  • 26 TICA E DIREITO

    humano em geral. Apenas limitando a aplicao dessa frmula a um nmero restrito de pessoas que se pode fazer as necessidades particulares de cada qual entrarem progressivamente em linha de conta. Um dos problemas mais delicados da estatstica em questo social determinar os detalhes aos quais cumpre se interessar, dado o nmero de pessoas s quais se estende a pesquisa. Aplicada aos grandes nmeros, uma pesquisa assim preferir s levar em conta elementos numericamente determin- veis, tais como, por exemplo, o nmero e a idade de pessoas de uma famlia, as somas de dinheiro de que dispe, a quantidade de calorias de sua alimentao, a cubagem de ar de sua habitao*, o nmero de horas dedicado ao trabalho, ao descanso e ao lazer, etc.

    raro que se procure aplicar a frmula a cada qual segundo suas necessidades a necessidades mais refinadas, mais individuais. Isso porque, e essa a diferena essencial entre a caridade e essa frmula da justia que dela mais se aproxima, a justia s se aplica a seres considerados como elementos de um conjunto, da categoria essencial, ao passo que a caridade considera os seres como indivduos e leva em conta suas caractersticas prprias. A justia, pelo contrrio, tem tendncia a abstrair os elementos que no so comuns a vrios seres, os seus traos particulares. Quem procura, por caridade, satisfazer os desejos de seu prximo, se empenhar mais em levar em conta o elemento psicolgico, individual, do que quem levado a isso por sua concepo da justia.

    Quem deseja aplicar a frmula a cada qual segundo suas necessidades dever no s estabelecer uma distino entre as necessidades essenciais e as outras, mas tambm hierar- quizar as necessidades essenciais, de modo que se conheam aquelas que se h de satisfazer em primeiro lugar e determinar o preo que custar a sua satisfao: essa operao conduzir definio da noo de mnimo vital.

    Todos sabem que speras controvrsias foram provocadas por esta ltima noo e por todas as que lh so vinculadas.

    * Que determina os gastos com o aquecimento da habitao. (N. do T.)

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    Quase todas as divergncias nascidas a esse respeito resultam de outra concepo das necessidades essenciais do homem, ou seja, das necessidades que devem ser levadas em conta por uma justia social baseada no princpio a cada qual segundo suas necessidades e que tende a determinar as obrigaes da sociedade para com cada um de seus membros.

    5 A cada qual segundo sua posio.A aplicao dessa frmula supe que' os seres, com os

    quais se desejaria ser justo, esto repartidos habitualmente, mas no necessariamente, m classes hierarquizadas. Essa frmula considera que justo que se tenha uma atitude diferente para com membros das diversas classes, contanto que se trate da mesma forma os que fazem parte da mesma classe, ou seja, da mesma categoria essencial.

    Essa diviso em classes, no sentido amplo, pode fazer-se de diversas formas. Pode basear-se na cor da pele, na lngua, na religio, no fato de pertencer a uma classe social, a uma casta, a um grupo tnico. A subdiviso dos homens tambm pode fazer- se de acordo com suas funes ou suas responsabilidades, etc.

    possvel que as classes distinguidas no sejam hierarquizadas: o tratamento dos membros de uma classe, diferente daquele de uma outra, no favoreceria uma determinada categoria de todos os pontos de vista. O mais das vezes, porm, as diversas classes so hierarquizadas. As classes superiores, as classes privilegiadas, gozam de mais direitos do que as outras. Mas as sociedades hierarquizadas, conforme se achem em pleno desenvolvimento ou em decadncia, imporo mais deveres a suas elites ou no estabelecero nenhuma relao entre os direitos concedidos e os deveres ou as responsabilidades. O ditado noblesse oblige a expresso de uma aristocracia consciente de seus deveres particulares e que compreende que somente a esse preo que lograr justificar sua posio privilegiada.

    Em geral, um regime s vivel se cada membro de sua classe superior defrontado com suas responsabilidades e se os direitos que se lhe concedem resultam dos encargos que se lhe impem. Quando direitos particulares no coincidem com

  • 28 TICA E DIREITO

    responsabilidades especiais, o regime no tardar, graas arbitrariedade generalizada, a degenerar num favoritismo sistematizado, numa repblica de amigos.

    Tais reflexes no se aplicam somente a regimes em que a superioridade vem com o nascimento, mas tambm a regimes diferentes, tal como o regime democrtico. Com efeito, em cada regime existe uma classe superior, a que dispe da fora e do poder no Estado. Um regime s ser vivel, com o correr do tempo, se as exigncias impostas a essa classe forem inteiramente particulares e se a severidade com que se exigir contas da gesto de cada qual for proporcional s responsabilidades assumidas.

    6QA cada qual segundo o que a lei lhe atribui.Essa frmula da justia de distingue de todas as outras

    pelo fato de o juiz, a pessoa encarregada de aplic-la, j no ser livre para escolher a concepo da justia que prefere: ele deve observar a regra estabelecida. A classificao, a distribuio em categorias essenciais, -lhe imposta e ele deve obrigatoriamente lev-la em conta. essa a distino fundamental entre a concepo moral e a concepo jurdica da justia.

    Em moral, a pessoa livre para escolher a frmula da justia que pretende aplicar e a interpretao que deseja dar-lhe; em direito, a frmula da justia imposta e sua interpretao sujeita ao controle da Corte Suprema do Estado. Em moral, a regra adotada resulta da livre adeso da conscincia; em direito, cumpre levar em conta a ordem estabelecida. Aquele que julga, em moral, deve primeiro determinar as categorias segundo as quais julgar, depois ver quais so as categorias aplicveis aos fatos; em direito, o nico problema que se deve examinar o de saber como os fatos considerados se integram no sistema jurdico determinado, como os qualificar. Em direito moderno, as duas instncias, a que determina as categorias e a que as aplica, so rigorosamente separadas; em moral, esto unidas na mesma conscincia.

    Em que medida o juiz, em direito, ter meios de fazer intervir, no exerccio de suas funes, sua concepo particular

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    da justia? Em que medida as concepes morais influenciam o direito?

    A resposta primeira pergunta ser diferente conforme se entender por juiz um funcionrio especfico, encarregado de aplicar a justia, ou a jurisprudncia em seu todo.

    Mesmo quando se trata de um juiz que se contenta em seguir as trilhas batidas da jurisprudncia e que no deseja inovar na matria, seu papel no puramente passivo. De fato, como toda viso da realidade em certa medida subjetiva, e isto ainda mais quando se trata antes de uma reconstituio do que de uma viso direta, o juiz ntegro ser, mesmo involuntariamente, levado a fazer coincidir, em sua apreciao dos fatos, o direito e seu sentimento ntimo da justia. Baseando-se em certos indcios ou negando-lhes a importncia, levando em conta certos fatos ou interpretando-os de modo que se esvaziem de qualquer significado, o juiz pode fornecer uma imagem diferente da realidade e dela deduzir uma aplicao diferente das regras de justia.

    Quanto jurisprudncia, na medida em que interpreta as leis, pode at ir mais alm. dela que depende a definio de todas as noes confusas, de todas as expresses equvocas do direito: para ela, ser um jogo definir essas noes e interpretar essas expresses de forma que o sentimento da justia do juiz no seja contrariado com demasiada violncia pelas exigncias da lei. Em certos casos, quando se tratou de leis cujo sentido dificilmente se poderia deformar, a jurisprudncia se contentou mesmo, pura e simplesmente, em esquecer-lhes a existncia e, de tanto no as aplicar, as fez cair em desuso. No direito romano, o pretor podia permitir-se usar de fices para modificar a aplicao das categorias estabelecidas pela lei, mas, atualmente, a determinao dessas categorias compete ao legislador. Este se encarregar de dar fora de lei concepo da justia dos que detm o poder no Estado.

    A priori, no se pode dizer nada do carter moral da lei, do modo como as categorias estabelecidas pelo legislador coincidem com as da massa da populao: tudo depende da relao que h entre esta e os detentores do poder. Conforme estes

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    forem ou no forem a expresso real da maioria da nao, as categorias jurdicas impostas coincidiro mais ou menos com o sentimento popular. Em todo regime democrtico a lei segue, embora com certo atraso, a evoluo por que passou a concepo da justia na mente da maioria dos cidados. Durante o perodo em que h defasagem, a jurisprudncia se encarrega, com certa dificuldade, de reduzir ao mnimo os inconvenientes das morosidades inevitveis do poder legislativo.

    Poder a justia opor-se ao direito? Haver um direito injusto? Formular a questo dessa maneira s possvel se no se fizer caso algum da distino que estabelecemos entre a justia formal e a justia concreta. Com efeito, querer julgar o direito em nome da justia s possveem virtude de uma confuso: julgar-se- o direito por intermdio, no da justia formal, mas da justia concreta, ou seja, de uma concepo particular da justia que supe uma determinada escala de valores. De fato, no em nome da justia que se vai condenar ou reformar, mas em nome de uma viso do universo, talvez sublime, mas, de todo modo, considerada arbitrariamente como a nica justa. Quando se condena uma concepo do mundo por meio de outra, no se deve dizer que se condena o direito em nome da justia, se no se quer criar confuses proveitosas aos sofistas. Com efeito, o direito positivo jamais pode entrar em conflito com a justia formal, visto que ele se limita a determinar as categorias essenciais de que fala a justia formal, e sem essa determinao a aplicao da justia fica totalmente impossvel.

    Acabamos de passar em revista as principais concepes da justia concreta e vimos como todas podem ser consideradas determinaes da justia formal. Logo, podemos afirmar a existncia de um elemento comum s frmulas mais habituais da justia, elemento que possibilita definir a parte formal de toda concepo de justia.

    A aplicao da justia formal exige a determinao prvia das categorias consideradas essenciais. Ora, no se pode dizer quais so as caractersticas essenciais, ou seja, aquelas que se levam em conta para a aplicao da justia, sem admitir certa

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    escala de valores, uma determinao do que importante e do que no o , do que essencial e do que secundrio. a nossa viso do mundo, o modo como distinguimos o que vale do que no vale, que nos conduzir a uma determinada concepo da justia concreta.

    Qualquer evoluo moral, social ou poltica, que traz uma modificao da escala dos valores, modifica ao mesmo tempo as caractersticas consideradas essenciais para a aplicao da justia. Ela determina, destarte, uma reclassificao dos homens em outras categorias essenciais.

    O cristianismo substitui a distino entre nacionais e brbaros, livres e escravos, pela distino entre crentes e incrus, a nica que conta, definitivamente, para a justia divina. A Revoluo Francesa reagrupa os membros da nao numa nica categoria essencial e s v cidados iguais perante a lei onde o Antigo Regim via nobres, clrigos, burgueses e servos, cada qual sujeito a um regime jurdico diferente.

    A concepo humanitria do sculo XX procurou reduzir ao mnimo as distines nacionais e religiosas e estender ao mximo os direitos civis concedidos a todos os habitantes de um Estado, converter mesmo esses direitos civis em atributos decorrentes, em virtude do direito natural, da mera qualidade de homem.

    Enquanto a concepo liberal do Estado determinava a qualidade de cidado por meio de critrios puramente formais, a concepo nacional-socialista do direito queria conceber o Estado sob a forma de uma comunidade popular (Volksstaat), da qual s podiam fazer parte os membros de uma mesma raa, de um mesmo grupo tnico. A aplicao da justia deveria basear-se essencialmente nessa distino e deveria tratar de forma radicalmente diferente aqueles que eram, em virtude de suas origens, sujeitos de direito e aqueles que s podiam ser tratados como sujeitos passivos, meros objetos do direito.

    V-se, por esses diferentes exemplos, como modificaes na escala dos valores determinam modificaes na aplicao da justia. Mas, sejam quais forem as diferenas entre as concepes da justia concreta, todas admitem a mesma definio

  • 32 TICA E DIREITO

    da justia formal, que exige sejam tratados da mesma forma os seres que fazem parte da mesma categoria essencial.

    Se a noo de justia confusa, porque cada qual, ao falar dela, se cr obrigado a definir a justia concreta. Da resulta que a definio da justia contm ao mesmo tempo a determinao das categorias consideradas essenciais. Ora, esta, como vimos, implica uma determinada escala dos valores. Ao querer definir a justia concreta, engloba-se na mesma frmula a definio da justia formal e uma viso particular do universo. Donde divergncias, mal-entendidos e confuses tais que, prendendo-se s diferenas que opem as diversas frmulas, nem sequer se repara que elas tm um elemento em comum, a mesma concepo da justia formal. Entretanto, mostramos que no h razo nenhuma para que o desacordo sobre a aplicao da justia, resultante de diversas concepes da justia concreta, impea um acordo sobre a definio da parte formal da justia.

    Observe-se que foi a confuso entre a justia formal e a justia concreta que fez que qualquer concepo da justia parecesse resumir uma concepo do mundo; de fato, toda definio da justia concreta implica uma viso particular do universo. Da o prestgio da noo de justia e a importncia dada sua definio. Mas, pelo prprio fato de que a definio da justia formal no prejulga de modo algum nossos juzos de valor, ver-se- ainda menos inconveniente em chegar a um acordo sobre essa definio, porque a noo de justia assim apresentada perde a um s tempo seu prestgio e quase todo o seu sentido emotivo.

    A noo de justia formal clara e precisa e seu carter racional nitidamente posto em evidncia. O problema da justia fica assim parcialmente aclarado. Isso porque as dificuldades suscitadas pela justia concreta no existem quando s nos preocupamos com justia formal.

    V-se como a justia formal concilivel com as mais diferentes filosofias e legislaes, como se pode ser justo concedendo a todos os homens os mesmos direitos, e justo concedendo direitos diferentes a diferentes categorias de homens,

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    justo segundo o direito romano e justo segundo o direito germnico.

    E verdade que todas as dificuldades levantadas pela noo de justia esto longe de ser aplainadas e que a justia formal no pode coincidir com todos os usos contraditrios da noo de jstia. Ao contrrio, cada vez que falarmos de justia, deveremos fazer-nos a pergunta: trata-se de justia formal ou de uma das inumerveis concepes da justia concreta? Isso rio impede que a introduo desta ltima distino apresente uma dupla vantagem: a de no introduzir no exame da justia formal as dificuldades inerentes ao uso de uma frmula de justia concreta e a de nos permitir elucidar as dificuldades prprias do uso da justia formal, em especial as resultantes das relaesentre a justia formal e a justia concreta. ao exame destas ltimas que consagraremos nosso prximo captulo.

    3. As antinomias da justia e a eqidade

    Mesmo se a distino entre justia formal e as diferentes frmulas de justia concreta no tivesse servido seno para evitar lamentveis confuses, ela j teria constitudo um progresso na compreenso da noo de justia15. Mas ela se mostra ainda muito mais til, pois nos permitir esclarecer e at resolver problemas que, sem ela, poderiam ter parecido insolveis. Um desses problemas consiste em determinar o sentido e o uso de uma noo assemelhada de justia, a noo de eqidade.

    Definiu-se a justia formal como o princpio de ao segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma.

    Da resulta que a aplicao da justia supe uma classificao ou uma ordenao dos seres de acordo com a caracterstica essencial que lhe serve de base.

    Pode-se dividir os seres considerados em duas categorias essenciais, conforme a presena ou a ausncia da nica categoria que se leva em conta. Pode-se dividi-los em mais categorias se cada categoria essencial determinada por outra espcie de um mesmo gnero ou pelo grau com que se apresenta uma caracterstica de intensidade varivel. Neste ltimo caso, tere

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    mos condies de no s dividir o universo do discurso em classes, mas at de ordenar essas classes conforme o grau de intensidade em que seus membros possuem a caracterstica essencial.

    Tomemos um exemplo para esclarecer nosso pensamento. Suponhamos que o universo do discurso - todos aqueles aos quais se desejaria aplicar a justia - seja formado por todos os chefes de famlia de uma cidade. Querendo tratar diferentemente os que tm uma profisso e os que no exercem nenhuma, obtm-se duas categorias essenciais. Se se quer tratar de modo diferente os chefes de famlia conforme a natureza de sua profisso principal, obtm-se vrias categorias essenciais. Pedindo a cada chefe de famlia que indique sua renda anual, obtm-se categorias facilmente ordenveis segundo a grandeza do montante indicado.

    Toda aplicao da justia exige, previamente, uma diviso assim do universo do discurso. Mas, sejam quais forem as dificuldades tcnicas de tal tarefa, aplicar a justia seria algo relativamente simples se devssemos contentar-nos com uma nica categoria essencial, por mais complexa que fosse. A aplicao da justia formal seria algo possvel.

    Infelizmente, a realidade muito mais complicada. O que acontece, na verdade, que nosso sentimento de justia leva em conta, simultaneamente, vrias categorias essenciais independentes, que ocasionam categorias essenciais nem sempre concordantes.

    Tomemos o caso de um patro humanitrio que desejaria retribuir seus operrios levando em conta, a um s tempo, o trabalho e as necessidades deles. Suceder-lhe-, com muita freqncia ficar em apuro: isso se dar todas as vezes que dois operrios fizerem parte da mesma categoria essencial do ponto de vista do trabalho, e de categorias diferentes do ponto de vista das necessidades, ou vice-versa. Que tratamento cumprir aplicar-lhes? Todas as vezds se agir de modo formalmente injusto. Suponhamos que, de dois operrios cujo trabalho igual, um seja solteiro, o outro pai de uma famlia numerosa. Tratando-os da mesma forma, -se injusto porque o princpio

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    a cada qual segundo suas necessidades exige que se d mais quele que tem encargos familiares do que quele que deve suprir apenas prpria subsistncia. Tratando-os de forma desigual -se injusto, porque no se trata da mesma forma dois seres que fazem parte da mesma categoria essencial, do ponto de vista da frmula a cada qual segundo suas obras.

    Estamos diante de uma das inumerveis antinomias da justia. Tais antinomias so to freqentes que as poderamos considerar mesmo um caso normal. Elas nos ihcitam, de modo por assim dizer irresistvel, a afirmar que a justia perfeita no deste mundo. Com efeito, nunca podemos afirmar que fomos perfeitamente justos, que levamos em conta todas as concepes da justia que se amalgamam em ns para formar a confusa mescla a que chamamos sentimento de justia, que tratamos da mesma forma seres que fazem parte de uma mesma categoria por ns considerada essencial. Pelo contrrio, sempre se pode afirmar que se foi perfeitamente injusto se no se levou em conta uma classificao considerada essencial pela prpria pessoa que omitiu lev-la em considerao. Alis, a experincia social est a para provar que normalmente s se fala de justia de uma maneira geral, enquanto, todas as vezes que se trata de casos particulares de aplicao, ouve-se quase sempre falar de injustia.

    Um modo de sair do mal-estar criado pelas antinomias da justia consiste em dar deliberadamente preferncia a uma caracterstica essencial em detrimento de todas as outras, em determinar a caracterstica que se vai levar em conta em primeiro lugar, podendo todas as outras exercerem sua influncia apenas na medida em que no atrapalhem a primeira.

    O modo mais eficaz de consegui-lo consiste em pr em evidncia essa caracterstica essencial por meio de sinais externos, naturais ou artificiais.

    A distino dos homens em categorias essenciais baseadas na cor da pele foi por muito tempo o argumento peremptrio que era oposto aos que exigiam a abolio da escravido. Achava-se normal que no se tratasse como escravos homens de raa branca, mas por que conceder esse tratamento a seres

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    de uma categoria to diferente como os negros? Os negros no so homens, dizia-se, o que quer dizer que no fazem parte da mesma categoria essencial que os homens brancos, e portanto podia-se trat-los de um modo desumano. Assim tambm, a concepo que queria considerar os judeus como seres de uma raa diferente, caracterizada por sinais externos manifestos, se empenhava em justificar com isso o tratamento todo especial que se lhes queria aplicar.

    Mas, com muito mais freqncia do que de sinais naturais, as pessoas se servem de sinais artificiais para mostrar qual a distino, a caracterstica, a que atribuem mais importncia e que consideram essencial. O mais habitual desses sinais o uniforme. O uniforme atesta que a pessoa se considera participante, em primeirssimo lugar, de um determinado grupo. E o fato de pertencer ao grupo, ou a uma de suas subdivises, que ser tomado em considerao para a aplicao da justia. Todos que fazem parte do mesmo grupo, ou da mesma subdiviso, so iguais e devem ser tratados da mesma forma, sem que se deva levar em conta nenhuma outra caracterstica que poderia contrariar a primeira. Como as antinomias jurdicas tomam mais difcil e mais vaga a aplicao da justia, elas embotam, por isso mesmo, o sentimento de justia. Em contrapartida, o uso do uniforme no exrcito desenvolve particularmente nele o sentimento de justia, porque impe, por assim dizer, uma nica categoria essencial, a patente. preciso tratar da mesma forma os que esto vestidos igual e tratar de modo diferente militares vestidos diversamente. porque, no exrcito, a hierarquia estabelecida pela patente, manifestando-se por sinais externos, domina todas as outras - sendo por isso mesmo, mais raras a as antinomias jurdicas - que o sentimento de justia mais vivo e se manifesta de modo mais vigoroso.

    Quando aparecem as antinomias da justia e quando a aplicao da justia nos fora a transgredir a justia formal, recorremos eqidade. Esta, que poderamos considerar a muleta da justia, e o complemento indispensvel da justia for- mal, todasTvezes que a aplicao desta se mostra impossvel. Consiste ela numa tendncia a no tratar deforma por demais

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    desigual os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial. A eqidade tende a diminuir a desigualdade quando o estabelecimento de uma igualdade perfeita, de uma justia formal, tomado impossvel pelo fato de se levar em conta, simultaneamente, duas ou vrias caractersticas essenciais que vm entrar em choque em certos casos de aplicao.

    Contrariamente justia formal, cujas exigncias so bem precisas, a eqidade consiste apenas numa tendncia opostajL todo formalismo, do qual ela deve ser complementar. Ela intervm quando dois formalismos entram em choque: para desem-

    , penhar seu papel de eqidade, ela prpria s pode ser, pois, no-formal.

    Se desejarmos levar em conta, na aplicao da justia, duas caractersticas essenciais, se, ao tratarmos de modo idntico dois seres que fazem parte da mesma categoria essencial, formos levados a tratar de modo demasiado diferente dois seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial, determinada pela segunda caracterstica, a eqidade nos incitar a no levar em conta unicamente a primeira caracterstica na realizao da justia.

    Assim que, tendo de contratar dois operrios que fazem o mesmo trabalho, dos quais um seria solteiro e o outro pai de famlia numerosa, tratando-os da mesma forma, segundo a frmula a cada qual segundo suas obras, ns os trataremos de forma demasiado diferente se desejarmos levar em conta a frmula a cada qual segundo suas necessidades. A eqidade nos incitar a diminuir essa diferena. Mas, se quisermos aumentar o salrio do pai de famlia numerosa, deixaremos de tratar da mesma forma dois operrios que fazem parte da mesma categoria essencial do ponto de vista de seu trabalho. Seja qual for a atitude adotada, seja qual for a medida em que se levar em conta uma ou outra frmula de justia, seremos levados a transgredir a justia formal.

    Mas em que medida ser preciso levar em conta uma ou outra caracterstica essencial? A priori, no existe regra nenhuma para diz-lo: encontramo-nos em pleno compromisso quando recorremos eqidade. Esta s pode ser realizada