Resenha Critica

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resenhas 159 direção à platéia. No final, os atores-leões e as atrizes-leoas saltam da jaula e se dirigem a uma platéia já domada. Ler a peça e os depoimentos é perceber o quanto o teatro invadiu e alimentou alguns programas humorísticos e como a televisão contribui para resgatar, pelo menos pela imaginação, a atuação de Regina Casé, Patrícia Travassos, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita em Tra- te-me Leão. Como leitura, o texto é bem vindo não só por trazer esse marco da encenação da década de setenta para o papel, mas também por expor ao público que teve ou não teve o prazer de assistir o Asdrúbal, seu modo original de tratar de temas de uma geração que rompia tabus e pulverizou o modo de representar para além dos palcos, chegando à tv e ao cinema. Talvez possamos resumir o que a trupe Asdrúbal sentiu ao comemorar trinta anos em uma das falas da personagem Charles: “Eu quero viver. Não aprender a viver!”, pois percebeu que viveu e aprendeu e ensinou a viver! Vale viver a leitura da peça! Marcelino Freire – Contos negreiros Rio de Janeiro: Record, 2005. Liana Aragão Negros negros, negros brancos, negros pobres, negros ricos, negros machos, negros fêmeas, negros gays. É essa a matéria – a paisagem, as tintas e a tela – nas mãos de Marcelino Freire, em seu último livro, Con- tos negreiros. São 16 narrativas, que ele chama de cantos, distribuídas em pouco mais de cem páginas. Como temática central, a variedade “cromá- tica” das misérias humanas e sociais, tão comuns e algumas vezes irrelevantes aos nossos olhares. O que menos vai importar nesses contos/cantos é a posição étnica de seus narradores, protagonistas, personagens, atores. As relações que eles constroem, a realidade que o autor nos pinta, aliadas à agressividade ritmada da escrita de Marcelino, é que são negras. Não podemos, nem seria intenção deste texto, categorizar ou enfatizar a categorização social referente a raça, cor ou seja lá o que for. O fato é que os contos trazem às vistas toda a miséria, o descompasso, que nos retiram de um mundo cor- de-rosa e pam! Realidade: nosso passado colonial é presente e os escravos são agora multicolores.

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Obra de MArcelino de Freites

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direção à platéia. No final, os atores-leões e as atrizes-leoas saltam dajaula e se dirigem a uma platéia já domada.

Ler a peça e os depoimentos é perceber o quanto o teatro invadiu ealimentou alguns programas humorísticos e como a televisão contribuipara resgatar, pelo menos pela imaginação, a atuação de Regina Casé,Patrícia Travassos, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita em Tra-te-me Leão. Como leitura, o texto é bem vindo não só por trazer essemarco da encenação da década de setenta para o papel, mas também porexpor ao público que teve ou não teve o prazer de assistir o Asdrúbal, seumodo original de tratar de temas de uma geração que rompia tabus epulverizou o modo de representar para além dos palcos, chegando à tv eao cinema. Talvez possamos resumir o que a trupe Asdrúbal sentiu aocomemorar trinta anos em uma das falas da personagem Charles: “Euquero viver. Não aprender a viver!”, pois percebeu que viveu e aprendeue ensinou a viver! Vale viver a leitura da peça!

Marcelino Freire – Contos negreirosRio de Janeiro: Record, 2005.

Liana Aragão

Negros negros, negros brancos, negros pobres, negros ricos, negrosmachos, negros fêmeas, negros gays. É essa a matéria – a paisagem, astintas e a tela – nas mãos de Marcelino Freire, em seu último livro, Con-tos negreiros. São 16 narrativas, que ele chama de cantos, distribuídas empouco mais de cem páginas. Como temática central, a variedade “cromá-tica” das misérias humanas e sociais, tão comuns e algumas vezesirrelevantes aos nossos olhares.

O que menos vai importar nesses contos/cantos é a posição étnica deseus narradores, protagonistas, personagens, atores. As relações que elesconstroem, a realidade que o autor nos pinta, aliadas à agressividaderitmada da escrita de Marcelino, é que são negras. Não podemos, nemseria intenção deste texto, categorizar ou enfatizar a categorização socialreferente a raça, cor ou seja lá o que for. O fato é que os contos trazem àsvistas toda a miséria, o descompasso, que nos retiram de um mundo cor-de-rosa e pam! Realidade: nosso passado colonial é presente e os escravossão agora multicolores.

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Ironia, sarcasmo, secura e, em contraponto, pinceladas de uma po-esia singela, rimas fáceis, jogos de palavras, trocadilhos, presentes emtoda a obra do autor, são traços fortes desses contos. Logo na apresen-tação, o cearense Xico Sá esboça o que virá pela frente: “o cabra malcomeça, acabou-se. De tanto punch, de tão amargo, de tão doce –prosa-rapadura, contraditória?! A gente lê voando, priu, num sopro”(p. 11). A dureza e a agressividade dançam com a doçura sarcástica,piegas, ridícula.

O grande mote dos contos é o desconcerto causado ao leitor. “Solardos príncipes” não tem precedentes. Narra a história de cinco negrosque descem o morro para fazer um documentário sobre a classe média.Apossados de instrumentos praticamente inacessíveis a eles – umacâmera na mão – e de idéias desconcertantes na cabeça, tentam produ-zir um filme sobre o cotidiano da classe média e são barrados pelo por-teiro. Também negro, o porteiro tem um posicionamento “fora do lu-gar”: trabalhando para pessoas abastadas, ele toma partido, nessa cenainusitada, de seus patrões. Absorve uma postura recuada, amedrontada– tipicamente a da classe média atual, tão aterrorizada pela violênciaurbana – e rechaça seus pares.

Em “Coração”, a voz que escutamos é a de um travesti prostituído,que masturba homens no metrô. Ainda rara, e bastante discutível, apresença gay na literatura brasileira pauta-se ou pelo estereótipo acríticoou pelo cuidado insistente na construção, em resposta aos movimentosorganizados. Isso não acontece em Contos Negreiros. O narrador de “Co-ração” não levanta bandeiras, não pede respeito, não reclama de suamiséria. Desconcerto: o narrador-personagem tem densidade. Não éapenas uma presença gay, mas uma voz ativa, que é vítima, mas quetambém faz escolhas, pensa a sua realidade, vive, sobrevive, flutua, so-fre e morre de prazer.

O deslocamento de ossos, para usar expressão do próprioMarcelino, o desconforto e a surpresa seguem na construção do li-vro. Eles são, ao lado da miséria multicolorida, o fio condutor dasnarrativas – a fonte de conteúdo e forma da obra. “Totonha”, o can-to XI, desmonta o leitor médio e erudito. Mais uma vez, as nossasrestritas concepções e verdades absolutas e universais sofrem o aba-lo de Marcelino. Totonha, a personagem, é uma velha senhora, que,

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com seu discurso trocado, ao contrário, nos desperta: ela não quer apren-der a ler. A sua negra realidade é tão natural, apartada do mundo cultu-ral – restrito aos alguns que o pensam e o consomem –, que não lheservem a leitura e a escrita. “Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorroletrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender,dispenso” (p. 79).

Os preconceitos – rompidos ou expostos – ultrapassam questões decor e se escancaram em relações colonizatórias dirigidas a mulheres,gays, pobres etc. E é inovador o modo como Marcelino não somenteexpõe, mas também deixa que o leitor sinta a sua incapacidade de nar-rar a realidade espedaçada que vê, lê, assiste, vive. Ele subverte a tãorecente lógica do texto “politicamente correto” e transgride, pelo me-nos no espaço do conto, seu papel de autor, quando se veste ou se travestede negro, de negra, de viado, de pobre, de humilde. Sem medo de umacrítica puritano-moralista, deixa fluírem seus preconceitos, suas visõesparciais, seus recortes. Ao mesmo tempo, não sugere ao leitor uma rela-ção pacífica com essa realidade; incita, cutuca, inflama... e, para citarXico Sá, “dá belas chibatadas no gosto médio e preconceituoso, comgozo, gala, esporro, com doce perversidade, sempre no afeto que se en-cerra numa rapadura” (p. 13).

A obra desconcerta certezas. Põe em xeque o cartesiano e “canônico”fruir literário e o conservadorismo social, quando transcende não só osembates classistas, mas a língua culta – preocupação quase sexual dealguns gramáticos ou saudosistas de um passado glamouroso que não houve– e também a quase instransponível barreira do senso comum, tão vincu-lado às percepções ocidentais modernas.

E é essa a grande sacada de Marcelino e alguns de seus contemporâ-neos, como André Sant’Anna, por exemplo: lidar escrachadamente comestereótipos, não de modo a reforçá-los, mas a fazê-los gritar, chamar atodo instante e de modo violento a atenção do leitor. E o autor temconsciência de para quem escreve, na ferida de quem ele quer meter odedo: é o intelectual leitor de classe média o interlocutor incomodadode Marcelino Freire. Ou é o principal alvo, pelo menos, de livros tãobem trabalhados visualmente – atrativos para os olhos e embrulhadospara o estômago.

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José Eduardo Agualusa – O vendedor de passadosRio de Janeiro: Gryphus, 2004.

Francismar Ramírez Barreto

No es una lagartija cualquiera la narradora de O vendedor de passa-dos, del escritor angolano José Eduardo Agualusa. Es extraño que a unanimal se le confiera el timón de una historia (uno de los ejemplos másrecientes es Mister Bones, el perro que cuenta Tombuctú, la novela dePaul Auster). Aún más extraño es que el mando se deje en “manos” deuna lagartija, un animal tan (aparentemente) insignificante. Lo más cu-rioso de la escogencia, sin embargo, es que esta salamanquesa-tigrereencarna el espíritu y el curtido verbo de Jorge Luis Borges. Se llamaEulálio, ama las palabras antiguas (como su musa), entiende que el corajeno es contagioso y el miedo sí, y asume que la vida está en constantemutación. La escogencia está tan justificada, que el epígrafe del libroexplica la coincidencia de manos del propio Borges: “Si tuviese que nacerotra vez escogería algo totalmente diferente. Me gustaría ser noruego.Tal vez persa. Uruguayo no, porque sería como cambiar de barrio”.

José Eduardo Agualusa esgrimió (durante su visita a la UnB, en abrilde 2005)1 las tres razones para optar por la salamanquesa: en primer lugares sinónimo de infancia, de tiempo feliz; en segundo lugar, su vistapanorámica ofrece una perspectiva cómoda para contar y, por último, elpequeño animal (común en Portugal y en las riberas del MediterráneoOccidental) es, en efecto, una reencarnación del escritor argentino. Porencima de Borges y del reelaborado juego de dobles (la memoria de lalagartija versus el constructor de pasados), la novela pareciera tener doslíneas cristalinas: la conexión con América Latina, en sus referenciasfijas (Río de Janeiro, el Pantanal de Mato Grosso, Gabriel García Márquez)como en las discursivas, y la tentativa de conectar tres continentes através de Angola.

En la novela, Félix Ventura reconstruye pasados, biografías. Vivede ellas. Pero no a la manera vil del falsificador, ni del traficante dememorias. Él fabrica sueños, pinta árboles genealógicos. José Buchmann

1 Como recuerda la profesora Elizabeth Hazin, docente de la Universidad de Brasilia.