Resenha - Documentário Arquitetos do Poder.pdf

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BAGGIO, Eduardo Tulio. Construindo o Poder. Revista Galáxia, São Paulo, n. 21, p. 162-166, jun. 2011. 162 Construindo o Poder Eduardo Tulio Baggio FERRAZ, Vicente; ALDÉ, Alessandra (2010). Arquitetos do poder. [Documentário]. Rio de Janeiro, 90 min. Resumo: O documentário aborda a construção de imagens de poder na política brasileira. Desde as campanhas radiofônicas, passando pelo grande desenvolvimento das campanhas televisivas, até chegar ao forte marketing político das últimas eleições presidenciais. O filme trata em especial das questões éticas relacionadas aos processos de comunicação política. Palavras-chave: marketing político; comunicação política; cinema; documentário. Abstract: Building Power. The documentary approaches the construction of power images in Brazilian politics. Since the radio campaigns, going through the huge development of television cam- paigns, until the strong political marketing of the last presidential election. The film specially deals with ethical issues related to the processes of political communication. Keywords: political marketing; political communication; cinema; documentary. No documentário Arquitetos do Poder (2010), dirigido por Vicente Ferraz e Alessandra Aldé, há um certo ar de déjà vu. Há muitos momentos que parecem repetir algo, parece que já ouvimos várias daquelas falas, já vimos algumas das imagens, ou já conhecemos os comentários. E é mesmo uma repetição, proposital, pois são imagens de arquivo, e falas e comentários comuns ao tema abordado. Mesmo o que ainda não vimos ou ouvimos nos parece familiar, nos vem à lembrança claramente, isso porque são relatos de fatos recentes da história política do Brasil. Não há originalidade nos fatos que o documentário apresenta,

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  • BAGGIO, Eduardo Tulio. Construindo o Poder. Revista Galxia, So Paulo, n. 21, p. 162-166, jun. 2011.162

    Construindo o PoderEduardo Tulio Baggio

    FERRAZ, Vicente;

    ALD, Alessandra (2010).

    Arquitetos do poder.

    [Documentrio].

    Rio de Janeiro, 90 min.

    Resumo: O documentrio aborda a construo de imagens de poder na poltica brasileira. Desde as campanhas radiofnicas, passando pelo grande desenvolvimento das campanhas televisivas, at chegar ao forte marketing poltico das ltimas eleies presidenciais. O filme trata em especial das questes ticas relacionadas aos processos de comunicao poltica.

    Palavras-chave: marketing poltico; comunicao poltica; cinema; documentrio.

    Abstract: Building Power. The documentary approaches the construction of power images in Brazilian politics. Since the radio campaigns, going through the huge development of television cam-paigns, until the strong political marketing of the last presidential election. The film specially deals with ethical issues related to the processes of political communication.

    Keywords: political marketing; political communication; cinema; documentary.

    No documentrio Arquitetos do Poder (2010), dirigido por Vicente Ferraz e Alessandra

    Ald, h um certo ar de dj vu. H muitos momentos que parecem repetir algo, parece

    que j ouvimos vrias daquelas falas, j vimos algumas das imagens, ou j conhecemos os

    comentrios. E mesmo uma repetio, proposital, pois so imagens de arquivo, e falas e

    comentrios comuns ao tema abordado. Mesmo o que ainda no vimos ou ouvimos nos

    parece familiar, nos vem lembrana claramente, isso porque so relatos de fatos recentes

    da histria poltica do Brasil. No h originalidade nos fatos que o documentrio apresenta,

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    pelo menos no enquanto observados isoladamente, o que o filme traz de original o

    percurso e o foco escolhidos, um amlgama de entrevistas, recordaes e consideraes

    sobre a vida poltica brasileira, em especial sobre a conduo de campanhas presidenciais

    e sobre a formao da imagem pblica de muitos polticos. Em suma, trata do marketing

    poltico brasileiro, com destaque para o perodo ps-redemocratizao.

    Como forma de conduzir essa histria, foram eleitas estratgias discursivas tpicas

    do cinema documentrio, com destaque para as entrevistas com personagens envolvidos

    diretamente nos fatos, e o uso constante de imagens e udios de arquivos que remetem

    aos momentos histricos. Tais estratgias remetem ao estilo de cinema documentrio co-

    nhecido por participativo (NICHOLS, 2005), em que dar voz aos envolvidos na histria

    um vetor tico fundamental, pois, em certa medida, tira o poder do documentarista

    enquanto construtor do discurso. Porm, alm da crtica tradicional que esse estilo de

    documentarismo voltada para a fragilidade do argumento de que apenas mostrar as

    pessoas falando tornaria o discurso mais prximo da realidade cabe tambm ressaltar

    que a edio extremamente fragmentada e a articulao de falas e materiais de arquivo

    muito curtos faz com que o discurso seja fortemente marcado pela conduo dos rea-

    lizadores, aproximando-se muito do cinema documentrio clssico, conhecido como

    documentrio de exposio (PENAFRIA, 1999), com sua opo assertiva voltada para

    um carter explicativo, quase didtico. Por outro lado, todas essas opes formais e de

    abordagem so, em parte, as responsveis por uma aproximao e identificao que o

    filme provoca com seu pblico, tal qual ocorreu em uma de suas primeiras exibies, no

    XV Tudo Verdade, festival internacional de cinema documentrio de 2010.

    A organizao narrativa prope uma espcie de prlogo e depois segue em sequncia

    cronolgica, comeando com os trabalhos de marketing e construo da imagem pblica

    dos polticos desde Getlio Vargas, passando por Carlos Lacerda, Jnio Quadros, Leonel

    Brizola, entre outros. Ento chega ao perodo posterior redemocratizao, com as

    eleies presidenciais de 1989. neste perodo que o documentrio concentra seu foco.

    Logo no incio do filme, entre belas imagens de Braslia, que nos sugerem valores

    estticos arquitetnicos e outros valores ligados ao poder poltico, surge uma fala de Duda

    Mendona (coordenador de campanhas polticas, com destaque para a que elegeu Luiz

    Incio Lula da Silva em 2002) em que ele diz que todo mundo tem um lado bom e um

    lado ruim, e considera: cabe a voc ressaltar o lado bom e neutralizar ao mximo o lado

    ruim. Durante todo o documentrio essa vai ser a chave lgico-argumentativa usada pelos

    profissionais de marketing para justificar a forma como procuram supervalorizar mritos

    e esconder falhas de seus clientes, dando assim um ar tico para uma atividade que, de

    incio, parece no mnimo questionvel.

    Em contrapartida, outros coordenadores de campanha relativizam o poder do

    marketing apesar de serem falas minoritrias , como o caso de Joo Santana (co-

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    ordenador de marketing da campanha de Lula em 2006) que afirma que existe muito

    acaso: as coisas so mais casuais do que a gente pode imaginar. Ou quando Paulo de

    Tarso (redator da campanha do MDB em 1978 e coordenador das campanhas de Lula em

    1989, 1994 e 1998) considera que a comunicao poltica tem um papel para o bem e

    para o mal, ou seja, alguns podem agir apenas de forma boa, outros podem agir de forma

    m. Assim, ainda nos primeiros minutos do documentrio so apresentadas as variveis

    de uma atividade comunicacional cercada de questionamentos. No por acaso, essas

    variveis versam sempre sobre posturas ticas. Seriam ticos o marketing poltico e suas

    consequncias? a pergunta que fica no ar nas primeiras cenas do documentrio, antes

    mesmo de aparecer o ttulo.

    O histrico apresentado na narrativa demonstra que desde Getlio Vargas, no mni-

    mo, as estratgias comunicacionais dos polticos so planejadas cuidadosamente; como

    exemplos so mostrados pronunciamentos radiofnicos feitos por Getlio, que eram

    cuidadosos com o alcance que deveriam ter atravs do rdio e, para isso, faziam uso

    de palavras simples e de uma pronncia clara e pausada, pensada para amenizar falhas

    tcnicas de transmisso inerentes ao meio na poca. Para o publicitrio Lula Vieira, em

    fala no filme, a comunicao poltica de apelo popular no mudou muito desde a dcada

    de 1930; existiram apenas adaptaes: de Getlio Vargas a Lula h apenas uma ade-

    quao linguagem do meio. Apesar disso, o senador Pedro Simon afirma que quando

    ele iniciou na poltica no se sabia o que era marketing, apenas se buscando enfatizar o

    contato com o pblico.Quando a televiso chegou ao Brasil e se tornou o principal meio de comunicao

    do pas, houve uma intensificao das estratgias nas campanhas polticas. O cientista poltico Marcus Figueiredo afirma que a primeira vez em que houve uma organizao de ideias de uma campanha como um todo, por um coordenador de campanha, foi a do MDB de 1974, organizada por Fernando Henrique Cardoso, com uso intenso da cam-panha televisiva. Como houve uma grande vitria do MDB, o governo militar criou a lei Falco para o ano seguinte, que previa que os candidatos deveriam apenas colocar seus nomes, seus nmeros e fotos na televiso, sendo proibidos de fazer qualquer outro uso comunicacional possvel na linguagem audiovisual da televiso.

    O documentrio mostra ainda como a censura nos meios de comunicao brasileiros se estendeu, em maior ou menor grau, durante todo perodo da ditadura militar e destaca algo muito particular, a continuao da censura mesmo aps o fim do regime. Essa nova

    fase da censura acontecia principalmente vinda dos prprios veculos de comunicao.

    Wianey Pinheiro, editor da TV Globo nos anos 80, fala de uma espcie de censura ve-

    lada que existia, como uma crosta que persistia aps a censura oficial. Carlos Henrique

    Schroeder, editor da TV Globo na poca, diz que era muito difcil conseguir dar uma nota

    de greve no incio dos 80.

    Tambm so relatadas articulaes que envolviam os meios de comunicao para

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    defenderem ideologias ou partidos, criando um jogo perverso com as campanhas eleitorais

    e seus arquitetos. Segundo relatos presentes no filme, houve uma campanha miditica

    contra Brizola nas eleies presidenciais de 1989, pois havia medo do que um governo

    brizolista poderia significar. E, ainda como exemplo, o caso da edio das matrias que

    relatavam o ltimo debate do segundo turno feita nos telejornais da Rede Globo, que

    at hoje gera muita polmica quanto aos caminhos distintos tomados por editores do

    telejornal vespertino e os do noturno.

    A partir da eleio presidencial de 1994 passa ser mais importante nas campanhas

    o trabalho no direcionamento dos temas chave, que por consequncia levariam aos

    candidatos. Em 1994 o tema que puxou a campanha foi o ento recente e bem sucedi-

    do plano real e a associao de seus mritos com o ex-ministro e candidato Fernando

    Henrique Cardoso. Em 1998 as duas principais campanhas trabalharam com o mesmo

    tema, mas com perspectivas diferentes, enquanto a coordenao da campanha de Lula

    tentava mostrar os problemas econmicos vividos no Brasil, a campanha de Fernando

    Henrique foi mais eficaz ao dizer que sim, existiam problemas, mas s quem saberia como

    resolv-los era quem tinha criado o plano real. J em 2002 houve uma mudana, Duda

    Mendona assumiu a coordenao de marketing da campanha do PT e o tema vencedor

    foi o da ao social e, principalmente, o fim do medo, que se relacionava ao medo do que

    poderia ser um governo do petista. Por fim, em 2006 a eleio presidencial foi polarizada

    entre o tema da continuidade das evolues sociais e as denncias de corrupo contra

    o PT, e a primeira tese venceu. Segundo o publicitrio Fernando Barros, ficou provado

    em 2006 que o poder dos grandes grupos de comunicao j no era to grande quanto

    no passado, pois apesar da fortssima e longa srie de denncias contra os petistas Lula

    ganhou a eleio: ficou relativizada a fora dos grandes veculos de comunicao.

    As ideias de vrias matizes apresentadas em Arquitetos do Poder so suficientes

    para provocar reflexes profundas sobre a fora e a importncia do marketing poltico.

    Campanhas eleitorais em rdio e televiso ganham eleies? Ou so apenas pequenas

    variveis dentro do quadro colocado pelo contexto poltico? Prximo do final do filme

    Paulo de Tarso afirma que a comunicao poltica pode muito, mas no pode mais

    do que a poltica. Apesar de ser um profissional de marketing relativizando a fora da

    comunicao na poltica, em especial nas campanhas, essa no a impresso geral. A

    ideia que fica a de que so construdas personalidades e histrias polticas que no

    necessariamente correspondem realidade.

    Alm da tima pesquisa histrica, o que deixa o documentrio mais interessante

    a duplicidade da questo tica presente. Como, eticamente, em seu processo comuni-

    cacional, o documentrio Arquitetos do Poder aborda seus personagens? E como esses

    personagens, eticamente, em sua rea de atuao comunicacional, atuam diante dos

    espectadores brasileiros?

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    Referncias

    NICHOLS, Bill (2005). Introduo ao Documentrio. So Paulo: Papirus.

    PENAFRIA, Manuela (1999). O Filme Documentrio: histria, identidade, tecnologia. Lisboa: Edies Cosmos.

    EDUARDO TULIO BAGGIO doutorando em Comu-

    nicao e Semitica pela PUC-SP, mestre em Comunicao

    e Linguagens pela UTP, especialista em Comunicao

    Audiovisual pela PUC-PR e graduado em Comunicao

    Social/Jornalismo pela UFPR. Atua como professor nas

    reas de direo, cinema documentrio e teorias do cine-

    ma no curso de Cinema e Vdeo da FAP. Como realizador

    audiovisual, roteiriza, dirige e finaliza filmes, em especial

    na rea de documentrios.

    [email protected]