Resenha – primeiros capítulos de Evolution in Four Dimensions

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Uma análise do livro Evolução em Quatro Dimensões: Variação Genética, Epigenética, Comportamental e Simbólica na História da Vida de Eva Jablonka e Marion J. Lamb Artur Rego Costa A obra de Jablonka e Lamb certamente teve uma grande importância na popularização daquilo que alguns reconhecem como sendo uma onda de renovação na teoria evolutiva. A principal ideia das autoras é a de que os mecanismos de herança biológica não se restringem aos envolvidos com a passagem de sequências nucleotídicas para a próxima geração. Jablonka e Lamb chamam cada um desses mecanismos de dimensões, e elas são quatro: genética, epigenética, comportamental e simbólica. Acontece que o conceito de herança é de máxima importância para a forma como entendemos a evolução biológica. As três últimas dimensões trazem ainda uma série de questionamentos, por muito tempo postos de lado, sobre o papel do desenvolvimento na biologia evolutiva. De que forma essas novas dimensões se relacionam com processos evolutivos? Quão importantes são elas para se entender a história evolutiva da vida? Essas são algumas das principais perguntas que as autoras buscam elaborar e responder nos dez capítulos do livro. Logo no primeiro capítulo Jablonka e Lamb começam com uma descrição muito interessante sobre o desenvolvimento das ideias evolutivas. Conhecer essa história é necessário para entender que a teoria evolutiva não é tão consensual quanto muitos imaginam e que há ainda muitas questões fundamentais que exigem o devido tratamento. Eu parto desse relato muito bem posto pelas autoras para fazer uma análise de suas ideias. *** A imagem de mundo predominante durante a maior parte da história da ciência foi a de que ele sempre esteve tal qual é hoje. Essa fixidez estendia-se a todos objetos naturais: rochas, mares, montanhas, e, destacadamente, aos seres-vivos. O início de uma historiografia do mundo natural se iniciou com o reconhecimento dos processos geológicos e com o maior número de evidências fósseis de que em tempos anteriores existiram formas biológicas que não mais podiam ser encontradas no mundo. Em meados do século XIX a ideia de que as espécies biológicas mudavam de alguma forma já era aceita por uma parte expressiva da comunidade científica, e

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Essa é uma resenha dos primeiros capítulos do livro Evolution in four dimensions de Eva Jablonka e Marion J. Lamb.

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Uma análise do livro Evolução em Quatro Dimensões: Variação Genética,

Epigenética, Comportamental e Simbólica na História da Vida de Eva

Jablonka e Marion J. Lamb

Artur Rego Costa

A obra de Jablonka e Lamb certamente teve uma grande importância na

popularização daquilo que alguns reconhecem como sendo uma onda de renovação na

teoria evolutiva. A principal ideia das autoras é a de que os mecanismos de herança

biológica não se restringem aos envolvidos com a passagem de sequências

nucleotídicas para a próxima geração. Jablonka e Lamb chamam cada um desses

mecanismos de dimensões, e elas são quatro: genética, epigenética, comportamental e

simbólica. Acontece que o conceito de herança é de máxima importância para a forma

como entendemos a evolução biológica. As três últimas dimensões trazem ainda uma

série de questionamentos, por muito tempo postos de lado, sobre o papel do

desenvolvimento na biologia evolutiva. De que forma essas novas dimensões se

relacionam com processos evolutivos? Quão importantes são elas para se entender a

história evolutiva da vida? Essas são algumas das principais perguntas que as autoras

buscam elaborar e responder nos dez capítulos do livro.

Logo no primeiro capítulo Jablonka e Lamb começam com uma descrição

muito interessante sobre o desenvolvimento das ideias evolutivas. Conhecer essa

história é necessário para entender que a teoria evolutiva não é tão consensual quanto

muitos imaginam e que há ainda muitas questões fundamentais que exigem o devido

tratamento. Eu parto desse relato muito bem posto pelas autoras para fazer uma

análise de suas ideias.

***

A imagem de mundo predominante durante a maior parte da história da

ciência foi a de que ele sempre esteve tal qual é hoje. Essa fixidez estendia-se a todos

objetos naturais: rochas, mares, montanhas, e, destacadamente, aos seres-vivos. O

início de uma historiografia do mundo natural se iniciou com o reconhecimento dos

processos geológicos e com o maior número de evidências fósseis de que em tempos

anteriores existiram formas biológicas que não mais podiam ser encontradas no

mundo. Em meados do século XIX a ideia de que as espécies biológicas mudavam de

alguma forma já era aceita por uma parte expressiva da comunidade científica, e

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consequentemente se deram as primeiras tentativas de explicar o modo pelo qual se

dava esse processo.

O grande desafio de qualquer teoria de evolução biológica é explicar a

adaptação dos seres vivos aos seus hábitos, habitats, ciclos de vida, etc. Lamarck

formulou uma teoria que tinha como eixo principal um ímpeto natural da matéria para

se organizar em seres vivos e desses, com o passar das gerações, de aumentar a

complexidade corporal. Darwin, por sua vez, nos forneceu com uma teoria cujo cerne

diz que as adaptações são variações que foram mantidas porque seus portadores

tinham certa vantagem reprodutiva sobre os não-portadores. Essa foi uma explicação

poderosa por explicar as adaptações apelando apenas para processos mecanísticos. No

entanto, a teoria dele sofreu várias críticas por não parecer se encaixar com nenhuma

das teorias de herança biológica discutidas à época. Foi uma época em que o

darwinismo foi quase que aposentado completamente, período frequentemente

chamado de o eclipse do darwinismo.

Tanto Lamarck quanto Darwin concordavam que as alterações causadas pelo

ambiente nos organismos no decorrer de suas vidas poderiam ser herdadas.

Weissman, apesar de discordar completamente da herança de caracteres adquiridos,

foi fundamental no processo de reavivamento do darwinismo e do mecanismo de

seleção. Sabia-se que as células continham dentro de seus núcleos estruturas que mais

tarde seriam chamadas de cromossomos, e que esse material nuclear se duplicava e,

em seguida, se dividia no processo de divisão celular. Esse material nuclear foi logo

associado à herança e Weissman propôs que ele determinava a diferenciação dos

diferentes tipos celulares durante o desenvolvimento dos organismos multicelulares

(por um mecanismo equivocado, a propósito). Foi Weissman que sugeriu que na

divisão celular da formação dos gametas ocorria a divisão do conteúdo nuclear em

dois, de forma que após a fecundação o zigoto continha a mesma quantidade de

material nuclear que os pais. Ele também incorporou origens para a variação biológica

em seu sistema: as porções que cada um dos gametas carregava do material nuclear

das células originárias é diferente, gerando variação entre os vários gametas de um

indivíduo; o sexo envolve a combinação de materiais nucleares de organismos

diferentes, aumentando ainda mais a variação da prole; e acidentes poderiam ocorrer

no material nuclear devido às condições do ambiente, de maneira a alterar os

determinantes carregados por ele, alterando assim a progênie. Weissman era um ultra-

darwinista; consequentemente, as suas teorias perderam destaque no mesmo período

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que as próprias ideias de Darwin estavam em baixa. Apesar disso as ideias de

Weissman foram muito influentes na fundamentação do que depois convencionou-se

chamar de Síntese Moderna.

A inclusão da herança mendeliana e a torrente de confirmações experimentais

que os estudos laboratoriais forneceram, junto com os avanços na área de biologia

molecular, consolidaram a base para que a teoria darwiniana de evolução biológica

fincasse fundo o seu pé no meio científico. A molécula de DNA oferece mecanismos

muito claros e poderosos de herança, determinação ontológica e de origem da

variação biológica. Dessa forma, todas as teorias evolutivas anteriormente propostas

que não estivessem de acordo com esse método de herança foram refutadas (e até

mesmo condenadas) pelo meio científico. É um caso interessante de como as teorias

de uma área podem influenciar no status de teorias de áreas afins. O ápice dessa visão

foi a imagem de evolução biológica como popularizada por Richard Dawkins, que

defendia que todo e qualquer processo evolutivo pode ser entendido como um caso de

seleção entre replicadores (no caso, genes) que dão instruções para a montagem dos

veículos (que são os corpos dos os organismos).

Nesse contexto, algumas das ideias que perderam espaço e qualquer

credibilidade por parte da maioria da comunidade científica foram: herança de

caracteres adquiridos; origem não aleatória da variação; tendências gerais que

levassem o processo evolutivo a algum fim determinado (por exemplo, aumento de

complexidade); e qualquer outro mecanismo de herança que não fosse o genético. No

entanto, essas ideias ganharam nova força com o acúmulo de evidências que

mostravam que talvez elas não estivessem tão equivocadas quanto se pensava.

Jablonka e Lamb trazem em cada um dos capítulos devotados às novas dimensões de

herança uma série de estudos desse tipo. Alguns organismos são capazes de aumentar

a taxa de mutação de certas regiões-chave do seu genoma diante de condições

ambientais desfavoráveis, aumentando com isso a possibilidade de desenvolver uma

mutação vantajosa. Acontecimentos, condições ambientais, ou outro fatores na vida

da geração parental poderiam implicar em mudanças no desenvolvimento de suas

prole e até de seus descendentes mais distantes. Os mecanismos epigenéticos são

essenciais ao desenvolvimento, principalmente de organismos multicelulares, podem

ser alterados por condições ambientais e herdados pela prole. Foi reconhecido no

ambiente de desenvolvimento (o útero, o ovo, e porque não o ambiente externo?) um

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papel causal crucial na formação do organismo, e, logo, alterações não genéticas

desses ambientes poderiam estar por atrás da evolução de certas características.

Jablonka e Lamb não têm o intuito de tirar de vista a dimensão genética do

fenômeno da vida. As sequências de nucleotídeos têm, de fato, papel crucial na

história evolutiva. Têm alto poder informacional, podem ser eficientemente

replicadas, podem ter sua expressão regulada, enfim. O que se pretende é mostrar que

essas não são propriedades exclusivas do sistema genético; e que, portanto, o material

genético não é o único mecanismo de herança relevante à evolução biológica. Os

diferentes mecanismos de herança trazem consequências que não seriam esperadas se

fosse o caso de vigorar unicamente a primeira dimensão (como a herança de

caracteres adquiridos).

As primeiras teorias evolutivas eram teorias que focavam na transformação do

organismo. Mais tarde, Darwin mostrou que o que evoluía, na verdade, eram as

populações de organismos. Porém faltava uma peça-chave que era uma teoria

convincente de herança. Os conhecimentos de genética acabaram por afetar

fortemente a forma como enxergamos o processo evolutivo. Já há algum tempo, mas

cada vez mais fortemente, essa postura de que a evolução apenas ocorre do ponto de

vista do gene tem sido contestada. Voltamos a aceitar que não apenas o gene, mas

todo o sistema complexo que forma o organismo (e porque não os grupos,

populações, metapopulações?) também evolui. Essa é uma mudança que encontra

uma certa resistência por parte da comunidade científica. A gente tem dificuldade de

tirar os nossos olhos por um momento do modelo genético de evolução. Mas com

certeza não é por mal, o gene é um conceito de poder explicativo e aplicação prática

extraordinários, e uma dose bem ministrada de ceticismo faz parte de toda boa

atividade científica. Mas, como mostram Jablonka e Lamb, as evidências já se

acumularam a ponto de não mais ser possível contestar que o modelo atual não dá

conta de explicar todos os fatos. Uma revisão conceitual da teoria evolutiva é

inevitável e iminente.