R.E.R. # Redenção, exclusão e remissão… Cláudia Melo | Jorge Coimbra| Prudência Coimbra|...

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Texto Catálogo - Fundação José Rodrigues Porto

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Texto Maria de Fátima Lambert Fundação José Rodrigues – Porto R.E.R. # Redenção, exclusão e remissão… Cláudia Melo | Jorge Coimbra| Prudência Coimbra| Susana Lopes| Xai

o Imagem de uma cena da vida pessoal - Prudência;

o Imagem coreografada por/para transfiguração – Cláudia Melo;

o Imagem conceptual de um objecto desmaterializado - Xai;

o Imagem//acontecimento histórico – Susana Lopes;

o Imagem//evocação mais geral (de um conceito, por ex.) – Jorge Coimbra.

Afinal, a monja disse que “malgré tout” ainda respirava. Essa respiração expelida no ar branco, desenhou-se em linhas mais ou menos paralelas, entreactos de respiração fixados na parede. A loucura exótica do pensamento poético gerou figuras hieráticas cuja luz dobro e desdobrou – espécie de arquivadores de memórias – o tempo em mais tempo. A duração cativou cores geométricas embarcadas em quadrados humanos e infinitos que desafiam a linearidade do

mundo. Assim, se unem 5 actos de redenção, exclusão e remissão – lúcidos e ambíguos quanto nos baste. Prudência:

“O olho, a que chamam a janela da alma, é a via principal por onde, o centro dos sentidos ou senso comum pode contemplar mais amplamente as infinitas e magníficas obras da natureza; a orelha é o segundo sentido, o qual se enobrece escutando o relato das coisas que os olhos viram.”1

As considerações sobre o olhar podem ser um dos denominadores comuns que organizam as obras apresentadas pelos artistas na iconografia ocidental. Através dos olhos visíveis e externos se adentrou a intencionalidade do artista. Pela alma (e razão) individuada de cada um dos dois, assegurando um espectro de expansividade intersubjetiva que a radical exigência amorosa configurou em moldes quase míticos.

Sob égide de tantos tormentos estéticos, quanto ontológicos, que a volúpia talvez tenha confundido… nas mentes de gerações de leitores, eis como as Lettres d’une religieuse portugaise2 de Soror Mariana de Alcoforado galgaram o tempo. A artista fixou esses olhares, que sejam janela da alma em incontáveis esmeraldas de olhar vítreo e inflexível, tanto quanto o tormento e o desejo possuíram a monja para gáudio de seu cavaleiro francês. Diz-se que as pessoas olham, somente dirigem seu olhar para alguém e atingem-nos – ato simples, decidido e incontornável. É a intencionalidade de olhar, selecionado por um sujeito, sendo aquele que é olhado, cativo dessa mirada. Quem é olhado deve aguentar a intensidade, a circunstância e a (sem) razão de ser olhado. Guarda em si o questionamento mudo do olhar, sendo atingido, congratulando-se e aceitando. Ato simples, esse de olhar e ser olhado, todavia tão complexo e cheio de sentidos oposicionais, por vezes. Deixar-se olhar, dispondo o rosto a ser alcançado.

1 Leonardo da Vinci, Aforismos (326), Madrid, Espasa Calpe, p.64

2 Cartas publicadas por Claude Barbin em Paris – 1669. Leia-se na tradução de Eugénio de Andrade,

publicada na Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.

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Quando sou olhada, posso tomar um caminho: deixo-me invadir pela dúvida, rio-me ou escuso-me a devolver o olhar. Quero esses olhares que me abandonaram e nunca vão regressar. Que a saudade faz aumentar cada dia mais, até um desespero que a inteligência deserda. Cláudia Melo:

“Lugar de convocação como um poema muito antigo. Lugar de aparição. Diálogo do visual e da visão. Onde do visível emerge a aparição. (…)”3

Sob égide de um corpo adestrado para replicar, acondicionando (ou internalizando) a fisicalidade das demais mulheres, a artista redimi-as na história da loucura. Seguindo uma metodologia, impregnada pelas incidências argumentativas ensinadas por Michel Foucault, após a instauração propugnada pelo Dr.Charcot (“histeria iconográfica de

Salpêtrière”), a autoreferencialidade não é a dimensão almejada, nem tampouco o escopo privilegiado pela autora. Ou seja, não se trata de buscar a consignação uma convocação identitária “própria” que se exaure em si mesma. Não é uma obra desenvolvida num viés direto e imediatista, antes é caso de uma elaboração coreografada para uma aceção convergente da condição humana dessas mulheres em histeria, enfocadas como paradigma e vertigem. Trata-se de uma série de 3 imagens fotográficas - “três actos estereotipados”, como os designa Cláudia Melo. Decorrem, “são” em sequência de um pensamento coreográfico que foi performatizado, desdobrando situações para registo e extrapolação, dir-se-á. A imersão da atuação da artista/pessoa/ num espaço coletivo – que é um jardim aberto à heterogeneidade de pessoas e grupos – propiciou interações díspares, reações que foram absorvidas nas camadas mais distanciadas das obras. Porventura, sendo objetos de condição invisível pelo exercício de uma perceção estética inicial. Sendo montadas em caixa de luz, gera-se uma ilusão de evanescência que cumpre uma ambígua romanticidade, ofuscando o trágico, emoldurando-o ao promover ondulações de sensibilidade e pensamento. A própria evocação lumínica abre encaminhamento para um estado de transcendência que possui paridade com esse estado de suspensão que seja um transe histérico e fértil. Assim, endereçando-se para a luz – autognose que a condição fantasmática possa conduzir. Jorge Coimbra A realidade abstrata era mais real do que a natural, assim argumentava Mondrian nos diálogos desenvolvidos num pequeno mas emblemático livro.4 No decurso de um passeio pelo perímetro de uma qualquer cidade, dois pintores enfrentavam-se, questionando qual a realidade que auferia de primazia na pintura/arte. O pintor naturalista, convocando a reprodutibilidade, a mimesis do percebido em termos visuais: procurando plasmar tais imagens para o reconhecimento de referentes e atribuição de sentidos óbvios. Por outro lado, o pintor abstrato que sabia concentrar nas formas inócuas da geometricidade, a essência da sua acuidade visual, quanto conceitual. Assim, o genuíno artista ascendia à suspensão polissémica – baseada /balizada por significações atributivas, para expandir seus propósitos mediante a redução fenomenológica (eidós)… seguindo os pressupostos da fenomenologia husserliana. Pela intuição – preenchimento dotado de intencionalidade, enquanto percepção ou apercepção – o artista “traz” em si o objecto; acede às coisas em si, no desejo de

3 Sophia de Mello-Breyner Andresen, “Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva”, Ilhas (1989),

Lisboa, Caminho, 2005, p.68 4 Piet Mondrian, Realidad natural y realidad abstracta,

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“presentando” ou “representando” captar o eidós. Esta via de “pureza” exigida na sua apreensão tornava-se mais rigorosa para o artista do que para outro indivíduo a quem não urgisse a criação artística.5 Parece-me que se aplica à série presentificada por Jorge Coimbra, em sintonia com a enunciação refletida por Mondrian, relativamente ao que designou por “nova imagem da pintura”. Esta apresenta-se como real, pois que nela se desvelam quer o conteúdo, quer a aparência das coisas. O conteúdo, porque se expressando em concreto e a aparência, pois nascendo do natural, preservando seu núcleo. Será, certamente, o caminho inevitável que a arte deverá atingir, desde a sua primitiva elaboração, empreendendo uma “marcha permanente desde o natural: o crescimento para o abstracto.”6 Pois, me parece, existe, nestas telas quadradas, uma densidade cromática que concretiza variações quase infinitas de tons e espessuras, texturas e velaturas: para convergir na substância primeira que é a opacidade singular da cor, a exaurir-se em si mesma – sem necessidade de referente semântico, acessório atributo, talvez. Acordes: fale-se da transposição para ritmos cromáticas do que se poderia converter em sonoridades; desenhos de sons, ruídos e demais estímulos que são organizados mediante uma lógica, não necessariamente, regida pela harmonia, nem pela proclamação do melódico. As linhas direcionam-se em movimentos laterais ou longitudinais, permitindo que olhando as 63 telas como todo, se anunciem leituras abertas. Susana Lopes A soma dos arquivadores concretiza-se no arquivo finalizado. elaborando uma detalhista condição da memória em continuum que replica a ação de corte. Xai

“Nunca chega à janela da alma.”7 O desenho rege a constituição de uma linha de movimento do corpo do espetador, sua cativação e sequencialidade no ato de ver. [« J’ai découvert que dessiner n’était pas seulement/regarder, mais aussi toucher. » Jan Fabre] Neste sentido, “ver” um desenho será efetivamente “desenhar”, pelo movimento do corpo próprio (do espetador), um ato único de perceção visual: [« J’ai découvert que dessiner n’était pas seulement/regarder, mais aussi toucher. » Jan Fabre] Neste sentido, “ver” um desenho será efetivamente “desenhar”, pelo movimento do corpo próprio (do espetador), um ato único de perceção visual:

« Je dessinais avant même de marcher. Sur tout et sur n’importe quoi. Je dessine encore, chaque jour, avec le même plaisir, sur tout et sur n’importe quoi. Mais aujourd’hui, je marche : je marche dans mes dessins.(…) »

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A linha, o desenho, o movimento do artista e a corporalidade do espaço que os absorve…

5 Cf. Maria de Fátima Lambert, “Arte e Fenomenologia: até à Arte Real/Abstrata, seguindo a “redução

fenomonológica” de Husserl”, Revista Portuguesa de Filosofia, vol.67, fasc. 3 (2011), p.474 6 Piet Mondrian, La nueva imagen de la pintura, CCECA, Murcia, 1983, p.61

7 Leonardo da Vinci, Aforismos (326), Madrid, Espasa Calpe, p.64

8 Jan Fabre, Umbraculum, Paris, Actes du Sud, 2001

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