Resenha elias, norbert. escritos e ensaios 1. estado, processo e opinião pública

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RESENHAS 169 Escritos & ensaios: Norbert Elias em perspectiva Federico NEIBURG e Leopoldo WAIZBORT (orgs.). Escritos & ensaios. Vol. 1: Estado, processo, opinião pública. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006. 238 páginas. Tatiana Savoia Landini O primeiro volume de Escritos & ensaios, organizado e apresentado por Federico Neiburg e Leopoldo Waizbort, é uma boa mostra dos textos dispersos escritos por Norbert Elias. A produção desse autor alemão é bastante vasta e diversifi- cada. Felizmente, seus principais livros já estão disponíveis em português, a maioria em edições brasileiras. Contudo, o vasto conjunto de artigos, publicados originalmente em revistas acadêmicas ou na forma de capítulos de livros, ainda não tinha sido traduzido para o português. Esses tex- tos aqui reunidos propiciam uma nova oportu- nidade de aproximação às idéias desse consagra- do sociólogo. Como afirmam os organizadores em sua introdução, a coletânea apresenta trabalhos es- critos por Elias após 1950. Essa informação não deve ser desprezada. Aquela que até hoje é con- siderada sua obra magna, O processo civilizador (ou Processo da civilização), foi escrita nos primeiros anos do autor na Inglaterra, onde se refugiou durante a vigência do nazismo na Alemanha, sua terra natal. Publicada em 1939, por uma editora suíça, foi naquele momento muito pouco lida e apreciada. Na década seguinte, ape- sar de continuar a pesquisar e escrever, nenhum outro texto foi publicado pelo autor, o que acon- teceu em 1950 com “Estudos sobre a gênese da profissão naval”, cuja tradução constitui o terceiro capítulo de Escritos & ensaios. Artigos e palestras são, no meio acadêmico, uma forma mais rápida de apresentar resultados de pesquisas e também de discutir aspectos específicos de um trabalho maior ou de um livro, inclusive com o intuito de reafirmar a posição teórica ou dirimir possíveis mal-entendidos a respeito de trabalhos prévios. É justamente desse ponto de vista, o da possibilidade de que sejam dirimidas dúvidas a respeito da teoria eliasiana, que serão comentados os textos de Escritos & ensaios, não havendo a intenção, portanto, de resumi-los ou de explorar todas as questões neles envolvidas. Em sua apresentação à coletânea, Federico Neiburg e Leopoldo Waizbort já realizam parte desse trabalho. O texto, muito bem escrito, contém importantes informações a respeito dos vínculos teóricos com sociólogos de sua época e dos principais conceitos de Elias. Os organi- zadores também justificam a escolha dos verbetes civilização, figuração e processos sociais, escritos para um léxico de sociologia, para constituir o primeiro capítulo do livro. Segundo eles, essas definições servem como introdução privilegiada, na medida em que amarram toda a sociologia eliasiana e revelam os posicionamentos do autor no interior do campo disciplinar. Minha visão, que ficará mais clara ao final deste texto, é opos- ta. Os verbetes, um dos últimos trabalhos publi- cados por Elias em vida, deveriam ser o último texto a ser lido para que o leitor possa tiram maior proveito da criatividade sociológica pre- sente nos escritos. Sendo assim, minhas obser- vações seguirão a ordem cronológica (retirada de Mennell, 1998, pp. 309-312) e não aquela em que aparecem publicados no livro. “Estudos sobre a gênese da profissão naval” (capítulo 3 – composto por dois textos, “Drake and Doughty: o desenvolvimento de um conflito”, de 1950, e “Gentlemen e Tarpaulisn”, de 1977), tem como ponto forte a discussão da relação entre o individual e o social. O texto discorre sobre o conflito entre dois membros da expedição que partiu de Falmouth, em 1577, com o objetivo de alcançar regiões desconhecidas no Pacífico Sul não pertencentes ao reino da Espanha. Eram eles: Drake, um marítimo profissional, e Doughty, um militar profissional, gentleman que freqüentava as altas esferas da corte, mas não tinha posses. Ao narrar suas desavenças, que culminaram com a decapitação de Doughty por Drake, Elias mostra que o conflito entre ambos deveria ser entendido não apenas como desavença pessoal, mas tam- bém como algo representativo da luta entre es- tratos sociais diversos. Não eram apenas dois indi- víduos em luta pelo comando, mas as posições ocupadas por eles e, em decorrência, o desen- volvimento da profissão marítima. Encontramos

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RESENHAS 169

Escritos & ensaios: NorbertElias em perspectiva

Federico NEIBURG e Leopoldo WAIZBORT (orgs.).Escritos & ensaios. Vol. 1: Estado, processo, opiniãopública. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006. 238páginas.

Tatiana Savoia Landini

O primeiro volume de Escritos & ensaios,organizado e apresentado por Federico Neiburg eLeopoldo Waizbort, é uma boa mostra dos textosdispersos escritos por Norbert Elias. A produçãodesse autor alemão é bastante vasta e diversifi-cada. Felizmente, seus principais livros já estãodisponíveis em português, a maioria em ediçõesbrasileiras. Contudo, o vasto conjunto de artigos,publicados originalmente em revistas acadêmicasou na forma de capítulos de livros, ainda nãotinha sido traduzido para o português. Esses tex-tos aqui reunidos propiciam uma nova oportu-nidade de aproximação às idéias desse consagra-do sociólogo.

Como afirmam os organizadores em suaintrodução, a coletânea apresenta trabalhos es-critos por Elias após 1950. Essa informação nãodeve ser desprezada. Aquela que até hoje é con-siderada sua obra magna, O processo civilizador(ou Processo da civilização), foi escrita nosprimeiros anos do autor na Inglaterra, onde serefugiou durante a vigência do nazismo naAlemanha, sua terra natal. Publicada em 1939, poruma editora suíça, foi naquele momento muitopouco lida e apreciada. Na década seguinte, ape-sar de continuar a pesquisar e escrever, nenhumoutro texto foi publicado pelo autor, o que acon-teceu em 1950 com “Estudos sobre a gênese daprofissão naval”, cuja tradução constitui o terceirocapítulo de Escritos & ensaios.

Artigos e palestras são, no meio acadêmico,uma forma mais rápida de apresentar resultadosde pesquisas e também de discutir aspectosespecíficos de um trabalho maior ou de um livro,inclusive com o intuito de reafirmar a posiçãoteórica ou dirimir possíveis mal-entendidos arespeito de trabalhos prévios. É justamente desseponto de vista, o da possibilidade de que sejam

dirimidas dúvidas a respeito da teoria eliasiana,que serão comentados os textos de Escritos &ensaios, não havendo a intenção, portanto, deresumi-los ou de explorar todas as questões nelesenvolvidas. Em sua apresentação à coletânea,Federico Neiburg e Leopoldo Waizbort já realizamparte desse trabalho. O texto, muito bem escrito,contém importantes informações a respeito dosvínculos teóricos com sociólogos de sua época edos principais conceitos de Elias. Os organi-zadores também justificam a escolha dos verbetescivilização, figuração e processos sociais, escritospara um léxico de sociologia, para constituir oprimeiro capítulo do livro. Segundo eles, essasdefinições servem como introdução privilegiada,na medida em que amarram toda a sociologiaeliasiana e revelam os posicionamentos do autorno interior do campo disciplinar. Minha visão,que ficará mais clara ao final deste texto, é opos-ta. Os verbetes, um dos últimos trabalhos publi-cados por Elias em vida, deveriam ser o últimotexto a ser lido para que o leitor possa tirammaior proveito da criatividade sociológica pre-sente nos escritos. Sendo assim, minhas obser-vações seguirão a ordem cronológica (retirada deMennell, 1998, pp. 309-312) e não aquela em queaparecem publicados no livro.

“Estudos sobre a gênese da profissão naval”(capítulo 3 – composto por dois textos, “Drakeand Doughty: o desenvolvimento de um conflito”,de 1950, e “Gentlemen e Tarpaulisn”, de 1977),tem como ponto forte a discussão da relaçãoentre o individual e o social. O texto discorresobre o conflito entre dois membros da expediçãoque partiu de Falmouth, em 1577, com o objetivode alcançar regiões desconhecidas no Pacífico Sulnão pertencentes ao reino da Espanha. Eram eles:Drake, um marítimo profissional, e Doughty, ummilitar profissional, gentleman que freqüentava asaltas esferas da corte, mas não tinha posses. Aonarrar suas desavenças, que culminaram com adecapitação de Doughty por Drake, Elias mostraque o conflito entre ambos deveria ser entendidonão apenas como desavença pessoal, mas tam-bém como algo representativo da luta entre es-tratos sociais diversos. Não eram apenas dois indi-víduos em luta pelo comando, mas as posiçõesocupadas por eles e, em decorrência, o desen-volvimento da profissão marítima. Encontramos

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aqui, portanto, um belo exemplar da sociologiaeliasiana, cuja atenção está voltada não para aação individual, mas para as interdependênciasentre os indivíduos.

Outro ponto bastante negligenciado porleitores de Elias, bastante bem desenvolvidonesse texto sobre a profissão naval é, por assimdizer, o lado antropológico do autor. Ao lidar comacontecimentos passados, ele trabalha com de-finições êmicas, isto é, busca entender os con-ceitos a partir das configurações que lhes deramforma. N’O processo civilizador, esse exercício serealiza quando o conceito de civilização é pro-blematizado, sendo relacionado ao desenvolvi-mento da sociedade. O mesmo é feito em relaçãoà profissão naval e às desigualdades de poder ede status.

Esse capítulo 3 é, na minha opinião, um dosmelhores textos do livro. É impressionante aforma como, a partir de uma questão aparente-mente banal e sem significado sociológico, Eliasconsegue fazer uma análise ampla, aprofundada eque, sobretudo, não fica restrita ao caso e aospersonagens a ele vinculados, mas discute opróprio desenvolvimento das profissões e dasociedade.

O capítulo 4 – “Habitus nacional e opiniãopública” – é composto por duas palestras que ver-sam sobre esse tema, a primeira proferida em1959 e a segunda, em 1962. A tese defendida porElias é de que existe, sim, o que pode ser chama-do de opinião pública – no caso, sendo a Ingla-terra o espaço abrangido –, configurada comouma base comum à pluralidade de opiniões. Oautor sustenta que existem, é claro, diferenças naforma como os jornais abordam um determinadotema, dependendo do público a que se destinam,mas, por outro lado, também aponta a presençade uma uniformidade de interesses unindo aque-le país. Essa base comum é, em sua visão, bas-tante forte no país, dado que o nós-ideal, ou seja,a visão que um inglês possui a respeito de sipróprio e de seus compatriotas, possui bastantesolidez. Esta, por sua vez, advém do constante eininterrupto desenvolvimento do Estado e dasociedade, sem que exércitos inimigos con-cretizassem uma invasão; de uma urbanizaçãoextraordinariamente alta; e de uma uniformizaçãotambém acentuada decorrente da não existência

de uma camada social camponesa (apenas ofarmer).

Ainda que discutível, é importante que esseponto, a estabilidade da opinião pública inglesa,seja salientado, pois mostra uma característicatípica da sociologia de Elias: a análise, ainda quese refira a um acontecimento singular do presen-te, será sempre relacionada ao desenvolvimento,ao devir. Mais do que isso, esse exame leva sem-pre em consideração a relação entre indivíduosou grupos – no caso da opinião pública, esseaspecto não poderia ser diferente. O Estado inglêsé um campo de forças que se mantêm em equi-líbrio, onde estão contidos o círculo interno dogoverno e do Parlamento e os grupos de interesseorganizados. A opinião pública seria um grupo depressão não especialmente organizado, mas sem-pre presente, com capacidade de influenciar osrumos de um caso. Além disso, outra característicado enfoque do autor é o estudo comparativo, oque ele realiza nesse texto ao comparar dois país-es que conhece muito bem: Alemanha e Inglaterra.

Entretanto, a meu ver, esse não é dosescritos mais interessantes ou densos no conjuntoda produção de Elias. De qualquer forma, é mere-cedor de leitura, na medida em que dialoga muitobem com os estudos sobre mídia e comunicaçãode massa. Referindo-se ao final dos anos de 1950e início da década seguinte, Elias não titubeia emafirmar que as visões expressas pelos meios decomunicação representam também as opiniõesde pessoas e grupos que formam o país, recu-sando assim a interpretação de que esses meiospossuem o poder de “formar” a opinião pública.

Se esse trabalho não é dos mais ricos den-tre os que foram traduzidos para a coletânea aquiexaminada, o capítulo 6, “Sobre a sociogênese daeconomia e da sociologia” (escrito em 1962 epublicado em 1984), é muito instigante. O termosociogênese, utilizado constantemente por Elias,ainda causa estranheza e dúvidas, mesmo entrealguns mais afeitos à sociologia figuracional ouprocessual. Ainda que o termo não seja dos maiscorriqueiros, o objetivo da discussão é simples:buscar a gênese social da sociologia, ou seja,compreender suas fases iniciais. Isso não signifi-ca que sua discussão esteja restrita ao estudo dosautores auto denominados sociólogos. Muitopelo contrário, entende que um conceito não de-

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va ser entendido como algo dado, sob risco dereduzir diferentes matizes no uso dos mesmostermos, em estágios anteriores ao desenvolvi-mento do conceito.

Embora simples, o autor torna a discussãomuito estimulante, na medida em que relaciona asmodificações específicas na maneira de ver asociedade ao processo social de configuração daprópria abordagem científica que, por sua vez, éentendido como parte das mudanças em proces-so na estrutura social. Dito de outra forma, para oautor, o desenvolvimento da sociedade desem-penhou papel importante na construção de umaforma mais científica de concebê-la. O livro Invol-vement and detachment (1987) – publicado noBrasil com o questionável título Envolvimento ealienação (1998) – deu seguimento a essa dis-cussão, além de outros textos esparsos ainda nãotraduzidos para nossa língua.

Para Elias, os primeiros sociólogos compar-tilhavam algumas questões. Destacava entre elas aconceituação similar das mesmas experiênciascomo indicativas da existência de “sociedade”,isto é, aquilo que não era Estado, uma região douniverso dotada de certa autonomia e que tinhaou constituía uma ordem sui generis. Assimsendo, a questão comum entre eles era a de sabercomo a sociedade tinha se desenvolvido, seusestágios, forças motrizes e a direção que pos-sivelmente tomaria. O que está em jogo, portan-to, é o nascimento do “olhar sociológico”, a per-cepção de que uma determinada ordem deeventos possui certa autonomia ante as açõesindividuais e as leis feitas pelos homens, conjun-to esse que deveria ser estudado de modo cientí-fico, a partir de idéias e observações factuais.

Contudo, argumenta, ainda que autores comoComte, Spencer e Marx tenham tentado procedercientificamente, encontraram um mesmo obstáculo:cada um deles tinha uma visão firme do destino doshomens, expressa numa concepção que repre-sentava, ao mesmo tempo, o que desejavam que asociedade fosse, o que moralmente julgavam queela deveria se tornar e o que profeticamente acre-ditavam que a sociedade realmente viria a ser.

Em suma, esse texto é um belo exemplo dasociologia do conhecimento eliasiana, sociologiaque se ocupa do trajeto percorrido por um con-ceito a fim de compreender o desenvolvimento

do pensamento e a construção do saber. Mais doque isso, é um texto que ajuda a refletir a respei-to do status do desenvolvimento social nessa teo-ria. O processo civilizador foi tido por livro evolu-cionista, uma discussão valorativa a respeito dasmudanças sociais, que definia a direção ideal dodesenvolvimento. Sobre a sociogênese da econo-mia e da sociologia, escrito mais de trinta anosdepois, parece ser um acerto de contas com essetipo de crítica.

Os dois textos seguintes – “Processos de for-mação de Estados e construção de nações” (capí-tulo 5), escrito entre 1970 e 1972, e “Para a funda-mentação de uma teoria dos processos sociais”(capítulo 7), de 1977 – podem ser compreendidosna mesma chave: um acerto de contas. O primeirodeles recupera apresentação realizada no VIICongresso Mundial de Sociologia e, assim como otexto sobre a opinião pública, também umapalestra, não é dos de maior fôlego do autor.Aproveitando a oportunidade de participar demesa-redonda sobre “Grandes Teorias do De-senvolvimento”, Elias critica um de seus principaisoponentes teóricos, Talcott Parsons – também alipresente – e, assim, reafirma sua própria posição.

Aponta o caráter estático do pensamentoparsoniano e o fato de suas teorias serem exces-sivamente amplas, não condizendo com a reali-dade empírica. Em sua visão, ao olhar para asações em detrimento dos indivíduos e para asociedade como um sistema social integrado,Parsons perde toda a riqueza da realidade empíri-ca, o que o impede de perceber os processos deintegração e desintegração presentes no desen-volvimento do Estado-nação.

No segundo texto, essa discussão é aprofun-dada: constitui uma ótima síntese do que pensa oautor a respeito dos processos sociais, sendo neleexaminados o surgimento das teorias da evoluçãosocial e do progresso nos séculos XVIII e XIXe seu desaparecimento no seguinte. Defendendosua posição teórica, Elias afirma que não deve-riam ter sido rejeitadas as teorias que buscavamexplicar o processo de longo prazo, mas apenasos elementos etnocêntricos, metafísicos e teleo-lógicos nelas presentes.

Se há questões a serem debatidas a respeitodas teorias acerca dos processos sociais, o mesmovale para o modo como o indivíduo é compreen-

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dido nas diversas teorias sociológicas. Aliás, navisão de Elias, ambas as questões estão interli-gadas. Se, em grande parte, os processos sociaissão não planejados é porque sua direção é defini-da a partir da interdependência dos atos de von-tade e dos planos de muitos seres humanos.Dessa forma, para ele, a direção dos processossociais é resultado das configurações sociais; por-tanto, se o objetivo é compreendê-las, de nadavale estudar os indivíduos e suas vontades e atosisoladamente, mas deve ser considerada a própriaconfiguração.

A respeito desse ponto, é importante subli-nhar uma questão muito pouco debatida sobre asociologia figuracional ou processual, para a qualesse texto se presta de forma exemplar: o papeldos grupos organizados no delineamento da di-reção dos processos sociais. De acordo com a ter-minologia do autor, as ações desses grupos cons-tituem as ofensivas civilizatórias e possuem, sim,um papel importante. Ofensivas civilizatórias sãoações que visam a influenciar o comportamentosocial e introduzir mudanças, sejam elas relacio-nadas à sexualidade e à educação, sejam rela-cionadas ao Estado. Contudo, a atenção deveconcentrar-se não apenas nas decorrências dessasofensivas, mas também em sua emergência, con-siderada parte do processo social. Nesse sentido,o planejamento social deve ser entendido comouma possibilidade advinda do curso de um pro-cesso não planejado – o planejamento é carac-terístico de uma fase do desenvolvimento nãoplanejado e entrelaça-se continuamente com ele.

A importância das ações planejadas, comen-tada acima, é também considerada no texto“Tecnização e civilização” (capítulo 2), escrito em1986 e publicado em 1995, no qual Elias analisa atecnização do transporte. Já no primeiro pará-grafo, o autor afirma que ambos os processos –tanto a tecnização como a civilização – são nãoplanejados e de longa duração, embora surjam doentrelaçamento, da conjunção, da cooperação edo confronto de várias atividades planejadas.

Em pouco mais de duas páginas, é sintetiza-do o seu pensamento sobre o processo de civi-lização. É um texto conciso – o que não é muitode seu feitio, diga-se de passagem! – e quemerece ter alguns pontos ressaltados. O processode civilização corresponde a um percurso de

aprendizagem involuntária que começou nosprimórdios do gênero humano e que não tem fim,apenas sua direção pode ser definida. Não tendofim, não há como afirmar que indivíduos ousociedades sejam “civilizados”, mas apenas é pos-sível estabelecer meios tangíveis de comparaçõesentre estágios diferentes de uma mesma so-ciedade e entre sociedades distintas. Está rela-cionado à auto-regulação adquirida, imperativapara a sobrevivência e sem a qual as pessoasficariam irremediavelmente sujeitas aos altos ebaixos das próprias pulsões, paixões e emoções.É, portanto, um Elias bastante freudiano – já pre-sente em sua obra magna – o que aparece aqui.

Outra questão enfrentada pelo autor dizrespeito ao sentido de falar em civilização quandoo mundo parecia (e parece) cada vez maisperigoso. Na cabeça das pessoas, envolvidas queestão em sua vida e em seu cotidiano, a possibi-lidade do risco é automaticamente associada àasserção de que o perigo é maior do que nunca –o que precisa ainda ser verificado.

O último texto a ser comentado é, na ver-dade, o que constitui o primeiro capítulo do livro,“Conceitos sociológicos fundamentais”, escrito em1986. Os três verbetes que constituem o capítulo –civilização, figuração e processos sociais – foramescritos para um léxico de sociologia publicado naAlemanha e foram encomendados para que elepudesse sintetizar seu pensamento e expor osconceitos fundamentais que orientam suas inves-tigações. Ainda que não seja possível negar aqualidade desses escritos, também não há comonão mencionar certo estranhamento diante deles.Elias sempre fez questão de enfatizar a importân-cia da pesquisa empírica no delineamento dasteorias e dos conceitos sociológicos. Ele costuma-va criticar, por exemplo, a primeira parte da obraEconomia e sociedade, de Max Weber, por nãoconstituir uma análise sociológica, mas, antes, umapanhado de conceitos que, de certa forma, nãoencontravam utilidade na sociologia weberiana,que considerava de ótima qualidade. A leituradesses três verbetes mostra um outro Elias, maisafeito à definição concisa do que à problematiza-ção e à análise. Não há dúvida de que sua leiturapode ajudar no entendimento do conjunto de suaobra, mas, tomados isoladamente, não têm muitovalor. É um complemento e, portanto, merece ser

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lido por aqueles que já possuem contato e certaintimidade com os escritos do autor. Caso con-trário, há o risco da simplificação, o que não énada desejável e, sobretudo, não seria justo paracom esse autor, cuja sensibilidade sociológica ecapacidade de análise da realidade empírica são,de fato, impressionantes.

Em suma, os textos que Federico Neiburg eLeopoldo Waizbort escolheram para a montagemda coletânea, apesar de heterogêneos em suaqualidade e profundidade, são de grande inter-esse para aqueles que se voltam para a com-preensão da obra desse autor germano-inglês,além do interesse individual relacionado aostemas abordados. Nesses textos, Elias tem a opor-tunidade de responder a críticas a seus livros maisconhecidos e sua leitura permite a percepçãoclara da missão que assumiu como sua: a retoma-da de questões levantadas pelos primeiros soció-logos, de compreender os processos sociais demudança de longo prazo não circunscritos aointerior do Estados-nação, sem que, contudo,fosse descuidado o estudo de relações internas ouaté entre indivíduos ou grupos singulares. Aliás,um ponto sempre surpreendente na leitura deseus textos é a articulação do que muitos tomampor dois níveis: o micro e o macro. O autor não sefurta a estabelecer essa interconexão: o estudo deuma briga entre dois navegadores leva-o a equa-cionar questões mais amplas, da mesma formaque o estudo de processos gerais e de longo prazolhe possibilita a compreensão do individual.

BIBLIOGRAFIA

ELIAS, Norbert. (1950), “Studies in the genesis ofthe naval profession”. British Jounal ofSociology, 1 (4): 291-309.

_________. (1998), Envolvimento e alienação. Riode Janeiro, Bertrand Brasil.

_________. (2000), The civilizing process: socio-genetic and psychogenetic investiga-tions. Massachusetts, Blackwell.

MENNELL, Stephen. (1998), Norbert Elias: anintroduction. Dublin, University Colle-ge Dublin Press.

TATIANA SAVOIA LANDINI é doutora emsociologia pela Universidade de São Paulo

(USP) e docente do curso de ciências sociaisda Universidade Federal de São Paulo

(Unifesp).