Resenha Casa Levi Strauss

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CARSTEN, Janet e HUGH-JONES, Ste- phen (eds.). 1995. About the House: Lévi-Strauss and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press. 300 pp. Cesar Gordon Jr. Mestre em Antropologia Social, PPGAS-MN-UFRJ A noção de “sociedade de casa” (socié- té à maison) foi uma elaboração tardia na obra de Lévi-Strauss, introduzida para suprir uma lacuna em sua teoria geral do parentesco: os sistemas cogná- ticos ou de descendência indiferencia- da. Ao analisar a estrutura social dos índios Kwakiutl da costa noroeste dos EUA, que apresentava características patri e matrilineares, Lévi-Strauss veri- ficou que o termo nativo numayma (ca- sa) permitia uma nova conceituação dos grupos sociais. A ênfase na casa era percebida também entre os Yurok cali- fornianos, cuja organização Kroeber havia sido incapaz de descrever por intermédio das categorias convencio- nais de parentesco. As semelhanças entre tais instituições e a casa nobre da Europa Medieval e do Japão, levaram Lévi-Strauss a propor que elas pudes- sem ser definidas nos mesmos termos como “pessoa moral, detentora de um domínio composto de bens materiais e imateriais, que se perpetua pela trans- missão de seu nome, sua fortuna e seus títulos em linha real ou fictícia, conside- rada legítima somente na condição de que tal continuidade possa se expressar na linguagem do parentesco ou da aliança, e, mais comumente, das duas ao mesmo tempo” (Paroles Donées). Avançando a discussão para as socie- dades malaio-polinésias, neo-zelande- sas e africanas, Lévi-Strauss sugere que as casas não estão fundadas na descen- dência, residência, ou transmissão de propriedade, tomadas isoladamente co- mo critérios de constituição dos grupos. Ao contrário, fundam-se na aliança que é, a um tempo, princípio de unidade e antagonismo. A casa deixa de ter um substrato objetivo e surge como reifica- ção de uma relação tensa de aliança que se manifesta sob uma ou várias dessas formas ilusórias. Tal elaboração marca a passagem para uma teoria aliancista (ou relacio- nal) dos sistemas cognáticos, antes ana- lisados em termos de grupos (de des- cendência, residência etc.). A casa apa- rece como um “fetiche”, constituída pelo parentesco cognático ou pelo con- flito entre dois modos concorrentes de descendência; tensão instaurada na relação entre paternos e maternos – “tomadores” e “doadores” – em busca de vantagens políticas e econômicas. Temos, então, uma instituição aparen- temente baseada em princípios de parentesco, mas cujas escolhas matri- moniais são guiadas por considerações externas: riqueza, poder, status. Lévi-Strauss conclui que as socieda- des de casa devem ser vistas como um tipo intermediário entre aquelas funda- das no parentesco e as sociedades com- plexas baseadas nas leis de mercado, no território e nas divisões de classe. Elas são formas “híbridas”, nas quais os interesses políticos e econômicos que começam a invadir o campo social são obrigados a se expressar, na falta de um próprio, no único idioma possível, o do parentesco, terminando por subvertê- lo. Assim, a casa conjuga princípios que são vistos como excludentes: aliança e descendência, descendência e residên- cia, patri e matrilinearidade, endoga- mia e exogamia. É essa concepção de casa o pano de fundo sobre o qual deve ser lida a cole- tânea About the House: Lévi-Strauss and Beyond, resultado de simpósio rea- RESENHAS 192

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  • CARSTEN, Janet e HUGH-JONES, Ste-phen (eds.). 1995. About the House:Lvi-Strauss and Beyond. Cambridge:Cambridge University Press. 300 pp.

    Cesar Gordon Jr.Mestre em Antropologia Social,

    PPGAS-MN-UFRJ

    A noo de sociedade de casa (soci-t maison) foi uma elaborao tardiana obra de Lvi-Strauss, introduzidapara suprir uma lacuna em sua teoriageral do parentesco: os sistemas cogn-ticos ou de descendncia indiferencia-da. Ao analisar a estrutura social dosndios Kwakiutl da costa noroeste dosEUA, que apresentava caractersticaspatri e matrilineares, Lvi-Strauss veri-ficou que o termo nativo numayma (ca-sa) permitia uma nova conceituao dosgrupos sociais. A nfase na casa erapercebida tambm entre os Yurok cali-fornianos, cuja organizao Kroeberhavia sido incapaz de descrever porintermdio das categorias convencio-nais de parentesco. As semelhanasentre tais instituies e a casa nobre daEuropa Medieval e do Japo, levaramLvi-Strauss a propor que elas pudes-sem ser definidas nos mesmos termoscomo pessoa moral, detentora de umdomnio composto de bens materiais eimateriais, que se perpetua pela trans-misso de seu nome, sua fortuna e seusttulos em linha real ou fictcia, conside-rada legtima somente na condio deque tal continuidade possa se expressarna linguagem do parentesco ou daaliana, e, mais comumente, das duasao mesmo tempo (Paroles Dones).Avanando a discusso para as socie-dades malaio-polinsias, neo-zelande-sas e africanas, Lvi-Strauss sugere queas casas no esto fundadas na descen-dncia, residncia, ou transmisso de

    propriedade, tomadas isoladamente co-mo critrios de constituio dos grupos.Ao contrrio, fundam-se na aliana que, a um tempo, princpio de unidade eantagonismo. A casa deixa de ter umsubstrato objetivo e surge como reifica-o de uma relao tensa de alianaque se manifesta sob uma ou vriasdessas formas ilusrias.

    Tal elaborao marca a passagempara uma teoria aliancista (ou relacio-nal) dos sistemas cognticos, antes ana-lisados em termos de grupos (de des-cendncia, residncia etc.). A casa apa-rece como um fetiche, constitudapelo parentesco cogntico ou pelo con-flito entre dois modos concorrentes dedescendncia; tenso instaurada narelao entre paternos e maternos tomadores e doadores em buscade vantagens polticas e econmicas.Temos, ento, uma instituio aparen-temente baseada em princpios deparentesco, mas cujas escolhas matri-moniais so guiadas por consideraesexternas: riqueza, poder, status.

    Lvi-Strauss conclui que as socieda-des de casa devem ser vistas como umtipo intermedirio entre aquelas funda-das no parentesco e as sociedades com-plexas baseadas nas leis de mercado,no territrio e nas divises de classe.Elas so formas hbridas, nas quais osinteresses polticos e econmicos quecomeam a invadir o campo social soobrigados a se expressar, na falta de umprprio, no nico idioma possvel, o doparentesco, terminando por subvert-lo. Assim, a casa conjuga princpios queso vistos como excludentes: aliana edescendncia, descendncia e residn-cia, patri e matrilinearidade, endoga-mia e exogamia.

    essa concepo de casa o pano defundo sobre o qual deve ser lida a cole-tnea About the House: Lvi-Straussand Beyond, resultado de simpsio rea-

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    lizado em Cambridge, em 1990. Reco-nhecendo o fato de que Lvi-Strauss foio primeiro a enfatizar a relevncia dacasa no estudo da organizao social, olivro tem dois objetivos: lanar umaolhar simptico, mas crtico, sobre aidia de casa como um tipo especficode organizao social, testando suaaplicabilidade em duas regies etno-grficas Sudeste Asitico e Amricado Sul Tropical; e procurar ir alm doconceito lvi-straussiano, propondouma abordagem mais holstica e cultu-ralista da casa, que integre seus aspec-tos arquitetnico, simblico e social. Acasa, a, tomada como um idioma sim-blico, locus de densas teias de signi-ficado, e modelo cognitivo para estrutu-rar, pensar e experimentar o mundo(:3).

    A importncia da casa como grupode parentesco, entidade poltico-ritual ecategoria nativa relevante entre osmalaio-polinsios vem sendo exploradah algumas dcadas em diversas etno-grafias. O mesmo no ocorre na etnolo-gia sul-americana, o que se reflete nadistribuio desigual dos artigos da co-letnea, dos quais sete tratam do Su-deste Asitico, enquanto somente trsde sociedades amerndias. Tal desequi-lbrio provm da prpria elaborao doconceito por Lvi-Strauss, na qual osmalaio-polinsios ocupam uma posi-o-chave, ao passo que as sociedadessul-americanas sequer so menciona-das. Apesar disso, os problemas levan-tados pela aplicao do conceito nasduas regies apresentam analogiasinteressantes, graas a uma contradioque os autores vem no argumento doantroplogo francs. Este no teria con-siderado uma distino fundamentalentre as sociedades bilaterais do cha-mado Arquiplago Centrista (Filipi-nas, Sulawesi, Bornu e Java) onde hparentesco cogntico, ideal igualitrio,

    casamentos endogmicos, e no h re-gras de sucesso ou grupos unilineares e as sociedades do chamado Arqui-plago da Troca (Sumatra, Timor, Mardas Flores e Ilhas Molucas) onde hmltiplas casas com fronteiras bemmarcadas, grupos de descendncia esistemas de aliana assimtrica. Nasprimeiras, como mostram Bloch, Ja-nowski, Carsten e Gibson, nota-se a im-portncia do casal conjugal e o modocomo a aliana introjetada na casa,constituindo-a por dentro. Nas segun-das, como entre os Lio analisados porHowell, onde os casamentos no ocor-rem entre as casas mas entre gruposagnticos, e prescritivamente com a pri-ma cruzada matrilateral (:28), parecedifcil ver a casa como soluo da oposi-o entre descendncia e aliana. ParaMcKinnon, o caso Tanimbar (Ilhas Mo-lucas) fornece outro exemplo: ali a casano combina ou transcende princpiosantagnicos de parentesco, mas articu-la-os em um jogo dinmico que centralpara o funcionamento da sociedade.

    Tendo pensado inicialmente a casacomo uma instituio tpica de socieda-des sem linhagens ou regras de casa-mento (Arquiplago Centrista), Lvi-Strauss acabaria por aplicar seu modeloem sociedades justamente organizadaspor tais princpios (Arquiplago da Tro-ca). Da, teria definido como do mesmotipo sociedades que ele prprio, em umoutro nvel de anlise, classificaria, deum lado, como estrutura complexa dealianas, e do outro, como elementar.Como indica Waterson (:67), em todo oSudeste Asitico encontra-se a casaocupando o papel de instituio centralem sociedades que apresentam siste-mas de parentesco e nveis de estratifi-cao social bastante diversificados.Os exemplos vo desde os grupos igua-litrios como os Iban do Bornu, aos sis-temas de Estado como Bali. Assim,

  • apresentar a casa como instituio defi-nidora de um tipo de sistema socialparece-lhe invivel no contexto indo-nsio.

    Passando s sociedades amerndias,como lembra Viveiros de Castro, os pro-blemas de aplicao do modelo multi-plicam-se. Se a casa de Lvi-Strauss seexpressa em um idioma do parentescopara naturalizar relaes hierrqui-cas de outra ordem, devemos confin-laaos povos do Noroeste Amaznico, jque possvel caracterizar os Tukano (Hugh-Jones) pela sua marcante hierar-quizao, mas no os Kayap (Lea) e osCarib das Guianas (Rivire). Nas Guia-nas, a preeminncia das parentelascognticas e da endogamia de gruposlocais pensados como autnomos suge-re a importncia da casa como catego-ria central. Mas a, contrariamente aosTukano e Kayap, elas no so pessoasmorais, no detm bens simblicos ouprerrogativas, apresentando um carterfluido. Por outro lado, uma estruturaelementar de aliana, presente noscasos guians e Tukano, impediria autilizao do conceito, s compatvelcom sistemas complexos ou semicom-plexos de aliana. Finalmente, a nfasede Lea no aspecto corporado das casasKayap (que so exgamas por defini-o e no se ligam por regras de casa-mento) acaba por erodir o conceito, jque no fica claro, afinal, por que ascasas Kayap no so linhagens.

    Desse modo, a aplicao do modelode Lvi-Strauss recorta os grupos sul-americanos em pelo menos trs conjun-tos de oposies, de acordo com o crit-rio que se utilize: se tomamos as casascomo pessoas morais, perptuas e de-tentoras de riqueza, elas esto presen-tes nos Tukano e Kayap, mas no nasGuianas; se pensarmos na casa comoinstituio capaz de naturalizar hierar-quias, Guianas e Kayap (sociedades

    mais igualitrias) se opem aos Tukano,nico grupo onde a hierarquizao ntida; por fim, do ponto de vista de umsistema de alianas, considerando queos grupos das Guianas e Tukano pos-sam ser pensados como estruturas ele-mentares, no seria possvel defini-loscomo sociedades de casa, mas sim aosKayap onde os casamentos no sodados por regras mecnicas.

    Portanto, a um s tempo muito es-pecfico e muito vago, o conceito de ca-sa de Lvi-Strauss se aplica de formadesajeitada aqui e l, como se extraidas anlises sobre as duas regies.Assim, os autores de About the Houseacabam por rejeitar a utilizao do con-ceito tal como aplicado originalmente uma categoria capaz de descrever umtipo de sistema social, visando ampliarou complementar as categorias tradi-cionais da teoria do parentesco. Alter-nativamente, propem que se tomem aselaboraes de Lvi-Strauss como pon-to de partida para uma concepo maisholstica da casa, visando construode uma antropologia da arquitetura quepoderia se estabelecer em conjuntocom uma antropologia do corpo. De fa-to, se o idioma da casa parece ocuparum espao primordial, j bem estabele-cido pelas etnografias, entre os povosmalaio-polinsios, o idioma da corpo-ralidade que parece ocupar esse espaoentre os povos amerndios, como j no-taram diversos etnlogos americanistas.E se verdade que as representaessimblicas da casa e do corpo apresen-tam inmeras analogias nas duasregies (:36-42) segundo os autores,inclusive, casa e corpo fazem parte deum mesmo universo conceitual , talvezseja o caso de consider-las em conjun-to, buscando construir um arsenal deconceitos que permita uma elaboraoterica comparativa entre as sociedadesamerndias e malaio-polinsias. pre-

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    ciso deixar claro, por outro lado, queessa utilizao mais frouxa do concei-to de casa traz embutido o risco deinviabilizarmos seu carter explicativo,caindo em um culturalismo vago. Cabe-ria perguntar, enfim, se isto nos condu-ziria alm ou aqum de Lvi-Strauss.

    HRITIER, Franoise. 1994. Les DeuxSoeurs et leur Mre. Anthropologie delInceste. Paris: ditions Odile Jacob.376 pp.

    Clara LouridoMestranda, PPGAS-MN-UFRJ

    Woody Allen-Soon Yi-Mia Farrow, tes-temunhos judiciais, cartas revista fe-minina Marie-Claire, roteiros de filmese de um romance no muito conheci-dos, e at o script de uma novela de te-leviso, abrem e encerram o ltimo li-vro de Franoise Hritier. Assim demar-cado, o livro composto por uma pri-meira parte dedicada a fontes histricas textos jurdicos hebreus, islmicos,gregos e romanos, da Igreja Catlica edas legislaes francesa e inglesa epor uma segunda, que apresenta dadosetnogrficos, principalmente africanos,centrados nos Samo de Burkina Fasso,sobre proibies, crenas e sanes emtorno da sexualidade e da reproduo.

    A quantidade e heterogeneidadedos exemplos o trao distintivo deum livro que, no essencial, desenvolveum conjunto de idias da autora quecomearam a ser esboadas h mais dequinze anos, em artigos como Symbo-lique de lInceste et de sa Prohibition,de 1979, e, mais tarde, Inceste, de1991.

    O conceito central apresentado ode incesto de segundo tipo. A despeitodo que esta designao parece sugerir,

    no se trata aqui de uma modalidade deincesto secundria em face de uma deprimeiro tipo (que atinge as relaesentre consangneos de sexos diferen-tes). Com o conceito de incesto de se-gundo tipo, Hritier pretende estendera noo de incesto s relaes entreafins de consangneos, de maneira apermitir explicar interdies e conde-naes morais que, em distintas pocashistricas, e em algumas sociedadesatuais, pesam sobre a relao de umhomem com duas mulheres aparenta-das entre si, como duas irms ou umamulher e sua filha.

    Como vincular, ento, essa constru-o noo estruturalista de incesto eao valor funcional de sua proibio?Hritier apresenta seu trabalho comocomplementar teoria de Claude Lvi-Strauss, a quem dedica o livro. Lembre-mos que, em La Famille, justamente ocasamento de um homem com duasirms de forma consecutiva sororato ou contempornea poliginia sororal que Lvi-Strauss toma como exemplo:a) de que a relao de aliana se esta-belece entre grupos e no entre pes-soas; b) de que o pertencimento a umgrupo no depende do parentesco desangue, e sim do social.

    Na teoria estruturalista, a proibiodo incesto aparece como fundadora dohumano, interveno primeira e univer-sal de uma orden extrabiolgica na re-gulamentao da reproduo dessa es-pcie particular. Essa interveno inau-gura, pois, a sociedade em um nicomovimento, ao organizar o intercmbioefetuado por dois grupos diferentes desujeitos tambm diferentes entre si (porseu pertencimento a cada grupo), masequivalentes quanto sua posio nogrupo de origem (irm, filha) e no dedestino (esposa).

    A noo de equivalncia s adquiresentido em uma relao de troca. Hri-