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REPRESENTAÇÃO DA CIDADE EM ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO
Ingra Cristina Gomes Silvestre1
Resumo: Com o crescimento do espaço urbano durante o século XX, sabe-se que a literatura
passou a privilegiar a cidade grande como cenário para as ações de seus enredos. A urbe
adquire mesmo status de personagem não raras vezes. A teoria e a crítica literária têm se
dedicado a essa opção dos escritores, como Regina Dalcastagnè, Tânia Pellegrini, Rejane
Rocha, Juliana Santini, Flora Süssekind, Pascoal Farinaccio, Ivete Walty, Nelson Vieira, Vera
Telles, Karl Schollhammer, e outros. Neste artigo, investiga-se como a cidade no romance
contemporâneo, mais especificamente, Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato,
adquire importância de representação literária pautando na configuração do espaço e da
personagem, assim como, nos mecanismos utilizados para representar a cidade na narrativa
brasileira contemporânea.
Palavras-chave: Cidade. Literatura. Contemporaneidade. Narrativa. Espaço.
Introdução
Com a Revolução industrial o homem deixa o espaço do campo, espaço de rigidez
feudal e o ritmo da vida campesina, para uma transição capitalista de produção, pois segundo
Williams (1989) a revolução industrial foi o divisor de águas entre o campo e a cidade, e
assim, promoveu uma concentração urbana que deu inicio a metrópole. A urbe com seu ritmo
acelerado de construções, periferias, subúrbios, estradas e vias, cobrem as zonas rurais, por
meio de sua urbanização, devorando o espaço, “transformando em urbana a sociedade como
um todo” (ROLMIK 2004 p.12)
Assim, por literatura ser uma representação da realidade, pode através das
transformações a partir do século XX modificar seu espaço de contemplação, no qual o
homem deixa o campo para morar na cidade, da mesma forma, os romancistas deixam de
1 Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Goiás. Atualmente é mestranda em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Goiás. Bolsista. E-mail: [email protected]
valorizar a terra, a paisagem e o homem que a habitava, para acentuar com o advento da
modernização, o processo de urbanização e as mazelas sociais.
Segundo Oliveira (2004) uma das novas possibilidades advindas com a história
cultural refere-se à valorização das diversas interpretações do real, pois são tão importantes
quanto o próprio real, já que ela não se interessa em analisar tão somente uma realidade
social, mas também, como a mesma é pensada, construída e lida pelos sujeitos que a
compõem. Na literatura brasileira contemporânea a cidade aparece, segundo Regina
Dalcastagnè (2003) não apenas como um cenário, um espaço para desenrolar de um enredo,
mas sim um agente determinante da significação da narrativa como um todo, pois a urbe surge
como personagem. E é está cidade que analisaremos no romance contemporâneo Eles eram
muitos cavalos, de Luiz Ruffato.
Retrato de um artista / Luiz Ruffato
O autor da obra, Eles eram muitos cavalos, Luiz Fernando Ruffato, nasceu em
Cataguases, Minas Gerais, em 1961, oriundo de uma família pobre que não tinha o hábito de
leitura. Fez curso técnico de tornereiro mecânico no Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai), morou em Juiz de Fora, Minas Gerais, e se formou em comunicação social
na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Logo após sua graduação, trabalhou em
diversos jornais e debates literários da cidade de Minas. E, em 1990, transfere-se para São
Paulo atuar no Jornal da Tarde.
Ruben Fonseca, Ivan Ângelo e Inácio de Loyola Brandão, Balzac, Tchekow e
Machado de Assis foram alguns dos escritores que Ruffato teve contato de leitura em sua
formação acadêmica. Assim, na prosa2Ruffato estréia com o volume de contos Histórias de
Remorsos e Rancores (1998), logo escreve Os Sobreviventes (2000) e estas obras integram o
conjunto Inferno Provisório. E, em 2001 lança Eles eram muitos cavalos, considerado pela
crítica como um dos mais importantes livros da ficção brasileira contemporânea. Composto
por instrumentos narrativos comuns à ficção recente, como por exemplo, a fragmentação, a
pluralidade de vozes narrativas, a transição entre gêneros literários e a não-linearidade.
2 Existem mais obras, artigos e livros escritos por Ruffato.
Eles eram muitos cavalos, uma leitura da urbe contemporânea
A literatura contemporânea de Ruffato referente a Eles eram muitos cavalos inaugura
um novo momento na literatura ao romper com a forma tradicional do romance no século
XIX, e propor, assim, outra forma de recriar a realidade urbana, já que a modernidade:
[...] nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de
luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um
universo no qual, como disse Marx, tudo que é sólido desmancha no ar. (BERMAN,
2007, p.24)
O próprio escritor Ruffato (2002), destacou que a literatura que se quer é uma
literatura mais voltada para a perenidade, para a discussão sobre o homem no tempo,
necessariamente, vai discutir sobre a questão do desconforto do homem. Desta forma, o novo
modo de narrar passa pela linguagem que em alguns casos apresenta-se de forma tradicional e
cadenciado, mas que se transfigura e rompe com a linguagem tradicional. O projeto literário
de Ruffato funciona como possibilidade de diminuir a distância que existe entre a literatura e
seu tempo.
Essa multiculturalidade e essa guerra de relatos são coadjuvadas pela própria
geografia da cidade que sofreu modificações produzidas mais pela dinâmica da
comunicação e pelos circuitos financeiros que pelas indústrias localizadas nos
cinturões urbanos. Assim, mudam-se os usos do espaço urbano ao passar das cidades
centralizadas às cidades multifocais, policêntricas, onde se desenvolvem novos
centros. Há necessidade, portanto, do habitante re-situar-se nesse cidade
disseminada, de que cada vez temos menos idéia onde começa, onde termina, em
que lugar estamos. Tem-se, desta forma, baixa experiência do conjunto da cidade:
nos usos da cidade e nos imaginários, perdeu-se a experiência do conjunto: atores
tradicionais parecem ocupar-se de pequenos fragmentos. (GOMES, 1993, p.22)
Compreende-se então que autores como Ruffato da literatura contemporânea criam
em suas obras efeitos do real, mostrando por meio da literatura a realidade da sociedade
brasileira que se aproxima do que Schollhammer (2009, p. 54) denominou de novo realismo,
o qual ― “se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade social e
cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente como força
transformadora”
A prosa de Ruffato detém-se nas questões de contemporaneidade, tempo definitivo,
contextos sócio-políticos, e, por isso, de acordo com Schollhammer (2009) é mister haver o
questionamento do privilégio do realismo histórico como ‘janela’ para o mundo, a fim de
entender de que maneira a literatura contemporânea anseia criar efeitos de realidade, sem
precisar recorrer à descrição verossímil ou à narrativa causal e coerente, ou seja, o domínio
experimental da ficção do autor é o meio de desestabilizar a objetividade da representação
realista e, assim, os recursos narrativos utilizados por Ruffato, sendo um deles a
experimentação formal, é uma espécie de superabundância do real, operando uma
desestabilização dos modos tradicionais de representação ao mesmo tempo em que reveste de
um projeto ético comprometido com problemática de contexto marcado, na narrativa, por
claros índices de referenciais.
Pode-se reencontrar em Eles eram muitos cavalos um campo de experimentação
literária, pois as rupturas indicadas nos antigos livros vão ganhando consciência na medida
em que são assumidas de forma mais categóricas. E a cidade de São Paulo apresenta-se como
o terreno mais propício para tais experimentações e possibilidades gráficas, tais como,
tamanho da fonte, maiúsculas/minúsculas, negrito e itálico, na busca de uma linguagem capaz
de expressar, segundo Schollhammer (2007), a metrópole moderna e inscrever-se assim nas
experiências da vanguarda modernista, com técnicas futuristas, dadaístas, expressionistas,
cubistas, e surrealistas, como, por exemplo, a montagem, a polifonia, a colagem, e outras
técnicas que objetivam dar corpo à cidade como o espaço da simultaneidade de tempos
históricos distintos.
De um ponto de vista, absolutamente, descritivo, o romance é formado por 69
fragmentos que variam de tamanho, e cada fragmento traz uma solução de escrita própria,
conforme Schollhammer (2007) entre a narrativa e a poesia, e isolados, cada um por si,
poderia ser uma miniconto, um capítulo de uma narrativa mais longa, um poema em prosa,
uma anotação com unidades autônomas, e cada fragmento com um conjunto aberto, uma série
casual que não se fecha no início-meio-fim do enredo, mas forma uma estrutura rizomática
sem centro e sem sequencialidade casual interna.
O uso de fragmentos em Eles eram muitos cavalos privilegia assim a repetição,
criadora da diferença de identidade:
os 60 minicontos forma, em móbile, conjuntos provisórios, cujos fragmentos se
articula a outros, em novas configurações, compondo paisagens assustadoras ( “os
ônibus os caminhões os carros as luzes São Paulo Televisão ...”) (EEMC, p.15),
onde se movimentam os personagens da cidade. Captados por câmera que filma a
vertigem, são elas refrações de sujeitos solitários (“instalei-me num quarto, você se
lembra?, sexta-feira à noite, Hotel Amazonas, Avenida Vieira de Carvalho, lá
embaixo, barulho um restaurante italiano, outro, comida rápida árabe, carros, ônibus,
lá embaixo, na ruas transversais, eu sabia das prostitutas, dos meninos fumando
crack, dos assaltantezinhos pé-de-chinelo, eu sabia da noite, e deitei, mas não era
alívio que sentia, nem remorso, era não sei o quê, saudade, talvez [...]). (CURY,
2007, p.109, grifos meus)
Assim, sem valor ou interesse, seres à margem: o rapaz que infrige a lei para garantir
o presente do dia das mães, o operário que se espatifa na calçada em frente ao restaurante de
luxo, a jovem vendedora que é assaltada e assassinada, a menida de rua suja e faminta, a
senhora idosa que faz uma longa viagem de ônibus para encontrar o filho, e outros exemplos
que vão representando os Eles eram muitos cavalos, mas ninguém mais sabe a sua origem, ou
pelagem, são igualados na exclusão, e, sobretudo forçando sua presença repetida para o leitor.
Desta forma, demonstra a diferença do autor, Ruffato, ao incluir esses grupos da sociedade na
prosa brasileira contemporânea.
Diante disto, pode-se observar que Luiz Ruffato, elabora um realismo inicial, pois
traz para o texto a realidade de determinados signos textuais, que formam parte da escrita da
própria cidade e desta forma, em vez de significar a cidade, impõe a realidade da cidade na
escrita do romance. Assim, Ferreira (1993) apud Oliveira (2004):
Entre a imagem da cidade e o seu objeto não existe propriamente similaridade, mas
ao contrário, uma perversão do objeto, visto que se projeta como imagem algo que
não é, mas deveria ser, e assim, deve ser entendido. Na realidade, enquanto
linguagem, a imagem da cidade enfatiza seu caráter de signo representativo da
aparência da cidade, possível de ser concreta e ideologicamente construída, mas não
necessariamente similar à cidade que abriga o cotidiano dos seus habitantes e seu
modo de vida. (FERREIRA, 1993, p.225)
Na literatura brasileira percebe-se que as imagens da cidade, segundo Renato Cordeiro
Gomes (1994) justifica-se na medida que ler a cidade não consiste em reproduzir o visível,
mas torná-la visível, e consequentemente, a imagem da cidade torna-se um ambiente
construído pela imaginação e força dos homens, na qual se instaura as relações econômicas,
sociais e culturais entre o homem e o seu próximo e, principalmente entre o homem e a
própria cidade. E, diante disto, não se trata apenas de poder trazer a realidade para dentro da
narrativa, “senão levar a poesia à vida, reencantá-la, comprometer a escrita ao desafio do
índice e fazer dela um meio de intervenção sobre aquilo que encena ficcionalmente”.
(SCHOLLHAMMER 2007, p.72)
Considerando que a cidade é o lugar em que o fato e a imaginação teriam de se
fundir, aceitando, por outro lado, o fragmentário, o descontínuo, e contemplando as
diferenças, os discursos contemporâneos cenarizam e grafam a cidade, com sua
polifonia, sua mistura de estilos, sua multiplicidade de signos, na busca de decifrar o
urbano que se situa no limite extremo e poroso entre realidade e ficção. A cidade,
mais do que nunca, continua sendo uma paisagem inevitável. Estar nela é buscar
respostas para nossas perguntas, mesmo que nos encantemos. (GOMES, 1993, p.29)
Nos fragmentos 4, 34, 35, 45, 62, há a presença de recursos de repetição, de ritmo, de
rima e de aliteração, que se transformam em efeitos performáticos e ganham realidade
afetivamente. Assim, os traços estilísticos de Luiz Rufato são influência oral, seu ritmo
sedutor, e sua cadência hipnótica que acelera e desacelera, envolvendo o leitor de maneira a
acentuar o contraponto dialógico, o cruzamento entre os discursos e a ausência de
comunicação verdadeira. Um exemplo claro é no fragmento 4 “A caminho” em que o passeio
de carro para o aeroporto se configura no texto na monotonia rítmica da escrita: “(...)
lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga, na noite negra,
aprisionada, a música hipnótica, Tum-tum-tum, sensuais as mãos deslizam no couro do
volante, tum-tum, o corpo, o carro (...)”, interrompida pelos comentários anônimos: “mais
neguim pra se foder” do fragmento 11.
Os fragmentos de Eles eram muitos cavalos falam sobre: a violência, (13. “Natureza
morta”) assaltos (19. “Brabeza”; 39. “Regime”) exploração de menores (13. “Natureza
morta”; 29. “O paraíso”), tiroteios (30. “O velho contínuo”) desavenças familiares (20. “Nós
poderíamos ter sido grandes amigos”, 33. “A vida antes da morte”; 62. “Da última vez”),
desafetos da política (51. “Política”) os desgostos da vida (48. “Minuano”) a pobreza e a
miséria (9. “Ratos”; 23. “Chegasse o cliente”; 26.“Fraldas”) entre outras temáticas.
Diante disto, sendo a narrativa, pautada nas minúcias do cotidiano, aparentemente
simples, retrata as condições precárias da vida urbana de seus personagens, convertendo a
cidade numa alegoria dos vícios sociais. E assim, as lacunas, os espaços brancos e os cortes na
narrativa de Ruffato, alegorizam, além da incapacidade do ser humano de se sentir inteiro no
meio urbano, a incapacidade da linguagem de expressar o sentimento do homem nesse espaço
multifacetado. As alegorias urbanas, na obra, são concebidas sob o olhar crítico do autor
implícito que as percebe pelas ruínas e pelos cacos selecionados.
Eles eram muitos cavalos não constrói uma visão totalizante da realidade por
apresentar-se através de fragmentos de texto, orações, listas telefônicas e classificados criando
uma perspectiva lacunar do real que, a despeito do caos, potencializa a experiência subjetiva
de um real vivido e representado em seus restos, e neste sentido, à medida em que o romance
de Luiz Ruffato não deixa de concretizar a possibilidade de definir uma literatura que trabalha
com restos do real, narra, sem permitir um conhecimento do total deste real, a ação em
espaços marcados pela opressão, pela fragmentação e pelo estranhamento, marcando assim
literatura contemporânea brasileira.
ESPAÇO URBANO: um agente determinante da narrativa
O espaço constitui uma das mais importantes categorias narrativas, pois segundo
Reis e Lopes (1994, p.135) “o espaço integra, em primeira instância, os componentes físicos
que servem de cenário ao desenrolar da ação e à movimentação das personagens: cenários
geográficos, interiores, decorações, objetos, etc.” E em segunda instância, o conceito de
espaço é compreendido como translato quando apresenta o espaço social e psicológico.
A descrição espacial pode desdobrar-se em duas vertentes, primeiramente, o espaço
pode assumir, em termos de extensão, a largueza do espaço da cidade. Assim, Dalcastagnè
afirma que o espaço urbano é:
[...] um símbolo da sociabilidade humana, lugar de encontro e de vida em comum –
e, neste sentido, seu modelo é a polis grega. Mas é também um símbolo da
diversidade humana, em que convivem massas de pessoas que não se conhecem, não
se reconhecem ou mesmo se hostilizam. (DALCASTAGNÈ, 2003, p.34)
O espaço da cidade representa de forma metafórica a diversidade, a contradição, a
desarmonia, a confusão e o esfacelamento do mundo contemporâneo, e diante disto, a
narrativa brasileira contemporânea coloca a cidade não apenas como um cenário no qual se
desenrola um enredo, mas sim, o agente determinante da significação da narrativa como um
todo. Já que a cidade é um marco de organização social contemporânea, onde inúmeras
pessoas vivem e não se conhecem, e é esta cidade encontrada em Eles eram muitos cavalos,
de Ruffato:
45. Vista parcial da cidade
são paulo relâmpagos
(são paulo é o lá fora? É o aqui dentro?)
de pé a paisagem que murcha
a velha rente à janela
rosto rugas bolsa de náilon desmaiada no colo dentro coisas enroladas em
jornais vestido branco bolinhas pretas sandália de plástico fustigando o joanete
cabeços grisalhos olhos assustados nunca se acostumará ao trânsito à correria
ao barulho a corda canta na roldana o balde traz água salobra pouca o silêncio das
vacas mugindo a secura crestada entre os dedos do pé (RUFFATO, 2001, p.95)
Dalcastagnè (2003) afirma que o espaço urbano com o decorrer dos anos tornou-se
um dos grandes diferenciais na literatura, pois surge por meio da concentração de pessoas nos
centros urbanos, novos espaços, identidades e problemas para a representação. E, desta forma,
o espaço relacionado ao corpo, mostra claramente a situação vivida de milhares de brasileiros,
os quais a cidade que fica cada vez mais longe. Diante disto, a literatura contemporânea de
certa forma mostra a ausência de perspectivas:
Nessas ruínas, “eles eram muitos cavalos” indistinguíveis, em sua marcha cega; eles
são muitos cavalos no trânsito caótico da cidade, nas lacunas da escrita sem ponto
final: “sacolejando pela Avenida Rebouças o farol abre e fecha carros e carros,
mendigos vendedores meninos meninas carros e carros assaltantes ladrões
prostitutas traficantes carros e carros mais uma terça-feira fim de semana longe luzes
dos postes dos carros dos painéis eletrônicos dos ônibus e tudo tem cor cansada e os
corpos mais cansados mais cansados a batata da minhas pernas dói minha cabeça
dói” (WALTY, 2007, p. 96)
Assim, o espaço da urbe é compreendido como um espaço hierarquizado, pois
segundo Dalcastagnè (2003) não há espaço, numa sociedade hierarquizada, que não seja
hierarquizado e que não exprima as hierarquias e distâncias sociais, sob uma forma (mais ou
menos) deformada e, “sobretudo mascarada pelo efeito de naturalização que proporciona a
inscrição das realidades sociais no mundo natural: as diferenças produzidas pela lógica
histórica podem assim parecer surgidas da natureza das coisas.”(DALCASTAGNÈ, 2003,
p.43)
Ruffato (2002) afirma que o romance contemporâneo em determinados momentos
pode não mostrar indiferença ante o mundo e sua transformação, mas, sobretudo, a obra Eles
eram muitos cavalos mostra a estrutura que garantiria uma relação de permeabilidade com o
real por meio de uma perspectiva crítica de configuração, seja esta perspectiva na escrita de
seus restos, ou até mesmo nos restos de sua própria escrita.
A cidade de São Paulo aparece na obra de Ruffato como uma personagem principal e
seu espaço possui, estreitamente, uma relação com o tempo, submetido à dinâmica temporal
que caracteriza a narrativa Ruffatiniana. Diante disto, Pesavento leva-nos a compreender que
a cidade é o espaço acima do bem e do mal. A urbe é “uma personificação da modernidade,
que atrai e seduz, mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar” (PESAVENTO, 2002,
p.231):
Mas a cidade é a cidade, ou seja, é um ambiente em que o mecanismo se introduziu
não apenas nos trabalhos produtivos, mas regula também os deslocamentos, as
distrações e brincadeiras espirituosas. O tempo é dividido como deve ser, é o que
deve ser, nem rápido demais nem lento demais, pois atende às necessidades da vida
urbana. Os pensamentos que preenchem são mais curtos, não lançam raízes
profundas nos espíritos. (HALBWACHS, 1990, p.11.)
Logo, o espaço é duplicamente afetado, e, assim, em Eles eram muitos cavalos, a
cidade e seus “restos” se encontram com mais frequência. O dia que é descrito por Ruffato,
abriga variados personagens em um painel urbano em fragmentos e repleto de ruídos:
[...]
sacolejando pela Avenida Rebouças
o farol abre e fecha
carros e carros
mendigos vendedores meninos meninas
carros e carros
assaltantes ladrões prostitutas traficantes
carros e carros
mais uma
terça-feira
fim de semana longe
as luzes dos postes dos carros dos painéis eletrônicos
dos ônibus
e tudo tem a cor cansada
e os corpos mais cansados
mais cansados
a batata das minhas pernas dói minha cabeça dói [...] (RUFFATO, 2001, p.96)
Conseguinte, o espaço social da narrativa Eles eram muitos cavalos (2001)
configura-se principalmente, “em função da presença de tipos e figurante: trata-se então de
descrever ambientes que ilustrem, quase sempre um contexto periodológico de intenção
crítica, vícios e deformações da sociedade.” (REIS E LOPES, 1994, p.136).
– Não sou insensível à questão social irreconhecível o centro da cidade hordas de
camelôs batedores de carteira homens-sanduíche cheiro de urina cheiro de óleo
saturado de a mão os cabelos raros percorre (minha mãe punha luvas, chapéu, salto
alto para passear no viaduto do chá, eu, menino, pequenininho mesmo, corri na) este
é o país do futuro? deus é brasileiro?
Ontem um manancial hoje uma favela onde ontem uma escola hoje uma cadeia onde
ontem um prédio do começo do século hoje um três dormitórios suítes setenta
metros quadrados. (RUFFATO, 2001, p.37)
Dalcastagnè (2003) afirma que o autor do romance contemporâneo resolve acelerar a
movimentação de suas personagens, sabotando alguns elementos da narrativa tradicional,
como o encadeamento espaço-temporal. E, assim, para acompanhar seus protagonistas não
basta segui-los nas ruas, é preciso correr atrás deles pelos engarrafamentos da cidade, alcançar
as auto-estradas, tomar trens, aviões, navios, persegui-los por continentes e tempos diferentes,
esbarrando muitas vezes no sem-sentido de seu percurso, reflexo do sem-sentido de sua
existência:
cuidado cuidado cuidado cuidado cuidado cuidado
brancas vacas no verdor do pasto, sáfaras nuvens,roupa seca, carne seca, terras,
terras, o vento, o dia verdequente, a tarde azul-frienta, a noite de estrelas
empoeiradas, o mundo, mundogrande, que não se acaba mais nunca, e Ô vovó já
tamos quase a bexiga estufada, dói a barriga, as costas, Ai!, as escadeiras, Ui!, as
pernas, Ai! Ui!, sem posição, Alá, vovó, alá as luzes de São o filho esperando
Tantos anos! ganhar a vida em Sampaulo, no Brejo Velho Duas vezes só voltou, meu
Deus, e isso em solteiro, depois, apenas os retratos carreavam notícias, o emprego, a
namorada-agora-esposa, eles dois, a casa descostelada, os netos, e vamos então
esperar a senhora para passar o Dia das Mães com a nossa família e eu vou buscar
a senhora na rodoviária lembranças a todos do a bexiga caxumbenta, o intestino
goguento, como ler o olho do filho? saber se é feliz no trabalho, no casamento [...]
(RUFFATO, 2001, p. 17, grifos do autor)
A cidade de São Paulo é colocada como personagem principal, pela questão da
unicidade na obra, pois a cidade seria a junção das atitudes e inteirações das pessoas, que
aparecem na obra, entretanto não se reconhecem como atores sociais e por isso se encaixam
na posição de atores coadjuvantes, através do olhar da própria sociedade na qual estão
inseridos, pois as personagens não se encontram, apenas aparecem e desaparecem sem que
ninguém as veja, onde o homem é o cavalo na sua brutalidade, que estão caídos pelos cantos,
andando pelas caçadas, e lutando impetuosamente pela sobrevivência:
A seus olhos, caótica, a Praça da Sé espicha-se, indolente. Sozinho, perfila-se à
boca das escadas rolantes que esganam as profundezas do metrô. [...]
E, súbito, um como que monolito esmaga seu peito
abafando a sinfonia da tarde
explodindo-a em blecautes
alguns segundos? minutos? um par de sapatos um par de tênis solas gastas
aproximam-se bitucas folhas copos descartáveis pombos guardanapos palitos
papéis de bala poça de mijo [...] (RUFFATO 2001, p. 59)
Sabe-se que a maior parte das histórias presentes em Eles eram muitos cavalos
situam seus protagonistas a partir daquilo que eles consomem, do que sonham consumir o
mesmo do que não poderão consumir jamais” (DALCASTAGNÈ, 2003, p.35), mostrando,
desta forma, a sociedade contemporânea que tende a tratar seus membros como
consumidores, colocando o indivíduo no mesmo patamar de um canal sobre o qual os
produtos navegam e desaparecem:
19. Brabeza
Quatro tardes para o Dia das Mães e nem um puto no bolso. Tinha aviado um rádio-
gravador AM/FM CCE arrumado, ia adorar, ela que vive no reclame, não tem com
que se distrair...Ideal, mesmo, a televisão Toshiba vinte polegadas, som estéreo,
vídeo embutido. Horas várias perfilara na frente da vitrine Extra-Mappin da Praça
Ramos, no registro de preços, prestações, hum, que complicação! carteira assinada,
comprovação de endereço, RG, CIC, duas referências, hum, que complicação! Não,
haverá de dar um jeito, armar outra qualquer, a velha, coitada, nem exigente, aliás,
nem esperando nada, o que ganhasse, surpresa, de bom tamanho, aplaudiria. Bem,
então, à luta! Agora: onde cavar uns trocados? Brabeza despasseia. Lugar para bater
carteira é a Rua Barão de Itapetininga, caixas-eletrônicos. O povo agarra o dinheiro,
enfia no bolso, na bolsa, desembesta arisco, assustadiço. Mulher, mais melhor: é
marcar e ir atrás [...]. Dependendo, três viagens arrecada o suficiente para comprar o
rádio-gravador e comer um big mac, que é mais gostoso no McDonald’s da Rua
Henrique Schaumann, de troco. (RUFFATO, 2001, p.42)
Diante disto, a obra Eles eram muitos cavalos, narra a implosão da polis enquanto
espaço de atuação do contrato social. E, além disso, no espaço da cidade entrecruzam as
humilhações que os personagens subalternos sofrem. “São, elas também, violentadas por seu
apelo consumista, pelas barreiras impostas, pelo ressentimento diante do que não podem ter.”
(DALCASTAGNÈ 2003, p.35)
No espaço urbano da narrativa contemporânea, segundo Dalcastagnè (2003),
deparamos com o lugar da cidade em nossas vidas e com o não-lugar de muitas vidas em
nossas cidades:
O mapa que procurávamos talvez não traga mais que alguns rabiscos, desenhos sem
muita continuidade, que precisam ser afastados de nossos olhos para que
consigamos ver ali algo reconhecível. E esse reconhecível pode ser nosso próprio
rosto, confuso, assustado, meio caricato até. Afinal, somos nós que preenchemos os
vazios da cidade, nós que a fazemos existir. Somos responsáveis por suas injustiças,
por sua violência, sua segregação. Somos culpados pelo que não queremos ver.
(DALCASTAGNÈ, 2003, p.50)
Desta forma, através da análise de Eles eram muitos cavalos compreende-se a imagem
da cidade é contemplada através das condições de vida na Grande São Paulo, por seus
anceios, temores, e questionamentos, onde se percebe tanto a cidade de São Paulo pelo olhar
georáfico, tanto um olhar interno, a São Paulo de cada personagem, perceptível no trecho ―
“são paulo relâmpagos/ (são paulo é o lá fora? É o aqui dentro)‖” (RUFFATO, 2001, p. 93)
Considerações finais
A partir das discussões realizadas chega-se à constatação de que um dos temas
intrigantes da estrutura narrativa na literatura brasileira contemporânea -aqui compreendida a
partir do século XX -, é a questão do espaço, mais especificadamente, o espaço urbano, pois
traz novas personagens, problemas e identidades para a representação. E, assim, surge a
questão das mazelas sociais, a violência, a correria, a fragmentação, a falta de tempo, como,
por exemplo, a pressa para o trabalho mostra, desta forma, que tudo tem seu tempo, e quase
não se tem tempo para nada.
Nas narrativas contemporâneas não há só uma historia, há várias. A cidade já não é
mais uma urbe centralizada e sim multifocal, policêntrica. Não existe somente um plano, uma
personagem, um lugar. São variadas vozes e ideologias. Há sim o lugar da cidade, mas há
também o lugar de cada personagem dentro desta cidade.
A obra Ruffatiniana aqui analisada Eles eram muitos cavalos, consegue narrar um
espaço que se coloca como personagem protagonista, - a cidade de São Paulo. Através da
correria da grande metrópole que o enredo vai sendo apresentado, ao trazer para a obra uma
unicidade, já que este espaço consegue contemplar as ações das pessoas que se encaixam
como coadjuvantes, pois o que os descreve é olhar da sociedade em que estão inseridos.
Referências
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.p. 24
CURY, M. Z. F. Ética e simpatia: o olhar do narrador em contos de Luiz Ruffato. In:
HARRISON, Marguerite Itamar (org), Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance
Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Horizonte, 2007. p. 107-118.
DALCASTAGNÈ, R. Sombras da cidade: o espaço na narrativa brasileira contemporânea.
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