Resenha Crítica_Tudo começou com Maquiavel
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FERREIRA, L N | ISC, 2012 1
Resenha Crítica produzida durante a disciplina Política de Saúde (ISC 520), ministrada pelo Prof. Jairnilson Silva Paim no curso de Doutorado em Saúde Pública do Instituto de Saúde Coletiva – ISC, da Universidade Federal da Bahia – UFBA; Salvador-BA, 2012.
Autor: LUCIANO NERY FERREIRA e-mail: [email protected]
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3823016376226283
Resenha Crítica:
Gruppi, L. Tudo começou com Maquiavel. As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. L&PM Editores: Porto Alegre, 1980. 93p.
O Livro em questão faz como
anuncia o seu título, uma análise das
concepções de Estado desde Nicolau
Maquiavel até os principais autores
marxistas da 2ª década do século XX.
A edição em português publicada
no Brasil em 1980 está dividida em duas
partes que organizam os temas da
seguinte maneira: a Parte I faz um
panorama das teorias de Estado de
acordo com diversos pensadores, além
de discorrer sobre alguns temas
correlatos e a Parte II aprofunda as
noções de Estado à luz do referencial
marxista e contextualiza algumas
experiências históricas do marxismo na
Europa.
No que se refere ao conteúdo
específico em cada uma das partes, a
parte I introduz a concepção do Estado
em Marx e Engels, após o que se seguem
apresentações das concepções dos
pensadores Políticos desde Nicolau
Maquiavel até Georg Wilhelm Frierich
Hegel, daí seguem se apresentações da
crítica de Marx, da origem do Estado
segundo Engels, além das ideias de
igualdade jurídica, da Extinção do Estado
e a liberdade do homem, da ditadura do
proletariado e sobre a Comuna de Paris.
Ao passo que a parte II começa com a
concepção do Estado em Lênin e
Gramsci e retoma os temas que
apareceram nos debates que esses
autores protagonizaram. Desta maneira,
são retomados alguns aspectos, tais
como: Kautsky “renegado” ou não?; o
debate em torno de Bernstein, o Estado e
a revolução, os Sovietes e a Comuna,
nem tudo deve ser “quebrado”,
democracia e ditadura do proletariado,
contra o burocratismo, desde Lênin até
Gramsci, os conselhos de fábrica, a
necessidade de explorar o terreno
nacional, hegemonia e bloco histórico, a
noção de intelectual, o partido como
moderno “Príncipe” e; que tipo de
pluralismo?
Luciano Gruppi, tendo convivido
com a efervescência do movimento
sindical Italiano deixa muito claro no texto
a sua influência marxista, o que também
se evidencia com o referencial teórico
filosófico escolhido. A escrita de muitos
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trechos em 1ª pessoa não deixa dúvidas
quanto ao seu posicionamento em torno
das questões discutidas, o que dá ao
texto um poder de aproximação com o
leitor.
O resgate histórico minucioso de
diversas abordagens em torno de um
tema central, aliado à apresentação
informativa e reflexiva da perspectiva de
cada pensador devidamente
contextualizado, agregam característica
didática à obra que se presta tanto ao
leitor iniciante, quanto às pessoas que
buscam examinar o tema de forma mais
apurada.
Com relação ao conceito de
Estado, o autor parte de uma definição
extraída da Enciclopédia Treccani – “Com
a palavra Estado, indica-se
modernamente a maior organização
política que a humanidade conhece; ela
se refere quer ao complexo territorial e
demográfico sobre o qual se exerce uma
dominação (isto é, o poder político), quer
à relação de coexistência e de coesão
das leis e dos órgãos que dominam sobre
esse complexo” – para discutir os
elementos fundamentais da existência do
Estado segundo este conceito: poder
político, povo e território.
O autor assinala que o nascimento
do Estado moderno se dá em 1531 na
Inglaterra e este se constitui em três
características principais, a saber: a
autonomia, a distinção entre Estado e
sociedade civil, e a identificação absoluta
entre o Estado e o monarca.
Neste sentido, Nicolau Maquiavel
inaugura no século XVI as reflexões sobre
o Estado e lança uma forma de entendê-
lo sob perspectiva científica-política que
se distingue das concepções vigentes
ligadas à moral e à religião. O
pensamento de Maquiavel é dirigido para
a análise aristotélica do real (as coisas
como elas são) e se estende para o que
pode e deve ser feito, e não para o que
seria ideal fazer. É marcante na
concepção de Maquiavel a noção de
poder e dominação do Estado sobre o
povo. Sobre dominação, Maquiavel afirma
que é preferível que o príncipe seja
temido a amado, e justifica: “Os homens
têm menos escrúpulo de ofender quem se
faz amar do que quem se faz temer. Pois
o amor depende de uma vinculação moral
que os homens, sendo malvados,
rompem; mas o temor é mantido por um
medo de castigo que não nos abandona
nunca”. Vai adiante e postula que o
Estado moderno funda-se no terror.
Na sequência é apresentado o
pensamento de Jean Bodin sobre o
Estado. Pode-se perceber que este
valoriza sobretudo a soberania do Estado.
Ainda há em Bodin uma valorização da
obediência às leis divinas, no entanto,
este poder não é outorgado pelo papa, o
monarca interpreta e obedece à lei divina
de forma autônoma.
A concepção subsequente é a de
Thomas Hobbes, segundo o qual os
homens apresentam um instinto primitivo
de destruição mútua quando está em jogo
a conquista de poder, riqueza e
propriedades, e que para frear isto é
necessário estabelecer um contrato, e o
Estado absoluto com a rigidez do seu
poder representa este contrato.
Gruppi assinala que esta é uma
visão que descreve o surgimento da
burguesia, do mercado, a luta e a sua
crueldade característica.
Este ideário burguês ganha força
com a apresentação das concepções de
John Locke, na qual são expressas as
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bases do nascimento da cidadania na
Inglaterra na segunda metade do século
XVII. Locke afirma que é necessário
restringir as liberdades para assegurar o
direito à propriedade.
Ao explicitar a distinção entre o
Estado e a sociedade civil, Locke faz
alusão às diferenças de transmissão nas
esferas pública e privada, sustentava que
a transição do poder Estatal deveria se
dar pela via democrática, parlamentar, ao
passo que a transmissão da propriedade
de âmbito privado era objeto de herança,
portanto passado de pai para filho. Desta
maneira estabelece-se também o ideário
liberal, segundo o qual a sociedade civil
exerce os direitos de propriedade, e o
Estado tutela e garante este direito sem
nele interferir.
Estas concepções apresentadas
têm em comum a ideia de que o indivíduo
existiu antes da sociedade e que fundou-a
num contrato. Gruppi alerta que isto é um
equívoco, pois no processo civilizatório o
homem só se torna homem vivendo em
sociedade.
Na sequência, é apresentada a
contribuição de Emmanuel Kant para o
debate, que retoma o tema da soberania
atribuindo-a ao povo, no entanto, há nos
postulados de Kant uma diferenciação
clara entre as pessoas independentes, a
quem se atribuía o exercício dos direitos
políticos e os não independentes, cuja
capacidade de desempenhar a livre
opinião era negada. Esta segregação
posiciona os proprietários como cidadãos
plenos e alija a cidadania dos não
proprietários, o que estabelece a
burguesia enquanto classe e aprofunda
as raízes do liberalismo.
Apesar de Kant conferir a
soberania ao povo, supervaloriza a lei
dando-lhe status sacro. Para Kant a lei é
tão inviolável, que é crime até mesmo
colocá-la em discussão, e o monarca
nunca deixaria de ser um justo intérprete
da soberania do povo.
Por sua vez, ao examinar a
contribuição de Jean-Jaques Rousseau,
Gruppi demonstra que este se opõe às
ideias de Hobbes ao afirmar: “os homens
nascem livres e iguais, mas em todo lugar
estão acorrentados”. Então Rousseau
utiliza isto para afirmar que é a vida em
sociedade que desvirtua a humanidade, e
começa então a pregar o resgate da
igualdade e da liberdade.
Com relação ao Estado, defende a
ideia de assembleia para executar tarefas
administrativas e inaugura o termo
“comissários do povo” para designar os
governantes. Na sua concepção de
assembleia, o povo não delega poder a
outrem, portanto isso cria um problema:
se o cidadão estivesse sempre em
assembleia, quem trabalharia? Então
Rousseau vislumbrava um modelo ideal
(pensamento oposto a Maquiavel) de
democracia, soberania e liberdade, o qual
ele mesmo admitia que não existe, nunca
existiu e talvez nunca existirá.
Rousseau percebe que a raiz das
desigualdades econômicas e sociais é a
propriedade privada, no entanto, a sua
análise é individualista e não consegue
estabelecer meios ou sugestões para
superá-la.
Na sequência, a contribuição mais
interessante de Benjamin Constant de
Rebecque diz respeito à distinção que
consegue fazer entre sociedade civil e
sociedade estatal (sociedade política).
Benjamin Constant consegue assinalar
que a liberdade tão defendida até agora
se exerce fundamentalmente na vida
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particular no que diz respeito aos direitos
de iniciativa econômica e propriedade, em
detrimento da restrita capacidade de
influenciar as esferas políticas na
condução do governo.
A esse respeito, Benjamin
Constant afirmava que o que se entendia
à época como liberdade, era o direito de
submeter-se apenas à lei. Fazia assim um
contraponto às ideias de igualdade de
Rousseau e defendia a liberdade como
diferença, ao invés de igualdade.
Charles Tocqueville, por sua vez,
diante de duas correntes de concepções
do Estado (Liberal – liberdade exige
desigualdade e garante a propriedade;
Democrática – liberdade pressupõe
igualdade), indaga se a igualdade para
qual tende a humanidade não vai destruir
a liberdade.
Já no século XX Benedetto Croce,
assumindo o posicionamento liberal, entra
na discussão e defende a livre
competição e enaltece as capacidades
individuais. Gruppi chama a atenção para
a determinação econômica que está na
base destas disputas.
Com a exposição das concepções
de George Wilhem Frederich Hegel, tem-
se uma crítica à concepção liberal
individualista da liberdade. Neste sentido,
considera que o Estado funda o povo e a
soberania é do Estado, portanto a
sociedade civil é incorporada pelo Estado
e de certa forma aniquila-se neste.
Após este regate histórico das
concepções de Estado moderno burguês,
Gruppi chega à conclusão de que apesar
de haver justificativas ideológicas, não há
aí uma teoria científica sobre o Estado, e
que na verdade seria impraticável pensar
num corpo teórico científico para tal sem
tomar como eixo da análise a divisão de
classes. Estão anunciadas desta maneira
as análises que se seguem sob a
perspectiva do referencial marxista.
O modo como Karl Marx analisa a
questão parte do suposto de que a
igualdade jurídica sem a igualdade
econômico social é pura aparência, e
sobretudo, esconde e consolida as
desigualdades reais. Então Marx afirma
que a sociedade política (o Estado) é
expressão da sociedade civil, por
conseguinte das relações de produção
que nelas se estabelecem.
Marx fornece a base científica para
entender o Estado ao afirmar: “O conjunto
dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, isto é,
a base sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, à qual
correspondem formas determinadas da
consciência social”.
Gruppi adverte que o estágio
inacabado de “O capital” impediu uma
elaboração da teoria do Estado por Marx,
no entanto o fundamento deixado é sólido
o suficiente para que se possa elaborar
leituras e análises com este propósito.
A contribuição de Friedrich Engels
sobre a origem do Estado parte da
análise das origens da propriedade
privada quando começa a haver a
transição entre a caça e a pecuária, o que
teve repercussões na forma como surge a
família e a subordinação da mulher.
Engels indica que diversas sociedades
conviveram sem Estado, mas que à
medida que o desenvolvimento
econômico atinge uma determinada
complexidade na qual é possível distinguir
classes sociais e uma luta entre estas
classes, eis que a consequência disto é o
surgimento do Estado.
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A partir da ideia da estrutura da
sociedade, com a superestrutura
composta pelo Estado e o seu aparelho
jurídico ideológico repressivo, Marx e os
demais teóricos marxistas, se
empenharam em demonstrar que a
propriedade privada, sobretudo dos meios
de produção, priva e oprime as demais
pessoas, impedindo-lhes à liberdade.
Como alternativa à opressão oriunda à
luta de classes o marxismo propõe a
revolução com a ditadura do proletariado,
a destituição da propriedade privada e a
socialização dos meios de produção,
extinção das classes sociais e o seu
antagonismo intrínseco, e estaria então
extinta a razão última da existência do
Estado.
A partir daí Gruppi faz um resgate
pormenorizado das experiências
europeias que mais se aproximaram da
revolução proposta pelo Marxismo: a
Comuna de Paris, e a Revolução Russa.
Além do que dá destaque para as
contribuições de Vladimir Ilitch Lenin e
Antônio Gramsci. Do primeiro se
evidencia principalmente o caráter prático
da sua obra, com uma concepção
revolucionária do Estado que foi
característica do momento vivido durante
a revolução bolchevique. Para Lênin o
poder estatal funda-se em três elementos
reacionários que devem ser quebrados: o
exército permanente separado do povo, a
burocracia e a polícia.
No que se refere a Gramsci, ele
retoma na Itália os ideais marxistas,
especialmente numa concepção mais
aproximada à de Lênin. Do ponto de vista
da estratégia revolucionária, Gramsci
realça a função do sujeito e a importância
do partido como guia deste processo.
Provavelmente a maior contribuição de
Gramsci foi a construção da ideia de
hegemonia a partir da noção de direção; e
quando ele aplica isso à necessidade de
exploração do terreno nacional italiano
para o êxito do processo revolucionário,
ele o faz de maneira que hegemonia
neste caso tem a ver com conhecimento
além da ação, representa a conquista de
um novo nível cultural. O que Gramsci
estava buscando, como assinala Gruppi,
era um processo de unificação do
pensamento e da ação, vez que uma
classe pode tornar-se hegemônica antes
mesmo da conquista do poder.
Neste sentido, Gruppi retoma o
raciocínio de Gramsci segundo o qual o
partido é o elemento decisivo da
formação da hegemonia da classe
operária, ou seja, uma versão moderna e
revolucionária do “príncipe” concebido por
Maquiavel. Ressalta que na sociedade
moderna este príncipe não é mais um
indivíduo, mas sim uma inteligência e
uma vontade coletiva que unifica a ação e
o pensamento, unifica a filosofia instintiva
com a consciente, o que torna possível a
visão do conjunto.
A despeito de se verificar não
haver uma teoria orgânica sobre o
Estado, Gruppi fornece com a sua obra,
uma gama de informações para a análise
das ideologias que justificam o Estado
moderno burguês, além do que adota o
referencial do marxismo para discutir os
fundamentos da compreensão das razões
da existência do Estado, reflete a respeito
das contradições de classes sobre as
quais o Estado está assentado, e dá
subsídio à compreensão das experiências
revolucionárias na Europa à luz de
conceitos mais contemporâneos do
marxismo.
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Destarte, esta obra oferece uma
revisão bastante profícua das concepções
de Estado ao longo da história, o que
potencialmente colige elementos para
reflexões a cerca das relações do Estado
nos mais diversos âmbitos da vida
contemporânea a partir das origens do
pensamento político. Especialmente para
o campo da Saúde Coletiva contribui para
o entendimento dos marcos teóricos que
fundamentaram – e fundamentam – as
lutas travadas, conquistas alcançadas e
entraves existentes no processo da
Reforma Sanitária Brasileira,
especialmente no que se refere às
atribuições do Estado na garantia de
direitos sociais e o seu papel na relação
entre público e privado frente a um
desafio manifesto pela questão da
democratização da saúde no Brasil.
Trata-se portanto, de leitura introdutória
recomendada aos interessados em
entender o processo de Reforma
Sanitária Brasileira.