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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO Ricardo Nicotra (Mestrando) Nº USP 1902001 Orientadora: Profa. Doutora Cíntia Rosa Pereira de Lima Responsabilidade Civil pelo Fato do Produto e do Serviço DCV5942 Responsabilidade Civil: Desafios e Perspectivas Professores Regentes: Prof. Titular Fernando Campos Scaff Professora Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos Professor Doutor Marco Fábio Morsello Professor Doutor Rodrigo de Lima Vaz Sampaio 2015

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO

Ricardo Nicotra (Mestrando)

Nº USP 1902001

Orientadora: Profa. Doutora Cíntia Rosa Pereira de Lima

Responsabilidade Civil pelo Fato do Produto e do Serviço

DCV5942 – Responsabilidade Civil: Desafios e Perspectivas

Professores Regentes:

Prof. Titular Fernando Campos Scaff

Professora Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos

Professor Doutor Marco Fábio Morsello

Professor Doutor Rodrigo de Lima Vaz Sampaio

2015

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Responsabilidade Civil pelo Fato do Produto e do Serviço

1. Sumário

2. Introdução ...................................................................................................... 3

3. Origens e Evolução ........................................................................................ 5

A Responsabilidade pelo Fato da Coisa Inanimada .................................................. 5

A Responsabilidade na Sociedade de Risco ............................................................. 7

4. Conceito ....................................................................................................... 11

5. A Responsabilidade pelo Fato do Produto no Direito Estrangeiro .............. 12

A Experiência dos Estados Unidos da América ..................................................... 13

A Diretiva 85/374 da Comunidade Europeia .......................................................... 15

Teoria dos Riscos do Desenvolvimento.................................................................. 16

6. A Responsabilidade pelo Fato do Produto no Direito Brasileiro ................ 18

7. Conclusão .................................................................................................... 22

8. Bibliografia .................................................................................................. 23

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2. Introdução

O termo “responsabilidade”, no âmbito civil, geralmente traz consigo o

sentido de dever de reparar um dano. No entanto, sabe-se que ele deriva do termo sponsio

cujo sentido, no contexto da stipulatio, era o de promessa. Ao celebrar um contrato solene

perguntava-se: “Spondes?” (Prometes?), ao que se respondia: “Spondeo” (Eu prometo).

Daí surgia uma obrigação onde o devedor oferecia uma garantia, um responsor. Note-se

que o termo “responsabilidade” deriva de um conceito que não estava vinculado, na

origem, com a ideia de culpa ou de reparação de um dano.

O conceito que hoje mantemos acerca da responsabilidade civil não está

relacionado àquele vinculado a sua origem etimológica, conforme citado no parágrafo

anterior, mas encontra seu ponto de partida na vingança privada como reação espontânea

e natural contra um mal sofrido, vingança pura e simples que, em momento posterior,

passa a ser regulada pelo poder público: a pena de Talião cujos elementos podem ser

encontrados na lei das XII tábuas. Assiste-se, em seguida, à introdução de regras que

estabelecem a composição tarifada em resposta aos danos até o advento da lei Aquilia

que estabelece a estrutura jurídica para a responsabilidade extracontratual em Roma.

Grande discussão foi travada a respeito da culpa, na lei Aquilia, ser

requisito essencial para a restituição do dano causado. ALVINO LIMA afirma ser

incontestável que a evolução do instituto da responsabilidade extracontratual ou aquiliana

tenha se operado no direito romano no sentido de introduzir o elemento subjetivo da

culpa. Conclui o referido professor titular da Faculdade de Direito do Largo São Francisco

referindo-se à adoção do elemento culpa para a caracterização da responsabilidade:

“São os ensinamentos e conceitos provindos do direito romano

que constituem o fundamento da responsabilidade aquiliana no

direito moderno. O princípio da responsabilidade aquiliana

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continua, na sua essência, a ser o mesmo em todas as codificações

dos povos cultos”.1

Atualmente “responsabilidade” pode ser considerado um termo

polissêmico sobre o qual divergem diversos autores os quais atribuem distintas funções à

responsabilidade: reparatória, punitiva, dissuasória (deterrence), promotora de justiça

social, etc.

No estudo da responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço parece

adequada a definição de RENÉ SAVATIER segundo a qual a “responsabilidade é a

obrigação de alguém ter que reparar o dano causado a outrem por fato seu, ou pelo fato

das pessoas ou coisas que dele dependam”.2

A definição acima inclui o “fato da coisa” como causa de

responsabilização. No entanto, nem sempre foi assim. Ver-se-á adiante, no estudo das

origens do instituto, como o conceito de responsabilização pelo fato da coisa evoluiu até

chegar ao que hoje, no contexto de uma sociedade de consumo, denominamos de “fato

do produto”.

O presente estudo também versará sobre o papel da culpa no

desenvolvimento do sentido e extensão da responsabilidade. Especial atenção será dada

à denominada responsabilidade objetiva, também conhecida como responsabilidade

independente de culpa, tendo-se em vista o risco criado por determinadas atividades. Este

tipo de responsabilidade é aplicado, inicialmente, nos acidentes de trabalho com produção

mecanizada que expunha os trabalhadores a grande risco e, posteriormente, evoluiu para

a responsabilização por danos causados pelos produtos fornecidos no mercado de

consumo.

1 LIMA, p. 18.

2 SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile em droit français. 10. ed. Paris:

LGDJ, 1951. v. 1, p. 1. apud STOCO, p. 112.

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Abordar-se-á a evolução jurisprudencial ocorrida em países da commom

law que, para responsabilizar o fabricante do produto que causasse dano, teve que superar

alguns obstáculos dogmáticos: o primeiro foi o da possibilidade de propor a ação contra

o fabricante, pessoa com a qual não existia relação jurídica direta (superação do privity of

contract). Posteriormente, superou-se o dogma da necessidade de culpa para a

responsabilização do produtor (adoção do strict product liability). Conforme será

demonstrado, a evolução destes conceitos nos países de tradição anglo-saxônica

influenciou a legislação europeia culminando com a edição da Diretiva 85/374/CEE que,

por sua vez, influenciou fortemente a disciplina da responsabilização pelo fato do produto

no nosso Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).

3. Origens e Evolução

A Responsabilidade pelo Fato da Coisa Inanimada

A responsabilidade pelo fato da coisa já era conhecida em Roma. Aquele

que colocasse ou pendurasse algo que, se caísse, viesse a prejudicar alguém, poderia

sofrer uma pena de 10 áureos.3

O dano causado por coisas inanimadas suscitou questionamentos de

juristas inconformados com o modelo de responsabilidade civil fundado exclusivamente

na culpa. Em face do desenvolvimento tecnológico observado durante a Revolução

Industrial, SALEILLES introduziu o conceito de “risco profissional”, risco assumido pelo

dono do estabelecimento industrial em relação a danos sofridos por seus trabalhadores

durante as atividades laborais. O jurista francês observou que as atividades industriais

poderiam causar danos aos empregados independentemente da culpa do empreendedor,

mas este, por auferir o lucro, também deveria assumir os riscos do empreendimento,

responsabilizando-se pelos danos, independentemente da existência de culpa.

3 Institutas Livro 4, Título V, § 1º - Disposições concordantes: Digesto, Livro 9, Título

III; Livro 1, fr. 2; Livro 9, Título III; Livro 5, §§ 9 e 11.

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LOUIS JOSSERAND expandiu as ideias de SALLEILLES não limitando o

conceito de responsabilidade sem culpa pelo fato da coisa ao âmbito industrial. Com

fundamento no art. 1.384, § 1º, do Código Civil Francês4, JOSSERAND entendeu que o

proprietário ou detentor da coisa deveria responder, independentemente de culpa, pelos

danos que a coisa causasse a outrem:

“... não são apenas as coisas industriais que deflagram a

responsabilidade do patrão pelos danos que elas ocasionam; são

quaisquer coisas que acarretam, pelo prejuízo que causam, a

responsabilidade daquele que delas se beneficia, que delas lucra.

A obrigação nascida do fato da indústria deve-se substituir pela

obrigação nascida do fato das coisas, a noção de risco

profissional, pela noção do risco criado”.5

As lições de JOSSERAND são o embrião do que hoje conhecemos como

responsabilidade objetiva. Sua tese funda-se na equidade e no conceito amplo de

responsabilidade. Para ele, responsabilizar-se significa suportar o dano. Se A causa dano

a B, alguém deverá suportar o dano. Se não houve culpa de A, sujeito causador do dano,

a aplicação da responsabilidade civil baseada na culpa eximirá o causador do dano da

responsabilidade. Logo, o dano será suportado exclusivamente pela vítima, B. Para

JOSSERAND, neste caso, B assume a responsabilidade, ou seja, suporta o dano. Note-se

que B também não teve culpa. Isso significa que mesmo num sistema que exige a presença

de culpa para a responsabilização, a vítima pode ter que suportar o dano

independentemente de culpa, ou seja, a vítima pode ser responsabilizada – ter que suportar

o dano – sem ter incorrido em culpa. Para o referido jurista francês, isso viola a equidade.

“Como a causa do acidente é desconhecida, diz-se às vezes,

ninguém deve ser responsável, pois ninguém se encontra em

4 “Cada um é responsável não só pelo prejuízo que causa pelo seu próprio ato, mas

também pelo que é causado pelas pessoas por quem deve responder ou das coisas de que tem a guarda”.

5 JOSSERAND, p. 110.

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estado de culpa”. O raciocínio é absolutamente falso: tão logo um

acidente se produz, não é possível que ninguém seja responsável

no sentido amplo da palavra, isto é, que ninguém suporte as

consequências do evento; se o proprietário da coisa que causou o

acidente não é obrigado a reparar o dano, a vítima deverá

necessariamente suportá-lo; ela incorrerá em toda

responsabilidade pelo acidente, responsabilidade que se traduzirá

pela perda da vida ou da saúde, sem compensação. Qualquer que

seja a solução adotada, uma responsabilidade sempre resultará

dela; toda a questão é saber quem deve suportá-la.6

Em certo sentido, as considerações de JOSSERAND encontram guarida em

nosso Código Civil, especialmente no arts. 936 e 937 que versam, respectivamente, sobre

o dano causado por animal e os danos causados pela ruína de edifício, dispondo sobre a

responsabilidade do proprietário do animal e do edifício.

A Responsabilidade na Sociedade de Risco

O tema dos danos causados pelas coisas ganha importância na medida em

que o desenvolvimento tecnológico e industrial introduz no mercado de consumo, em

grande escala, produtos com grande potencial de causar dano. Tome-se como exemplos

os veículos que transportam pessoas em alta velocidade, os alimentos industrializados e

fármacos para consumo humano. Com a aceleração do desenvolvimento industrial e da

denominada sociedade de consumo, a questão torna-se mais relevante na medida em que

se observa o aumento da frequência de acidentes causados por produtos industrializados.

Observa-se, então, o que se convencionou chamar de “sociedade de risco”: uma sociedade

globalizada, caracterizada pelo rápido desenvolvimento tecnológico e científico, com

uma oferta de produtos marcada pela inovação acelerada e consequente incerteza dos seus

resultados.

6 Josserand, p. 111.

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Chegamos, então, à necessidade de um novo modelo de responsabilidade

civil, não mais fundado na culpa, mas no risco assumido pelo produtor. TERESA ANCONA

LOPEZ explica que no início do século 20, com a invenção do automóvel e de outras

máquinas, os juristas perceberam que as vítimas ficariam desprotegidas caso a culpa

continuasse sendo o elemento informador da responsabilidade civil. É a partir desta

situação que surge a “teoria do risco” que, em seguida, evolui para outros setores como o

ambiental e consumerista. Esta teoria tem fundamento econômico segundo o qual quem

lucra com a atividade deve suportar seus prejuízos (ubi emolumentum, ibi ônus).7

ULRICH BECK, ao tratar sobre o efeito do desenvolvimento científico e

industrial na mudança social, entende que houve uma alteração estrutural entre a

sociedade industrial, do período da modernidade, e a sociedade de risco, de um período

posterior que ele denomina de “modernidade reflexiva”. A referida evolução social é

sintetizada por TERESA ANCONA LOPEZ da seguinte forma:

“A sociedade moderna estaria baseada na distribuição de bens e

na estruturação social por meio de danos, enquanto a sociedade

de risco se caracterizaria pela distribuição dos bads ou dangers e

pela individualização”.8

SÉRGIO CAVALIERI FILHO sintetiza a doutrina do risco da seguinte forma:

“todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por

quem o causou, independentemente de ter ou não agido com

culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade,

dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável,

que é aquele que materialmente causou o dano”.9

7 LOPEZ, p. 27 e 28.

8 LOPEZ, p. 37.

9 CAVALIERI FILHO, p. 136.

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CAVALIERI FILHO, de forma didática, apresenta as subespécies ou

modalidade de risco da referida teoria: (a) O risco proveito – o dano deve ser suportado

por aquele que tira proveito da atividade da qual decorreu o fato lesivo, (b) O risco

profissional – o fato que gerou dano decorre de uma atividade profissional do lesado;

busca-se justificar a responsabilidade do empregador por tais danos, (c) O risco criado –

o perigo é criado em razão de uma atividade e, portanto, havendo dano, o criador do risco

responderá independentemente de culpa ou de obter proveito da atividade e (d) O risco

integral – modalidade extrema de responsabilização que prevê o dever de indenizar ainda

que não se observe o nexo causal, bastando o dano.

ALVINO LIMA, já em 1938, lecionou sobre a avalanche de novas teorias que

prescindiam da culpa para a caracterização da responsabilidade:

“O crescente número de vítimas sofrendo as consequências das

atividades do homem, dia a dia, mais intensas, no afã de

conquistar proventos; o desequilíbrio flagrante entre os ‘criadores

de riscos’ poderosos e as vítimas; os princípios de equidade que

se revoltavam contra esta fatalidade jurídica de se impor à vítima

inocente, não criadora do fato, o peso exclusivo do dano muitas

vezes decorrente da atividade exclusiva do agente, vieram a se

unir aos demais fatores, fazendo explodir intenso, demolidor, o

movimento das novas idéias que fundamentam a responsabilidade

extra-contratual tão somente na relação de causalidade entre o

dano e o fato gerador.”10

De fato, o sistema de imputação de responsabilidade previsto na doutrina

civilística clássica, com a evolução dos riscos da sociedade, demonstrou-se insuficiente

para garantir a tutela dos direitos dos consumidores, parte mais fraca da relação, razão

pela qual surgiu a necessidade do desenvolvimento de um sistema que conferisse a

10 LIMA, p. 88 e 89.

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proteção aos vulneráveis. Esta proteção foi consagrada, no Brasil, através da Lei 8078/90

(Código de Defesa do Consumidor). O professor FERNANDO CAMPOS SCAFF leciona que:

“A responsabilidade pelo vício de qualidade instituída por nosso

Código de Proteção e Defesa do Consumidor representa a

consagração de um dever de qualidade, anexo à atividade do

fornecedor e fundado no princípio da proteção à confiança. Este

dever de qualidade imprime no próprio produto ou serviço a

garantia de ausência de vício de qualidade por insegurança ou

inadequação, funcionando, assim, como fundamento único da

responsabilidade, contratual e extracontratual, da cadeia de

fornecedores em relação aos consumidores e fazendo prescindir

inteiramente da existência de vínculo contratual entre uns e outros

para a responsabilização dos primeiros”.11

De fato, a sociedade de risco é a sociedade industrial com maior

desenvolvimento técnico e científico, global, capaz de gerar maior risco, medo e

incertezas, razão pela qual merece um tratamento jurídico diferenciado.

Em suma, observou-se, inicialmente, com SALLEILLES, a introdução deste

conceito no âmbito trabalhista, especialmente no tocante aos acidentes de trabalho com

as máquinas usadas na produção industrial. Posteriormente, com JOSSERAND, o conceito

foi expandido para a responsabilização do dono ou responsável pela coisa que causou o

dano. No Brasil, a responsabilidade baseada na culpa sofre flexibilização quando, em

1912, entra em vigor o Decreto 2.681 que admite a responsabilidade objetiva das estradas

de ferro (art. 26) e do transportador (art. 17). Finalmente, como se observa hoje, e será

detalhado a seguir, a responsabilidade objetiva é adotada no contexto das relações de

consumo onde o fornecedor responde independentemente de culpa pelos defeitos e danos

causados pelos produtos que colocar em circulação.

11 SCAFF, p. 28.

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Nos próximos capítulos discorrer-se-á sobre o conceito da

responsabilidade pelo fato do produto e sua evolução ao longo do século 20 nos Estados

Unidos, na Europa e, finalmente, no Brasil, com a promulgação do Código de Defesa do

Consumidor em 1990.

4. Conceito

O fato do produto, como causa de responsabilização, é, segundo RUI

STOCO,

“a possibilidade de o produto, ou dos serviços contratados, por si

mesmo, causar dano a alguém ou frustrar a expectativa do

usuário, através de resultados positivos ou negativos, seja em

razão de defeito original, por força de fabricação inadequada, seja

porque não proporciona a essencialidade para a qual foi

prometida ou anunciada à venda, seja, ainda, em virtude de seu

acondicionamento inadequado com potencialidade lesiva, seja,

finalmente, em função de expiração de sua validade”.12

O “fato do produto” pressupõe a existência de um defeito que provoca o

denominado “acidente de consumo” – distingue-se do vício de qualidade que é apenas

uma inadequação do produto que o torna inapropriado para o uso. O defeito compromete

a segurança que é esperada do produto. Desta forma, o acidente causado pelo defeito no

produto, se implicar em danos materiais e morais ao consumidor, resultará na

responsabilização do fabricante pelo “fato do produto” independentemente de culpa.

Extrai-se do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor que este defeito

pode ter origem na concepção do produto (criação, projeto, fórmula), na sua produção

(montagem, construção, fabricação) ou ainda na sua comercialização (informações,

publicidade, apresentação). Verifica-se, portanto, que o fato gerador da responsabilidade

12 STOCO, p. 462

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do fornecedor não é uma conduta culposa, mas a existência de defeito no produto que

implique no acidente de consumo. Trata-se, portanto, de responsabilidade que prescinde

da existência de uma relação contratual.

Embora a expressão “fato da coisa” ou “fato do produto” seja alvo de

críticas por aqueles que entendem que a coisa não tem atividade ou personalidade para

ser protagonista de um fato13, a expressão goza de prestígio na doutrina e jurisprudência

bem como na legislação.

O cerne da questão está na segurança que legitimamente se pode esperar

de um produto. Sabe-se que nenhum produto pode ser considerado completamente

seguro, portanto há determinados níveis de risco admissíveis que não representam

defeitos. Como não se pode exigir uma segurança absoluta, questiona-se qual é o nível de

segurança exigido. JOÃO CALVÃO DA SILVA esclarece que a expectativa de segurança do

produto não é aquela expectativa subjetiva do lesado, mas do público em geral e só o juiz

poderá determinar, no caso concreto, se o dano decorreu de um defeito, ou seja, da

frustração de uma expectativa legítima de segurança.14

5. A Responsabilidade pelo Fato do Produto no Direito Estrangeiro

A partir da segunda metade do século 20, em decorrência da frequência

em que os acidentes de consumo começam a ser observados, notou-se grande interesse

pelo tema da responsabilidade do fabricante pelos danos ocasionados pelo produto.

Entre as décadas de 60 e 70 do século 20 observou-se uma diversidade no

tratamento do tema nas diversas nações da Europa. O ordenamento da França,

Luxemburgo e Bélgica, por exemplo, dispunha no sentido da responsabilidade objetiva

do fornecedor. Na Itália a legislação exigia a presença de culpa para que o fornecedor

fosse responsabilizado pelo dano do produto. Um terceiro modelo – a responsabilidade

13 Veja-se a posição de Ripert, citado por José de Aguiar Dias, segundo a qual “a coisa é

instrumento do dano e não a sua causa”. Op. Cit. p. 578-579.

14 CALVÃO DA SILVA, p. 636 e 637.

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subjetiva com presunção de culpa do fornecedor – vigorava na Alemanha, Dinamarca,

Inglaterra, Holanda e Irlanda, apenas para citar alguns países.

As divergências não se limitavam à adoção do modelo de responsabilidade

objetiva ou subjetiva, ou ainda subjetiva com presunção de culpa. Outro ponto de

divergência dizia respeito à possibilidade de ajuizar ação indenizatória diretamente contra

o fabricante, independentemente do contrato do consumidor ter sido celebrado com outra

pessoa, o comerciante.

É evidente que a adoção de modelos distintos ia de encontro às aspirações

de integração comercial da comunidade europeia. Fazia-se necessária a harmonização

legislativa para dinamizar e facilitar o comércio entre as nações da comunidade. É neste

contexto que os olhos da Europa se voltam para o modelo proposto pela nação

considerada o berço da sociedade de consumo: os Estados Unidos da América.

A Experiência dos Estados Unidos da América

O desenvolvimento do atual modelo de responsabilização do fornecedor

nos Estados Unidos teve que superar alguns obstáculos dogmáticos que passaremos a

expor.

O primeiro obstáculo a ser superado foi o dogma da privity of contract.

Esta doutrina é equivalente àquilo que entendemos como o princípio da relatividade dos

contratos. As obrigações só se impõem às partes contratantes não vinculando terceiros.

Este foi um obstáculo a ser superado pois geralmente os produtos cujos defeitos provocam

danos aos usuários não são comercializados diretamente pelo fabricante. Há uma cadeia

de fornecimento onde produtor e consumidor assumem posições nos extremos opostos.

Desta forma, uma interpretação rígida do privity of contract impede o consumidor de

pleitear direitos do fabricante pois ambos não têm relação contratual direta.

Um exemplo clássico da aplicação do privity of contract cuja injustiça foi

reconhecida até mesmo pelo tribunal que proferiu a decisão é o caso Winterbottom v.

Wright (1842). O Sr. Winterbottom, que trabalhava no serviço postal conduzindo uma

charrete, sofreu um acidente devido a um defeito na roda. Ele ajuizou uma ação contra o

fabricante da charrete, Wright, mas o tribunal entendeu que não havia privity of contract

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entre as partes, pois a charrete não era de propriedade do Sr. Winterbottom, porquanto

havia sido alugada pelo seu empregador para o desempenho de suas atividades de entregas

postais.

A superação do dogma do privity of contract deu-se em 1916 no caso

MacPherson v. Buick Motor Co, julgado pela Suprema Corte de Nova Iorque. Neste caso

o Sr. MacPherson adquiriu um veículo da marca Buick através de uma revendedora. Um

ano após a aquisição, ele sofreu um acidente quando uma das rodas do veículo quebrou

devido a um defeito de fabricação. O Sr. MacPherson ajuizou uma ação diretamente

contra o fabricante que, por sua vez, alegou, em sua defesa, não ter com o autor da ação

nenhuma relação contratual e que suas obrigações e garantias limitavam-se apenas à

pessoa com quem mantinha relações jurídicas, ou seja, com a revendedora. O juiz

Cardoso, em decisão paradigmática, responsabilizou o fabricante sob o fundamento do

duty of care. Estava, desta forma, superado o dogma do privity of contract. No entanto,

perceba-se que a culpa do fabricante foi reconhecida.

Note-se, portanto, que antes de se falar em responsabilidade sem culpa, o

primeiro obstáculo a ser superado foi o da quebra da cadeia de fornecimento. A

responsabilidade objetiva só foi consagrada nos Estados Unidos a partir do caso

Greenman v. Yuba Power Product Inc. em 1963. No Natal de 1955 o Sr. Greenman

recebeu de presente de sua esposa um kit de ferramentas para serviços domésticos. Em

1957, enquanto usava uma das ferramentas, uma lasca de madeira se desprendeu da

ferramenta e atingiu o rosto do Sr. Greenman ferindo-o gravemente. Em 1963 o Supremo

Tribunal da California reconheceu a responsabilidade do fabricante por ter colocado no

mercado um produto que causou danos ao consumidor.

O mesmo tribunal, em 1944, já havia julgado um caso semelhante (Escola

v. Coca Cola Bottling Cia) onde a autora, Gladys Escola, sofreu danos após uma garrafa

de Coca-Cola ter explodido em suas mãos, ferindo-a. No entanto, neste caso, o

fundamento da decisão foi a negligence do fabricante, ou seja, adotou-se o modelo da

responsabilidade subjetiva. Já no caso do Sr. Greenman observou-se a consagração da

responsabilidade objetiva, conhecida no direito anglo-saxônico como Strict Product

Liability.

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Desta forma, no âmbito do direito norte-americano observou-se, em

primeiro lugar, a superação do privity of contract e, posteriormente, a superação da

exigência de culpa do fornecedor.

A Diretiva 85/374 da Comunidade Europeia

A experiência dos Estados Unidos influenciou significativamente o

processo de harmonização legislativa da comunidade europeia com relação ao tema da

responsabilidade do fornecedor pelos danos causados pelos produtos. O resultado das

discussões travadas durante a década de 70 no século passado culminou com a edição da

Diretiva 85/374 que, à semelhança dos Estados Unidos, adotou a tese da responsabilidade

objetiva do fornecedor e a possibilidade da vítima demandar diretamente contra o

fabricante ou importador a despeito da inexistência de contrato direto entre consumidor e

produtor.

Ainda na seara da responsabilização ao logo da cadeia de fornecimento, a

Diretiva estabelece que todos os responsáveis pelo dano devem responder solidariamente.

No entanto, deve-se destacar que, a despeito da inexigibilidade de culpa, para que surja a

responsabilidade é necessário que se observe a conduta lesiva, o nexo causal e o dano.

Quando o produtor não puder ser identificado, o fornecedor será responsabilizado a

menos que indique ao lesado a identidade do fornecedor.

Esta regra, insculpida no art. 3º §3 da referida diretiva, não foi

integralmente transposta para o ordenamento de alguns países, o que rendeu condenações

pelo Tribunal da Comunidade Europeia. A França, por exemplo, foi condenada ao

pagamento de 795 mil Euros pela falha na transposição desta regra.

Uma análise do texto da Diretiva 85/374/CEE revelará diversas

semelhanças com o nosso Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90) demonstrando

que nosso diploma consumerista sofreu inequívoca influência da norma comunitária.

Como exemplo desta semelhança cita-se a definição de produto defeituoso, conforme

observa-se a seguir:

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Texto da Diretiva 85/374 Texto do CDC (Lei 8078/90)

Artigo 6º

1. Um produto é defeituoso quando não

oferece a segurança que se pode

legitimamente esperar, tendo em conta todas

as circunstâncias, tais como:

a) A apresentação do produto;

b) A utilização do produto que se pode

razoavelmente esperar;

c) O momento de entrada em circulação do

produto.

2. Um produto não será considerado

defeituoso pelo simples facto de ser

posteriormente colocado em circulação um

produto mais aperfeiçoado.

Art. 12

§ 1° O produto é defeituoso quando não

oferece a segurança que dele legitimamente se

espera, levando-se em consideração as

circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - sua apresentação;

II - o uso e os riscos que razoavelmente dele

se esperam;

III - a época em que foi colocado em

circulação.

§ 2º O produto não é considerado defeituoso

pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido

colocado no mercado.

Teoria dos Riscos do Desenvolvimento

A Diretiva 85/374 dispõe, em seu artigo 7º, sobre as excludentes de

responsabilidade do fornecedor – situações em que ele não responde pelo dano causado

em razão de defeitos do produto. Dentre estas hipóteses deve-se mencionar aquela com

equivalente no nosso CDC: quando o fornecedor provar que não colocou o produto em

circulação.

Além desta hipótese, a diretiva traz um leque mais extenso de situações

que eximem a responsabilidade do fornecedor do que aquele rol constante no art. 12, § 3º

do CDC. Cite-se a situação em que o defeito surgiu após a entrada do produto em

circulação e as hipóteses em que o defeito é devido a uma conformidade do produto com

normas imperativas das autoridades públicas

No entanto, nenhuma destas eximentes causou tanta discussão quanto

aquela constante na alínea “e” do art. 7º que versa sobre os riscos de desenvolvimento.

Busca-se, neste caso, isentar o produtor da responsabilidade sempre que ele conseguir

demonstrar que no momento em que o produto foi colocado em circulação no mercado,

o estado da técnica e da ciência não permitiriam que o defeito fosse identificado.

Desta forma, a fim de aferir se o produto é ou não seguro o intérprete deve

levar em conta a época em que o produto foi colocado em circulação. Se o produto era

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considerado seguro segundo os padrões da época em que foi colocado em circulação,

então não pode ser considerado defeituoso. O grau de segurança do produto deve ser

avaliado em função do estado da técnica e da ciência no momento de sua colocação no

mercado.

A grande polêmica em torno da adoção da teoria dos riscos de

desenvolvimento na diretiva comunitária se deu por conta de situações em que o

consumidor poderia ser colocado numa posição de extrema vulnerabilidade suportando

os danos decorrentes de defeitos cuja técnica à época do desenvolvimento não poderia

prever. Tal situação de vulnerabilidade se agrava quando o produto em questão é um

fármaco ou de gênero alimentício.

A alternativa encontrada pelo Conselho da União Europeia e do

Parlamento, órgãos legislativos da União Europeia, foi introduzir o artigo 15º “b” na

Diretiva 85/374 que faculta aos Estados-membros a não transposição para a legislação

interna da eximente constante no artigo 7º “e”, ou seja, cada país-membro pode decidir

considerar o fornecedor responsável pelos defeitos ainda que este prove que o estado dos

conhecimentos científicos à época da colocação em circulação do produto não lhe

permitia detectar o defeito.

A despeito da possibilidade de derrogação do disposto no art. 7º “e” poucos

países fizeram a transposição da diretiva para o ordenamento interno eliminando a

eximente. Só Luxemburgo e Finlândia não adotaram esta excludente enquanto a Espanha

eliminou-a para produtos farmacêuticos e alimentos.15

A razão para a pequena adesão à faculdade insculpida no art. 15 “b”,

possibilidade de eliminar a eximente, está em argumentos de ordem econômica. Busca-

se, com a manutenção da excludente, fomentar a inovação através da redução dos custos

15 Lei Espanhola nº 22/1994.

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de seguro e dos riscos das pesquisas. Em suma, o risco do desenvolvimento foi lançado

sobre os consumidores.

O que se observou no direito comunitário bem como na jurisprudência

anglo-saxônica foi o identificado pelo professor FERNANDO CAMPOS SCAFF:

“As legislações consumeristas em Direito Comparado, pois,

caminharam no sentido do estabelecimento das seguintes

características, norteadoras de suas disposições: a) verifica-se

uma tendência a buscar a responsabilidade do fabricante em

primeiro lugar, deixando em posição secundária o intermediário

e o vendedor; b) preferem-se as soluções extracontratuais; c)

tende-se a prescindir do requisito da culpa, invertendo a carga da

prova num primeiro momento e eliminando-a definitivamente no

segundo momento, segundo o desenvolvimento econômico do

país”.16

6. A Responsabilidade pelo Fato do Produto no Direito Brasileiro

Como visto anteriormente, o fato do produto é o evento provocado pelo

produto que causa dano ao consumidor. No aspecto subjetivo, o Código de Defesa do

Consumidor em seu art. 17 equipara ao consumidor todas as vítimas do evento danoso. O

ordenamento brasileiro trilhou pela mesma senda do direito anglo-saxônico e europeu ao

adotar o modelo da responsabilidade objetiva. Dispõe o art. 12 do CDC que

“O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o

importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela

reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos

decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas,

manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem

16 SCAFF, p. 28 e 29.

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como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua

utilização e riscos.” (grifou-se)

A abordagem deste tema não estaria completa sem a menção e breve

análise de casos concretos enfrentados pelos tribunais. Selecionou-se, para este trabalho,

situações atípicas tais como o reconhecimento de dano moral apenas pela existência de

produto com risco à saúde e acidente de consumo por defeito “extrínseco”.

Encontra-se na jurisprudência pátria decisões que reconhecem a

responsabilidade do fornecedor independentemente da existência de dano, bastando a

criação do risco concreto para que se configure dano moral indenizável. Uma destas

situações encontra-se no REsp 1328916/RJ ementado da seguinte forma:

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR

DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS.

CORPO ESTRANHO COMPATÍVEL COM FIO DE ESPESSURA

CAPILAR. FATIA DE PÃO DE FORMA. EXPOSIÇÃO DO

CONSUMIDOR A RISCO CONCRETO DE LESÃO À SUA SAÚDE

E SEGURANÇA. FATO DO PRODUTO.

EXISTÊNCIA DE DANO MORAL. VIOLAÇÃO DO DEVER DE

NÃO ACARRETAR RISCOS AO CONSUMIDOR. ARTIGOS

ANALISADOS: ARTS. 6º; 8º; 12 DO CDC.

1. ...

2. ...

3. A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu

interior corpo estranho, expondo o consumidor ao risco concreto de

lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão completa

de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a

ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do

princípio da dignidade da pessoa humana.

4. Hipótese em que se caracteriza defeito do produto (art. 12, CDC), o

qual expõe o consumidor a risco concreto de dano à sua saúde e

segurança, em clara infringência ao dever legal dirigido ao fornecedor,

previsto no art. 8º do CDC, ensejando a reparação por danos

patrimoniais e morais (art. 6º do CDC).

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5. Recurso especial provido.

(REsp 1328916/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA

TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 27/06/2014)

Na esteira dos debates acerca dos deveres laterais de conduta, mormente

aquele relacionado ao fornecimento de informação, a 4ª Turma do STJ proferiu

interessante acórdão no julgamento do REsp 1.358.615/SP no qual distinguiu o “defeito

intrínseco do produto” do “defeito extrínseco do produto”.

Tratou-se de ação ajuizada por consumidor que sofreu lesões na pele

(“dermatite de contato”) após utilizar o sabão em pó ACE fabricado pela Procter e

Gamble. Verificou-se, ao longo do processo, que a consumidora tinha hipersensibilidade

ao produto o que representava uma predisposição para o evento danoso. Desta forma, a

Turma julgadora entendeu que não havia defeito intrínseco no produto, no entanto, por

não haver a informação adequada no rótulo do produto, a decisão foi no sentido de

responsabilizar o fabricante por “defeito extrínseco do produto”, qual seja, a falta ou

insuficiência de informação que poderia ter evitado o evento danoso.

DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. FATO DO

PRODUTO. DERMATITE DE CONTATO. MAU USO DO

PRODUTO. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. INOCORRÊNCIA.

ALERGIA - CONDIÇÃO INDIVIDUAL E ESPECÍFICA DE

HIPERSENSIBILIDADE AO PRODUTO. DEFEITO INTRÍNSECO

DO PRODUTO. INOCORRÊNCIA. DEFEITO DE INFORMAÇÃO.

DEFEITO EXTRÍNSECO DO PRODUTO. FALTA DE

INFORMAÇÃO CLARA E SUFICIENTE. VIOLAÇÃO DO DEVER

GERAL DE SEGURANÇA QUE LEGITIMAMENTE E

RAZOAVELMENTE SE ESPERAVA DO PRODUTO. (REsp

1358615/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA

TURMA, julgado em 02/05/2013, DJe 01/07/2013)

A responsabilidade solidária entre os elementos da cadeia de fornecimento

é outro tema intrigante. Observou-se que a diretiva europeia admite a solidariedade entre

todos os causadores do dano. Aduz que se o fabricante não for identificado, o comerciante

pode ser responsabilizado se não puder indicar o fabricante, ainda que o comerciante não

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tenha causado o dano. Daí deduz-se que o mero fato de estar na cadeia de fornecimento

não implica em responsabilidade – há que se demonstrar que o elemento teve participação

como causador do dano. O CDC, na mesma linha da diretiva europeia, optou por

responsabilizar o comerciante em situações bem específicas:

Art. 13. O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo

anterior, quando:

I - o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem

ser identificados;

II - o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante,

produtor, construtor ou importador;

III - não conservar adequadamente os produtos perecíveis.

A despeito da inexistência de hipótese legal que possibilite a

responsabilização do comerciante pelo fato do produto, a Quarta Turma do STJ,

fundamentada no art. 18 do CDC que, ressalte-se, versa sobre vício do produto e não

sobre defeito, decidiu pela responsabilidade solidária do fabricante (montadora Ford) e

do comerciante (concessionária). No caso concreto, houve vício do produto que, por ter

destinação profissional, resultou em dano (lucros cessantes), o que foi considerado fato

do produto.

DIREITO CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

AQUISIÇÃO DE VEÍCULO ZERO-QUILÔMETRO PARA

UTILIZAÇÃO PROFISSIONAL COMO TÁXI. DEFEITO DO

PRODUTO. INÉRCIA NA SOLUÇÃO DO DEFEITO.

AJUIZAMENTO DE AÇÃO CAUTELAR DE BUSCA E

APREENSÃO PARA RETOMADA DO VEÍCULO, MESMO

DIANTE DOS DEFEITOS. SITUAÇÃO VEXATÓRIA E

HUMILHANTE. DEVOLUÇÃO DO VEÍCULO POR ORDEM

JUDICIAL COM RECONHECIMENTO DE MÁ-FÉ DA

INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DA MONTADORA. REPOSIÇÃO

DA PEÇA DEFEITUOSA, APÓS DIAGNÓSTICO PELA

MONTADORA. LUCROS CESSANTES. IMPOSSIBILIDADE DE

UTILIZAÇÃO DO VEÍCULO PARA O DESEMPENHO DA

ATIVIDADE PROFISSIONAL DE TAXISTA. ACÚMULO DE

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DÍVIDAS. NEGATIVAÇÃO NO SPC. VALOR DA INDENIZAÇÃO.

(REsp 611.872/RJ, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA,

QUARTA TURMA, julgado em 02/10/2012, DJe 23/10/2012)

7. Conclusão

Através deste estudo foi possível analisar o instituto da responsabilidade

pelo fato do produto e sua evolução histórica, com ênfase nas alterações dogmáticas

motivadas pelo aumento do risco em decorrência da evolução tecnológica. De fato, ficou

claro que a dinâmica social e econômica pós revolução industrial demandou um modelo

de responsabilidade civil mais sofisticado do que aquele fundado na existência de culpa,

proposto pela dogmática liberal do início do século 19.

Na análise do desenvolvimento jurisprudencial do instituto na commom

law, que acabou por influenciar fortemente o modelo europeu, foram destacados dois

momentos cruciais para chegarmos ao modelo vigente: (1) a superação do dogma da

privity of contract, que permitiu o ajuizamento de ação contra o fabricante

independentemente da existência de relação jurídica direta com o consumidor e (2) a

consagração da responsabilidade independente de culpa (responsabilidade objetiva),

conhecida nos países da commom law como strict product liability.

O Código de Defesa do Consumidor sofreu inegável influência da diretiva

europeia no tocante à disciplina da responsabilidade civil do fornecedor por danos

causados pelo produto, o que fica claro durante a comparação dos dispositivos

relacionados ao tema nos dois diplomas legislativos.

Especial destaque foi dado à aplicação do modelo de responsabilidade

objetiva pelo STJ em casos concretos. Observou-se que as decisões do tribunal foram

influenciadas por outros princípios orientadores do direito civil, com destaque para a boa-

fé objetiva que, ao apregoar os deveres anexos de conduta, levou o tribunal a cunhar a

expressão “defeito extrínseco do produto”.

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