Resumo Oral

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Menino, quem foi seu mestre? História e estórias da capoeira ilheense Paulo Andrade Magalhães Filho* Criminalizados pelo Código Penal de 1890 e estigmatizados como marginais, os capoeiras da Bahia sofreram uma ferrenha perseguição policial no início do século XX. A criação da “luta regional baiana” por mestre Bimba na década de 30 permitiu a legalização da capoeira pela ditadura varguista. Os mais-velhos da capoeiragem tradicional baiana, como reação à “invenção da tradição” da capoeira regional, respaldam Mestre Vicente Ferreira Pastinha como guardião do patrimônio cultural afro-brasileiro representado pela capoeira angola. Os “angoleiros”, discípulos da Escola Pastiniana, reivindicam a herança ancestral da capoeiragem histórica, calcada na oralidade e numa visão de mundo africana, ao mesmo tempo em que rejeitam aspectos ligados ao universo das ruas, da valentia e da violência. Esta história, amplamente documentada na capital baiana, ainda está por contar na região sul da Bahia. Cidade mais antiga da região, Ilhéus contou com a visita e participação de célebres capoeiristas de Salvador, muitos deles operários que trabalhavam no porto ou na construção da infra-estrutura local. Aqui a capoeira regional se tornou hegemônica principalmente com o surgimento das primeiras academias, nas décadas de 70 e 80. Traçar o perfil destas transformações históricas a partir do depoimento dos mais velhos é o objetivo deste trabalho. Palavras-chave: capoeira, Ilhéus, mais-velhos. *Jornalista pela UFMG, Especializando em Educação e Relações Étnico- Raciais pela UESC – Rua 5, nº 136, Sapetinga, Ilhéus – BA– [email protected] – (73) 3634-1910 / 8821-2887 Em primeiro lugar, quero dizer que este é um trabalho que está se iniciando, então, longe de apresentar conclusões, pretendo levantar algumas questões que espero poder resolver no desenvolvimento da pesquisa. Meu nome é Paulo, sou ilheense e capoeirista angoleiro, daí o meu interesse claro pelo tema. Ao voltar para a cidade após longos anos de ausência, fiquei surpreso com as respostas negativas que ouvias à minhas buscas por referências de capoeira angola na região. A capoeira regional é, já há algum tempo, muito forte em Ilhéus, fazendo apresentações turísticas e ocupando os espaços de destaque e visibilidade. É representada principalmente pelos grupos Camarada Camaradinha, Luanda, Lua Branca, Tribo Unida, Raízes do Quilombo, Águia Dourada, Capubahia,

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Menino, quem foi seu mestre?História e estórias da capoeira ilheense

Paulo Andrade Magalhães Filho*

Criminalizados pelo Código Penal de 1890 e estigmatizados como marginais, os capoeiras da Bahia sofreram uma ferrenha perseguição policial no início do século XX. A criação da “luta regional baiana” por mestre Bimba na década de 30 permitiu a legalização da capoeira pela ditadura varguista. Os mais-velhos da capoeiragem tradicional baiana, como reação à “invenção da tradição” da capoeira regional, respaldam Mestre Vicente Ferreira Pastinha como guardião do patrimônio cultural afro-brasileiro representado pela capoeira angola. Os “angoleiros”, discípulos da Escola Pastiniana, reivindicam a herança ancestral da capoeiragem histórica, calcada na oralidade e numa visão de mundo africana, ao mesmo tempo em que rejeitam aspectos ligados ao universo das ruas, da valentia e da violência.

Esta história, amplamente documentada na capital baiana, ainda está por contar na região sul da Bahia. Cidade mais antiga da região, Ilhéus contou com a visita e participação de célebres capoeiristas de Salvador, muitos deles operários que trabalhavam no porto ou na construção da infra-estrutura local. Aqui a capoeira regional se tornou hegemônica principalmente com o surgimento das primeiras academias, nas décadas de 70 e 80. Traçar o perfil destas transformações históricas a partir do depoimento dos mais velhos é o objetivo deste trabalho.

Palavras-chave: capoeira, Ilhéus, mais-velhos.

*Jornalista pela UFMG, Especializando em Educação e Relações Étnico-Raciais pela UESC – Rua 5, nº 136, Sapetinga, Ilhéus – BA– [email protected] – (73) 3634-1910 / 8821-2887

Em primeiro lugar, quero dizer que este é um trabalho que está se iniciando, então, longe de apresentar conclusões, pretendo levantar algumas questões que espero poder resolver no desenvolvimento da pesquisa.

Meu nome é Paulo, sou ilheense e capoeirista angoleiro, daí o meu interesse claro pelo tema. Ao voltar para a cidade após longos anos de ausência, fiquei surpreso com as respostas negativas que ouvias à minhas buscas por referências de capoeira angola na região. A capoeira regional é, já há algum tempo, muito forte em Ilhéus, fazendo apresentações turísticas e ocupando os espaços de destaque e visibilidade. É representada principalmente pelos grupos Camarada Camaradinha, Luanda, Lua Branca, Tribo Unida, Raízes do Quilombo, Águia Dourada, Capubahia, Raça, Berimbau da Bahia, Ilhéus Show, Liberdade, Pequeno Mestre, Cacau de Ouro.

Após algum tempo de busca, pude encontrar um velho mestre angoleiro, Mestre Virgílio, que permanece firme e forte em seus 72 anos, 63 dos quais dedicados à prática da capoeira angola. Mestre Virgílio aprendeu a jogar capoeira por oitiva, num terrenão de chão batido na Tapera, aos finais de semana, com os Mestres Caranha, Chico da Onça, Claudemiro, Álvaro, Elíscio, João Valença e Barreto. Na década de 40, não existia capoeira regional em Ilhéus, nem academias, nem mesmo grupos e treinos sistematizados. Na década de 50, Mestre João Grande (conhecido aqui como João Bate-Estaca) deu uma importante contribuição à capoeiragem da região, e formou Virgílio como seu Contra-mestre. Ao saber pelas suas palavras que Ilhéus teve um forte cenário angoleiro, da capoeira tradicional baiana, surge a proposta de contar parte desta história a partir da fala dos mais velhos.

Acúrsio Esteves, em “A capoeira da Indústria do Entretenimento – Corpo, Acrobacia e espetáculo para Turista Ver” denuncia a ação transformadora da indústria do turismo, que molda e maquia manifestações culturais de modo a transformá-la em mercadoria, integrando-as à Indústria Cultural adorniana. Este processo vem se acentuando em relação à capoeira desde a década de 30, com o surgimento de grupos e shows parafolcóricos como Olodumaré e VivaBahia, que estilizavam a capoeira, o samba de roda, o maculelê, o candomblé, a puxada de rede e outras manifestações da cultura popular afro-brasileira. Esta reflexão não é nova: Waldeloir Rego,

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em seu livro “Capoeira Angola: um ensaio sócio etnográfico”, de 1968, uma das primeiras publicações do gênero, faz uma crítica contundente à interferência do órgão municipal de turismo. Segundo ele, “quanto mais palhaçada faz a academia essa é a preferida do órgão público”.

Esse é um dos possíveis caminhos para entender a expansão da capoeira regional em detrimento da capoeira tradicional na região, já que há um amplo mercado explorado pelos grupos locais que inclui rodas, apresentações e shows folclóricos no porto, em hotéis, pousadas, resorts e praças públicas.

Tentando entender a linha de sucessão discipular da capoeira ilheense, percebi que há

algumas linhas básicas. Uma delas, que inclui os grupos Luanda, Lua Branca, Águia Dourada e Tribo Unida é oriunda de Mestre Jamaica, soteropolitano que mora atualmente em Itacaré, sem raízes portanto na região. Uma outra é representada pelos grupos Camarada Camaradinha, Berimbau da Bahia, Ilhéus Show, Liberdade e Pequeno Mestre, e é oriunda de Aloísio de Mola. Aloísio foi assassinado com uma facada de um cigano na década de 80, por causa do amor de uma cigana, afirmam os capoeiristas. Sua figura é emblemática e parece ser a chave para a compreensão de um importante momento da história da capoeiragem de Ilhéus. Segundo alguns, ele era angoleiro, e decidiu aprender a capoeira regional em Itabuna, com Mestre Luiz Medicina. De acordo com outros, ele aprendeu capoeira de rua observando os malandros de Ilhéus. Vários mestres ostentam certificados assinados por ele, que segundo outro mestre, teriam sido distribuídos pelo aluno mais velho após seu falecimento, com assinaturas fantasmas.

O que parece ser consensual para diferentes mestres é a passagem de Aloísio de Mola pela academia Kassima, primeira academia de capoeira da cidade. Fundada na década de 70 por Mestre Jatobá, a Kassima reuniu representantes da capoeira angola e da capoeira regional, treinando em dias diferentes, mas foi extinta porque os alunos eram pobres e não pagavam mensalidades para dar sustentação à academia.

A família Barreto parece ser outra peça importante deste quebra-cabeça, sendo símbolo da caminhada de uma geração: o velho Barreto, estivador do Porto, era uma angoleiro antigo e notório, e seus filhos se tornaram professores e mestres de capoeira regional, construindo o grupo Cacau de Ouro. Assim também foi com Zé do Berimbau, antigo angoleiro que migrou para a capoeira regional e foi mestre de Dunga, que dirige o grupo Raízes do Quilombo e dá aulas aqui na UESC.

Então algumas questões vêm aparecendo. Por que a capoeira tradicional quase se extinguiu, deixando apenas um representante na ativa? Em que momento a capoeira regional deu a virada, tornando-se hegemônica no município ilheense, e como isso aconteceu? Por que uma geração quase inteira se converteu à nova tradição? Em que medida o processo de institucionalização de academias e o mercado turístico interferiram neste processo? A mudança do porto e o conseqüente deslocamento das rodas tradicionais, assim como flutuações no mercado de trabalho, tiveram influência nestas transformações?