Resumo e Comentário

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“O que diz Molero”, de autoria do jornalista e escritor português Dinis Machado

(Lisboa, 21 de Março de 1930 – Lisboa, 3 de Outubro de 2008), e editado em 1977, no

pós 25 de Abril, conta a história de um rapaz, do qual nunca é referido o nome. As

aventuras (viagens, episódios de infância, encontros, etc.) deste rapaz fazem parte dos

relatórios de um detective – Molero, contratado por uma Organização para o seguir.

Na edição do livro que li (Quetzal Editores, Lisboa 2009), estava contido um posfácio,

da autoria de Nuno Artur Silva, que simulava uma entrevista a Molero. Nesta Molero

refere que “A Organização defende a teoria segundo o qual se pode estudar a História

de toda uma época detendo-nos unicamente na história de um só indivíduo…”, como

resposta ao porquê da investigação ao rapaz. No entanto, Dinis Machado não deixou

nenhuma resposta concreta à pergunta ao longo do livro, não havendo maneira de

realmente provarmos por que razão o rapaz estava a ser investigado. A forma como é

contada esta história é peculiar, sendo o fruto de uma conversa em que Austin e

Mister Deluxe, supervisores de Molero, lêem os relatórios do mesmo. Assim, Austin e

Mister Deluxe não são verdadeiras personagens, pois não participam na verdadeira

história que está a ser narrada, assumindo um papel de interlocutores e existindo

apenas enquanto suportes do discurso sobre as verdadeiras personagens – aquelas

que fazem parte da história do rapaz.

As primeiras palavras do livro, respeitantes ao rapaz, são que este “Teve uma

infância estranha”. Ao longo do livro vamos percebendo porquê. Vamos observando,

como espectadores desta conversa entre Austin e Mister Deluxe, que o rapaz cresceu

no seio de uma família problemática, em que o pai tinha problemas alcoólicos com que

a mãe não sabia lidar, sujeitando-se aos seus abusos. Das figuras da sua infância faziam

ainda parte um “tio napolitano, ou que cantava canções napolitanas, o relatório não

especifica” que passava tardes a tentar acertar, à distância, num escarrador, e que o

rapaz observava fascinado. Há aqui uma interrupção no relato, em que é reforçado por

Mister Deluxe que todas as infâncias são estranhas, e que uma situação como a

descrita, ou outra de cariz semelhante, estaria presente na infância de qualquer

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pessoa. Ou seja, nenhuma infância seria realmente tão estranha assim, sendo estes

episódios parte normal da mesma. No relato das personagens relevantes para a

infância do rapaz, segue-se Leduc, um ex-ginasta, agora limitado a uma cadeira de

rodas. Segundo Molero, o rapaz afeiçoou-se a ele pois o facto de o ver numa cadeira

de rodas fazia-o sentir-se útil para com os outros, ajudando Leduc a fazer as suas

traduções de livros infantis, e desenvolvendo uma grande amizade com o mesmo. O

rapaz chegou até a escrever um poema dedicado ao ex-ginasta, que acabou publicado

como prefácio de uma das suas traduções, tendo, aquando da morte de Leduc,

recebido grande parte da sua herança.

O relato da vida do rapaz prossegue até à sua adolescência, onde encontramos

Zuca, o típico adolescente rebelde, quase criminoso. O rapaz impressionava-se com

essa vitalidade, arrogância e rebeldia adolescente, aspirando a ser como ele, sem no

fundo ter a verdadeira coragem para tal. Ao mesmo tempo, sentia um leve desprezo

pela forma como Zuca vivia a sua vida. Como diz Austin: “Zuca foi […] alfa e ómega na

existência do rapaz, deus e boneco de trapos”, mencionando de seguida que existe um

“Zuca” na vida de cada pessoa: aquele ou aquela que de repente se torna o herói da

nossa adolescência, apenas para mais tarde nos desiludir após um ato de cobardia ou

um momento de fragilidade. Ainda relativamente à rebeldia e delinquência, surge-nos

o relato das seitas e lutas de rua, com especial destaque para os Vai ou Racha, que

provocavam quem passava nas ruas e faziam contrabando. E surge aqui a figura do

Ângelo da harmónica, filho do Bigodes Piaçaba, que desafiava os Vai ou Racha, e,

juntamente com Zuca, se envolveu em míticas lutas que marcaram a adolescência do

rapaz. Outra mítica luta referida ao longo de todo o livro, é a luta entre Bowen e Burke,

usada como meio de comparação com todas as outras lutas e acidentes, por toda a sua

dimensão, já que é considerado “o combate mais comprido de toda a história do boxe,

um combate que acabou empatado porque ambos eram invencíveis”.

Quando aos amores do rapaz, é referida, quase no início do livro, La Petite

Mireille, candidata ao elenco da Comédie-Française, que nunca conseguiu o papel. No

entanto, esta relação não durou muito tempo, e apesar de nunca ter sido descoberta a 3

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razão do fim, sabe-se que o rapaz, perturbado pelas suas experiências de infância, só

conseguia ter relações com ela no chão, de forma a não ouvir o chiar da cama, e de

forma silenciosa, para não se recordar dos gemidos da mãe que ouvia do seu quarto

enquanto criança.

No rol de personagens importantes seguem-se o Descoiso e o Peida Gadocha,

que faziam parte do grupo do rapaz, e a história do Vampiro Humano. Esta surgiu

depois do Descoiso ter visto um filme do Drácula e declarar guerra ao Vampiro

Humano, um homem assim chamado por andar sempre vestido de preto, com os olhos

encovados, e ser extremamente magro. Começam então a vigiar os passos deste,

procurando fazer-lhe armadilhas, e envolvendo-se entretanto em discussões sobre

vampiros, a forma como estes viveriam, o que comiam, etc., acabando por inventar

uma reza que, na teoria, afastaria o Vampiro Humano. No entanto, este morreu na

véspera do dia planeado para a armadilha, não chegando o rapaz e os amigos a

efectuá-la. Mostra-se aqui a ironia do planeamento, e como ao longo da vida há

sempre planos, por mais simples ou até ridículos que sejam, que acabam por dar

errado pelas mais variadas razões. Vendo a perseguição ao Vampiro Humano falhada,

o tema de conversa passa a ser a tia maluca do rapaz, que, segundo este, só falava em

comboios e serradura, ou seja, dizia coisas sem sentido. No entanto, após a discussão

com os amigos, a conclusão a que chegam é que todos eles tinham alguém “maluco”

na família. Mais uma vez, como todas as infâncias, adolescências ou vidas são

estranhas, acaba por nenhuma o ser, e o facto de o rapaz ter uma tia maluca acaba por

não ser um motivo de estranheza. Mais ou menos a meio do relato, Austin refere que

todos os indícios estão na infância do rapaz, sendo esta um prefácio para tudo o resto.

Contudo, Mister Deluxe logo ali desvaloriza essa observação, chamando-lhe a atenção

para o facto de todas as infâncias terem esse efeito.

O rapaz escrevia poemas, tendo escrito um livro de poemas intitulado “Angel

Face, de título possivelmente inspirado no rosto de mulher que viu num comboio. No

entanto, pode na realidade ser qualquer mulher com que o rapaz se tenha encontrado:

uma representação de cada mulher e de nenhuma em particular, ao mesmo tempo.4

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A parte mais revolucionária deste livro, para a época, prende-se com a forma

como os relatos são feitos, de forma crua e sem pudor, variando entre uma linguagem

popular e até grosseira e uma mais cuidada, dependendo da situação descrita. Uma

das partes mais chocantes quanto à linguagem, é a descrição de Evaristo, um rapaz

obcecado com a “tusa”, que defendia que o rapaz apenas escrevia versos por “falta de

tusa”, e que com a idade dele deveria preocupar-se em seduzir raparigas e não em

escrever versos.

Entram aqui no relato as muitas viagens que o rapaz fez em busca do sentido

da sua existência, as personagens que conheceu nas mesmas, e as peripécias em que

se envolveu. Todas elas descrevem a forma como os homens se relacionam, tendo em

conta diferentes contextos. Ficamos também a saber que o rapaz perdia os seus

poemas por muitos dos sítios onde passava, deixando atrás de si uma marca, que fez

com que fosse mais fácil para Molero seguir as suas pisadas. Um aspecto referido que

considero interessante é que o rapaz escolhia alguns dos seus destinos de viagem pela

forma como os nomes dos mesmos lhe soavam e se, ao chegar ao local, o nome não

lhe parecesse corresponder à paisagem que via, dava ele próprio um novo nome ao

país, tratando-o pelo mesmo nos seus versos e escritos.

O relato termina com um texto do rapaz sobre a “Praia de Pensar Nisso”, um

local paradisíaco onde as pessoas se tornariam em estrelas. As estrelas, neste caso, são

todas as pessoas importantes para o rapaz, quer as que conheceu pessoalmente, quer

as celebridades que idolatrava. Na Praia de Pensar Nisso haveria uma muralha

construída com todas as recordações queridas da pessoa, para que ela se pudesse

transformar tranquilamente numa estrela.

Poderíamos concluir que, com este livro, Dinis Machado descreve a vida de

qualquer pessoa e de nenhuma em particular, tendo todos em nós um pouco do rapaz

e um pouco de cada uma das personagens que este encontrou ao longo da sua vida.

No entanto, podemos ir mais longe que isso, concluindo que o livro relata, mais do que

isso, as experiências pessoais do autor, funcionando como uma obra quase

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autobiográfica, de forma metafórica. Não deixamos, no entanto, de nos rever no rapaz

e nas suas experiências de vida. Em suma, ao relatar a vida do rapaz, e talvez a sua,

Dinis Machado relata a história de uma época, com todas as suas particularidades e

com todas as suas semelhanças com qualquer outra época, procurando encontrar e

definir a identidade portuguesa, um pouco perdida.

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