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O apoio e o abandono do jornal O Estado de S. Paulo ao governo ditatorial do mal. Castelo Branco por meio de suas charges FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI RESUMO: Com este trabalho pretendemos mostrar, por meio das charges presentes no jornal O Estado de S. Paulo (OESP), como este apoiou, inicialmente, o governo Castelo Branco e suas medidas políticas e econômicas repressivas; mas, ao longo do tempo, foi enfraquecendo este apoio, até chegar à condenação, especialmente após as medidas tidas como "liberalizantes” como as eleições de 1965. Pretendemos mostrar como o jornal irá tentar reinventar a história e a memória de si como um jornal de vertente liberal e democrática ao afirmar, hodiernamente, que não apoiou certos atos repressivos como o AI-2 e que romperam com a ditadura por estes motivos. Entretanto, veremos que não só apoiam este Ato, como criticam a falta de medidas mais duras por parte de Castelo culminando com o apoio à candidatura de Costa e Silva, visto como alguém capaz de “salvar o espírito da revolução". Iremos mostrar essas posições políticas, e suas alternâncias, mediante o uso das charges presentes no jornal, pois estas são, até certo período da história da mídia, a expressão da opinião dos jornais expressas em seus editoriais. O jornal, suas convicções e influência no golpe de 1964 Trata-se do mais tradicional e tradicionalista jornal de nossas fontes e um dos mais influentes jornais desde sua concepção até hoje, um jornal sui generis em relação aos outros jornais brasileiros. É tido, tanto por seus leitores, quanto por seus reformuladores, como Cláudio Abramo e Augusto Nunes, como “pesadão”, oligárquico e sem apelo popular (FORATTINI, 2018: 53). Basta notar que ao longo de quase toda sua história o jornal trazia em sua capa notícias internacionais. Seus editoriais residem, até hoje, na página 3 e são longos, de linguagem rebuscada, afastando-se do leitor comum e focando nos formadores de opinião. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutorando em História Social, apoio CAPES.

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O apoio e o abandono do jornal O Estado de S. Paulo ao governo ditatorial

do mal. Castelo Branco por meio de suas charges

FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI

RESUMO: Com este trabalho pretendemos mostrar, por meio das charges presentes no

jornal O Estado de S. Paulo (OESP), como este apoiou, inicialmente, o governo Castelo

Branco e suas medidas políticas e econômicas repressivas; mas, ao longo do tempo, foi

enfraquecendo este apoio, até chegar à condenação, especialmente após as medidas tidas

como "liberalizantes” como as eleições de 1965. Pretendemos mostrar como o jornal irá

tentar reinventar a história e a memória de si como um jornal de vertente liberal e

democrática ao afirmar, hodiernamente, que não apoiou certos atos repressivos como o

AI-2 e que romperam com a ditadura por estes motivos. Entretanto, veremos que não só

apoiam este Ato, como criticam a falta de medidas mais duras por parte de Castelo –

culminando com o apoio à candidatura de Costa e Silva, visto como alguém capaz de

“salvar o espírito da revolução". Iremos mostrar essas posições políticas, e suas

alternâncias, mediante o uso das charges presentes no jornal, pois estas são, até certo

período da história da mídia, a expressão da opinião dos jornais expressas em seus

editoriais.

O jornal, suas convicções e influência no golpe de 1964

Trata-se do mais tradicional e tradicionalista jornal de nossas fontes e um dos mais

influentes jornais desde sua concepção até hoje, um jornal sui generis em relação aos

outros jornais brasileiros. É tido, tanto por seus leitores, quanto por seus reformuladores,

como Cláudio Abramo e Augusto Nunes, como “pesadão”, oligárquico e sem apelo

popular (FORATTINI, 2018: 53). Basta notar que ao longo de quase toda sua história o

jornal trazia em sua capa notícias internacionais. Seus editoriais residem, até hoje, na

página 3 e são longos, de linguagem rebuscada, afastando-se do leitor comum e focando

nos formadores de opinião.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutorando em História Social, apoio CAPES.

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Entendemos que podemos dividir a história do jornal O Estado de S. Paulo

(OESP), até o período estudado neste artigo (1967), em três momentos cruciais (ibid: 44).

O primeiro (1875-1927) será o de constituição de boa parte de sua ideologia econômica

e política que acompanhará, grosso modo, e ao menos no âmbito discursivo, toda a

história do periódico como parte de suas características essenciais: seu liberalismo

político deveras autoritário, a defesa do liberalismo econômico e dos interesses das

classes economicamente mais abastadas, defesa da propriedade privada, o

anticomunismo, a luta contra a corrupção e a defesa dos valores e da moral cristã (outra

característica fundamental do jornal somente será adicionada futuramente, o

antivarguismo). Também será neste período em que o ativismo político começa

gradualmente a deixar a “esfera intelectual” para abarcar intervenção direta, mas nada

próximo do que ocorrerá no segundo período.

Este será marcado pela entrada de Júlio de Mesquita Filho no jornal com a morte

de seu pai. Julinho (como era chamado pelos amigos) fará uma mudança mais agressiva,

tanto na defesa dos valores iniciais do jornal, quanto nas investidas políticas. Assim,

teremos investidas diretas, muitas vezes com armamentos, como em 1932, ou no campo

político e jornalístico com graves mudanças de seus paradigmas como em 1935 em que

apoiam a dura Lei de Segurança Nacional de seu “inimigo” Getúlio. Há, portanto, neste

período, um evidente endurecimento nos editoriais e na ação política do jornal.

O terceiro período ocorrerá em um ambiente “redemocratizado” em que

inicialmente apoiam a nova Constituição Federal de 1945 e apoiam o poder das urnas,

que rapidamente deixarão de acreditar no poder do voto e começarão a apoiar golpes

brancos, especialmente fundamentados numa base moralista e de luta à corrupção (assim

fizeram com Getúlio e com Juscelino). Quando estes não dão certo, dão apoio, voz e

dinheiro a grupos – dos quais fizeram também parte, sendo Júlio considerado um dos

membros mais influentes e, segundo Dreifuss, da chamada “linha dura” da ala paulista do

IPES (DREIFUSS, 2008: 250) –, que visavam um golpe civil-militar. Castelo Branco

chega a dizer que “o Estado vale mais que toda uma divisão blindada” (SEVERIANO,

2012: 138).

Assim, podemos dizer que o envolvimento dos Mesquitas no golpe não foi nada

desprezível, seja com o financiamento de órgãos como o IPES, seja com a compra de

armas, apoio tanto do jornal, quanto por trás dele como fica expresso em sua carta

(chamada “Roteiro da Revolução” e publicada em 1964) respondendo aos militares que

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lideravam o golpe em 1962 e que continham dúvidas em relação a como este deveria

ocorrer e se manter. Júlio dá as diretrizes dizendo, em suma, que as Forças Armadas não

deveriam mais se ausentar e, portanto, deveriam tomar o poder. Não se poderia fixar prazo

ao novo governo, mas este não deveria se alongar. Dever-se-ia realizar uma limpeza

radical tanto no Judiciário (mesmo que se tenha que “recorrer a processos aconselháveis

em últimas instâncias” e contando com juízes corruptos para isso), quanto no Legislativo

(suprimindo as imunidades e, depois, dissolvendo as Câmaras). Por fim, na seara

econômica, o governo deveria liberalizar a economia e privatizar o que fosse necessário

(FORATTINI, 2018: 52)

Não é à toa que será nessa época que OESP atingirá seu pico de tiragens (mais de

340 mil exemplares) e que publicará uma edição de domingo com a maior quantidade de

páginas de publicidades da América Latina. Olhando os balanços anuais do jornal em

1965 e 1966 podemos ver o quanto o jornal cresceu: o saldo do balanço da conta “Lucros

e Perdas” em 31/12/1964 (referente ao ano de 1964, mas que saiu em 13/04/1965, p. 28)

há um saldo positivo de 2.708.797.222 cruzeiros; já em relação ao ano seguinte, o balanço

de 31/12/1965 (divulgado em 26/03/1966) temos 4.095.804.201 cruzeiros. Ou seja, um

aumento já considerável em apenas um ano.

Legitimação do golpe pela caracterização dos militares como incorruptíveis em

contraposição aos inimigos

Como dissemos, iremos focar na representação que o jornal faz de Castelo Branco

ao longo dos anos, especialmente por suas charges. Inicialmente, nada mais esperado,

portanto, que o jornal apoiasse quase que incondicionalmente o golpe, o governo surgido

com este e seus governantes. Já no dia 02/04/1964, OESP saudará o golpe em sua página

tradicional de opinião, página 3, com o editorial “O significado maior de uma vitória”.

Para eles, antivarguistas, o que eles chamavam de “revolução” tinha um significado maior

que a deposição de Jango. O que o golpe teria feito é livrado o país das amarras do Estado

Novo. Seria culpa de Vargas, “o caudilho”, que o país passou pelas agitações do período

“democrático”; o “populismo” instituído por Vargas junto com suas políticas fascistas –

reproduzimos aqui a concepção de Júlio de Mesquita Filho – infiltraram-se em todos os

governos de então e somente com este “ato liberador” que resultou na deposição de Jango

(cria do “aventureiro” para eles) é que finalmente a democracia teria vencido no país.

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Se, por um lado, temos a caracterização do corrupto, do roto, imoral, que

representaria o período anterior; por outro, dever-se-ia mostrar que a “revolução”, como

diziam, trazia representantes ilibados, com alta moral – apoiando-se, principalmente, na

representação dos militares como seres diferenciados seu líder era Castelo Branco.

Podemos comprovar como a grande mídia não só compartilhou dessa visão, como

reforçou essa tendência apologista mediante seus editoriais publicados durante esse

período. Eles farão referência contínua e irrestritas a essa suposta moral elevada,

normalmente empossada nas altas patentes que, por hierarquia, passavam-nas às patentes

mais baixas. OESP, no editorial “A forte personalidade do nôvo líder”, tecerá vários

elogios ao novo presidente.

Não é estranho à atmosfera de paz, serenidade e confiança hoje reinante no

País, o acerto da Nação ao escolher o marechal Castelo Branco para a

suprema magistratura republicana neste instante [...][Das] virtudes se

destacam a energia, a retidão, o espírito de disciplina, o dever na obediência,

assim como o senso de justiça e todas as demais qualidades indispensáveis

para que se considere exemplar um grande soldado. (OESP 16/04/1964)

Já os políticos não serão, em geral, vistos com bons olhos pelos jornais, em

especial pelo OESP, e serão quase sempre caracterizados como aproveitadores que se

utilizam da revolução como forma de proteção para seus abusos. A imagem da raposa

atacando a “revolução” é um elemento comum nas charges d’OESP desde o início de

abril de 1964. O primeiro caso, por exemplo, foi em 07/04/1964 (apenas três dias após

um editorial do jornal utilizar essa figura), em que as raposas após fartarem-se no governo

anterior (por isso os ossos no chão), visam o novo governo, representado aqui como um

ser frágil, passível de ser destruído por elas, figura muito diferente de outras

representações como, especialmente devido à conveniência do nome do mal. Castelo

Branco, algo protetor, forte, uma barreira contra os inimigos. Não cabia ao jornal passar

a imagem de um governo dirigido por militares como frágil. Assim, quando a

conveniência pedia, o governo era frágil e seus inimigos poderosos; quando não,

retificava-se a força do governo:

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Figura 1. Rapôsas em ação

Fonte: Biganti, OESP, 07/04/1964, p. 4

Figura 2. Castelo Branco

Fonte: Biganti, OESP, 08/04/1964, p. 4

Apoio ao AI-1 e o fim de direitos individuais

O tom da crítica aos políticos subirá junto com as ações do governo. Assim,

quando este edita o AI-1, OESP lançará o editorial “Inimigos da Revolução”:

Animados pelo fato de os líderes militares e civis da nova ordem de coisas

quererem evitar quanto possível traumatizar a Nação, conservando

praticamente inalterável as instituições que vigoram desde 1946, esses

indivíduos procuram valer-se das posições que ocupam no Congresso nacional para vibrarem um golpe mortal no espírito que presidiu e preside a

ação revolucionária [...] impedir que o futuro governo leve às últimas

consequências a operação de limpeza. (OESP, 10/04/1964)

As charges d’OESP sobre esse momento explicitam bem essa necessidade de

expurgar a todos e não apenas os tidos como comunistas. Mostra dessa preocupação do

jornal é que serão cinco charges seguidas (do dia 14 a 19 de abril – notando que dia 16

não teve charge) atacando unicamente os políticos.

Figura 3. Cassação de Mandatos [s/n]

Fonte: Hilde, OESP, 07/04/1964, p.4

É interessante notar como o tema da limpeza, da higiene está sempre presente nas

charges em que se é necessário o uso da força. Outras ações repressivas por parte do

governo em especial contra as associações de classes e estudantes, eram defendidas pelo

jornal, buscando legitimar as ações governamentais, claramente antidemocráticas.

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Figura 4. Dedetização nos Sindicatos [s/n]

Fonte: Hilde, OESP, 21/04/1964, p. 4

Em editorial “A revolução e os sindicatos” (OESP, 08/04/1964), desde logo

delimitam a relação trabalhador-governo como “o maior problema”. Dizem que desde o

Estado Novo os sindicatos estiveram ligados ao Ministério do Trabalho que realizava a

política que bem entendia o governo em poder. Pedem, como medida do governo,

portanto, não somente a limpeza necessária, mas a mudança da estrutura legal, caso

contrário, “arrefecidos os ânimos, os comunistas voltarão a infiltrar-se na máquina

sindical e paulatinamente chegarão a dominar de novo suas cúpulas”.

Já a “alienação” dos estudantes adviria do fato deles não saberem o que faziam.

Na charge a seguir vemos um estudante sendo puxado por uma mão de traços firmes,

adulta – algo reconhecível pelo fato de possuir um terno. Seria a figura autoritária paterna

que cansou das “artimanhas” da “criança”. Este é representado como alguém arteiro,

inconsequente, cabeludo, com roupa da UNE e livros de Marx, Castro e Mao.

Figura 5. Estudantes [s/n]

Fonte: Hilde, OESP, 16/07/1964, p. 4

Ainda no front dos inimigos teremos o “combate à corrupção”. Este seria um dos

maiores problemas do governo de Jango. “Mansamente se vão higienizando as posições

políticas, quietamente se vão afastando dos cargos administrativos os corruptos e os

corruptores” (OESP, 16/04/1964).

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Figura 6. Castelo e os Ratos [s/n]

Fonte: Biganti, OESP, 24/04/1966, p.4

Figura 7. Os "democráticos"

Fonte: Biganti, OESP, 18/06/1966, p.4

Estas duas charges simbolizam boa parte das representações do jornal paulista

sobre qualquer político que buscava realizar alguma crítica ao governo em seus primeiros

anos. Na charges acima, vemos os políticos sendo caracterizados como ratos que estariam

sendo afastados do governo e do tesouro público e só por isso reclamavam da ditadura.

É interessante essa estratégia de vilificar um grupo opositor pela representação de

animais tidos como sujos (ratos, baratas) ou ligados a sujeira (urubus). Trata-se de uma

estratégia muito utilizada em regimes autoritários ou envolvidos em guerras. O caso mais

conhecido é da propaganda nazista contra os judeus: sempre associados a ratos. Essa

antropomorfização é uma tática eficaz para desumanizar um grupo e, assim, parar de

associá-lo ao cidadão comum, apto a participar da vida política. Temos um tipo de

imagem que traz uma visão binária de mundo de “eles” contra “nós”: o inimigo é

assinalado, compulsoriamente julgado e com a sentença determinada.

Por outro lado, nos editoriais e charges d’OESP, temos também a crítica ao

governo. Seu problema seria seu “espírito legalista”, quem estaria emperrando a

dedetização do país.

Figura 8. Revolução e Legalismo [s/n]

Fonte: Biganti, OESP, 29/04/1965, p.4

Figura 9. Triste Herança

Fonte: Biganti, OESP, 17/07/1966, p.4

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Dizem que o poder dado ao governo com o AI-1 era necessário somente para

conseguir alcançar os “anseios do povo”, a moralização das esferas do Poder, impor a

ordem econômica e financeira e drenar os bolsões dos agitadores comunistas do país. “O

clima político-social do País já mudou. [...] Restaura-se a tranquilidade e a confiança.

Reafirma-se a ordem e a disciplina”. (OESP, 12/04/1964)

O artigo 7º (que suspendia, por seis meses, as garantias constitucionais ou legais

de vitaliciedade e estabilidade) figurará inclusive em charges, como um instrumento

capaz de eliminar a corrupção e os comunistas (ratos e barbudos, respectivamente):

Figura 10. Golpe Final

Fonte: Biganti, OESP, 10/10/1964, p.4

Quanto aos Inquéritos Policiais-Militares (IPMs), apesar de existirem desde os

anos de 1920, com Castelo eles adquirem outra roupagem, não mais se restringindo a

apurações dentro da corporação militar. Assim, no dia 27/04/1964 pelo decreto-lei Nº

53.897, Castelo Branco institui os IPMs, já previstos no AI-1. Estes deveriam ter um

caráter de instrução provisória, visando apurar responsabilidades e elementos necessários

para uma possível ação penal julgada pelo Judiciário. Entretanto, configurou-se em

instrumento de abuso de poder por parte das pessoas que podiam instaurá-lo, muitas vezes

movidos a pedido de empresários, políticos e pessoas influentes.

Como cabia ao Judiciário a palavra final sobre os inquéritos, este será alvo de

fortes ataques por parte dos militares e civis apoiadores do golpe, incluindo OESP. A

concessão do habeas-corpus era retratada pelo OESP como um empecilho à “revolução”1.

Figura 11. Habeas Corpus e Subversão [s/n]

1 Entretanto não devemos generalizar e entender o Judiciário como um entrave aos propósitos da

“revolução”, especialmente nas instâncias inferiores, em que muitos juízes apoiaram esses atos.

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Fonte: Biganti, OESP, 27/04/1965, p.4

Figura 12. Do Contra

Fonte: Hilde, OESP, 03/12/1964, p.4

Tamanho foi o apoio d’OESP que este chega a sugerir que qualquer inquérito saia

da alçada civil e passe para a militar (OESP, 02/08/1964). No mais, tudo eram boatos para

desmoralizar o governo, como diria OESP: “Reina tranquilidade em S. Paulo; só boatos”:

[No Estado] desencadeou-se uma ofensiva organizada de pronunciamentos e comunicados etc., visando distrair ou confundir a opinião pública e, ao mesmo

tempo, desmoralizar os militares. (OESP, 27/10/1964, p.4)

Os IPMs, para eles, seriam uma luz que mostraria e prenderia a cobra da subversão

e os ratos da corrupção e comunismo.

Figura 13. IPMs [s/n]

Fonte: Biganti, OESP, 25/06/1965, p.4

Eleições de 1965 e o rompimento do jornal com Castelo

Visando acalmar a opinião pública – apreensiva com os rumos do país após tantas

notícias de torturas, censura e outros abusos – o governo de Castelo Branco, querendo

mostrar suas “aspirações democráticas”, promete cumprir o calendário eleitoral e realizar

as eleições programadas em onze estados. As eleições e sua preparação coincidiriam o

fim dos poderes extraordinários do AI-1, auxiliando a encenação de um “retorno à

normalidade”. Mas não imaginavam quão mal a opinião popular via o governo. Será

somente com algumas pesquisas de opinião desfavoráveis que o governo entenderá o

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caráter plebiscitário que essas eleições possuirão sobre a política econômica, social e

política, fazendo com que muitos militares pedissem pelo cancelamento das eleições.

O jornal paulista não será tão apegado a se mostrar “legalista” e não estará nem

um pouco contente com as eleições, especialmente, com a vitória dos nomes da oposição.

Chama as eleições de “Horas Crepusculares” (OESP, 03/10/1965). Para o jornal, não há

nada para se comemorar: o coronelismo ainda sobrevivia no Nordeste; em outros lugares,

dizia o jornal, sobrevivia o “revanchismo da corrupção, da demagogia e da politicagem”.

Castelo teria traído a “revolução” ao realizar essa eleição e ao limitar os efeitos do AI-1.

Não, não foi a Nação que falhou. Quem falhou em sua missão foi a chamada

cúpula revolucionária, que perseverou [...] num caminho que a levaria a

deslizar fatalmente até o completo malogro. [...] [É] a triste realidade da volta

das agitações extremistas, do retorno das influências cassadas, do renascimento das ambições ilegítimas. (OESP, 03/10/1965)

Na charge “Sozinho” temos uma representação de uma tentativa da volta dos

“subversivos e comunistas” que tinham sido expulsos da política, como Jango, JK e Jânio.

O governo da Guanabara, do favorito dos Mesquitas, Lacerda, de braços fortes,

proporcionalmente representado como muito maior que os outros, luta para manter a

“revolução”. No fundo, pequenino, observando, temos Castelo. A acusação é clara:

querem voltar ao poder e destruir os “propósitos da revolução”.

Figura 14. Sozinho

Fonte: Biganti, OESP, 02/10/1965, p.4

Figura 15. Entregue às baratas

Fonte: Hilde, OESP, 13/10/1965, p.4

A charge anterior falará sobre as prioridades de Castelo. Trata-se de uma charge

simples e direta: vemos Castelo editando pilhas e pilhas de leis, mas na gaveta, deixada

às favas, está a “revolução de 31 de março”. O jornal havia mesmo rompido com Castelo,

nunca antes as charges havia o mostrado como alguém indeciso, fraco, displicente, sem

compromisso com a “revolução”. Já no dia 03/10/1965 soltam um editorial chamado de

“A sala do Exército”. Nele dizem que no meio de toda essa bagunça criada por Castelo e

suas “hesitações”, “fraquezas” e “desvios”, “consola-nos reconhecer a existência de uma

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constante, retilínea e inabalável, no pensamento e na conduta de nossas Forças Armadas”.

Este era liderado por Costa e Silva. Emitem o mesmo discurso da linha dura de que os

militares estariam sendo deixados de lado por Castelo diante de críticas, fazendo com que

a “revolução” fosse deturpada. Em dia eleitoral, o jornal lança seu candidato!

Assim, propomos uma interpretação diferente da narrativa do jornal

hodiernamente de que rompeu com a ditadura com a edição do AI-2. Mostramos aqui que

o rompimento é anterior e não com a ditadura e seu regime, apenas com Castelo. Não faz

sentido a narrativa do jornal de que rompem com o AI-2 porque boa parte dos pedidos do

jornal são a favor das posições da linha dura: mais apoio aos IPMs; mais expurgos; mais

repressão; cobrem a tortura; não querem eleições; batem nos partidos de oposição.

Apoiam a chegada do AI-2 e, depois, a nomeação de Costa e Silva. Isso só mudará quando

veem que este não possui nenhuma inclinação em modificar as leis mais duras que eles

não queriam, muitas delas propostas por Castelo, e que a censura chegaria até mesmo a

eles: aí sim rompem com Costa e Silva e com o regime.

Com o AI-2 temos um jornal que inicialmente apoiará este texto duríssimo. Em

“O inevitável aconteceu” lançado no dia 28/10/1965, tratarão o ato como inevitável e,

finalmente, um ato justo de Castelo que abandona a via “legalista” (aspas do jornal) para

compreender “finalmente que o processo revolucionário é incompatível com uma política

de conciliação”. Foi um ato de “sobrevivência da Revolução, [contra] o regresso puro e

simples ao passado”. Justificam o AI e louvam-se de sempre terem avisado que ele era

necessário e fundamental para a “revolução democrática”. O AI-2 foi algo a se rejubilar

para o jornal, pois agora sim a “revolução” faria o que tinha que fazer: a limpeza. “Tem

s. exa. Tudo na mão para que esses anseios populares se transformem em realidades no

decurso de um processo autenticamente revolucionário”. Se havia reservas nas

manifestações populares em relação a este ato, isso seria prova não da infelicidade com o

ato, mas com Castelo que já teve os poderes antes e não os utilizou. Feliz é a opinião

pública que dispõe de um OESP para ser reinterpretada.

A saga da metamorfose kafkiana de Castelo Branco pelas charges d’OESP

Após este desgaste irreconciliável entre Castelo e o jornal e a linha dura, as

representações do antes “salvador da pátria” e “soldado modelar” irão alterar-se

radicalmente. De Castelo, ou seja, de um símbolo, o marechal será mostrado como uma

pessoa. Primeiramente de costas, normalmente mostrando como alheio; depois, a partir

de março de 1966, teremos Castelo quase que onipresente nas charges do jornal. Seu rosto

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será cada vez mais destacado, seus olhos mais fundos (a escuridão das olheiras cada vez

mais forte). Não será mais o homem incorruptível: se o defendiam das graves denúncias

relativas ao caso dos minérios, dizendo se tratar de maturidade abrir o mercado aos

estadunidenses; agora, trata-se de grave caso de corrupção e Castelo, sabendo, finge que

não vê (inicialmente, dá as costas; depois, simplesmente olha para o lado,

despreocupadamente).

Figura 16. Minérios I [s/n]

Fonte: Hilde, OESP, 07/04/1966, p.4

Figura 17. Minérios II [s/n]

Fonte: Hilde, OESP, 14/04/1966, p.4

Castelo é persona non grata na Redação do jornal paulista. Sua figura é mostrada

como um ser antipático, maldoso. Vejamos as duas figuras abaixo. A primeira faz uma

alusão à grande obra de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray. Nesta obra, Wilde

descreve o inicialmente belo e puro (interna e externamente) Dorian Gray que ira se

perverter com as mundanidades e vaidades do cotidiano, mas querendo preservar sua

beleza, ele vende sua alma em troca dela (somente o retrato iria envelhecer e apresentar

seus defeitos). O mesmo teria ocorrido com Castelo. Entretanto, interessante notar que a

figura do retrato não é bem um retrato, pois ela será espelhada nas charges em diante. O

retrato se torna a pessoa, Castelo não consegue nem se dar ao luxo de disfarçar a sua

horrível aparência interna como fazia Dorian Gray: Castelo seria nas charges (o seu

externo) o que era internamente. Na outra charge, há um agravante: é claramente chamado

de “burro”: Castelo está andando sem aperceber-se de um Congresso que, como na

brincadeira, prega no burro o rabo.

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Figura 18. O retrato de Dorian Gray

Fonte: Hilde, OESP, 12/01/1966, p.4

Figura 19. Nada lisonjeiro [s/n]

Fonte: Hilde, OESP, 19/01/1966, p.4

Vemos que desde janeiro de 1966 os ataques pessoais passaram a ficar mais

pesados (podemos até cogitar se tratar de uma “resolução de ano novo” do jornal). Castelo

é acusado de ser, na verdade, Vargas. Basta olhar para sua sombra que veríamos quem

realmente é quem. Castelo seria “A sombra de 30”, um ditador que fingia ser “democrata”.

Esse discurso, por sinal, vem desde o meio de abril com editoriais como “A ditadura e a

conjuntura atual” (26/04/1966) e “Vargas, Castelo Branco e S. Paulo” (30/04/1966). Na

próxima charge colocam-no “panteão” da política brasileira, com companheiros nada

lisonjeiros, para o jornal. Nesta “galeria dos senadores” romanos/brasileiros, teremos

além de Castelo Branco, JK, Jango e Jânio. Ou seja, mais um indesejável da história

política brasileira para o jornal.

Figura 20. A sombra de 30

Fonte: Hilde, OESP, 29/01/1966, p.4

Figura 21. Galeria dos senadores

Fonte: Hilde, OESP, 30/04/1966, p.4

Por fim, teremos uma comparação entre Castelo Branco e Costa e Silva, já em

1967. A primeira charge teremos Castelo negando ser ditador, mas obviamente sendo,

especialmente com as leis que carregava no bolso (Lei de Imprensa, a Nova Carta, Lei de

Segurança Nacional e as Cassações que ocorreriam. Sua figura é a mesma, antipática,

idosa e frágil (sobre a altura, antes o jornal nunca o colocava como um homem baixo, era

da mesma altura que outras figuras, depois isso se altera). Na próxima charge, temos

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Costa e Silva. Homem forte d’OESP, costas fortes (por sinal, devemos notar o quanto os

nomes destes dois personagens possibilitavam representações elogiosas) que trabalharia

em nome da “revolução” (opinião que mudará logo após sua posse).

Figura 22. Ditador, eu? [s/n]

Fonte: Hilde, OESP, 05/02/1967, p.4

Figura 23. Costas fortes

Fonte: Biganti, OESP, 17/05/1967, p.4

Sobre a Lei de Segurança Nacional, teremos charges quase que diárias sobre sua

ligação com o fascismo. Inicialmente, sua ligação com os regimes totalitários de então

era feita de modo direto com Castelo. Surge um “novo” personagem nas charges, que

durará por certo tempo, um “urubu nazista” (não é o nome oficial, não há). Este urubu

gerido na época da Páscoa de 1967 (nasce do ovo da LSN de Castelo) ficará pairando sob

o governo de Costa e Silva. A confiança neste e em sua vontade real em rever estes

projetos leva a sua caracterização agora de indeciso, permitindo o urubu sentar-se em sua

mesa e o presidente simplesmente ponderar sobre ele ao invés de afastá-lo.

Figura 24. Páscoa 1967

Fonte: Biganti, OESP, 26/03/1967, p.4

Figura 25. Triste herança

Fonte: Biganti, OESP, 28/03/1967, p.4

Mais à frente teremos esse urubu tomando todo o Brasil aos olhos do mundo, a

ameaça já era real e o mundo, agora, “percebeu-se” disso, para o jornal paulista.

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Figura 26. Desconfiança

Fonte: Biganti, OESP, 02/04/1967, p.4

É interessante, também, contrastar a charge “Rever ou não rever” de Hilde com

outra feita logo no começo do ano em que Castelo aparece como um trovador novamente,

cantando sua bossa, em que diz que irá ter nova Carta, Lei de Imprensa e LSN. Ao seu

lado, na esquerda, podemos ver um rato, indicando o não tão antigo discurso de que

Castelo era conivente com a corrupção. Do outro lado, temos Costa e Silva em típica pose

de quem não estava gostando do que estava sendo cantado, mas próximo a entoar a sua

música (sendo o próximo presidente). A história mostrou que Costa e Silva não foi o

salvador do país, como desejavam os Mesquitas e ele não se opunha de modo algum às

medidas que tanto criticavam em Castelo pós-eleições de 1965. O dono do jornal se

decepcionou tanto com Costa e Silva a ponto de escrever em seu último editorial: “A

instituição em frangalhos”, em resposta ao AI-5: que levou à censura do jornal e ao

afastamento de Júlio de Mesquita. Este morrerá em torno de meio ano após esse episódio.

Figura 27. Rever ou não rever

Fonte: Hilde, OESP, 26/04/1967, p.4

Figura 28. Os trovadores

Fonte: Hilde, OESP, 08/01/1967, p. 4

Referências

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 5ª Ed., Rio

de Janeiro: Petrópolis, 1989.

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DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado, Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 2008.

FILHO, Luís Viana. O Governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975.

FONSECA, Francisco. O consenso forjado. São Paulo: Hucitec, 2005.

FORATTINI, Fernando Miramontes. Em construção... E desconstrução...: discursos e

representações presentes nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo durante o governo

Castelo Branco (1964-1967). 2018. 310 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa

de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

São Paulo, 2018.

MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira. 1968-1978. São Paulo:

Global Editora, 1980.

MESQUITA, Ruy. “A Imprensa e a História”. In: Lua Nova, v.1, n.2, 1984.

SEVERIANO, Mylton. Nascidos para perder. Florianópolis: Insular, 2012.