Responsabilidade Civil - Orkut

7
ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 Apte.: LUCIANA MOREIRA CHAGAS Apdo.: JORGE LUIZ MONTEIRO Relator: Des. Fernando Foch Processo originário: 0016755-48.2006.8.19.0208 (2006.208.016366-9) Juízo de Direito da 1.ª Vara Cível Regional do Méier Comarca da Capital DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. Ação proposta por cirurgião em face de paciente que, insatisfeita com cirurgia bariátrica a que se submetera, cria comunidade em sítio de relacionamento da internet, à qual dá, como título, aliás, ilustrado com fotografia do profissional, frase chula, vulgar e depreciativa, fazendo inserir textos em que a ele se refere como “monstro”, “safado”, “despreparado”, “mau elemento” e “sem caráter”. Pedidos de condenação de a ré indenizar dano moral, retratar-se na rede mundial de computadores e dela retirar o conteúdo difamatório ali inserido (este último postulado como antecipação dos efeitos da tutela, a qual foi denegada). Sentença de parcial procedência que proveu os dois primeiros, arbitrando a indenização em R$ 15.000,00. Apelo da demandada. 1. Avultando intuito deliberadamente difamatório, prepondera o direito à honra do difamado sobre o direito à liberdade de expressão do difamador, dado que a dignidade humana é um dos fundamentos da República, como enunciado na Constituição Federal de 1988 (art. 1.º, III). 2. Difamar deliberadamente não se confunde com desabafo e, atingindo a reputação profissional da vítima, nesta causa dano moral in re ipsa, pelo malferimento da honra, seja em seu aspecto subjetivo, seja no objetivo. 3. Correta, portanto, a sentença quando condena o ofensor e retratar-se e a indenizar pecuniariamente o dano moral. 4. A simples retração, conquanto seja forma de reparação de dano moral, não é suficiente porque não cumpre a função punitiva da indenização do prejuízo extrapatrimonial imposta judicialmente.

description

Julgado do TJRJ sobre responsabilidade civil em redes sociais (Orkut).

Transcript of Responsabilidade Civil - Orkut

Page 1: Responsabilidade Civil - Orkut

ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL

Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 Apte.: LUCIANA MOREIRA CHAGAS Apdo.: JORGE LUIZ MONTEIRO Relator: Des. Fernando Foch Processo originário: 0016755-48.2006.8.19.0208 (2006.208.016366-9) Juízo de Direito da 1.ª Vara Cível Regional do Méier Comarca da Capital

DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. Ação proposta por cirurgião em face de paciente que, insatisfeita com cirurgia bariátrica a que se submetera, cria comunidade em sítio de relacionamento da internet, à qual dá, como título, aliás, ilustrado com fotografia do profissional, frase chula, vulgar e depreciativa, fazendo inserir textos em que a ele se refere como “monstro”, “safado”, “despreparado”, “mau elemento” e “sem caráter”. Pedidos de condenação de a ré indenizar dano moral, retratar-se na rede mundial de computadores e dela retirar o conteúdo difamatório ali inserido (este último postulado como antecipação dos efeitos da tutela, a qual foi denegada). Sentença de parcial procedência que proveu os dois primeiros, arbitrando a indenização em R$ 15.000,00. Apelo da demandada. 1. Avultando intuito deliberadamente difamatório, prepondera o direito à honra do difamado sobre o direito à liberdade de expressão do difamador, dado que a dignidade humana é um dos fundamentos da República, como enunciado na Constituição Federal de 1988 (art. 1.º, III). 2. Difamar deliberadamente não se confunde com desabafo e, atingindo a reputação profissional da vítima, nesta causa dano moral in re ipsa, pelo malferimento da honra, seja em seu aspecto subjetivo, seja no objetivo. 3. Correta, portanto, a sentença quando condena o ofensor e retratar-se e a indenizar pecuniariamente o dano moral. 4. A simples retração, conquanto seja forma de reparação de dano moral, não é suficiente porque não cumpre a função punitiva da indenização do prejuízo extrapatrimonial imposta judicialmente.

Page 2: Responsabilidade Civil - Orkut

Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 RE

2

5. Não sendo prima oculi aberrante, não há modificar a indenização arbitrada em primeiro grau de jurisdição, se não se demonstra a alegada exasperação. 6. Recurso ao qual se nega provimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Cível

0016755-48.2006.8.19.0208, em que é apelante LUCIANA MOREIRA CHAGAS e apelado JORGE LUIZ MONTEIRO,

ACORDAM os Desembargadores da Terceira Câmara Cível do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro por unanimidade em negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Rio de Janeiro, 21 de julho de 2010

Des. Fernando Foch Relator

Page 3: Responsabilidade Civil - Orkut

Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 RE

3

RELATÓRIO

JORGE LUIZ MONTEIRO, médico-cirurgião geral e bariátrico, ajuizou ação cognitiva sob procedimento comum ordinário em face de LUCIANA MOREIRA CHAGAS, objetivando fosse a ré compelida a excluir “todas as ofensas e comentários maldosos” a ele lançados em comunidades e perfis do sítio de relacionamento Orkut na internet — o que postulou como antecipação dos efeitos da tutela, a qual viria a ser indeferida às fls. 1.073/4,— bem assim a se retratar perante tais comunidades virtuais. Também postulou indenização por dano moral.

Narrou que, no início de 2004, a ré, então portadora de obesidade mórbida, foi ao seu consultório demonstrando interesse em se submeter à cirurgia de redução de estômago, a qual foi realizada em julho do mesmo ano, após todos os exames e consultas necessários, inclusive com médicos de outras especialidades. Apesar de a demandada apresentar boa evolução após alta hospitalar, veio a desenvolver dificuldades para a ingestão de alimentos sólidos e posteriormente de pastosos — complicações essas que, assevera, são relativamente comuns em pacientes submetidos a tal tipo de cirurgia,— tendo sido necessário submetê-la, primeiro, à dilatação endoscópica e, depois, à da anastomose.

Prosseguiu relatando que, em janeiro do ano seguinte, a ré, durante viagem, entrou em contato informando que estava novamente com dificuldades para se alimentar, tendo sido orientada a voltar para uma nova avaliação, após a qual foi encaminhada à nutricionista para acompanhamento. Afirmou que desde então não mais teve notícias da demandada, certo ter sido avisado por outros pacientes acerca das declarações que ela veiculara em sítios da internet, as quais lhe atingem direitos da personalidade.

Com a inicial (fls. 2/13), vieram os documentos de fls. 14/323. Na peça de bloqueio (fls. 337/9), a ré não negou as alegações

do autor. Apenas salientou as complicações que sofreu no pós-operatório e disse ter trocado de médico porque o demandante não solucionara o problema. Também sustentou que, apesar dos riscos inerentes a qualquer procedimento cirúrgico, vários pacientes do autor foram a óbito, “o que já ensejou ações cíveis e penais, (...) inquéritos policiais e sua cassação pelo Conselho Regional de Medicina”. Também apresentou reconvenção (fls. 507/9), cuja inicial, contudo, viria a ser indeferida, ensejando a respectiva extinção, sem resolução do mérito, na forma do art. 267, I, do CPC (fls. 1.074/5).

Após audiência de instrução e julgamento, na qual foram ouvidas testemunhas arroladas pelo demandante (fls. 1.195/200), seguiu-se sentença (fls. 1.228/33) que julgou parcialmente procedente o pedido, “para condenar a ré a se retratar perante as comunidades e perfis do Orkut nos quais lançou ofensa ao autor, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado” do ato, “divulgando nos referidos locais pedido de desculpas ao autor, quanto às ofensas ao mesmo irrogadas, fazendo consignar que se excedeu ao relatar a cirurgia realizada pelo autor, sob pena de multa a ser

Page 4: Responsabilidade Civil - Orkut

Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 RE

4

fixada em sede de execução, bem como a indenizar o autor pelos danos morais sofridos, no valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), com correção monetária desde a data da publicação” do julgado e “juros de 1% ao mês desde a citação, até o efetivo pagamento”.

A bisar os argumentos deduzidos na peça de defesa, apela a demandada tempestivamente às fls. 1.235/7. Alega que as declarações ditas ofensivas “ficaram restritas apenas às comunidades feitas por pacientes do autor”, não tendo influenciado “outras pessoas” a não se consultarem com o médico, o qual continua a exercer a profissão. Sustentando ser a retratação “mais do que razoável” — a qual, a seu ver, “tem o condão de satisfazer o suposto dano causado” ao demandante, de resto não comprovado,— pede seja reduzido o valor da indenização.

Também a tempo vieram as contrarrazões (fls. 1.241/6), as quais rendem prestígio ao julgado monocrático.

É o relatório.

VOTO Estão presentes os pressupostos de admissibilidade do recurso. Não há preliminares. A espécie versada encerra conflito entre direitos fundamentais.

De um lado, o da apelante: direito à liberdade de manifestação do pensamento (CRFB, art. 5.º, IV); de outro, o do apelado: direito à honra (id., X), ambos situados no mesmo patamar, o que implica não ceder um em proveito do outro sem acurada ponderação de interesses, caso a caso.

Na hipótese em apreço, após análise detalhada dos elementos constantes dos autos, tenho que a eminente juíza sentenciante obrou com acerto ao pender pela dignidade humana.

Na ânsia de compartilhar com outras pessoas a experiência vivenciada com a cirurgia bariátrica a que foi submetida, a qual entendeu não ter sido bem sucedida, a ré acabou por se exceder nas críticas feitas ao seu médico no sítio de relacionamento Orkut na internet, chegando inclusive a criar uma comunidade virtual em “homenagem” ao profissional. A ironia já é suficientemente ofensiva e desqualificadora. Não bastasse, ela a intitulou com frese chula, vulgar e insultuosa: “Este cirurgião é um bosta!”. Como que para não deixar dúvida quanto a quem difamava, a ilustrou com uma foto do autor (fl. 28).

Além disso, nos depoimentos prestados em tal site de relacionamento, a apelante constantemente se referia ao demandante de forma pejorativa, usando expressões tais como “despreparado”, “safado”, “mau elemento”, “monstro” e “sem caráter” (fls. 31, 32, 33, 41 e 89, respectivamente), dentre tantas outras igualmente depreciativas, as quais, a par de desbordarem do mero desabafo — como alegado pela recorrente,— constituem ofensas à reputação do profissional. É difamação mesmo.

Page 5: Responsabilidade Civil - Orkut

Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 RE

5

Com a notória popularização do Orkut, não resta dúvida de que tais atitudes, eminentemente difamatórias, repercutiram de forma negativa não só entre os pacientes do demandante, mas também, e sobretudo, no meio profissional em que ele atua, como ainda entre todos aqueles que cultivam interesse pelo tema (cirurgia bariátrica) de uma forma geral — como, aliás, corroborado pela prova oral colhida em audiência (fls. 1.195/200). Isso sem falar nos reflexos desastrosos na vida familiar e social do apelado.

Há de se ponderar que, como bem sintetizado na sentença, “se a ré entendeu que o procedimento cirúrgico a que foi submetida pelo autor não foi bem sucedido, poderia ter pleiteado reparação pela via adequada”; mas isso não fez, preferindo “lançar ofensas ao autor em comunidades do Orkut, o que não lhe afigura lícito”. Acrescenta-se aqui que o demandante tinha para com a paciente obrigação de meio e não de resultado, como soem ser as dos cirurgiões, com exceção, assim mesmo apenas em certos casos, do médico que executa cirurgia plástica meramente estética.

Anote-se, por oportuno, que o fato de o demandante ter respondido ou estar respondendo a inquéritos policiais, processos disciplinares e/ou judiciais por eventos relacionados a outros pacientes é totalmente desinfluente para a solução desta demanda.

Assim, dado estarem provados o dano, a conduta e o nexo de causalidade entre eles, resta configurado o dever de indenizar inerente à demandada, cujo apelo, portanto, é falto de procedência.

A experiência comum, corroborada pelo acervo probatório dos autos, indica que o apelado suportou grave ofensa à honra — tanto sob o ponto de vista subjetivo, é dizer, no que se circunscreve ao amor-próprio e à autoestima, quanto pelo ângulo objetivo, ou seja, o conceito do ofendido no meio social.

A honra, como sabido, é direito fundamental, haja vista que a Constituição da República em seu favor estabelece algumas garantias passivas, como a disposta no art. 5.º, X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”

Ora, avultando intuito deliberadamente difamatório, o que refoge em muito dos limites do desabafo, prepondera o direito à honra do difamado sobre o direito à liberdade de expressão do difamador, dado que a dignidade humana é um dos fundamentos da República, como enunciado na Constituição Federal de 1988 (art. 1.º, III).

Ao contrário do que parece entender a apelante, mera retratação não tem o condão de reparar o dano extrapatrimonial causado ao demandante, o qual, sendo in re ipsa, independe de comprovação; simples pedido de desculpa ou mera apresentação de razões escusatórias não atendem à natureza punitiva da reparação imposta judicialmente.

A questão, portanto, é verificar a razoabilidade da indenização fixada a tal título. Consideradas as peculiaridades do caso e a finalidade da reparação, qual seja a de punir, inibir e compensar, foi bem arbitrada a verba disposta na sentença — R$ 15.000,00 (quinze mil reais), 32,25

Page 6: Responsabilidade Civil - Orkut

Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 RE

6

(trinta e dois vírgula vinte e cinco) salários mínimos na data da sentença (agosto de 2009).

Além disso, o apelo não demonstra a exasperação do quantum indenizatório, não havendo, portanto, motivo para se desprestigiar o valor arbitrado pelo juiz, que está mais próximo das partes e, portanto, tem melhores condições de apreciar as variáveis envolvidas no caso concreto.

Em sendo assim, não há como concluir senão no sentido de que a sentença há de ser mantida. Com efeito, a ré incorreu na ilicitude prevista no art. 187 do Código Civil; abusou do direito de manifestação, cujos limites ditados por seu fim social — a saudável interação de idéias e opiniões — e, é claro, pelos bons costumes. Com isso, tem o dever de indenizar (idem, art. 927, caput).

Apesar disso, a sentença ostenta um equívoco. A antecipação dos efeitos da tutela pedida pelo autor objetivava compelir a ré a retirar da comunidade virtual de criara as referências ofensivas e difamatórias.

O ato em foco considerou que tal pleito “não merece acolhimento, conforme fundamentação de fls. 1073, não tendo havido, ainda, fundamentação e prova do alegado dano material.” Como visto, a fundamentação não condiz com o pedido nem com a causa de pedir; a elisão das ofensas nada tem a ver com prejuízo patrimonial, mas com a honra do demandante.

Já a decisão de fl. 1.073/4 denegara a medida, pois somente pode ser antecipado o que, ao final, pode ser concedido ao autor. No presente caso, o autor pede apenas que a ré se retrate nas comunidades do Orkut e que ela seja condenada ao pagamento de danos morais. Portanto, ao requerimento de antecipação de tutela não corresponde nenhum dos pedidos formulados, de modo que indefiro a antecipação de tutela requerida.

Embora a petição inicial não seja propriamente um modelo de

clareza e boa técnica, é evidente ter requerido, como antecipação dos efeitos da tutela, a exclusão de todo e qualquer tipo de ofensas e comentários maldosos sobre o autor nas comunidades e perfis do Orkut feitos pela ré.” Além disso, a exordial deduz os pedidos de condenação de a demandada se retratar e de indenizar dano moral.

Todavia, o autor não apelou. Aliás, da decisão de fls. 1073 agravou apenas da parte que lhe negava gratuidade de justiça, certo que o recurso foi julgado prejudicado, tanto quanto o juízo acabou por conceder a isenção (fls. 1.158 e 1.146/9). Conquanto direito fundamental seja irrenunciável e indisponível, tanto quanto imprescritível, verdade é que, no caso em apreço, a retratação, ainda que mantidas as aleivosias, tem o mesmo resultado prático que isso teria, com a exclusão da chula comunidade.

Page 7: Responsabilidade Civil - Orkut

Apelação Cível 0016755-48.2006.8.19.0208 RE

7

À conta dos fundamentos acima expostos, voto no sentido de que a Câmara conheça do recurso e lhe negue provimento.

Rio de Janeiro, 21 de julho de 2010

Des. Fernando Foch Relator

Certificado por DES. FERNANDO FOCH LEMOSA cópia impressa deste documento poderá ser conferida com o original eletrônico no endereço www.tjrj.jus.br.Data: 29/07/2010 21:02:18 Local: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - Processo: 0016755-48.2006.8.19.0208 - Tot. Pag.: 7