Resenha - A Ontologia Hermenêutica

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Trans/Form/ Ação, São Paulo 8:97-99, 19 85 RESENHAS/REVI�WS Ubaldo PUPPI* B1AG10NI, J. - A ontologia hermenêutica de H. C. Cadamer. Uberlândia, Univers idade Federal de Uber· lândia, 1983. Com esse título, o autor se propõe, em sua pequena obr a, apresent ar "reflexões e perspectivas sobre a 3. 3 parte de 'Verdade e Método" '. "Wahrheit und Methode " é talvez a principal obra de H ans-Georg Gad amer. Possui, do meu conhecimento, tr a- duções em francês e italiano: "V érité et Méthode ", Paris, Ed. du Seuil, 1976; "Verità e Método", Milano, Fratel li Fabbri Ed., 1972 . O alentado livro de H . G. Gadamer se compõe de três partes: 1 . "Destaque da questão d a verd ade. A experiência da arte"; 2 . "Alargamento do problema da verdade. Compreensão nas ciências human as"; 3. "In- flexão onto lógica na hermenêutica sob a condut a d a linguagem". A 3 . 3 parte, "Inflexão ontológic a n a hermenêutica sob a condut a d a linguagem", se constrói sobre pressupostos históricos e filosóficos. De fato, a hermenêutic a clás si- ca, entendida como o domínio dos critéri os regi onais da interpretação de texto, recebeu nos dois últimos séculos, primeiro, um alargamento de amplitude universa l e, em segui- da, sua fundação ontológica. A universa lização do critério hermenêutico se inicia com Schleiermacher, no séc. XVIII, a partir da filo logia e da exegese, e prossegue com Dil- they, a partir de sua concepção da interpretação histórica. Assumida como tal e redire- cionada por Heidegger, este lhe confere fundação filosófica em sua onto logia funda- mental, com destaque, no c aso, p ara certas estruturas do ser-no -mundo, particular - mente a Verstehen e a Befindliehkeit, e para o circulo hermenêut ico. Essa temática, já presente em "Sein und Zeit ", é retomada e desenvolvida por Ga- damer na perspectiva da segunda filosofia de Heidegger, a qua l, ao acentuar o poder de manifestação da linguagem, se impõe como divisor de águas que a separa de suas ver- sões ditas existencialistas. Nesse particular, Gadamer é antípoda de Sartre e se aproxi- ma de C. S. Peirce, a linguagem se constituindo no fulcro de sua hermenêutica geral ou ontologia hermenêutica. A mencionada 3. 3 parte da "Wahrheit und Methode " é o loeus onde trata expressamente da linguage m co mo "meio ( medium) da experiênci a hermenêutica", e como "horizonte de uma ontologia hermenêutica". São subtítulos do capítulo. É de se notar a natureza inovadora e o alcance de uma ontologia de alto nível que faz da linguagem o meio e o horizonte do conhecimento. Precisando com mais detalhe, o primeiro subtítu lo vê no e lemento linguageiro (Spraehliehkeit) a deter- minação, não só do "objeto hermenêutico ", mas também da "operação ( Vollzug) her- • Professor aposentado - Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação Filosofia, Ciências Sociai s e da Documen- tação - UNESP - 1 7 5 00 - Marília - SP. 97

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  • Trans/Form/ Ao, So Paulo 8 :97-99, 1 985

    R E S E N H A S / R E V I W S

    U baldo P U P P I *

    B 1 A G 1 0 N I , J . - A o n tologia hermenutica de H. C. Cadamer. U ber lndia , U n iversidade Federal d e U ber lndia , 1 98 3 .

    Com esse t tu lo , o autor se p rope, em s u a pequena obra, apresentar " re flexes e perspect ivas sobre a 3 . 3 parte de ' V erdade e M todo " ' . " Wahrheit u n d M ethode" talvez a pr incipal obra d e H a n s -Georg G adamer . Possu i , do meu conhecimento, tradues em francs e i ta l ia n o : "V rit et M thode " , Paris, Ed. d u Seui l , 1 97 6 ; " V erit e M todo " , M i lano, Fratel l i Fabbri Ed . , 1 97 2 . O alentado l ivro de H . G . G adamer se compe de trs partes : 1 . " Destaque da q u esto da verdade. A experincia da arte " ; 2 . " A largamento d o p roblema d a verdad e . Compreenso nas cincias h u manas " ; 3 . " I n flexo ontolgica na hermenutica sob a conduta da l inguagem " .

    A 3 . 3 parte, " I n flexo ontolgica n a hermenutica sob a conduta d a l inguagem " , se constri sobre p ressupostos h istricos e f i losficos . D e fato, a hermenutica c lss i ca, entendida como o domnio dos cr i tr ios regionais d a i n terpretao de texto, recebeu nos dois l t imos sculos , pr imeiro , um alargamento de ampl i tude un iversal e , em segu i da, sua fund ao o ntolgica . A u n i versal izao do cr i trio hermenutico se i n ic ia com Schle iermacher , no sc . X V I I I , a part ir da f i lologia e da exegese, e prossegue com D i l they, a part ir de sua concepo da i nterpretao h istrica . A s s u m i d a c o m o t a l e redi recionada por H eidegger , este lhe confere fundao fi losfica em sua ontologia fundamental , com destaq ue, n o caso, para certas estruturas do ser-no-mundo, part icularmente a Verstehen e a Befindliehkeit, e para o c i rculo hermenutico .

    Essa temtica, j presente em " Sein u n d Zeit " , retomada e desenvolvida por Gadamer na perspect iva da segunda f i losofia de H eidegger, a qual , ao acentuar o poder de manifestao da l inguagem , se i mpe como div isor de guas q u e a separa de suas verses d i tas existencial istas . N esse particular, G adamer ant poda de Sartre e se aproxima de C. S . Pe irce, a l inguagem se const i tu indo no fulcro de sua hermenutica geral ou ontologia hermenutica . A mencionada 3 . 3 parte d a " Wahrheit und Methode" o loeus onde trata expressamente da l i nguagem como " meio ( medium) da experincia hermenutica " , e como " horizonte de uma ontologia hermenutica " . So subt tu los do cap tu lo . de se notar a natureza inovadora e o a lcance de u m a ontologia de a l to n ve l que faz da l inguagem o meio e o horizonte do conhecimento . P recisando com mais deta lhe , o pr imeiro subt tu lo v n o e lemento linguageiro (Spraehlieh keit) a determinao, no s do " objeto hermenut ic o " , mas tambm da " operao ( Vollzug) her-

    Professor aposentado - Departa m e n t o de F i losofia - Faculdade de E d ucao Fi losofia , Cincias Sociais e d a Doc u m e n tao - U N ES P - 1 75 00 - M ar l i a - S P .

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  • B I AG I O N I , J . - A ontologia hermenu tica de H. C. Gadamer. U berlndia, U ni v . Federal de U berlndia, 1 983 . R E S E N H A S . Trans/l'orml Ao, So Paulo, 8 : 97-99, 1 98 5 .

    menut ica " , e n q u a n t o o segundo s u b t t u l o con sidera " a l in guagem c o m o experincia do m u n do " .

    Essa deveria ser, portanto, e m pr inc p io , a temtica global da brochura d e J . Biagion i . A expec tativa e o i n teresse por sua le i tura no poderiam deixar de ser grandes . Foi pelo menos com essa d i sposio que comecei sua le i tura . Logo de sada somos informados de q u e a escolha do tema teve sua moti vao em sa la de aula, durante curso assist ido em u n i vers idade t'uropia. A an tecipao , prpria do c rculo hermenutico, que Heidegger e G adamer chamam , sem descart-lo a priori, de preconceito, nos assalta sob a forma de p reveno . O que fazer? Apelar para a censura hermenutica, lembrada no mesmo con texto de " S er e Tem p o " (p. 1 5 3 da ed . alem) : nem toda an tecipao faz parte do c rcu lo hermenut ico, mas to-somente aquelas que so " segundo as coisas-mesmas " , isto , provocadas pelo que Gadamer chamar de a " coisa do tex to " ? Ao final d a le i tura de J . B iag ion i , porm , a constatao q u e s e t i ra de fato a de um trabal ho de pr inc ip iante , um apl icado exerccio acadmico que, em que pese o fato de ter s ido d i l igentemente tratado , no u l t rapassa o nvel da moti vao . A esse nvel o prod u to no mau, nem desp rez vel , mereceria nota para grad uar-se, mas digno de ser p u b l icad o ? O autor no deixa de ter q ual idades, revela que pode cont inuar seus estudos f i losfico s . N ecess i ta , porm , de m u ito t rabalho antes de vol tar a pub l icar . o que p reciso, e m ui to , j q u e am bio (vl ida) de ser autor no lhe fal ta: o l ivro que publ icou " o pr imeiro de m u i tos passos que pretendemos dar" (p . 1 4 , circa medium) .

    O peq ueno l i v ro se abre com " u ma palavra ao le i tor" ( p . 1 3 ) , onde q uer d izer a que veio . S parcialmente nos esclarece sobre seu p roj eto ; em grau maior, ele se nos confund e . Del i neia-se a tese proposta, mas denunciando v'.c i lao ao tentar c ircunscreverlhe os contornos . C i to para conferio : " o que pretendemos estudar o modo-de-ser do homem ser-no-mundo . . . " ( p . 1 3 ) ; " nosso objetivo . . . foi o de . . . f ixar-nos na fi losofia da l inguagem . . . de G adamer . . . " ( p . 1 5 ) ; " a nossa inteno . . . tentar most rar que a fi loso fia de G adamer desej a ser a s n tese de dois movimentos que a precederam : passar das chamadas hermenu ticas regionais em d i reo (sic) hermenutica universal e extrapolar o problema da epistemo logia das c incias do espr i to para at ingir a ontologia" ( p . 1 4) .

    Apesar d e serem fo rmulaes conexas, cada tema a contido comporta enfoque e desdobramentos pec u l iares , tanto em sua natu reza prpria, como em seus precedentes h istricos . A lt ima formulao , al is, foi p inada, sem aspas , de R icoeur , que a enuncia naqueles termos e a desenvolve de modo mais completo e cr t ico (cf . Ricoeur, " Funes da hermenutica " , i n " I n terp retao e I deologias " , Rio de J aneiro, Franc . Alves Ed . , 1 97 7 , p p . 3 8 , ss . ) .

    A favor d e J . B iagi o n i , pode ser levado e m conta que h u m momento e m que as trs formu laes se i n tegram n u m a s proposta . q uando G adamer estabelece o confronto entre a pertena e o d istanciamento al ienante ( Verfremdung) . Com efei to : a pertena se trad uz em termos de compreen so ; o d i stanciamento problema prprio da l inguagem ; para superar o d i stanciamento que Gadamer salta da epistemologia das cincias humanas para a o n tologia hermenutica . No, porm , sem deixar p is tas para a retomada da epistemologia, agora luz da ontologia que a fund a . So as pistas , sej a dito de passagem , que R icoeur persegue para elaborar com segurana e de modo exemplar a epistemologia das cincias do tex to: da semit ica exegese . Ou, como diz ele mesmo: "da sem iologia exegese " (cf . sobretudo esc ritos seus dos trs lt imos l u stros) .

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  • BIAGIO N I , J . - A on lologia hermenulica de H. C. Gadamer. U berlndia, U ni v . Federal de U berlndia, 1 98 3 . R E S E N H A S . Trans/Form/Ao, So Paulo, 8 : 97-99, 1 98 5 .

    Estranhamente, c o n t u d o , J . Biagioni n o faz n e n h u m a referncia expl c i ta ao par de opostos: pertena e d is tanciamento al ienante . Parece no estar ainda fi losoficamente eq uipado para aquilo q u e G adamer denomina " fuso de horizon tes " . preciso, antes , que seu horizonte f i losfico cresa, para en to poder aparecer . N o comparece, e ainda por c ima d i lu i em seu escrito o de G aamer . o q u e ocorre, a t tu lo de i lustrao, e de modo flagran te, quando tenta argumentar sobre o fato de trabalhar o pensamento de G adamer em traduo ( i tal iana, pelo que se depreende das c i taes) . Recorre, sem cuidado e sem pesar conseqncias, s teorias de G adamer sobre a traduo e a fuso de horizon tes. Tem-nas na conta de solues de fac i l idade, que basta evocar e aplicar a si para torn-las eficazes , sem at inar para a rdua problemtica que levan tam , e sem se dar conta do q uest ionamento que suscitam ao serem levadas a srio (cf . p p . 3 1 e 32 ) .

    Mas o l ivro no seu todo que revela insu ficiente mestria sobre a problemtica e a obra do autor estudado, alm de defic iente estru turao do prprio di scurso . Sua construo se aprox ima mais da reproduo de esquemas estereotipados do que de uma compreenso e elaborao personal izadas . Contra tudo o q ue vem af irmado no l ivro sob o nome de hermenutica, a p redomina o recurso ao esquematismo textual e ao pinamento de c i taes . E m momento algum mostra a desen voltura do i n trprete seguro e bem i n formado, capaz de levar alegria e proveito a quem o l . assim que toda uma constelao de conceitos heideggerianos e gadamerianos, cuj o s ign ificado i n u sual requer sej am expostos e bem trabalhados, permanece inexpl icada . H carncia de def in i es funcionais e pob reza de aclaramentos i n tertextuai s . A indagao que em erge ento : por que e para quem a obra foi escrita e publ icada? Quem leu H eidegger e G adamer dispensa o texto de J . Biagi o n i , por demasiado bv io ; quem no os leu, se depara, diante dele, com uma sinopse de d i fc i l acesso: no por mrito, mas por deficincias do autor .

    s intomtica, a respeito, a fuga do compromisso e da responsabi l idade pe la prod u o do tex to . S o freq entes as passagens deste j aez: " sobre o a s s u n t o , cfr . as obras de . . . " ou tros autores ; " p recisaramos (no condic iona l ) , aq u i , abordar os temas " . . . tais e tai s ; " bastaria lembrar . . . apenas, que" . . . ; " aspectos que, aqu i , deveriam (condic ional ) ser apro fundados, aos quais apenas acenamos de passagem " (cf . pp. 38 , ss . ) . E, para dizer tudo numa frase , em vez daqui lo que o autor f ica devendo ao le i tor , ' p rossegue com depauperados resu mos e i nevitve i s , desde ento, retomadas red u ndantes .

    Esta resenha severa, porque o autor assim a merece . Se j u lgasse que no tem talento, no me ocuparia dele . J u nto a vc ios p recoces , revela promi ssoras possi b i l idades . E todos que produzimos textos de fi loso fia precisamos ouvir os conselhos de Descartes : "ev i tar a precipi tao " ; de H eidegger: " deixar ser o ser " ; de G erard Lebru n : cult ivar a rum inante " pacincia do conceito " . N o faltam exem plos desest im ulantes , bem o sabem os, mas o fato de terem audincia no deve servir de pretexto fac i l idade . Tambm por essa razo a resenha severa .

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