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    Coroa de glria, lgrimas de sangue: a rebeliodos escravos de Demerara em 1823

    autora Emlia Viotti da Costatraduo Anna Olga de Barros

    Barretocidade So Pauloeditora Companhia das Letrasano 1998

    Contar a histria de uma das maiores rebelies escravas ocorridasno Caribe do sculo XIX, na forma de um romance polifnico, emque a fala de todos os envolvidos resgatada a fim de contar umahistria que no apenas memria, mas principalmente metfora, oobjetivo de Emlia Viotti da Costa no livro Coroas de glria, lgrimasde sangue: a rebelio dos escravos de Demerara em 1823.

    Emlia Viotti da Costa, professora de histria, foi livre-docenteda Universidade de So Paulo, tendo sido aposentada pelo AI-5 em1969. Foi para os Estados Unidos, onde leciona na Universidade deYale. autora de Da senzala Colnia (1966) e Da monarquia Repblica: momentos decisivos (1977), entre outras obras.

    Criticando tanto a viso simplista herdada da Nova Histria quevaloriza apenas o cotidiano, os feitos pessoais, em que a estruturano levada em conta, quanto a histria do ponto de vista marxista,em que apenas o macro importante, em que os acontecimentos, asapropriaes, as pessoas no so resgatadas, como se a conjunturano influenciasse na estrutura, Emlia Viotti da Costa tem semprepresente a preocupao de unir macro e micro-histria, j que impossvel compreender uma sem a outra (p. 19).

    O livro se divide em sete captulos: Mundos contraditrios:colonos e missionrios, Mundos contraditrios: senhores e escra-vos, A fornalha ardente, Um devotado missionrio, Vozes noar, Um homem nunca est seguro e Uma coroa de glrias queno se esvanece.

    Primeiramente apresentado o contexto histrico em que seencontram colnia e metrpole. Demerara uma colnia cheia de

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    especificidades: originalmente holandesa, em conseqncia das guer-ras europias muda de mos diversas vezes durante os sculos XVIIIe XIX. Em 1815 definitivamente incorporada ao Imprio Britni-co; alguns holandeses permanecem como fazendeiros, assim comotraos de sua administrao e costumes. Produz cacau, algodo, cafe acar, sendo utilizada a mo-de-obra escrava africana, mesmonum perodo em que a abolio j havia sido decretada na metrpo-le. O padro de povoamento da ilha, em que os canais e rios repre-sentam papel fundamental no escoamento da produo, fez com queas fazendas fossem organizadas ao lado desses, o que proporcionouuma alta concentrao dos escravos, a maioria esmagadora da popu-lao (apenas quatro por cento eram brancos), em uma rea geogr-fica relativamente circunscrita.

    O sculo XIX, perodo tratado no livro, era um perodo de intensaagitao na Inglaterra: Independncia das Treze Colnias, a Revoltado Haiti e, principalmente, a Revoluo Francesa estavam no imagi-nrio da populao. Ao mesmo tempo era o incio da Revoluo In-dustrial, com a superexplorao dos trabalhadores. Nesse contextoeclode a campanha abolicionista, que arregimenta milhares, pessoasprincipalmente oriundas da classe popular. Com sua preocupaoconstante em demonstrar que a histria sempre apreendida comometfora da realidade, Viotti mostra a importncia dessa participaopopular na luta abolicionista: para os trabalhadores, a abolio esta-va firmemente vinculada questo da reforma na metrpole (p. 25).A prpria elite que lutava pela abolio alarma-se com a proporotomada pela campanha abolicionista e tenta reprimi-la.

    nesse ambiente que os missionrios evanglicos enviados paraas colnias inglesas so formados. A maioria deles oriunda de cama-das baixas da populao e imbuda dos ideais dessa classe. Assim, osmissionrios apoiados pelo governo metropolitano so rechaadospelos colonos, que os vem como dupla ameaa: de um lado perce-bem a subverso contida em suas prticas, de outro temem a interven-o metropolitana em seus domnios. nesse contexto de conflitosque o primeiro missionrio da London Missionary Society (LMS) vaipara Demerara. A LMS foi uma tentativa de organizao no-sectriaque congregava missionrios de diferentes seitas, tanto dissidentescomo membros da Igreja Anglicana, numa cruzada universal: a instru-o religiosa dos gentios. Seus missionrios estavam espalhados nas

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    colnias do Caribe, na sia e na frica. Demerara nunca receberamissionrios dessa sociedade por resistncia dos colonos. Entretanto, um colono holands, cristo e preocupado com a salvao de seusescravos que manda vir o primeiro missionrio, John Wray. Isso umsinal tambm de que os conflitos no so apenas externos, contra ametrpole ou os abolicionistas, mas tambm internos, entre os pr-prios colonos. A autora demonstra como os conflitos esto presentesem diferentes instncias: colonos x metrpole, colonos ingleses x co-lonos holandeses, brancos x escravos, brancos x negros livres, mula-tos x negros, libertos x escravos etc. Wray tem grande importncia nahistria da revolta, pois foi o iniciador da prtica religiosa entre os es-cravos. Ele sofre diversas dificuldades: resistncia e hostilidade doscolonos, dificuldade de compreender o mundo dos escravos, o que acirrado pelo momento histrico, em que convivem crise econmica,concorrncia dos mercados asiticos e crise no sistema escravista. Os confrontos com a metrpole so instigados pela presena dos missio-nrios, usados como bodes expiatrios dos colonos.

    A autora realiza uma ampla discusso sobre o protestantismoingls. O debate fundamentalmente entre historiadores que seguema linha de Thompson, que consideram o metodismo como uma ten-tativa dos lderes domarem atravs da tica do trabalho, da disciplinaetc. o impulso radical vivido pela classe trabalhadora, e a preocupa-o de Emlia Viotti em demonstrar a diferena entre o que emitidoe o que recebido. Para ela a viso de Thompson incompleta, poisno leva em conta o modo como a mensagem recebida: ela argumen-ta que por meio de cises, como Nova Conexo e Metodismo Primi-tivo, surgiam interpretaes mais radicais da Bblia, com participaomais popular e democrtica. O discurso evanglico apreendido pelaclasse trabalhadora e arregimenta milhares com seus ideais de frater-nidade universal, vocao, autodisciplina, autoconfiana, frugalida-de etc., prticas bem diferentes das que os trabalhadores percebem naclasse dominante. A tica desse novo cristianismo evanglico sub-versiva tanto na colnia escravocrata (onde os senhores no deseja-vam a presena de missionrios entre os escravos) quanto na Inglater-ra (onde o que reinava era a hierarquia e o patronato).

    John Wray permanece em Demerara por mais de uma dcada,mas por fim no resiste fornalha ardente que , segundo suaspalavras, a vida l, e transferido para Berbice. A LMS envia para

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    Demerara John Smith e sua esposa, Jane. A autora frisa que foi naatmosfera de revolta e represso, intensa polarizao de classes emudanas sociais e econmicas que John Smith atingiu a maiorida-de. Como muitos outros de sua gerao, ele encontrou no cristianis-mo evanglico um antdoto para as ansiedades e confuses desenca-deadas por tais processos (p. 28). Ele de origem modesta, carpin-teiro, muito jovem, para quem a carreira missionria vista comopossibilidade de ascenso tanto social (ir para o trabalho missionriosignifica deixar para trs as preocupaes mundanas com a sobrevi-vncia) quanto moral trabalhar para a obra do Senhor motivode orgulho, um trabalho que traria como resultado uma coroa deglria para Smith.

    Smith teve apenas seis meses de treinamento para o trabalhomissionrio. Quando ele chega em Demerara encontra uma situaoainda mais tensa do que Wray, em razo do acirramento da criseeconmica e resistncia dos colonos. Eles acusam os missionriosde incutirem a subverso entre os escravos. Viotti mostra como asdiferentes apreenses so realizadas. John Smith cr piamente queest salvando apenas almas, no corpos, que suas palavras servempara que os escravos se submetam a seu destino, que ele est apazi-guando a situao. Ele no percebe que as mesmas palavras usadascom esses objetivos so apreendidas pelos escravos de modo muitodiferente, ainda mais quando se trata da linguagem ambgua da B-blia. Ao mesmo tempo em que acredita nisso, o missionrio conta-minado pela causa abolicionista. Vivendo na fazenda, tendo comomaioria de companheiros os escravos, ele influenciado por eles,sofre com os castigos, com a arbitrariedade dos senhores, com asinjustias. A tentativa de impor a moralidade crist aos escravos es-barra nas prticas coloniais, nas quais nem os prprios brancos se-guiam aquelas regras. Assim se d, para Smith, a percepo daincompatibilidade entre escravido e cristianismo: tudo que eraimportante para Smith justia, sentimento cristo, dignidadehumana estava degradado na sociedade escravista (p. 185).

    A revolta eclode depois de sete anos de Smith na colnia. Viotti apresenta dois elementos-chave para a ecloso da revolta: primeiro, osdebates que ocorriam na Inglaterra sobre novas leis que melhorariama vida dos escravos e num segundo momento trariam a abolio; esegundo, a proibio feita pelos senhores de os escravos freqentarem

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    a capela sem sua autorizao por escrito. Essa era uma norma queexistia na colnia, mas havia muito tempo vinha sendo desrespeitada.Quando essa regra resgatada pelos senhores, os escravos percebemisso como uma afronta s resolues da Inglaterra sobre melhoriaspara eles. Cerca de dez mil escravos se sublevam em Demerara, masa rebelio considerada pacfica, j que apenas quatro ou cinco bran-cos foram mortos, principalmente se considerarmos a proporo en-tre brancos e escravos. A represso como era de se esperar foiviolenta. Mais de 200 escravos foram mortos no mesmo dia, alm dospresos e condenados morte em julgamentos sumrios. As puniesso exemplares, os senhores no se preocuparam em punir quem eramais ou menos culpado. No mesmo dia John Smith preso e vai a jul-gamento, acusado de ser conivente com a revolta. A autora mostracomo o julgamento ilumina com claridade rara o abismo ideolgicoque separa acusadores de acusados (p. 293). Para os colonos, esse erao momento da vingana: acusar abolicionistas, missionrios e aque-les que no Parlamento e na imprensa apoiavam escravos contra seussenhores: ao atribuir aos outros a culpa pela rebelio, eximiam-se deresponsabilidade e liberavam-se de toda a culpa. Eles anunciavam aomundo que o que motivara os escravos no tinha sido a opresso oua explorao, mas o engano e a iluso (idem). Para Smith, era sus-tentar sua inocncia, acusar o sistema escravista e condenar a escravi-do e, por fim, pronunciar seu ltimo sermo. Dessa vez, entretanto,ele pregaria aos senhores e no aos escravos (idem). John Smith foicondenado morte e seu julgamento usado como metfora, por todosos lados e pelos colonos, para demonstrar a necessidade do sistemaescravista e o perigo subversivo inscrito em prticas missionrias nacolnia. Outros missionrios foram perseguidos e acusados sem pro-vas. Por abolicionistas, para demonstrar os horrores da escravido edefender suas demandas perante o Parlamento e o mundo. Pelas socie-dades missionrias, para defender a importncia de suas misses,sendo Smith tratado como mrtir. A revolta foi utilizada segundo di-versos interesses, tanto no perodo contemporneo quanto depois,segundo os diferentes autores de obras que contaram sua histria.

    Viotti chama a ateno para o modo como as interpretaes darevolta so ideolgicas. Os abolicionistas culpavam os senhores pelarebelio e os defensores do sistema escravista culpavam os missio-nrios. Nenhum dos lados percebeu os escravos como sujeitos de

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    sua prpria histria. Eles aparecem como abstrao, sem vontades,percepes e reaes prprias. Foram vistos como vtimas ou doengodo dos missionrios ou da opresso do sistema. Entretanto, traba-lhando com uma vastssima documentao primria da revolta, alia-da a uma ampla bibliografia, a autora resgata no s a voz de colonose missionrios, mas tambm a dos escravos.

    interessante ressaltar o papel da educao dos escravos. Viottimostra a percepo que os escravos tinham da importncia da edu-cao, sua luta para aprender a ler e escrever e o papel desempenhadopela leitura, quando d o exemplo de como os escravos liam escon-dido documentos de seus senhores, aumentando o imaginrio coleti-vo sobre a existncia de homens poderosos na metrpole que estariama seu lado, dando foras para a idia de uma rebelio. interessanteresgatar a frase de John Smith, numa carta a seu superior: [...] masa impresso de que os fazendeiros no consideram que o aumentodo saber entre os escravos exija que se altere o modo de trat-los(p. 250).

    A historiadora utiliza em seu trabalho fontes primrias diversascomo: autos do processo; revistas evanglicas; cartas trocadas entremissionrios, superiores, amigos e famlias; dirios e jornais de po-ca; alm de uma vastssima bibliografia que abarca desde livros pro-duzidos no perodo da revolta e clssicos da historiografia, at obrassobre escravido, lingstica e influncias africanas, entre outrosassuntos. Aliado a esse vasto material, Viotti, com pertinentes preo-cupaes sobre a histria e grande talento literrio, produziu um li-vro que fundamental para pesquisadores dos assuntos mais di-versos. Aqueles que pesquisam escravido, histria da educao,histria do protestantismo, bem como interessados pela histria emgeral, podero se valer da obra. Emlia Viotti da Costa conseguedemonstrar, a partir da anlise de um acontecimento histrico par-ticular, que na vida de cada um dos personagens envolvidos pulsamos ritmos da histria, que as suas mltiplas subjetividades so tantoconstitudas pela histria quanto constitutivas da histria (p. 9).

    Surya Aaronovich Pombo de BarrosMestranda no Programa de Histria e

    Historiografia da Educao da Faculdade deEducao da Universidade de So Paulo