Resenha - FLORI, Jean. Guerra Santa. Formação da ideia de cruzada no Ocidente Cristão

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    FLORI, Jean. Guerra Santa.Formao da ideia de cruzada no Ocidente cristo.Traduo de Ivone Castilho Benedetti. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013, 416p.

    Guilherme Queiroz de SouzaUniversidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho - Assis

    Resenha recebida em: 07/11/2014Resenha aprovada em: 20/11/2014

    ______________________________________________________________________

    Discpulo de Georges Duby, que o orientou durante o doutorado na Universit

    Paris 1 Panthon-Sorbonne, Jean Flori um dos mais renomados medievalistas

    franceses da atualidade. Entre 1991 e 2001, atuou na direo do Centre dEtudes

    Suprieures de Civilisation Mdivale (CESCM) e, desde 1987, conduz investigaes

    no Centre National de la Recherche Scientifique(CNRS). Sua produo historiogrfica

    conta com dezenas de artigos e livros, que abrangem temas como Guerra Santa,

    Cruzada, Cavalaria, Islamismo, etc., com nfase nos sculos XI-XII.1

    A obra que resenhamos foi publicada originalmente em francs com o ttulo La

    Guerre Sainte. La formation de lide de croisade dans lOccident chrtien (Paris:

    Aubier-Flammarion, 2001). Em 2003, ela recebeu tradues para o espanhol2e para o

    italiano 3 e, em 2013, a Editora da UNICAMP nos brindou com essa edio em

    portugus,4 cuja traduo foi realizada por Ivone Castilho Benedetti, com a reviso

    tcnicaePrefcio a cargo daProfa. Dra. Nri de Barros Almeida. Alm da introduo e

    1Uma lista de todos os trabalhos de Jean Flori disponibilizada no seguinte endereo:

    .2

    FLORI, Jean. La guerra santa. La formacin de la idea de cruzada en el Occidente cristiano.Traduccin de Rafael G. Peinado Santaella. Madrid: Editorial Trota, 2003.3

    FLORI, Jean. La guerra santa. La formazione dellidea di crociata nellOccidente cristiano.Traduzione di Paola Donadoni. Bologna: Il Mulino, 2003.4

    FLORI, Jean. Guerra Santa. Formao da ideia de cruzada no Ocidente cristo . Traduo de IvoneCastilho Benedetti. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.

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    concluso, o trabalho est dividido em 10 captulos, com uma extensa bibliografia final

    (42 pginas) em que, estranhamente, so listadas apenas as fontes secundrias utilizadas.

    A principal finalidade do livro analisar a formao da ideia de Cruzada no

    Ocidente cristo, acompanhada na longue dure (longa durao) histrica, entre os

    sculos IV e XI. De maneira didtica e pragmtica, Flori sintetiza o que seria o conceito

    de Cruzada: uma guerra santa que tem por objetivo a libertao de Jerusalm.5

    Trata-se de um combate sacralizado, amadurecido somente no fim do sculo XI, e que

    se diferencia de qualquer outra guerra santa pelo seu propsito central: reconquistar o

    tmulo de Cristo, o Santo Sepulcro, na Palestina.

    Mas por que comear pelo sculo IV? A razo disso que o autor acompanha

    uma perspectiva, desenvolvida em outras obras, que considera o cristianismo primitivouma religio inteiramente pacfica.6 Ora, Jesus Cristo pregava a paz, era um adepto

    radical da no violncia: Eu, porm, vos digo: no resistais ao homem mau; antes,

    quele que te fere na face direita oferece-lhe tambm a esquerda (Mt 5, 39). A noo

    de amor universal seria, portanto, a nica expresso do discurso neotestamentrio. Na

    percepo de Flori, o processo de sacralizao da guerra se iniciou apenas com a

    oficializao do cristianismo no mundo romano (exatamente no sculo IV), quando os

    cristos tiveram que pegar em armas para defender o novo Imperium Christianum,especialmente contra os germanos que atravessavam o limes. Naquela poca, coube a

    Santo Agostinho (354-430) elaborar a justificativa para o emprego do belicismo.7

    No entanto, nem todos os historiadores concordam com essa proposio. Jesus

    apresentava por vezes um pacifismo duvidoso, como percebemos em algumas

    passagens (metafricas ou literais) do prprio Evangelho. Ele havia expulsado os

    vendilhes do Templo de forma truculenta (Mc 11, 15-17; Mt 21, 12; Lc 19, 45; Jo 2,

    11-17), alm de ter declarado que, se meu reino fosse deste mundo, meus sditosteriam combatido para que eu no fosse entregue aos judeus (Jo 18, 36).8Nos sculos

    5FLORI, Jean. Guerra Santa. Formao da ideia de cruzada no Ocidente cristo . Traduo de Ivone

    Castilho Benedetti. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013, p. 360.6Por exemplo, FLORI, Jean. Guerre sainte, jihad, croisade. Violence et religion dans le christianisme et

    lislam. Paris: Seuil, 2002, p. 15-24.7FLORI, Jean. Guerra Santa..., op. cit., p. 42-44.

    8Ver tambm Mt 10, 34; Mt 11, 12; Lc 12, 51-53; Lc 22, 35-38.

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    I-III, muitos cristos exerceram atividades militares e integraram legies romanas, entre

    as quais a famosaLegio XII Fulminata durante a campanha na Germnia (174).9

    Seja como for, Flori indica que a segunda evoluo da embrionria ideia de

    cruzada ocorreu no perodo carolngio. Nos sculos VIII-IX, existiam relaes

    favorveis entre a Igreja e o Estado, provenientes da perspectiva de Imprio Cristo,

    noo idealizada por Constantino (c. 272-337) e retomada por Carlos Magno (c. 742-

    814).10O declnio carolngio no refreou a sacralizao da guerra, pois era necessrio

    proteger os bens eclesisticos das investidas dos senhores feudais. Nos escritos dos

    monges e clrigos, os santos patronos apareciam milagrosamente para proteger a Igreja

    ou amparar aqueles que lutavam em nome dela. Neste sentido, pode-se ento falar de

    violncia sagrada dos santos. Essa forma de religiosidade constituiu uma etapaimportante na formao da ideia de guerra santa,11ressalta o autor no captulo 4.

    O livro recortado pela articulao e paralelismo entre as concepes de guerra

    santa e cruzada. Ambas apresentavam certas caractersticas, a saber: apoio do

    Papado, demonizao dos adversrios, presena de sacerdotes, esperana escatolgica,

    expectativas de recompensas materiais ou espirituais, noo de vingana ou de desforra,

    vestgios de xenofobia ou antijudasmo, ou mesmo inteno de converso.12 Aqui,

    Flori compartilha da opinio de autores como Hans E. Mayer e Paul Rousset, para osquais seria um equvoco denominar de Cruzada uma expedio caso o objetivo

    principal no fosse a libertao (ou defesa) do Santo Sepulcro. Ele considera que toda

    Cruzada apresenta sinais de uma guerra santa, mas nem toda guerra santa revela traos

    de uma Cruzada.13Por tudo isso, podemos classific-lo de tradicionalista, ou seja, um

    historiador que denomina de verdadeiras Cruzadas apenas as campanhas relacionadas

    9CABRERO PIQUERO, Javier. El concepto de la guerra en el cristianismo primitivo desde los Evangelios a

    San Agustn.Revista de Historia Militar (Instituto de Historia y Cultura Militar), nmero extra, ao LIII, 2009,p. 88; 103. Disponvel em: 10

    FLORI, Jean. Guerra Santa.Formao da ideia de cruzada no Ocidente cristo. Traduo de IvoneCastilho Benedetti. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013, p. 35-37.11

    Ibid., p. 110.12

    Ibid., p. 22.13

    Mas a cruzada era mais que guerra santa, da qual tinha, porm, todas as caractersticas. Difere dela

    essencialmente pelo fato de que seu objetivo era a libertao do Sepulcro de Cristo em Jerusalm, lugarsanto por excelncia, Ibid.,p. 360.

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    Jerusalm.14Essa corrente se contrape pluralista, cujos acadmicos Jonathan

    Riley-Smith, por exemplo defendem como Cruzadas expedies em nome de Cristo

    com diferentes inimigos e cenrios de atuao.15

    Ao longo de sua obra, Flori pe

    prova teses consagradas pela historiografia.

    No captulo 3, o autor matiza uma teoria segundo a qual a Paz de Deus havia sido um

    movimento poltico-social com um amplo e profundo alcance. Neste projeto, por meio

    de ameaas espirituais, proibia-se aos combatentes investir contra os santurios cristos

    e os inermes (mercadores, religiosos e camponeses). Com isso, a sociedade feudal

    anrquicapoderia ser salva. Na verdade, afirma Flori, mediante a Paz de Deus a

    Igreja no proibiu a guerra e promoveu a paz: ela moralizava a paz e a guerra em

    funo de seus prprios objetivos e de seus interesses. Se tal programa eclesistico nopode ser considerado o antecedente imediato do processo cruzadstico, sem dvida ele

    foi uma etapa importante na formao da ideia de cruzada.16

    Outra significativa questo revisitada, dessa vez no captulo 9, diz respeito

    influncia decisiva que a Reforma Papal supostamente desempenhou na gestao do

    ideal de cruzada, segundo uma antiga tese do alemo Carl Erdmann. De acordo com

    Flori, o movimento exerceu um papel principal na formao da Cruzada, mas no

    converteu a guerra justa

    em guerra santa

    e, depois, em Cruzada. Ao contrrio doque se pensava, a Reforma apenas aproveitou a seu favor a noo, admitida e

    praticada, de combates sacralizados, para transform-la em instrumento ideolgico em

    sua luta contra os adversrios.17

    No captulo 8, Flori afirma que o Ocidente pouco se interessava pelos

    muulmanos antes que eles chegassem parte ocidental do Mediterrneo,18ou seja,

    nas ltimas dcadas do sculo VII. Para comprovar esse argumento, o autor recorre s

    obras do monge anglo-saxo Beda, o Venervel(c. 672-735), e

    Crnica Morabe (c.754), escrita por um hispnico annimo. Tal desinteresse era verdadeiro; no entanto,

    14Flori insiste nesse conceito de cruzadaem um artigo de 2004: La croisade tait une guerre sainte

    ayant pour objectif la rcupration des Lieux saints de Jrusalem par les chrtiens , FLORI, Jean. Pourune redfinition de la croisade. Cahiers de civilisation mdivale, vol. 47, 2004, p. 349.15

    Para esse debate historiogrfico, ver CONSTABLE, Giles. The Historiography of the Crusades. In:LAIOU, Angeliki E; MOTTAHEDEH, Roy Parviz (eds.). The Crusades from the Perspective of

    Byzantium and the Muslim World. Washington, D.C.: Dumbarton Oaks, 2001, p. 12-22.16

    FLORI, Jean. Guerra Santa.Formao da ideia de cruzada no Ocidente cristo. Traduo de IvoneCastilho Benedetti. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013, p. 100.17

    Ibid., p. 274.18Ibid., p. 243.

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    acreditamos que o medievalista francs deveria ter indicado, como bem fez Franco

    Cardini,19 que existia ao menos um ocidental que registrou (c. 658-660) a expanso

    rabe j no Oriente Mdio e no Mediterrneo oriental, considerando-a, inclusive, uma

    ameaa apocalptica: referimo-nos ao cronista merovngio Fredegrio.20Essa ausncia

    um detalhe que, evidentemente, no compromete o tema central, nem ofusca o

    brilhantismo do livro.

    A obra de Jean Flori contribui para o entendimento de um dos fenmenos mais

    importantes da histria ocidental. Estamos diante de uma crtica documental vigorosa e

    de um dilogo fecundo com a historiografia especializada. A presente edio ajuda a

    renovar a bibliografia em portugus sobre as Cruzadas, um pouco envelhecida desde a

    traduo dos trabalhos clssicos de Zo

    Oldenbourg, Paul Rousset, Steven Runciman eRen Grousset, sobretudo. 21 Juntamente com o livro de Christopher Tyerman,22 o

    Guerra Santa. Formao da ideia de cruzada no Ocidente cristo um estudo recente e

    de grande erudio oferecido aos pesquisadores lusfonos do movimento cruzadstico.

    19CARDINI, Franco. Nas razes do encontro-desencontro entre Europa e Isl. Um profeta e trs

    continentes. Signum.Revista da Associao Brasileira de Estudos Medievais, n 3, 2001, p. 44.20

    FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingiens (Livre IV et Continuations). Turnhout: Brepols,2001, p. 156-161; 182-185. Sobre esse assunto, ver SOUZA, Guilherme Queiroz de. A reao do basileusHerclio (c. 575-641) frente aos judeus e rabes noLivro IVda Crnicade Fredegrio (c. 660): ameaasapocalpticas?Brathair.Revista de Estudos Celtas e Germnicos, vol. 11 (2), 2011, p. 19-23. Disponvelem: .21

    Respectivamente, OLDENBOURG, Zo. As Cruzadas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968;ROUSSET, Paul. Histria das Cruzadas.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980; RUNCIMAN, Steven.

    Histria das Cruzadas. Lisboa: Horizonte, 1992-1995, 3 vols; GROUSSET, Ren. A epopia das

    Cruzadas. Lisboa: Europa-Amrica, 1998.

    22TYERMAN, Christopher.A Guerra de Deus: uma nova histria das Cruzadas. Lisboa: Altheia, 2009.