Resenha Wilma Peres

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Artigo de resenha Imperialismo ou realpolitik? Uma análise da produção histórica recente sobre a Guerra do Paraguai BETHELL, Leslie. The Paraguayan War (1864-1870 ). Londres: University of London, 1996. CERVO, Amado Luiz & RAPOPORT, Mário (orgs). História do Cone Sul. Brasília/Rio de Janeiro: Ed. Da UnB/REVAN, 1998. CHIAVENATO, Júlio J. A guerra contra o Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1990. COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: O exército, a guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: Hucitec/Editora da Unicamp, 1996. DORATIOTO, Francisco. A Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1991. POMER, Leon. La Guerra Del Paraguay, ¡Gran negocio! Buenos Aires: Caldén, 1968. MENEZES, Alfredo da Mota. Guerra do Paraguai: como construímos o conflito. São Paulo: Contexto; Cuiabá: Editora da UFMT, 1998. Até onde as relações entre os Estados processam-se em virtude do confronto dos interesses independentes de cada um deles? Em que medida a História de um povo ou de um conflito pode ser pensada como um contexto autônomo frente ao contato com outras nações? As respostas para estas perguntas são múltiplas, mas, divergentes ou não, há algo que as torna semelhantes: a cada forma de contar a História das relações internacionais corresponde um projeto pessoal ou mais comumente coletivo , de manter ou de transformar a situação atual da convivência entre os povos. Em outras palavras, o conhecimento produzido sobre o mundo não costuma estar desvinculado de um conjunto específico de interesses. O tema da Guerra do Paraguai é perfeito para explicitar essas questões. Realmente, diversas pesquisas têm sido realizadas recentemente sobre o assunto e isso não é por acaso, já que aquele conflito representa um divisor de águas na história do Cone Sul. Numa época em que a globalização e o Mercosul dão o tom dos debates políticos e acadêmicos envolvendo o relacionamento dos países sul- americanos, discutir as origens da guerra e o real peso de influências externas ao sub-continente nas mesmas torna-se um exercício fundamental. Nesse sentido, parece evidente que seria impossível abordar todos os livros e artigos que tem sido publicados sobre o tema nos últimos anos, e que nem todas

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Guerra do paraguai

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  • ARTIGO DE RESENHA 205

    Artigo de resenha

    Imperialismo ou realpolitik? Uma anlise da produohistrica recente sobre a Guerra do Paraguai

    BETHELL, Leslie. The Paraguayan War (1864-1870). Londres: University ofLondon, 1996.

    CERVO, Amado Luiz & RAPOPORT, Mrio (orgs). Histria do Cone Sul.Braslia/Rio de Janeiro: Ed. Da UnB/REVAN, 1998.

    CHIAVENATO, Jlio J. A guerra contra o Paraguai. So Paulo: Brasiliense,1990.

    COSTA, Wilma Peres. A espada de Dmocles: O exrcito, a guerra do Paraguaie a crise do Imprio. So Paulo: Hucitec/Editora da Unicamp, 1996.

    DORATIOTO, Francisco. A Guerra do Paraguai. So Paulo: Brasiliense, 1991.POMER, Leon. La Guerra Del Paraguay, Gran negocio! Buenos Aires: Caldn,

    1968.MENEZES, Alfredo da Mota. Guerra do Paraguai: como construmos o

    conflito. So Paulo: Contexto; Cuiab: Editora da UFMT, 1998.

    At onde as relaes entre os Estados processam-se em virtude doconfronto dos interesses independentes de cada um deles? Em que medida a Histriade um povo ou de um conflito pode ser pensada como um contexto autnomofrente ao contato com outras naes? As respostas para estas perguntas somltiplas, mas, divergentes ou no, h algo que as torna semelhantes: a cada formade contar a Histria das relaes internacionais corresponde um projeto pessoalou mais comumente coletivo , de manter ou de transformar a situao atual daconvivncia entre os povos. Em outras palavras, o conhecimento produzido sobreo mundo no costuma estar desvinculado de um conjunto especfico de interesses.

    O tema da Guerra do Paraguai perfeito para explicitar essas questes.Realmente, diversas pesquisas tm sido realizadas recentemente sobre o assuntoe isso no por acaso, j que aquele conflito representa um divisor de guas nahistria do Cone Sul. Numa poca em que a globalizao e o Mercosul do o tomdos debates polticos e acadmicos envolvendo o relacionamento dos pases sul-americanos, discutir as origens da guerra e o real peso de influncias externas aosub-continente nas mesmas torna-se um exerccio fundamental.

    Nesse sentido, parece evidente que seria impossvel abordar todos os livrose artigos que tem sido publicados sobre o tema nos ltimos anos, e que nem todas

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    as temticas histricas que essa bibliografia levanta poderiam ser abordados numcomentrio de pretenses limitadas1 . Todavia, os autores esto certos de ter, dentrodo tema proposto, levantado material suficiente para permitir a verificao atualdos rumos da historiografia nesse tpico especfico.

    A historiografia sobre a Guerra do Paraguai, aps algumas dcadas ondeo forte foram os relatos dos participantes e uma produo caracterizada pordescries das origens da guerra baseadas em documentao diplomtica, adentrou,nas dcadas de 60 e 70 no terreno do revisionismo, que acusava a Inglaterra pelaocorrncia do conflito.

    Esse modelo explicativo defendido por autores como CHIAVENATO(1990) baseia-se em certos conceitos-chave: determinao econmica,imperialismo e ideologia. Nele, as relaes internacionais latino-americanas passama ser reflexos mecnicos das pretenses imperialistas inglesas. Os motivos alegadospelos governos envolvidos na guerra do Paraguai ligados ao desrespeito s fronteirasdos pases seriam, assim, meros pretextos, a ideologia que mascara a realidade.

    Perfeitamente coerente dentro das lutas polticas dos anos 60 e 70 comoo antiamericanismo e o terceiro-mundismo projetadas na anlise do passado ecom uma forte inspirao nos trabalhos de Len POMER (1968), essa viso temsido pesadamente atacada em anos recentes, especialmente nos livros deBETHELL (1996); DORATIOTO (1991) e MENEZES (1998), para no mencionaros trabalhos nos outros pases do Cone Sul.

    Em que pesem algumas diferenas entre os autores, o novo modelo, emlinhas gerais, procura desmentir a idia da interferncia externa como motivo daGuerra do Paraguai. Para tanto, os autores utilizam abundante material de origemdiplomtica para tornar visveis os confrontos de interesses locais que levaramBrasil, Paraguai, Uruguai e Argentina ao campo de batalha. Considerando o sculoXIX como o perodo de formao dos Estados Nacionais Latino-americanos,Doratioto, por exemplo, compreende a guerra do Paraguai como parte de umprocesso que engloba consolidao e crescimento territoriais e o fortalecimentodas instituies governamentais dos Estados. Para tanto, esse autor evoca aexistncia de longas e difceis negociaes diplomticas por questes territoriais ede influncia entre os pases platinos e o Brasil, demonstrando os diferentes rumostomados por elas em virtude do predomnio ora de um, ora de outro partido nointerior de cada governo.

    O aspecto geogrfico , assim, de suma importncia na viso de Doratioto.A necessidade vital para os Estados de possurem portos prprios por onderealizariam seu comrcio exterior seria muito mais do que um pretexto para aguerra, constituindo-se num de seus fatores fundamentais. O modo como o Rio daPrata foi utilizado antes e durante o confronto corrobora esta idia dodimensionamento espacial das relaes internacionais. Em outras palavras, a

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    interpretao de Doratioto e dos autores dessa corrente eminentementegeopoltica.

    Menezes um pouco mais cuidadoso com a influncia dos fatores internosna criao dos problemas geopolticos regionais. Ao mostrar detalhadamente comose dava o relacionamento poltico entre as naes do cone Sul, salientando osprocessos de definio de fronteiras e a conturbada situao interna destes pases,Menezes afirma que o desejo de autonomia poltica de paraguaios e de uruguaioscontrapunha-se ao projeto nacional argentino, que via nos vizinhos Paraguai eUruguai territrios a serem controlados por Buenos Aires. No quadro geopolticogeral, o autor descreve as articulaes internacionais dos diversos grupos polticosde cada pas com seus pares estrangeiros, de modo a definir dois grandes blocos:Colorados uruguaios, Unitrios argentinos e gachos brasileiros aliam-se em tornodo liberalismo, enquanto que os Blancos uruguaios, algumas provncias interioranasargentinas e o governo paraguaio assemelham-se pelo conservadorismo.

    No tocante ao Brasil, Menezes enfatiza o pouco interesse do Imprio frenteao Paraguai e procura demonstrar que o tom das relaes entre os dois pases,durante um certo tempo, esteve determinado pelo andamento do antagonismo queopunha o Brasil ao governo argentino de Rosas. Quando do trmino deste, a definiodas fronteiras paraguaias, por um lado, e os interesses brasileiros pela livre navegaoat o Mato Grosso, por outro, foram as principais questes na pauta de discussesentre os dois Estados, discusses estas que se arrastaram por longos anos.

    O autor tambm d margem a uma discusso muito importante dos vnculosentre Realpolitik e ideologia no contexto das relaes polticas externas e internasdos Estados. Realmente, parece evidente que a poltica nacional de um Estado ouseus interesses nacionais no podem ser considerados, em qualquer situao,cem por cento autnomos em relao a princpios ideolgicos ou de poltica interna.De fato, mesmo uma poltica baseada inteiramente no realismo poltico e na buscaabsoluta de aumento do poder e da influncia internacionais do Estado s pode sercompreendida a partir dos princpios e ideais que norteiam seu grupo dirigente e aprpria sociedade como um todo num momento histrico delimitado. Isso demonstraa inseparabilidade do carter da Realpolitik e das disputas entre os diversos grupospolticos dentro de um Estado, embora no signifique que as decises tomadas porum governo sejam sempre determinadas em ltima instncia pelos projetosespecficos de um determinado partido.

    No trabalho de Wilma COSTA (1996), por exemplo, fica evidente que, nocaso brasileiro, independente do grupo que estivesse no poder, a crise que levou invaso do territrio uruguaio e ajudou a levar ao conflito com o Paraguai estavainscrita no fato de o Imprio no dispor de instrumentos militares adequados paramanter uma prtica de tutela sobre o Uruguai que fosse autnoma em relao aosinteresses rio-grandenses (COSTA, 1996, p. 138). Seja como for, os problemas

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    polticos do Brasil e dos pases platinos na dcada de 1860 no podem serdescartados em uma anlise mais ampla dos motivos que levaram guerra doParaguai e essa seria um vis a ser aprofundado ainda mais para que uma anlisegeopoltica do conflito evitasse o risco de se limitar geopoltica.

    Contudo, apesar do exposto, a questo do imperialismo no desenvolvimentoda Guerra do Paraguai no pode, a nosso ver, ser eliminada totalmente. Se, comoafirma a nova historiografia, esta guerra no pode ser entendida como reflexo daspretenses imperialistas britnicas e se as grandes potncias evitaram se envolverdiretamente nela (BETHELL, 1996 e CERVO e RAPOPORT, 1998, pp. 208-211), ser possvel desconsiderar o predomnio poltico e econmico do imperialismobritnico naqueles anos na Amrica Latina e a crescente influncia dos EstadosUnidos? Na poca, os Estados latino-americanos promoveram mudanas em suasestruturas administrativas e buscaram integrar suas economias (predominantementeagropecurias) dinmica do capitalismo central. Em conseqncia de tal postura,a consolidao dos espaos territoriais decidida, por vezes, atravs da guerra serviria aos prprios Estados em formao, e tambm s potncias estrangeiras,sobretudo Inglaterra. Sendo assim, a Guerra do Paraguai no teria, indiretamente(e talvez at paradoxalmente), no imperialismo ingls (ou, ao menos, no sistemacapitalista e na pirmide internacional construdos predominantemente nos moldesingleses naqueles anos) um de seus motivos? A esta pergunta, a nova historiografiano oferece solues completas. Um sinal, talvez, que o abandono de velhas eseguramente equivocadas teorias sobre as relaes internacionais latino americanasno deva significar o abandono de um cuidado maior com o contexto do sculoXIX onde, seguramente, o problema imperialista no era irrelevante.

    Joo Fbio Bertonha e Renato Moscateli

    Nota

    1 Para algumas anlises bibliogrficas, ver BETHELL (1996) e MENEZES (1998).