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(RE)PENSANDO A LEI Nº 11.340/2006 SOB A LUZ DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: quem é Maria?
Filipe Martins, Caren Cidreira e Mariana Sampaio1
Resumo Este artigo tem por finalidade contribuir para o alargamento do
complexo debate acerca da violência de gênero e a
possibilidade de aplicação da Lei “Maria da Penha” aos que
possuem o gênero feminino. Inicialmente versa sobre o
conceito de gênero e a (in)diferença ao conceito de sexo a
partir dos entendimentos de Judith Butler. Logo após, busca-se
o alcance da aplicação da Lei 11.340/2006 no combate a
violência de gênero. E, por fim, evidenciar e (re)pensar
seletividade das vítimas protegidas pela referida lei, em razão
da sua heteronormatividade.
Palavras-Chave: Conceito de gênero. Heteronormatividade.
Lei “Maria da Penha”.
Abstract This article has the purpose of contribute to widen the complex
debate about gender-based violence and the possibility to apply
“Maria da Penha” Law to people who has feminine gender. At
the beginning this article handles about the gender’s concept
and its (dis)similarity to sex’s concept through Judith Butler’s
thoughts. Right after we investigate about the reach of Law
11.340/2006’ s application to the combat against gender-based
violence. And at last this article intends to show and (re)think
about the selectivity of protected victims by the mentioned law
because of its heteronormativity.
Keywords: Gender’s concept. Heteronormativity. “Maria da
Penha” Law.
1 Formação Superior. Estudantes de Graduação. Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. E-mail:
1. INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher é um fenômeno secular, fruto de relações
historicamente desiguais em consequência da sociedade patriarcal que se formou no
decorrer das gerações, desigualdades presentes em nossa sociedade que não se limitam ao
gênero, mas a raça, sexualidade, classe, dentre outros fatores que moldam a coletividade
nos dias contemporâneos. Dentre tantas formas de violência em razão das desigualdades,
destaca-se no presente artigo a violência de gênero, em regra entre homem (sujeito ativo) e
mulher (sujeito passivo) de tal relação, todavia, não se limitando a tal problemática, que
consequentemente, engessaria toda a discussão que envolve o gênero e os seus
desdobramentos.
Violência de gênero é um conceito amplo, que não se limita a mulheres, trata-se
de um mal que atinge crianças, adolescentes, adultos de ambos os sexos, sexualidades e
gêneros. É fato que nos moldes da sociedade patriarcal que se vive, o homem detém o
poder de determinar as condutas sociais que são toleradas pela sociedade. No entanto,
percebe-se que tal doutrinação, muitas vezes, ocorre por mulheres a outras mulheres, ou
por vezes, tem como vítimas da violência os homens. E, neste contexto apresentado surge
em 2006 a Lei nº 11.340/2006, também chamada de “Lei Maria da Penha”.
A lei Maria da Penha busca intensificar o combate à violência de gênero, e, por
conseguinte, os debates acerca do tema. É notório os benefícios trazidos pela referida lei, e
os avanços alcançados através da mesma, pelas discussões, e do maior rigor do Estado ao
punir os agressores.
Por outro lado, questiona-se o alcance da lei, a partir das discussões existentes
sobre sexo, gênero, e sexualidade, pois, o que ainda se percebe é a heteronomartividade da
lei Maria da Penha, visto que sua aplicação ainda se limita, em muitos casos, a mulheres
que estão dentro de determinados padrões, ditos aceitos pela nossa sociedade patriarcal,
então, questiona-se, a partir do estudo da lei 11.340, quem é Maria?
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Surgimento da Lei Maria da Penha
A Lei nº 11.340 de 2006, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”,
ganhou tal nome devido à conturbada vida de Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu
diversas agressões pelo seu próprio marido, como ter ficado paraplégica por ter sido
baleada por ele. Por tal motivo, Maria da Penha travou uma árdua batalha a fim de que seu
agressor pudesse ser condenado pelos atos praticados contra ela. O processo contou com
vários problemas, como alegação de irregularidades pela defesa, o que acaba postergando
o sofrimento de Maria da Penha, enquanto seu marido continuava solto (CFEMEA, 2009).
Quando finalmente a Justiça brasileira condenou seu marido por dupla tentativa
de homicídio, este graças a sucessivos recursos de apelação conseguiu ficar em liberdade.
Assim, restou a Maria da Penha com ajuda do Centro pela Justiça e o Direito Internacional
(CEJIL), entidade não governamental aliada a OEA, pleiteou uma denuncia contra o Brasil a
respeito do caso e esta foi acatada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (MARANHÃO, 2010), e assim esta condenou o
Brasil, bem determinou que este deveria adotar medidas para coibir a violência domestica
contra as mulheres no país.
Deste modo, o governo brasileiro sancionou a Lei 11.340 no ano de 2006,
dando-lhe o nome de Lei Maria da Penha, que trouxe inovação ao ordenamento jurídico
brasileiro, uma vez que criou mecanismos para evitar a violência doméstica e familiar, bem
como proteger a mulher que é vítima desse tipo de violência, algo que até então não existia,
de modo que promove uma ruptura aos valores sociais que naturalizavam a violência
doméstica contra a mulher, moldados pela ideia de supremacia masculina e subordinação
feminina, justificados por equivocados pressupostos biológicos que entendem a mulher
como inferior, frágil, com menos força física e também racional, e por sua natureza
doméstica, deve ser dominada, pois requer que alguém a proteja, e para tal às vezes
precisa de correções, sendo passiva de violência, e estas ideias errôneas acabam por
ensejar a violência no dia a dia de tantas mulheres no Brasil (CUNHA, 2014).
2.2 A (in)diferença entre sexo e gênero
A dualidade sexo/gênero parte da ideia de que o sexo é algo natural e o gênero
é o que é socialmente construído para que a pessoa seja, e isto é o cerne da
problematização de Judith Butler. Simone de Beauvoir (1980, p. 277) inicia os estudos sobre
gênero, ao passo que questiona a falta de justificativas na história sobre a diferenciação
entre “fêmea” e “mulher”, e ainda o peso dessas definições sobre os papéis cheios de
imposições já definidas a cumprir. Tratar o sujeito com termos já instalados faz-se entender
que o ser humano se constitui biologicamente e culturalmente por tais somente, e definir
alguém como fêmea refere-se ao sexo, que é sua constituição biológica, e o que define
alguém como mulher é o gênero, sua constituição cultural. Esta regra define os sujeitos em
sociedade e os condena a estar eternamente condenados com a condição que nasceram,
bem como as atribuições ou características, como um processo imutável e assim “o gênero
não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo
previamente dado”, […] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o
qual os próprios sexos são estabelecidos” (BUTLER, 2010, p. 25).
Ainda que a referida lei tenha sido criada para proteger a mulher, nos dias atuais
não se pode mais ignorar a realidade social, e esta possui novos conceitos de família,
independentemente do sexo dos parceiros, visto que se trata da junção de pessoas em que
exista afeto.O poder judiciário lotado de demandas acaba por pressionar aos outros poderes
medidas no âmbito homossexual quanto ao que se refere juridicamente, as quais o poder
legislativo e executivo se mantem inerte, permanecendo a ideia da heteronormatividade, ao
qual se entende como a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo
casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família
(esquema pai-mãe-filho (a) (s) (FOSTER, 2001, p. 19).
Deste modo, a homossexualidade é frente oposição à hierarquia heterossexual,
e esta última é legitimada através da opressão, da violência, esmagando a
homossexualidade enquanto possibilidade de manifestação legítima da sexualidade
humana, o que deve ser combatido veementemente.
Com as críticas à heteronormatividade, teóricos e teóricas queer sugerem que é fundamental uma mudança efetiva que desestabilize e destrua a lógica binária de gênero e seus efeitos controladores: a exclusão, a hierarquia, a classificação, a dominação, a segregação. Para empreender tal mudança, a teoria queer tem como construto metodológico a desconstrução e a contestação como métodos de análise e crítica sociocultural (BORBA, 2009).
A lei está inserida através da teoria de gênero, à qual se acrescem todos os
direitos humanos assegurados de um modo geral. Trata-se, assim, de se atentar para as
particularidades das mulheres, do sexo feminino e, de aquém, procura gerar igualdade
real, e não apenas formal em relação aos homens, e a Lei Maria da Penha é tentativa
primária para tal. A sua aplicação cabe então não a mulher entendia de forma restrita, mas
englobando todos que assim se compreendem, logo que “descabe deixar à margem da
proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher” (DIAS, 2012, p. 61-62), bem como
os que assim não se reconhecem também, vez que:
No momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial proteção (DIAS, s.d.).
Nesse mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes (2010) aduz que “as medidas
protetivas da lei Maria da Penha podem (e devem) ser aplicados em favor de qualquer
pessoa (desde que comprovado que a violência teve ocorrência dentro de um contexto
doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo)”, ou seja, nada importa se esta vítima é
transexual, homossexual.O judiciário brasileiro não protege de forma ampla gêneros, mas
foca na proteção dos entes, seja mulher ou homem, compreendidos estes de forma
restrita, como somente o sexo de nascimento somente, e assim transexuais não são
incluídos, sendo então marginalizados, não possuem essa proteção que deveria ser para
todos.
A discussão sobre papéis socialmente instruídos e designados a homens e
mulheres, bem como o entendimento das influências e consequências que esse sistema
de submissão feminina e dominação masculina chamado patriarcalismo, e tal expressão
advém da palavra família, e esta foi criada pelos romanos para designar um novo
organismosocial, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de
escravos, como pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles”
(ENGELS, 2000, p. 61). Baseia-se em concepções arcaicas de família, bem como gênero,
sexo e sexualidade, em que todos deveriam ser submissos ao homem da casa, o pai, a
figura paterna que é detentora do poder sobre toda a família, e sua ruptura requer estudos
acerca de conceitos de gênero.
A transsexualidade é uma inadequação do gênero compreendido pela pessoa
com seu sexo biológico, ou seja, a exemplo, uma pessoa nasceu com órgão reprodutor
feminino, logo se entende que esta seja mulher, mas tal pessoa nunca se percebeu como
tal, mas se sente como sendo do sexo masculino. Assim, “transexuais sentem que seu
corpo não está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem corrigir isso
adequando seu corpo ao seu estado psíquico. Isso pode se dar de várias formas, desde
tratamentos hormonais até procedimentos cirúrgicos.” (JESUS, 2012, p. 09) e Berenice
Bento (2008, p. 18) afirma que “a transexualidade é uma experiência identitárias,
caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”.
2.3 Violência de gênero
Violência pode ser definida como o uso da força física, psicológica ou intelectual
para obrigar alguém a fazer algo contra sua vontade, bem como impedir a manifestação de
desejo e vontade de outrem. Trata-se de meio utilizado para manter a outra pessoa sob seu
domínio (TELES; MELO, 2003, p. 15), bem como pode é ruptura de qualquer forma de
integridade da vítima, seja de forma física, psíquica, sexual ou moral (SAFFIOTI, 2004, p.
17). Sendo isto uma clara violação de direitos, o que deve amplamente combatido. Ao que
se refere à violência de gênero, esta refere-se à algo enraizado na cultura, logo que trata da
relação de poder, dominação do homem sobre a mulher, em que esta é totalmente
submissa, vez que esta cultura foi consolidada ao longo da história e reforçada pelo
patriarcado (TELES; MELO, 2003, p. 18).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra
a Mulher, comumente conhecida como Convenção Belém do Pará, define violência contra a
mulher como “qualquer ato de violência baseada na diferença de gênero, que resulte em
sofrimento edanos físicos, sexuais e psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos,
coerção eprivação da liberdade, seja na vida pública ou privada” (SOARES, 2005, p. 14).
Para tal, resta claro que o homem assim é o agressor, dominador e
repreendedor, e a mulher, o indivíduo do sexo feminino, é o principal alvo dessa violência.
Isto é não é apenas um fato da sociedade moderna, mas algo que já acontece há muito
tempo, uma vez que as diferenças entre homens e mulheres têm sido ordenadamente
transformadas em justificativas para as desigualdades em detrimento do gênero feminino, e
assim se tem a violência contra mulher, na esfera familiar e doméstica, a forma mais severa
de apresentação dessa ideia autoritária de subordinação feminina. Assim, a violência contra
a mulher é aquela praticada pelo homem contra pessoa do sexo feminino, apenas por uma
condição específica: ser mulher.
A violência pode ocorrer de forma física, sexual, psicológica, patrimonial ou
moral, como estão enumeradas no art. 7º, incisos I a V da Lei 11. 340/2006, e pode ocorrer
em qualquer lugar do mundo, bem como nas mais diversas classes sociais, raças, gerações,
etnias, grupos sociais, relações, uma vez que se trata de um problema social, não podendo
assim ser entendido como resultado de problemas financeiros, dependências químicas ou
outros fatores como muito se entendia. A Lei busca proteger e garantir os direitos dessas
mulheres vítimas de violência, desde que no âmbito doméstico, familiar,e
independentemente de orientação sexual, mas referindo-se ao gênero feminino, e ao usar o
termo “mulher”, refere-se aquela que possui em seu registro civil o sexo feminino. Refere-se
refere-se a “mulher” especificadamente, seja em casos heterossexuais, mas também as
mulheres em relações homoafetivas, mas deixa de incluir pessoas que não nasceram
mulher, como os transexuais por exemplo.
A violência de gênero surge a partir da ideia na qual homens e mulheres não
possuem direitos iguais, sendo o primeiro sujeito de direitos enquanto o ultimo apenas
objeto na relação. Essa violência pode ser compreendida como uma violência física, moral,
mental, intelectual ou social, tais espécies foram trazidas pela lei 11.340/06, conforme
estabelece o art. 2º da referida lei:
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e
facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (grifo nosso).
Primeiramente, chama a atenção a necessidade de o legislador ressaltar que “a
mulher goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”, traduzindo
perfeitamente os reflexos da sociedade patriarcal vigente. Ou seja, é necessária uma lei
para afirmar que a mulher é sujeito de direitos iguais aos homens, vale lembrar que a
Constituição da República de 1988 já trazia essa ideia 18 anos antes da lei 11.340/06,
estabelecendo em seu art. 5º, I que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (grifo nosso).
Além disso, é importante entender que a “violência contra a mulher” não
representa o oposto da “violência contra o homem”, e tampouco que a violência contra a
mulher tem somente como sujeito ativo o homem. À violência contra a mulher não se limita
a agressão, mas remete a relações seculares, patriarcais de gênero e a desigualdade que
há em razão de identidade, sexualidade e sexo.
2.4 Heteronormatividade e violência de gênero sob a perspectiva da Lei “Maria da
Penha”
A heteronormatividade pode ser entendida como uma violência a todos
aqueles que não observam as regras da sexualidade “normal”, ou seja, a todos aqueles que
não são heterossexuais. O termo “hetero” tem origem grega, que significa “diferente”,
enquanto “norma” vem do latim “esquadro”, trata-se de um preceito, conjunto de regras.
Dessa forma, entende-se heteronormatividade a imposição de um conjunto de
regras, normas que devem se enquadrar aos ideais heterossexuais, erroneamente
chamados de “normais” na sociedade, e ir contra tal discurso, ideologia, resulta na
marginalização, opressão e discriminação, tanto dos “anormais” que não se enquadram no
ideal de sexualidade imposto, quanto aos que são simpatizantes a causa (LIMA, 2015).
Dentro da ideia de heteronormatividade trabalhada neste capítulo, busca-se a
análise da lei 11.340/2006. É indiscutível, inegável os reflexos positivos da lei “Maria da
Penha”, a partir da positivações e consequências da violência contra a mulher foi possível
destacar mais o assunto, oportunizar debates acadêmicos e sociais e acordar a sociedade
para algo iminente que com o passar dos séculos se tornou banal.
Ainda não é possível (e nunca será) a diminuição de práticas delitivas através da
punição, e com a lei 11.340/2006 isto não seria diferente, em que os relatórios do IPEA
(Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada) mostra que em 10 anosda lei, verificou-se
apenas uma queda de 10% de homicídios em decorrência da violência de gênero contra a
mulher. Em outras palavras, percebe-se que a lei “Maria da Penha” é muito faz eficaz em
uma perspectiva socioeducativa, por fomentar os debates acerca do tema, do que sob uma
perspectiva punitivista e repressora, onde os dados mostram sua eficácia mínima, quase
inexistente.
Feitas as ressalvas quanto a importância da lei em questão, é necessária uma
reflexão acerca da mesma, que em vários momentos revela padrões heternomartivos,
reproduzidos pelos operadores do direito. Partido para o texto normativo da lei, sua
introdução traz uma boa síntese da Lei Maria da Penha:
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. (grifo
nosso)
Durante todo o texto da referida lei uma coisa fica muito clara: Trata-se de
violência contra a mulher; o problema é que em nenhum momento a lei diz o que é mulher.
Segundo Simone Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se”, enquanto isso Judith Butler
defende que o que define o sexo feminino e masculino não é como nascimentos, o corpo e o
sexo são historicizados, e, portanto, o que define homens e mulheres são o seu gênero,
este socialmente construído (OLIVEIRA, 2010).
A partir do surgimento da lei em questão, popularmente chamada de Lei Maria
da Penha intensificaram-se os debates acerca da caracterização do gênero feminino, dentre
as ideias defendidas uma está eivada de heteronomartividade, a mesma afirma que “mulher”
é quem possui o sexo natural feminino, possui o gênero feminino e é heterossexual. A
segunda corrente fundamenta de forma contrária a primeira, afirma que o sexo é natural,
mas o gênero é socialmente construído, sendo assim, quando a legislação visa a proteção
da “mulher” refere-se à do gênero feminino, surgindo então a celebre frase de Simone
Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. A terceira corrente surge a partir das
fundamentações de Judith Butler mas que ao invés de construir o conceito de sexo e
gênero, propõe a desconstrução dos conceitos existentes e defende que o gênero nunca
derivou do sexo, e ao mesmo tempo os mesmos nunca foram distintos, pelo contrário, o
sexo natural que deriva do gênero socialmente construído, o primeiro é compreendido
através do segundo (BUTLER, 2015).
Após a Constituição Federal de 1988, a partir da nova concepção de Estado
democrático de direito, abriu-se o leque de garantias e direitos fundamentais, individuais e
sociais. Dentre os princípios radiados pela Constituição, encontra-se o da isonomia ou
igualdade, que busca a paridade entre homens e mulheres, tanto formal (todos são iguais
perante a lei) quanto material (tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma
desigual na medida de suas desigualdades).
Porém, mesmo após a iluminação dos princípios constitucionais sobre o
ordenamento jurídico brasileiro, a violência contra a mulher permaneceu, sem a real
proteção a mulher, tampouco àqueles que possuem o gênero feminino ou as relações
homoafetivas. Diante disso, a lei 11.340/2006 fora criada como resposta a tal violência, e
principalmente como resposta a pressão exterior a de(mora) legislativa do Brasil ao amparo
a esta classe historicamente marginalizada (LIMA, 2015).
A heteronormatividade é uma forma ainda atual, dominante de ideologia, em que
enseja padrões a serem seguidos ao que se refere à sexualidade, em que se reproduz
apenas práticas heterossexuais, ou seja, apenas relações com sexos opostos, casamento
monogâmico, criação da família tradicional com pai, mãe filhos, e qualquer coisa diferente
disto não é aceito, tendo assim uma espécie de compulsoriedade à heterossexualidade,
sendo um imperativo inquestionável pelos membros da sociedade a fim de legitimar práticas
heterossexuais como apenas esta sendo corretas (FOSTER, 2001), o que enseja
recriminação de práticas homossexuais, de modo que a lei então define seus sujeitos
apenas aos que se enquadram nesse padrão hétero, uma vez que o sexo estaria dividido
em apenas duas categorias, bem como as pessoas. Isto fomenta ainda mais a dicotomia
entre mulheres e homens, homossexuais e heterossexuais, sexo frágil e sexo forte, etc. São
estabelecidas assim as desigualdades, através da hierarquização do poder masculino sobre
a mulher, e isto influencia os padrões normativos, já implantado na sociedade, reforçado
pelo senso comum, discursos religiosos ou até mesmo duvidosas teses científicas que
buscam fundamentos biológicos para tal.
Deste modo, a heteronormatividade é baseada nas instituições sociais
existentes na sociedade, influenciado e sendo influenciado pelo modo de vida, cultura,
visões de mundo do que se define como ser humano, e este na sociedade atual é entendido
como heterossexual, “cidadão de bem”, de casamento monogâmico, fiel, frequentador
assíduo da igreja e executor da moral e dos bons costumes, e este é o padrão. O
ordenamento jurídico brasileiro busca proteger apenas este padrão em sua maioria, e este
sistema normativo afeta toda a sociedade, deixando de lado aqueles que não se enquadram
nas características anteriores, e a norma é mecanismo disciplinar do corpo e regulador da
população nesse sentido, visto que a heterossexualidade se legitima através da opressão da
homossexualidade, da supressão desta enquanto possibilidade legítima de manifestação da
sexualidade humana.
A heteronormatividade refere-se à repetição de atos que criam a identidade
humana através de um padrão estabelecido como ideal e único, mas estes são alheios à
realidade, sendo perfomativos segundo Butler, que assim os define que “a essência ou a
identidade que pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por
signos corpóreos e outros meios discursivos” (BUTLER, 2005, p. 21), e esses atos de
gênero e sexualidade são regulados por normas que estabelecem como homens e mulheres
devem ou não agir, ou seja, o gênero aqui é definido não através do aparelho sexual
biológico, mas através de um discurso que o define e anuncia tal como sexuado.
Assim, pessoas que são se encaixam no padrão heteronormativos jamais podem
ser deixadas de lado, sendo estes também sujeitos de direito que devem ser considerados
como o são, como corpos desviados do padrão e que jamais estarão adequados a este.
Deste modo, a Lei Maria da Penha foi um grande avanço na legislação brasileira, pois
incluiu pela primeira vez a existência de uniões homoafetivas no sistema jurídico brasileiro, e
ao afirmar que esta lei refere-se a toda mulher, independente de orientação sexual, traz
respaldo a estas relações, plenamente reconhecidas como entidades familiares.
Apesar disso, ainda há muito a ser repensado, uma vez que a lei até pouco
tempo possuía entendimento restrito da palavra “mulher”, em que a definia apenas aquela
do sexo feminino, que nasceu com o órgão reprodutor feminino somente seria a vítima, mas
em função da referência da própria lei em relação à indiferença a orientação sexual da
vítima, há novos entendimentos jurisprudenciais ao reconhecimento da aplicação da lei a
mulheres transexuais, já que a lei refere-se à identidade de gênero do sexo feminino, e
assim o juiz Alberto Fraga, do I Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher da comarca de Nilópolis, concedeu a um transexual, pessoa tal
que se identifica com gênero diverso do sexo designado em seu nascimento, o direito de ter
medidas protetivas garantidas pela referida lei, e assim afirmou quanto ao reconhecimento
desta transexual como sujeito passivo legítimo desta:
Com relação ao transexual, tem-se que esse possui uma necessidade íntima de adequação ao gênero com o qual se identifica psicologicamente, tanto física quanto socialmente. Neste sentido, deve se concluir que o transexual deve ser visto como pessoa do gênero feminino, devendo ser dito que o procedimento cirúrgico ou a alteração registral não podem ser determinantes para que o transexual seja considerado pertencente ao gênero com o qual ele já se identifica intimamente.
Erroneamente se entende que o transexual sendo de sexo masculino não
poderia sofrer violência de gênero, mas antes desta definição simplista existe a identidade
do sujeito, o gênero com o qual este se identifica, definido por este e nem sempre está de
acordo com o sexo de nascimento, portanto, refere-se ao sentimento da pessoa em relação
ao seu corpo e suas características, e para tal, o juiz citado anteriormente defendeu que:
Em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, é imprescindível que a livre escolha do indivíduo, baseada em sua identidade de gênero, seja respeitada e amparada juridicamente a fim de se garantir o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Entendimento diverso a esse configuraria verdadeira discriminação, deixando em desamparo o transexual, o que não pode ser chancelado por esse juízo
Observa-se com certa frequência que a doutrina e jurisprudência, em muitos
casos, assumem para si a responsabilidade da melhor interpretação em respeito à
constituição, quando o legislador se faz omisso. Definir o conceito de mulher não é possível,
qualquer definição levaria a um grande reducionismo eivado de equívocos.
Homens e Mulheres não são seres que não possuem essência que os
caracterizam, a sociedade é historicizada de modo que qualquer conceito ou definição dos
mesmos recairia na metafísica. Portanto, busca-se a proteção a mulher, não a sua
conceituação, mulher, segundo a doutrina moderna constitucionalista é aquela que se vê
como tal, afinal, ninguém é mulher, torna-se.
3 CONCLUSÃO
Observou-se durante o presente trabalho a complexidade do tema discutido, ao
ponto que, mesmo após extenso debate, não se pode chegar a uma posição unânime,
principalmente frente ao controvertido poder legislativo, que diverge sobre a definição do
gênero.
Inicialmente, fez-se necessário traçar um panorama geral acerca do discurso do
gênero, e a quem serve a sua construção heteronormativa, ou a desconstrução do mesmo a
partir das fundamentações de Butler. Paralelamente a isso, questiona-se a aplicação da Lei
Maria da Penha para além do sexo natural mulher, tal extensão decorre do gênero, que
socialmente construído ampliar-se-á o leque de amparo maior através desta conceituação,
e, consequentemente, divergem os tribunais quanto à amplitude da aplicação.
Mostrou-se ainda que apesar dos avanços, pouca foi a efetividade da Lei
11.340/2006 em conjunto com o princípio da igualdade, isto porque, apesar da quebra de
conceitos e as mudanças de paradigmas alcançadas através dos movimentos trans a
de(mora) legislativa prejudica gravemente os progressos conquistados pelos grupos LGBTT
frente a uma sociedade e juristas completamente positivistas, presos ao civil law.
Conclui-se que a lei “Maria da Penha” (11.340/2006), sob a luz do princípio da
igualdade previsto da Constituição Federal, deve ser analisada de forma que proteja o maior
numero de vulneráveis possíveis, e tal vulnerabilidade não pode ser avaliada de forma
biológica, faz-se necessário o viés social sob a luz da constitucionalidade da lei, ademais,
expressa o art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 2014, p. 13): Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade, à igualdade, à segurança e a
propriedade”.(Grifo Nosso).
REFERÊNCIAS
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