REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a...

16
REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM DUNGEONS & DRAGONS Giovanna Martelete do Amaral Doutoranda PUCRS [email protected] Nykollas Gabryel Oroczko Nunes Mestre PUCRS [email protected] Introdução: história e D&D A história medieval tem-se feito presente no cotidiano contemporâneo na forma de lazer e divertimento, notadamente em filmes, seriados e jogos como o Role Playing Game (RPG) Dungeons & Dragons (D&D). Esses medievalismos expressam a forma como as pessoas se recordam da Idade Média, mesmo que de forma imprecisa (MARSHALL, 2007a). Todavia, são essas expressões culturais populares as formas majoritárias pelas quais as pessoas em geral têm acesso ao passado, mais do que por produções acadêmicas (SANCHÈS MARCOS, 2012). Dungeons & Dragons é um jogo de interpretação para dois ou mais jogadores, no qual um jogador é o “mestre” da aventura, responsável por descrever situações e locais, e apresentar tramas e desafios para os demais, que controlam personagens individuais no cenário. Para jogar, são necessários ao menos três elementos: os livros de regras, que descrevem a mecânica do jogo; papel e caneta, para anotar as estatísticas de cada personagem; e um conjunto de dados com número variado de faces, para introduzir, por meio da aleatoriedade, o elemento do “jogo” em si. Livros suplementares, mapas, miniaturas e aplicativos de celular estão entre os muitos elementos extras hoje pertencentes ao hobby. O típico mundo fantasioso de D&D tem suas referências ancoradas na Europa medieval e abrange aventuras com criaturas mágicas e elementos do imaginário sobre a Idade Média. Uma parte importante do jogo é o local onde se passam as aventuras, como espaços naturais que, mesmo marcados por elementos fantasiosos, fazem referência ao período histórico que estrutura o jogo, o medievo europeu. Ou seja, têm por base um

Transcript of REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a...

Page 1: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM DUNGEONS &

DRAGONS

Giovanna Martelete do Amaral

Doutoranda PUCRS

[email protected]

Nykollas Gabryel Oroczko Nunes

Mestre PUCRS

[email protected]

Introdução: história e D&D

A história medieval tem-se feito presente no cotidiano contemporâneo na forma

de lazer e divertimento, notadamente em filmes, seriados e jogos como o Role Playing

Game (RPG) Dungeons & Dragons (D&D). Esses medievalismos expressam a forma

como as pessoas se recordam da Idade Média, mesmo que de forma imprecisa

(MARSHALL, 2007a). Todavia, são essas expressões culturais populares as formas

majoritárias pelas quais as pessoas em geral têm acesso ao passado, mais do que por

produções acadêmicas (SANCHÈS MARCOS, 2012).

Dungeons & Dragons é um jogo de interpretação para dois ou mais jogadores, no

qual um jogador é o “mestre” da aventura, responsável por descrever situações e locais,

e apresentar tramas e desafios para os demais, que controlam personagens individuais no

cenário. Para jogar, são necessários ao menos três elementos: os livros de regras, que

descrevem a mecânica do jogo; papel e caneta, para anotar as estatísticas de cada

personagem; e um conjunto de dados com número variado de faces, para introduzir, por

meio da aleatoriedade, o elemento do “jogo” em si. Livros suplementares, mapas,

miniaturas e aplicativos de celular estão entre os muitos elementos extras hoje

pertencentes ao hobby.

O típico mundo fantasioso de D&D tem suas referências ancoradas na Europa

medieval e abrange aventuras com criaturas mágicas e elementos do imaginário sobre a

Idade Média. Uma parte importante do jogo é o local onde se passam as aventuras, como

espaços naturais que, mesmo marcados por elementos fantasiosos, fazem referência ao

período histórico que estrutura o jogo, o medievo europeu. Ou seja, têm por base um

Page 2: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

imaginário contemporâneo sobre a natureza na Idade Média. O objetivo deste trabalho é

analisar qual representação do ambiente natural medieval é incentivada no RPG

Dungeons & Dragons.

D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro

do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia do Mestre) e dos monstros que

serão enfrentados (Manual dos Monstros). Selecionamos o Guia do Mestre para esta

análise por ser o livro que explora e indica a criação do mundo. Suas instruções e

recomendações aos mestres contêm noções — sobre a Idade Média e sobre o espaço —

que os autores propuseram como base para as narrativas que cada grupo ao redor do

mundo viria a performar. Um exemplo é a concepção sobre o espaço, que apresenta-se

dividido em settlements (assentamentos), dungeons (masmorras) e wilderness1.

Uma das primeiras seções do livro estabelece premissas-base, concepções sobre o

mundo do jogo com as quais o livro trabalhará. Uma delas estabelece que o mundo da

narrativa é em grande parte selvagem. O livro informa ao leitor: “wild regions abound”

(DUNGEON, 2014, p. 9), e assim wilderness assume um caráter de pano de fundo para

toda a ação. Isto sugere a relevância de se analisar a natureza medieval em D&D à luz do

conceito de wilderness, como estabelecido na história ambiental a partir do trabalho de

Roderick F. Nash.

Desde seu lançamento em 1974 nos Estados Unidos, o jogo acumula 5 edições. A

última, lançada em 2014, ainda não tem tradução oficial completa no Brasil. Ainda assim,

D&D 5 se tornou tão popular no Brasil que pelo menos desde 2015 já existe uma tradução

feita por um fã. Este fã era membro de um grupo de Facebook exclusivamente dedicado

à 5ª Edição, que soma mais de 39 mil membros, demonstrando a grande penetração do

jogo entre o público brasileiro.

História Pública e Medievalismo

1 Optamos por não traduzir wilderness, uma vez que o termo em inglês não possui uma tradução que dê

conta ao mesmo tempo de seus múltiplos usos (em determinada situação, “ambiente selvagem” é uma

solução, enquanto em outra o mais apropriado seria “deserto”). Além disso, o uso do termo original em

discussões historiográficas envolvendo o conceito é bem estabelecido.

Page 3: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

A História Pública tem ganhado espaço no Brasil e muito se discute sobre a

atuação do historiador neste campo e sobre a produção realizada fora da academia. Não

apenas a apresentação do passado para um leque mais amplo de audiências, o estudo da

história pública se debruça sobre a forma como “adquirimos nosso senso de passado - por

meio da memória e da paisagem, dos arquivos e da arqueologia (e por consequência, é

claro, do modo como esses passados são apresentados publicamente)” (LIDDINGTON,

2011, p. 34). História Pública comporta a história feita para um público mais amplo, a

história colaborativa, feita em conjunto com o público, a história feita pelo público e o

exercício de reflexividade entre a história e o público (SANTHIAGO, 2016). Dentro

desses engajamentos vemos florescer as produções na cultura popular que mobilizam a

história, geralmente sem intenção, mas que acabam por agregar e relacionar

representações ao saber histórico do público que as consomem. Neste sentido, sobre o

cinema, Santiago Júnior afirma que:

[...] o filme não precisa se propor como narrativa explicitamente histórica para

que o senso de passado esteja presente. Se o sentido de passado é construído

em narrativas e imagens, isso significa que o discurso não precisa ser dotado

ele próprio da intenção de encenar o passado, embora possa fazê-lo. A

espessura de tempo de uma imagem cinematográfica pode vir de seu diálogo

com outras imagens e discursos de história pública que permitem a indexação

da historicidade no filme. (SANTIAGO JÚNIOR, 2018, p. 52)

Filmes são capazes de criar poderosas imagens de representação histórica, mesmo

se tratando de uma produção de fantasia. O cinema promove “immediacy and

simultaneously appeals to the imagination, engaging the viewer in the past and involving

him emotionally and imaginatively in the action on screen” (DRIVER, 2004, p. 19). Aos

filmes se vinculam outras produções, como a literatura e jogos, seja ele inspirando-se

nelas ou servindo como fonte de inspiração para novas produções. Essa relação se

exemplifica com as obras de J. R. R. Tolkien, que foram escritas nos anos 1930-50,

adaptadas para o cinema nos anos 2000-2010 e depois para diversos outros produtos

culturais. O mesmo se deu com os livros de George R. R. Martin, adaptados para a série

Game of Thrones, que se multiplicaram em jogos e todo tipo de merchandising. Um

caminho semelhante teve a série de jogos Assassin’s Creed, adaptada para literatura e

posteriormente para o cinema.

Essas produções mobilizam o imaginário do público, compartilhando

representações e ideias sobre a história ou aspectos da história, e se desdobram nas mais

Page 4: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

variadas formas de manifestações culturais. Jogos de RPG são um dos muitos pontos de

encontro possíveis das representações da Idade Média, conjugando e atualizando

estereótipos presentes no cinema e na literatura com informações sobre armamentos e

vestimenta, e a criação de narrativas sobre natureza e ambiente presentes nos livros de

RPG. Segundo Mônica Nunes:

A prática de consumo midiático, como assistir a filmes, séries e videogames,

ler livros, HQs, ou se entreter com algum produto da cultura pop que tematize

o medieval fantástico, a era vitoriana, o universo samurai de alguns animes e

mangás, [...], promove o acesso simbólico e imaginário a outras camadas de

tempo. (2017, p. 33)

Isso ocorre especialmente quando envolve a teatralidade e o afeto. Esse acesso

simbólico ao passado ocorre no D&D em meio a elementos de fantasia e dentro das regras

da própria linguagem do jogo (MARSHALL, 2007b).

Mesmo que a representação da Idade Média em D&D não se prenda ao

conhecimento histórico do período e flua em direção a fantasia e referências da cultura

popular, o Guia do Mestre cria algumas “âncoras” no “mundo real” ao longo das

instruções para criação de mundos nos jogos. Uma grande seção do Guia fala sobre

assentamentos, locais onde as pessoas vivem e que ajudam a definir a natureza da

civilização do mundo em que o jogo vai se passar. O detalhamento vai do tipo de governo

até especificações sobre as habitações, e varia dependendo da vontade de quem está

“mestrando” e criando o mundo do jogo. Sobre o tipo de governo, o Guia do Mestre dá a

seguinte descrição:

In the feudal society common in most D&D worlds, power and authority are

concentrated in towns and cities. Nobles hold authority over the settlements

where they live and the surrounding lands. They collect taxes from the

populace, which they use for public building projects, to pay the soldiery, and

to support a comfortable lifestyle for themselves (although nobles often have

considerable hereditary wealth). In exchange, they promise to protect their

citizens from threats such as orc marauders, hobgoblin armies, and roving

human bandits. (DUNGEON..., 2014, p. 17-18)

O trecho evidencia que o modelo para o jogo é a sociedade feudal, entretanto

descreve uma perspectiva que se concentra na relação de poder e autoridade, onde nobres

coletam impostos para manter um determinado estilo de vida, construir prédios públicos

e garantir a segurança das pessoas. A seção segue discorrendo sobre quem detém o poder

e o que faz com ele, limitando neste tema o que se sabe sobre a sociedade feudal. Diversas

Page 5: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

formas de governo são indicadas como possibilidade, mas novamente o Guia se vincula

à Idade Média, e o feudalismo é apontado como o modelo:

The typical government of Europe in the Middle Ages, a feudalistic society

consists of layers of lords and vassals. The vassals provide soldiers or scutage

(payment in lieu of military service) to the lords, who in turn promise

protection to their vassals. (DUNGEON..., 2014, p. 18)

O feudalismo é delineado pelo Guia do Mestre como uma forma de organização

militar: o único aspecto relevante a ser descrito é como se mantêm a segurança da

população frente a um possível ataque. O que é o feudalismo e como a sociedade se

organiza, ainda que seja um aspecto que poderia enriquecer as histórias narradas nos

jogos, é suprimido frente a uma representação voltada para a questão do poder e do

combate.

David Marshall (2007b) aponta como o D&D mantém a sua própria lógica como

um sistema autopoiético abarcando elementos externos na sua composição. A Idade

Média funcionaria como um repositório de ingredientes, juntamente com a literatura

fantástica, para a criação do mundo de D&D. Ao analisar como o jogo reconfigura a

imagem do clérigo para incorporar a classe no jogo, Marshall afirma que “those historical

organizations influence the image of the cleric, but autopoietic closure is maintained by

reconstructing them in the game’s own language of fantasy. The game effectively works

in analogy rather than influence” (2007b, p. 181).

Ainda que existam outras opções indicadas no Guia do Mestre, a fundação na qual

a narrativa e a ideia dos jogos se baseiam é uma evocação da sociedade feudal. É a partir

dela que os outros detalhes que compõem o mundo onde a aventura se passa serão criados.

Quando o mestre descrever o lugar onde os jogadores vão entrar, por onde vão andar, em

que mundo está se passando a aventura, o ponto de referência será algo visto como

medieval.

Natureza medieval no Guia do Mestre

“Between the dungeons and settlements of your campaign world lie meadows,

forests, deserts, mountain ranges, oceans, and other tracts of wilderness waiting to be

traversed” (DUNGEON..., 2014, p. 106). Essa frase abre a sessão do Guia do Mestre

sobre wilderness, localizada ela própria entre as sessões sobre masmorras e assentamentos

Page 6: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

no quinto capítulo do livro: Adventure environments. Há diversas concepções possíveis

para wilderness: ela pode ser (e foi) compreendida como, por exemplo, uma natureza em

um estado idealizado de ausência de ação humana, como uma natureza selvagem

particularmente inóspita, ou ainda como “the place where, symbolically at least, we try

to withhold our power to dominate” (CRONON, 1996, p. 93).

Em D&D, no entanto, sua definição é diferente, de forma a atender necessidades

do jogo: wilderness define-se de acordo com a liberdade de movimento que proporciona.

Desta forma ela se distingue da masmorra, espaço composto de salas e corredores

delimitados e finitos, e do assentamento, espaço por definição sob o controle da

“civilização”. É desta forma que o jogo ao mesmo tempo inclui como wilderness

simultaneamente selvas remotas, fortes habitados por criaturas com traços bestiais e

chácaras que estejam sob o ataque de ogros; e exclui da abrangência do conceito um

complexo de cavernas.

Se esta é a forma pela qual pode-se definir o que é ou não wilderness no Guia do

Mestre, as maneiras de representá-la giram basicamente em torno do perigo e da aventura

romântica. Roderick Nash, autor do clássico Wilderness and the American Mind (1967),

identificou a associação wilderness–perigo como pervasiva no Ocidente desde a

sedentarização, assim como a associação oposta que a acompanha, civilização–proteção.

Até mudanças ocorridas na modernidade, com o movimento romântico e a contemplação

do sublime kantiano na natureza, desvios desta visão negativa são apresentados por Nash

como exceções a uma regra.

Dos componentes culturais do medievo europeu, compreendido neste intervalo, o

cristianismo, em continuidade à tradição judaica, associou a wilderness ao Diabo e lhe

designou características terríveis, enquanto a cultura popular a ela relegou criaturas como

o homem selvagem e outros entes assustadores, estes últimos muitas vezes associados a

anjos caídos e demônios. A wilderness era em grande parte desprezada, temida e

vinculada ao perigo, como seguiu sendo por muito tempo. No Guia do Mestre, ela abriga

perigos representados por muitas criaturas presentes no folclore europeu, às quais é

atribuído um caráter maligno, ao encontro da associação cristã wilderness–diabo.

Uma ilustração de página inteira apresenta em primeiro plano um grupo de

pequenos humanóides com traços bestiais, portando armas rudimentares e adornos de

Page 7: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

ossos - goblins, na lógica do jogo - espreitando em meio a rochas em algum local elevado,

entre árvores retorcidas sem folhas, troncos podres e um entalhe de uma serpente com

chifres em uma grande pedra. A cena inteira é composta em frios tons arroxeados, e o

fundo - uma floresta escura - se dissolve em névoa. Esta imagem é a primeira da sessão

do livro sobre wilderness, e expressa bem a ideia de ambiente natural ameaçador, domínio

de criaturas não-humanas. A ilustração ressoa com as caracterizações que Nash percebe

e encontra no poema épico Beowulf para as regiões desabitadas: “dank, cold, and gloomy

[...] wolf-haunted hills, windswept crags, and perilous fen-tracks [...] a dismal grove of

mountain trees” (NASH, 2014, p. 12).

Page 8: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

Imagem 1: Wilderness no Guia do Mestre

Fonte: (DUNGEON..., 2014, p. 107)

No entanto, a maneira como Nash caracteriza a percepção da wilderness perigosa

durante a Idade Média poderia sugerir que este aspecto perigoso só possui um caráter

negativo, o que não é o caso. Em seu artigo La percepcion de la naturaleza en la Alta

Edad Media (2007), a historiadora Adeline Rucquoi dá bastante ênfase à função de palco

para a salvação que a natureza podia desempenhar na Idade Média europeia. A narrativa

bíblica de que Deus teria criado todas as coisas conferia à natureza uma primeira camada

de sacralidade como “obra divina”.

Page 9: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

A narrativa, contudo, indicava que a natureza terrena precedia a humanidade na

ordem da criação, e não havia sido criada para ela: a natureza que Deus criou para o ser

humano foi o jardim, o paraíso. A wilderness terrena era o espaço de seu banimento,

escapava ao seu controle, era ocupado pelo demônio. Uma das fontes utilizadas pela

autora, Martinho de Dume, escrevia no século VI que os demônios desde o dilúvio

enganavam os homens exigindo-lhes sacrifícios no alto dos montes e nas profundezas dos

bosques.

Esse perigo representado pela wilderness, entretanto, podia ele próprio ser útil à

humanidade, contrasta Rucquoi. A autora apresenta como seu papel como espaço de

penitência - e logo de salvação - persistiu ao longo da alta Idade Média ibérica. Vários

ermitãos escolheram recolher-se ao “desierto” ao longo do período estudado pela autora,

até o século X, onde buscavam resistir à tentação do Diabo, passar por penitência e

alcançar a salvação. De maneira distinta, Rucquoi argumenta que as cavernas (que em

D&D seriam masmorras, mas na concepção ambiental são componentes da wilderness)

aparecem em uma versão das Crônicas de Alfonso III como um local para cristãos se

refugiarem de muçulmanos, e então de lá saírem para obter a vitória. Neste caso, a caverna

“evoca también los antiguos mitos de muerte y renacimiento, de ocultación del héroe

dentro de una montaña de donde resurge para dar la victoria a su pueblo, de Cristo bajando

a los infiernos antes de resucitar” (RUCQUOI, 2007, p. 11).

O próprio Nash já havia ressaltado na década de 1960 estas utilidades da natureza

deserta, que se manifestaram desde o êxodo bíblico, onde serviu de refúgio aos hebreus,

até os espaços utilizados por eremitas ao longo da Idade Média, passando pelos quarenta

dias que Cristo passa no deserto (wilderness) na Bíblia. A wilderness como refúgio ou

local de contemplação, embora sem dúvida pudesse fazer parte de uma narrativa de jogo,

não recebe atenção no Guia do Mestre. Seria possível considerar, portanto, que em D&D

as funções positivas que a wilderness medieval podia assumir desaparecem por completo?

Não seria o caso, uma das razões para tal é a caça, também explorada por Rucquoi.

A caça, aponta a autora, era uma oportunidade de triunfo da humanidade sobre

uma natureza selvagem e diabólica. Por proporcionar tal enfrentamento com as bestas, a

wilderness era uma vez mais útil ao ser humano e palco de uma vitória do bem contra o

mal. A narrativa mais estimulada no Guia do Mestre, dos jogadores interpretarem heróis

Page 10: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

que adentram a wilderness em busca de combate contra monstros e conquista de

masmorras (também povoadas por monstros e bestas), ecoa fortemente esta função

histórica da caça no imaginário medieval.

O romantismo, contudo, opera outras mudanças: o próprio “homem selvagem”,

por exemplo, dá lugar ao “bom selvagem” dentro desta tradição, difunde-se (até certo

ponto) a paixão pela beleza que a natureza selvagem pode abrigar. Estas perspectivas

positivas e românticas também aparecem em D&D: outra das ilustrações de página inteira

apresenta um cavaleiro em seu cavalo branco, ambos com armaduras prateadas e

douradas, saltando por cima de um tronco em meio a uma floresta. O cavaleiro tem seu

escudo erguido, no qual uma flecha está alojada, na outra mão empunha uma espada. O

tronco sobre o qual o animal salta é tomado por vegetação de um verde vibrante, que

também aparece nas copas das árvores ao fundo, iluminadas pela luz do sol.

Imagem 2: Adventure Environments no Guia do Mestre

Page 11: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

Fonte: (DUNGEON..., 2014, p. 98)

A mesma variedade de ambiente daquela anteriormente apresentada - uma floresta

- agora evoca um sentimento de aventura e heroísmo. Este potencial múltiplo é destacado

pelos autores, que sugerem que o Mestre o explore ao descrever o cenário para os outros

jogadores:

Use the landscape to set the mood and tone for your adventure. In one forest,

close-set trees shroud all light and seem to watch the adventurers as they pass.

In another, sunlight streams through the leaves above and flower-laden vines

twine up every trunk. (DUNGEON..., 2014, p. 106)

A ideia contemporânea de wilderness, no entanto, não é restrita a espaços de

perigo ou espaços de heroísmo. A partir da virada do século XVIII para o XIX, com a

Page 12: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

vida e obra de Humboldt como marco importante, a ecologia começou a tomar forma

como ciência, e logo havia outros interesses na wilderness, que ao longo do século XIX

e do começo do XX se converteram em desejo de protegê-la. A preservação da

wilderness, o valor intrínseco na biodiversidade, na diferença, no que cada ecossistema

traz de único é um componente essencial do pensamento ecológico contemporâneo sobre

a wilderness.

A ecologia hoje postula, como o vem fazendo há décadas, que um pântano

habitada por serpentes, artrópodes e rãs é um ecossistema valioso, que deve ser estudado

e preservado, que cada um desses seres vivos é importante para a manutenção do todo e

que a perda de qualquer um deles seria lamentável. Ela vê na composição do lodo indícios

de como a vida ali se mantém, em cada um dos fungos, insetos e répteis as suas posições

na teia alimentar do ambiente, e assim retorna à defesa da preservação do pântano, ele

próprio relacionado aos biomas que o cercam.

O role-play de fantasia, por outro lado, que busca inserir os jogadores em um

mundo medieval, acaba por se desvencilhar deste paradigma ecológico contemporâneo,

e retorna a concepções pré-modernas sobre a wilderness. Desta forma, outra das

ilustrações de página inteira do Guia do Mestre representa a encosta de uma montanha

como a face de um monstro, uma caverna sendo sua boca escancarada. As formações

rochosas imitam dentes afiados e uma labareda em seu interior adicionando ameaça

imediata. Do lado de fora, um grupo de aventureiros armados se esconde atrás de grandes

rochas, espiando apreensivamente para a caverna, certamente a entrada de alguma

perigosa masmorra.

Page 13: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

Imagem 3: Running the Game no Guia do Mestre

Fonte: (DUNGEON..., 2014, p. 234)

Esta outra maneira de encarar o ambiente vê certos aspectos da paisagem e formas

de vida como indesejáveis, e neles encontra evidências de ameaça ou literalmente

maldade. Mais uma vez, pode-se observar as sugestões para a condução do jogo contidas

no Guia do Mestre:

Signs of corruption-rotting wood, foul-smelling water, and rocks covered with

slimy brown moss-can be a signal that the adventurers are drawing close to the

site of evil power that is their destination or can provide clues to the nature of

the threats to be found there. (DUNGEON..., 2014, p. 106)

Madeira podre, água malcheirosa e rochas cobertas de “musgo marrom gosmento”

são listados como exemplos de características da paisagem que podem indicar

Page 14: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

proximidade com poder maligno. Apresentados como sinais de “corrupção”, podem ser

compreendidos em oposição a seus correspondentes “imaculados”: madeira viva ou

tratada, água limpa e rochas livres de musgo. Estes últimos são elementos mais estéreis,

componentes de uma paisagem menos entrópica, mais ordeira e pronta para o uso. A

corrupção se manifesta no declínio da utilidade da paisagem, com a intrusão de elementos

que atrapalham sua manipulação pela humanidade.

Há um componente antropocêntrico nesta associação, que pode ser observado

também em posturas utilitárias, que veem no valor de uma paisagem o quanto ela pode

fornecer ao humano e se mantêm politicamente relevantes até o presente (NASH, 2014).

Na história do Ocidente, paisagens como desertos e selvas foram pensadas sob esse viés

de desviarem de um padrão (europeu) de ordem e utilidade. No século XIX elas foram

descritas por viajantes como locais de morte, monstruosidade e maldade (os desertos), ou

excesso, caos e luxúria (as selvas), e assim associadas ao mal e ao pecado (GREGORY,

2001). Como no Guia do Mestre os primeiros exemplos de wilderness apresentados no

capítulo são “Desert of Desolation” e “the jungles of the Isle of Dread” (DUNGEON...,

2014, p. 99), estes estereótipos parecem seguir tendo influência no imaginário sobre a

natureza, sendo transplantados para o cenário medieval de D&D como zonas hostis para

os personagens enfrentarem o mal e performarem atos de heroísmo e bravura.

Considerações finais

D&D promove uma representação da Idade Média voltada para as relações de

poder, conflito e proteção. Ao adentrar na mecânica de construção dos mundos,

fortemente inspirados na Idade Média, o Guia do Mestre por um lado sugere uma

wilderness hostil, local de maldade, mas também romântica, local de aventura e heroísmo.

Por outro lado, se descola de perspectivas ambientais contemporâneas, de preservação de

paisagens e valorização da biodiversidade, ao manter a noção de que certas características

naturais são sinais de corrupção ou presença maligna.

Ao considerarmos que D&D é um jogo de interpretação, de se colocar no lugar de

um outro imaginário, essa escolha na representação poderia sugerir (em um primeiro

olhar) uma grande adequação do jogo à produção historiográfica acadêmica sobre a

Page 15: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

natureza na Idade Média. Não é, no entanto, a partir da historiografia sobre as percepções

medievais que D&D chega nessas representações da wilderness, mas sim a partir do

processo de significação que envolve camadas de medievalismos. Essas representações

se referenciam e se tornam elas próprias ponto de partida para novas representações,

atualizando a imagem da natureza medieval na cultura popular contemporânea. A

exclusão do elemento religioso–cristão da representação da wilderness como ameaçadora

ou redentora altera toda a lógica das motivações sócio-culturais de tais percepções. Seguir

questionando sobre esse universo cultural e sobre as formas como o público com ele se

relaciona ajudará a construir um entendimento mais profundo sobre como esse imaginário

se atualiza ao longo do tempo.

Referências

CRONON, William. The trouble with Wilderness; or, Getting Back to the Wrong Nature.

In.: CRONON, William (Org.). Uncommon Ground: rethinking the Human Place in

Nature. New York: W. W. Norton & Company, 1996, p. 69-90.

DRIVER, Martha W. What’s accuracy got to do with it? In.: DRIVER, Martha W.;

RAY, Sid (Org.). The Medieval Hero on Screen: representations from Beowulf to

Buffy. Jefferson: McFarland & Company, 2004.

GREGORY, Derek. (Post)Colonialism and the Production of Nature. In: CASTREE,

Noel; BRAUN, Bruce (eds.). Social Nature: Theory, Practice, and Politics. Malden:

Blackwell Publishers, 2001.

DUNGEON Master’s Guide. 5 ed. Renton: Wizards of the Coast, 2014.

LIDDINGTON, Jill. O que é História Pública? Os públicos e seus passados. In.:

ALMEIDA, Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à

história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.

MARSHALL, David W. Introduction: The Medievalism of Popular Culture. In.:

MARSHALL, David W. (Ed). Mass Market Medieval: Essays on the Middle ages in

Popular Culture. Jefferson: McFarland & Company, 2007a.

MARSHALL, David W. A World unto Itself: Autopoietic Systems and Secondary Worlds in Dungeons & Dragons. In.: MARSHALL, David W. (Ed). Mass Market

Medieval: Essays on the Middle ages in Popular Culture. Jefferson: McFarland &

Company, 2007b.

Page 16: REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM ......D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia

NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. Cosplay, steampunk, revivalismo e medievalismo

nas culturas da memória e do consumo. In.: NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. (Org.).

Cosplay, Steampunk e Medievalismo: memória e Consumo nas Teatralidades Juvenis.

Porto Alegre: Sulina, 2017.

NASH, Roderick Frazier. Wilderness and the American Mind. 5. ed. New Haven: Yale

University Press, 2014.

RUCQUOI, Adeline. La percepcion de la naturaleza en la Alta Edad Media. In.:

SABATÉ, Flocel (Ed.). Natura i desenvolupament: El medi ambient a l’Edat Mitjana.

Lleida: Pagès Editors, 2007.

SÁNCHEZ MARCOS, Fernando. Las huellas del futuro: historiografía y cultura

histórica en el siglo XX. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2012.

SANTHIAGO, Ricardo. Duas palavras, muitos significados: Alguns comentários sobre

a história pública no Brasil. In.: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de;

SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: sentidos e itinerários. São

Paulo: Letra e Voz, 2016.

SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas F. Fragmentos patrimoniais de passado: o

campo cinematográfico apropriando-se da História Pública. In.: ALMEIDA, Juniele;

MENESES, Sônia (Org.). História Pública em debate: patrimônio, educação e

mediação do passado. São Paulo: Letra & Voz, 2018.