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1 O “Renascimento” do Direito Romano João Miguel Parada Ochoa

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O “Renascimento” do Direito Romano

João Miguel Parada Ochoa

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Trabalho para apresentação na aula de orientação de Direito Romano.

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1. O renascimento do Direito Romano1

Antes de proceder propriamente à análise do tema que me proponho estudar

queria colocar uma questão. Qual é o motivo para o direito romano ter vigorado tanto

tempo, e ainda nos ter marcar com a sua tradição? Penso que a resposta a esta pergunta

é a reforma cultural que os Romanos transmitiram durante a expansão do império, mas,

principalmente, como nota Abelardo Lobo na esteira de Jhering foi o facto de o direito

romano se ter realizado, isto é: a capacidade, utilidade ou compreensão para conseguir

transformar princípios abstractos em regras concretas2.

Não há, como veremos quando falarmos da experiencia Nacional, um

renascimento do direito uma vez que o direito romano vulgar continuou a existir no

ocidente. “Os ordenamentos jurídicos baseavam-se nos resíduos do direito romano

imperial e das leis romanas dos povos bárbaros” (Wieacker 2004).

Este “renascer”, na expressão comummente utilizada, ou “sobreviver” na

expressão utilizada por Sebastião Cruz3 ocorre simultaneamente no Oriente e no

Ocidente.

No oriente é feita, em primeiro lugar, uma colectânea de textos mandada fazer

pelo Imperador Romano do Oriente Justiniano4 que vigora sozinho no Império até ao

séc. VIII. Após a queda do império em 1453 vai continuar a existir como direito Grego-

1 Tive imensos problemas ao sistematizar o texto. “Sed multum longo interuallo sunt ista simili; nec tota enim simul sonat quaelibet uox, quia per tempora tenditur et producitur et aliud eius prius sonat aliud eius prius sonat aliud posterius, et omnis uisibilis tamquam intumescit per locus nec ubique tota est.” (Agostinho 2001). Outra grande dificuldade foi a delimitação do objecto, optei pela mais ampla e incluí, para além das escolas da Idade Média, o estudo da criação do Corpus Iuris Civilis apesar de ter feito, nesta parte, uma exposição bastante sucinta. A análise feita neste trabalho vai só até à escola dos Comentadores e na parte em que nos referimos ao caso Português, apenas falamos do período de dominação romana. Esta escolha foi feita por dois motivos: a análise já profusamente desenvolvida na cadeira de História do Direito e a falta de tempo ocasionada pelo esquecimento do prazo para entrega do presente trabalho.2 (Lobo 1931, Vol. III, p. 9)3 (Cruz 1984, p. 89)4 Este tema será desenvolvido infra

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Romano que vai vigorar e orientar a produção jurídica na Grécia, Turquia, Roménia,

Rússia… (Cruz 1984) e (Glissen 2003).

No ocidente continua a vigorar o direito Romano vulgar contudo não há um

aprofundamento do Direito Romano clássico.5

Continua a ser estudado mesmo após a queda do império do Ocidente (em 476).

São deste tempo vários comentários ao direito romano compilado o Corpus Iuris Civilis

sendo as obras de maior vulto são a Écloga no séc. VIII; os Basílicos 6 no séc. X e o

Hexábiblos7.

O direito Romano era ensinado nas escolas monásticas e episcopais, por causa

da dependência eclesiástica em relação ao Ius Romanum. Contudo este era estudado

como ramo da gramática e não como ciência autónoma (Cruz 1984). Pensa-se que

outras escolas não eclesiásticas ligadas a Constantinopla como Ravena, Pavia…

também ensinassem Direito Romano. A escola de Ravena teria sido um importante

transmissor da cultura jurídica Oriental que atinge alguma preponderância no séc. VII e

no inicio do séc. IX e se extingue em meados deste século (Cruz 1984).

O direito Romano clássico ressurge em todo o seu esplendor, no ocidente, pela

mão de Irnérius no séc. XII.

1.1. Obras Pré-Justinianeias

A partir do séc. IV sentiu-se uma especial falta de textos jurídicos clássicos. Esta

falta deve-se, segundo Sebastião Cruz8 a vários factores:

a) Raridade dos textos clássicos provocada verbi gratia pelo

desaparecimento e deterioração física das edições existentes; dificuldade

5 Assume-se aqui esta expressão com todas as críticas que ela contém. De facto direito Romano Clássico foi o direito da Urbe, no Império Bizantino e durante a Idade Média estes textos são adulterados quer pela ignorância filológica dos da Idade Média (criticada pelos do mos galicus) quer pelos tribonianismos dos segundos.6 De as = Rei ou seja os direitos do Rei7 De aseis + s = livro. Atribuído a Constantine Harmenopoulos e composto por seis livros, era uma compilação de legislação existente acompanhada de comentários do Autor. Eram organizados por temas. Manteve-se vigente até ao Código Civil Grego de 1946 (Foudation of the Hellenic World s.d.).8 (Cruz 1984, p. 403) e também (Petit 1913)

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que os textos clássicos tinham para resolver casos concretos neste

período; a decisão dos casos era feita através de Leges e não através do

Jus uma grande riqueza teórica excessiva para os práticos do direito do

tempo.

) Novas condições sociais que exigiam novos textos jurídicos

g) A existência de textos apócrifos; a dificuldade de coordenação entre o ius

novum (as leges) e o jus vetum (o ius), não se sabendo que textos aplicar,

criando uma situação de incerteza jurídica que leva à experimentar vários

erros (Cruz 1984).

Para colmatar esta lacuna foram criadas três compilações de natureza privada,9

são elas o Código Gregoriano; o Código Teodosiano e o Código Hermogeniano. Estas

compilações são transcrições, reescritos, citados integralmente sem comentários,

conforme o original. A sua finalidade era, apenas dar a conhecer as leis romanas.

O Código Gregoriano, assim chamado porque o seu Autor teria sido Gregorius

ou Gregorianus, foi elaborado no oriente cerca do ano de 292 e abrangia rescritos

imperiais desde Adriano a Diocleciano.

O Código Hermogeniano, que também deve o nome ao Autor (Hermógenes ou

Hermogenianus), deve ter sido elaborado na chancelaria imperial, no Oriente. Teria sido

feita, pelo menos a parte principal, em 295 e sofreu três alterações. Era um liber

singularis e estava dividido apenas em títulos. Houve quem o considerasse, por causa de

ser apenas um livro, parte do Codex Gregorianus. Continha escritos de Diocleciano de

293 e 294. Há dúvidas quanto à existência de constituições de Constantino e Licínio

insertas no Codex (Cruz 1984).

O Código Teodosiano, assim chamado porque foi mandado compilar por

Teodósio II e respondeu à necessidade de criar uma colectânea que contivesse o

essencial da legislação e onde constassem as Leges Generales e que fosse de carácter

oficial que se pudesse opor “erga omnes”. O código foi feito em duas fases. Numa

9 Id est criação de uma obra destinada a ser terminada sem apoio ou autorização oficial (Cruz 1984).

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primeira fase foram reformados os estudos jurídicos10 e foi entregue a dois professores

da Escola de Constantinopla a função de reformar a legislação.

Houve, em 429, nove elementos incumbidos de coligir todas as leges generales

promulgadas desde Constantino que vigorassem ou não. Teriam de as agrupar por

ordem cronológica e podiam suprimir partes inúteis mas não podiam alterá-los

(proibição das interpolações). Seria para Sebastião Cruz um texto destinado ao estudo

com carácter preparatório pelo facto de conter lei revogada. Este trabalho seria seguido

de uma compilação de jus e leges ainda em vigor (“um código de carácter prático”) que

estabelecesse critérios normativos de determinação de condutas.

Numa segunda fase (em 435) foram destituídos os membros da anterior

comissão e nomeada outra, desta vez composta por 16 membros com a finalidade de

compilar apenas os edicta ou leges generalis e já não o ius. Esta comissão estaria

obrigada a:

a) Suprimir as leis que já não vigorassem

) Esclarecer os passos ambíguos

g) Adaptar os textos

d) Acrescentar e interpolar na medida do necessário para prosseguir as

finalidades descritas em )e g)

Este trabalho foi concluído em 437, promulgado por uma constituição dirigida

ao praefectus praetorio do Oriente em 438. Foi dada a Valentiniano III que a trouxe

para o ocidente onde foi aprovada pelo senado em 438 e depois aceite pelo imperador.11

Este código está dividido em 16 livros, subdivididos em títulos, onde estão

constituições ordenadas por ordem cronológica. A maior parte das disposições eram de

direito público.

10É interessante notar que as reformas legislativas de grande vulto foram, normalmente antecedidas de reformas universitárias ou se deveram a estas. Lembro por exemplo, para a primeira situação, a reforma Pombalina da Universidade de Coimbra e para a segunda a Universidade de Bolonha. Cf. nota 548 de (Cruz 1984, p. 412) e (Albuquerque e Albuquerqe 2004).11 Foi determinado que as constituições promulgadas numa parte do império seriam enviadas para a outra com a finalidade de aí serem promulgadas.

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Após a publicação deste Código seguiu-se a publicação das Novellae Post-

Theodosianae que são constituições promulgadas depois do Codex Theodosianus.

Também foi publicada uma colectânea de textos de constituições imperiais

promulgadas entre 331 e 425, as chamadas constitutiones Sirmondianae12. Esta

antologia é anterior ao Codex Theodosianus, como este Código determinou a sua

vigência exclusiva, apenas as constituições que o não contrariassem continuavam

vigentes. Esta antologia apenas continuou a vigorar nas partes em que era conforme ao

Codex.

Nesta colectânea estão presentes matérias eclesiásticas, nomeadamente a

regulação das relações entre a Igreja e o Estado.

Foi criada também uma “lei das citações”. Segundo esta só poderiam ser citadas

em tribunal, com efeito vinculativo, as obras de Papinianus, Paulus, Ulpianus

Modestinus e Gaius. Podiam ser citados outros autores, beneficiando do mesmo

tratamento que os supracitados, se esses fossem reconhecidos na sua Auctoriras pelos

primeiros e se a citação desses textos proviesse de texto fidedigno.~

A Lex Citationum determinava que se numa questão de direito houvesse acordo

entre os cinco autores era obrigatório segui-la, se o não houvesse seguir-se-ia a opinião

da maioria, no caso de empate seguia-se a opinio Papinianae e, por fim, se Papinianus

não tratasse do problema o juiz tinha liberdade para decidir.

Houve várias colectâneas Pré-Justinianeias, no ocidente, de entre as quais se

contam: a Fragmenta Vaticana, a Collatio Legum Mosaicorum et Romanorum e a

Consultatio Veteris cuiusdam Iurisconsulti. E de obras13 de juristas clássicos,

nomeadamente: as Pauli Sententiae ou Sententiae receptae Pauli, a Epitome Gai,o Gaio

de “Autun”, o Tituli ex Corpore Ulpiani ou Liber singularis Regularum e, por fim, as

interpretationes.

No oriente há uma grande produção de textos, todos eles de grande qualidade

onde se nota v. g. um grande gosto pela classificação e pela análise da vontade

12 Ficaram a dever o nome ao seu editor de 1631 Jacobus Sirmond.13 Ou resumos dessas obras.

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psicológica dos declaratários. Contudo muitas desapareceram com a publicação do

Corpus Iuris Civilis, outras foram incorporadas nesta Obra, várias estão em forma de

escólios nos Basílicos, e o respeito que tinham pelas obras clássicas faziam com que

apenas as reeditassem ou as comentassem. As principais obras (ou pelo menos aquelas

que são analisadas pelo Professor Sebastião Cruz) são: as Leges Seculares ou Livro

Siro-Romano, a aaaScholia Sinaitica) e as Res Cotidianae ou Libri

aeorum Gai.

1.2. A compilação do Corpus Iuris Civilis14

O Corpus Iuris Civilis é uma compilação de jus e de leges mandada fazer por

Justiniano que encarregou Triboniano, que na altura era magister in officiorum e

Theophilus, na altura professor em Constantinopla que fizeram, em 529 um primeiro

código (Jolowicz 1954) o chamado Codex Vetus (Cruz 1984).

Apesar da lei das citações, continua, apesar de tudo, a haver falta de segurança

jurídica. Para resolver este problema manda colocar no Digesto uma colectânea de

partes de textos de juristas proibindo a referência do texto à obra original. Antes de ter

mandado fazer isto acabou com instituições que se tinham tornado obsoletas (Jolowicz

1954, p. 490).

Por fim o Corpus Iuris Civilis, conforme nos aparece no tempo de Justiniano

está dividido em quatro partes, são elas:

a) O Digesto ou Pandectae de 533;

) As Institutiones do mesmo ano;

g) O Codex de 534; e

d) As Novellae de 535 a 565

14Não procederei à analise das várias partes do Corpus Iuris Civilis.

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1.3. A redescoberta Bolonhesa do Direito Romano

Franz Wieacker nota que houve um conjunto de circunstancialismos que fizeram

com que a região da Itália do norte fosse o berço dos movimentos jurídicos que re-

estudaram o direito Romano clássico. São essas circunstâncias, a curta reconquista da

Itália do sul por Justiniano que tornara acessível o corpus iuris civilis: a tensão existente

entre a tradição Romana e o direito popular; a existência de ordens jurídicas

diferenciadas que incitavam a uma continua comparação; e pelo facto de se estar em

território do império. Também o comércio foi um elemento de desenvolvimento do

direito Romano, contudo apenas o foi num momento posterior, pois na Flandres

também havia direito romano e houve um desenvolvimento similar, com a progressiva

necessidade de fórmulas precisas devido ao agravamento da complexidade do comércio

(Wieacker 2004). Outros autores acrescentam a estes factos, a influência jurídica

exercida pela escola de Ravena e pela cultura de Milão e Veneza que estavam ligadas a

Bizâncio que na altura estava na época de maior esplendor jurídico (Cruz 1984).15

São as “guerras” entre o Império e o Papa que vão fazer um movimento de

intensificação do estudo do direito romano justinianeu se desenvolva. Este direito é um

forte apoio ao crescimento e protecção do Império na sua luta contra a Igreja Católica. È

também apontado como elemento fecundante do direito romano medievo o seu espírito

ecuménico (Costa 2005).

Os Glosadores16 ou Irnerianos17 tinham como base de trabalho os textos do

corpus iuris civilis uma colectânea mandada fazer por Justiniano (Petit 1913). Contudo

este não foi conhecido todo ao mesmo tempo, nem foram estudadas em bloco mas

foram divididas em cinco partes:

15 Sebastião Cruz apresenta como causa probabilis do renascimento dos estudos jurídicos em Bolonha, o achamento de um Corpus Iuris Civilis em Pisa que teria despertado a tenção de Irnério. Este Autor fundamenta-se em escritos Florentinos nesta afirmação (Cruz 1984). Esta asserção é desmentida por Mário Júlio de Almeida Costa que diz que esta descoberta é mitológica uma vez que está documentada a existência deste texto nessas cidades antes do séc. XI (Costa 2005).16 Assim chamados por causa do estilo literário que utilizavam na análise dos textos.17Assim chamados por causa do fundador da Escola dos Glosadores ter sido Irnério, Contudo há indícios que apontam para a possibilidade de esta escola ter sido fundada na cúria papal que recebia uma influência directa da Itália meridional (Wieacker 2004).

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a) Digestum vetus (Digesto velho) que compreendia os primeiros vinte e

três livros e dois títulos do livro vigésimo quarto.

) Digestum novum (Digesto novo) que continha os livros XXXIX a L.

g) Digestum infortiatum (Digesto esforçado) que abrangia os restantes

títulos do livro XXIV que não estavam no digestum vetus até ao livro

XXXVIII.

d) Codex (Código) que continha os nove primeiros livros do Código de

Justiniano

) Volumen parvum (Volume pequeno) que incluía os tres libri (três

últimos livros do Código justinianeu), as Institutas (Instituições de

Justiniano) e o Autenticum (uma colectânea de Novelas). (Costa 2005)

(Caetano 2000) (Albuquerque e Albuquerqe 2004).18

A nível cultural é de notar a ligação da Universidade de Bolonha a um

movimento cultural que procurou aprofundar os seus estudos sobre a cultura antiga.

Para Franz Wieacker estiveram na origem destes estudos a descoberta de textos como o

Organon de Aristóteles e os textos de Platão. O abandono do pensamento pragmático e

pouco dado á reflexão filosófica do período precedente vão fazer com que haja uma

busca maior dos textos clássicos (Wieacker 2004).

Para alem destes elementos há a notar quais as bases metodológicas do ensino

das ars liberalis na idade média. O estudo baseava-se no trivium da gramática,

dialéctica e retórica.

De notar também que o facto de a Universidade de Bolonha ter tido alguma

independência em relação ao poder eclesiástico, na medida em que não se integram

dentro do poder eclesiástico mas de uma universitas scholarium19 fizeram com que se

possibilitasse um estudo mais aprofundado do jus romanum.

Em termos metodológicos a hermenêutica jurídica era uma interpretação exética,

baseada na lógica formal ligada ao trivium. Ela visa a sua aplicação20 à vida ao contrario

18 Mais tarde foram-lhe introduzidos outros elementos.19 Unidades corporativas autónomas com privilégios que as destacam, com os burgos, dos restantes estamentos.20 É um ponto em comum que partilha com a interpretação teológica que Wieacker descura mas que parece ser insofismável. Na Fenomenologia Moderna Richard Palmer caracteriza a hermenêutica bíblica e

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do que afirma Wieacker quando afasta quaisquer semelhanças entre os outros ramos do

saber nomeadamente a filologia e a teologia assim como com a ciência do direito

hodierna. Contudo assiste a verdade ao Autor Alemão quando nota que há uma ausência

de um discurso legitimador, o direito Medieval estava legitimado numa ideia de

auctoritas que dependia não da sua justeza mas da idoneidade de quem o revelava.21

Na medida em que a lei é ratio scripta esta deve ser interpretada o mais

literalmente possível apenas de modo a descortinar o seu sentido textual, daí ser

estudado através de glosas que seriam a explicitação filológica dos textos do Corpus

Juris Civilis.

Os Glosadores analisaram grande parte da literatura jurídica clássica tentando-a

transformar num todo coerente22 harmonizada através da lógica extremamente analítica

do trivium.

Outro dos elementos que fizeram com que o direito romano medieval só

perseguisse a lógica e o esclarecimento filológico deve-se ao facto de a justiça se

identificar com a verdade, sendo esta reconduzida à figura de Deus. O Deus medieval é

a ideia da suma perfeição, que É, sendo o Ser, com base no qual todo o ente é23, é o

imóvel movente, criador incriado, o acto Aristotélico. Esta suma perfeição não pode

partilhar os sentimentos dos homens imperfeitos, tem de ser rígida certa e infinita como

os números, daí também, a meu ver, a ideia de que a lógica que assiste á interpretação

das leis deve ser uma lógica formal que expulse de monumentos que tendem à

perfeição, como os textos dos juristas clássicos, a lógica material (ou metafísica24) que

a jurídica como hermenêuticas de aplicação (in Hermenêutica, Edições 70, 2007).21 A expressão “lógica advogadesca” que podemos encontrar em Unamuno (“Do sentimento Tragico da vida”) significa isto mesmo: uma lógica sem base científica (no caso das ciências naturais) ou sem base legitimadora que é justificado apenas pelo facto de a lei a afirmar uma situação. Um grande exemplo deste método pode ser encontrado, na escolástica medieval, em Santo Agostinho por exemplo nas “Confissões” quando diz que temos de fazer leituras abertas dos textos mas que nunca poderemos de fugir da palavra de deus expressa nas sagradas escrituras. Nota-se ainda mais esta Lógica, no mesmo Autor, durante as inúmeras interpelações que faz a Evodius no” Dialogo sobre o livre arbítrio” no sentido de procurar as soluções dentro das Sagradas escrituras e da ideia da bondade de Deus. (O livre arbítrio é um bem, para Santo Agostinho, porque, de entre vários argumentos foi Deus que nos deu a possibilidade de decidir.)22 Arriscando-me a dizer asneiras, esta ideia de um todo coerente e sistemático parece ter muito que ver com a ideia medieval, apresentada por Eco (Os limites da interpretação), das relações de simpatia e de um diálogo hermético e mnemotécnico que caracterizava também a idade média ocidental.23O não ser ou o nada não é Nele, por isso o pecado, que é o caminhar para o nada não vem Dele.24 No sentido que lhe é dado hoje em dia.

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contém muito da falibilidade do homem imperfeito, esta segunda acepção é a dos neo-

platónicos nomeadamente de Santo Agostinho25.

O método de exegese combinava elementos filológicos, analíticos e sintéticos. A

filologia é a prolectio (leitura do texto) com indicações e opções acerca da sua leitura. O

analítico era: a análise lógica do problema do texto (scindere) a exenplificação (casum

figuro) e o dare causas.26 As operações sintéticas são: o resumo (generalização e

formação de regras) a conotatio (a busca de cognata, similia e essencialmente de

analogia)27 e a resolução de objicio (objecções) com recurso à distinctio, à limitatio e à

amplificatio (Wieacker 2004).

O género literário mais utilizado pelos Irnerianos era glosa, esta era uma

explicitação do texto, normalmente de índole filológica, escritos na margem ou entre as

linhas do texto original, chamam-se por isso glosas marginais ou interlineares conforme

o sítio onde estejam escritas (Albuquerque e Albuquerqe 2004) e (Costa 2005).

Os representantes mais célebres desta escola foram Bulgarus, Martinus Gósia,

Jacobus e Ugo.

No séc. XII as virtualidades do método extinguem-se. Contudo é neste século

que Acurcio faz a compilação da Magna Glosa que contém, além de glosas escritas por

ele, grande parte as escritas pelos seus predecessores (Petit 1913).

O seu método vai ser criticado pela escola do mos gálicus28 por causa da

ignorância filológica e histórica. Em Portugal encontramos v. g. Gil Vicente no auto a

barca do Inferno onde faz a critica a essa ignorância através do uso de personagens tipo

como o Corregedor. Em França, p. ex. Rabelais no Pantagruel satirizou o mau gosto dos

exemplos dados pelos Irnerianos (Petit 1913).

25 Nesta parte tentei dar a minha opinião sobre os fundamentos do método. As opiniões apresentadas foram lidas em Santo Agostinho, contudo a realidade medieval parece-me mais rica do que o apresentado, sendo a minha exposição uma criação simplista que até admito que possa ter ínsitos alguns idola.26 Ou quatro causas Aristotélicas. Estas são as causas que, para o Estagirita, geram o ser, elas são a causa material (aquilo de que i ser é feito), a causa formal (o ser em si mesmo), a causa motora (que dá origem ao processo causal) e a causa final (o telos do ser).27 A conotação pressupõe um veículo, representado por uma função sígnica completa (dotada de expressão e conteúdo) que remete para outro conteúdo que pode ser representado por uma ou mais expressões. Apud (Eco 2004, P. 172).28 Assim como o método dos comentadores

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A escola dos comentadores vem trazer um novo método que substitui o método

já esgotado29 da Glosa (Silva 2000). Esta escola surge no séc. XIII de seguida ao

aparecimento da Magna Glosa de Acúrcio. O primeiro grande utilizador deste método

foi Cino de Pistoia, contudo serão Bartolo30 e Baldo as figuras mais importantes desta

escola.31

Os comentadores são assim chamados por causa do estilo literário que utilizam

para desenvolver o seu método, o comentário. O método utilizado por estes juristas é o

chamado método escolástico ou dialéctico. Este método contém uma técnica de análise

através de sucessivas análises e sínteses, superação de contradições e construção de

sistemas lógicos.

A análise dos textos legais seria feita por fases através de um método analítico

que seguia a seguinte “tramitação”:

a) Lectio Literae, isto é, a leitura dos textos, pelo mestre, que deviam ser

interpretados durante a prelecção;

) Divisio Legis, ou seja, a divisão do texto em partes lógicas:

g) Expositio onde se fazia uma análise integral do texto;

d) Positium Casum, que seria um caso prático a que a leis se aplica

) Collectio Notabilium, ou a exposição das exposições mais importantes

que eram impostas pelo texto;

z) Opositiones que eam os argumentos contrários àquela tese; e

h) Quaestiones, id est, a ponderação das consequências práticas atinentes à

teoria defendida (Silva 2000).

Este método vai ser posto em causa com o surgimento do mos gallicus (iura

docendi) ou escola Humanista.

29 Eugéne Petit diz mesmo que caiu em decadência, isto percebe-se principalmente, por causa da ideia de auctoritas e da mentalidade do Homem da Idade Média perante alguns Autores. Esta posição, muitas vezes acrítica, matava todo o espírito criativo.30 Os comentadores também são chamados Bartolistas31 Há autores que notam que houve um período de tempo em que o comentário começou a ser implantado juntamente com a existência da glosa, por isso autonomizam uma escola: a dos pós-glosadores (Albu-querque e Albuquerqe 2004).

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1.4. A recepção do direito Romano na Península Ibérica

Como já foi dito, não se pode dizer que tenha havido um renascimento do direito

Romano uma vez que este nunca deixou de ser conhecido32. O direito apesar de ser

“racional” com elementos analíticos é um fenómeno cultural compreensivo que se

explica por referência a uma história e cultura. Quando o direito Romano dito “erudito”

chega à península, já havia uma série de estruturas criadas durante o período em que os

Romanos dominaram a Península Ibérica. Antes de entrarmos para a recepção do direito

romano fruto do chamado “Renascimento do Direito Romano” faremos uma brevíssima

alusão a este período precedente.

1.4.1. A conquista da Península

Os historiadores do direito dividem a conquista da Península Ibérica em duas

fases a fase da conquista e a fase da romanização (Costa 2005) ou da assimilação (Cae-

tano 2000).

Com a II guerra Púnica e a chegada de Aníbal Barca a Cápua, os Romanos, vão

expulsar os cartagineses e conquistar as cidades hispânicas onde os Cartagineses tinham

influencia e com as quais faziam comércio. Esta expulsão e domínio da península

responde, num primeiro momento, a uma necessidade de protecção de Roma. Serviu

para isolar o exército de Aníbal, cortando a possibilidade de apoio logístico aos

exércitos de Cartago33. O período da conquista vai durar duzentos anos (218 – 19 a. C.)

e, neste primeiro período, há uma grande dificuldade em assimilar a cultura e o direito

Romanos, uma vez que eram elementos de um povo invasor34. Durante este período, a

romanização ocorreu através do contacto dos povos Ibéricos (principalmente dos

Lusitanos) com Sertório, General Romano proscrito por Sila e os seus partidários, que

se juntou aos Lusitanos e os chefiou após a morte de Viriato.

32 (Costa 2005)33 Aníbal saiu de Cartagena na Hispânia, transpôs os Pirenéus, o Ródano e os Alpes até à Itália. 34 Os Romanos, ao contrário dos Cartagineses que apenas procuravam comerciar, quando vieram para a península Ibérica quiseram subjugar os Povos que ali habitavam. (Caetano 2000) pag. 61

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1.4.2. Período da Romanização

A Romanização metódica e intensiva (Costa 2005) começa após a conquista, e

ocorre por força da interacção entre os povos indígenas e os romanos, do contacto com

os romanos através:

a) Das legiões, que aqui estavam para manter a ordem em províncias

tumultuosas. Os soldados eram verdadeiros colonos que para aqui

vinham com as famílias, e exerciam as suas actividades.

) Construção de estradas e obras públicas com objectivos estratégicos e

políticos, para facilitar a fiscalização e o envio de dinheiro

mantimentos e tropas, que aproximavam as províncias da Urbe.

g) A abertura de estradas que pôs a trabalhar juntos Romanos e

autóctones e deram a conhecer as técnicas de construção Romanas.

d) O desenvolvimento das formas e gestão administrativa Romanas

nomeadamente a criação de municípios.35

) O culto religioso que unificava Romanos e locais no culto ao

Imperador.

z) O cristianismo, que via todos os homens como irmãos

independentemente de serem “Judeus ou Gregos”.

O direito Romano rege-se pelo princípio da pessoalidade do direito, isto é,

possibilitava que os indígenas vencidos pudessem reger-se pelo seu direito, aplicando o

seu direito aos cidadãos originários (Glissen 2003). Com a concessão de certos

privilégios a todos os membros do Império estende-se também a aplicação do Direito

Romano. A concessão desses privilégios começa com a outorga da latinidade por

Vespassiano36 em 73 ou 74 e termina com a Cidadania em 212 com Caracala.

35 (Caetano 2000, pags. 66 e ss.).36 A latinidade distinguia: os Latinos antigos, Latini Veteres ou Prisci (habitantes do Lácio ou de outra cidade equiparada ás da liga latina que tinham jus connubii; jus commercii e jus sufragii (para os comícios) para alem disso podiam ser cidadão Romanos se fixassem a sua residência na Urbe). Os latinos coloniais ou coloniarios, Latini coloniarii (a latinidade era para eles um privilégio mas só podiam gozar o ius commercii e o jus suffragii. Podiam-se tornar cidadãos através da desempenho de cargos públicos, talvez por causa do declínio social desses cargos, dependendo da importância dos cargos os latinos podiam ter uma latinidade maior ou menor). Os Latinos junianos, Latini iuliani criados com a lex iunia Norbana que integrava os escravos manumitidos que não fossem cidadãos, estes tinham um estatuto equiparado aos Latinos Coloniais mas morriam como escravos. Os latinos distinguiam-se dos cidadãos cives porque estes tinham capacidade jurídica plena, para além do jus connubii, do jus commercii e do jus sufragii também tinham o jus honorum, id est o direito de ascender às magistraturas do Estado e o ius

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Contudo o direito Romano que vigora na península é um direito simplificado

(chamado vulgar), quer porque estávamos longe do centro de criação Jurídica, quer por

causa de dificuldades interpretativas e das especificidades regionais.

FIM

militiae ou seja, a faculdade de alistamento no exército. Os peregrinos eram estrangeiros que não eram sujeitos de direito Romano e eram tidos como hostes, apenas tinham como regalia a possibilidade de se submeterem ao ius gentium nas relações com romanos ou com outros peregrinos. (Costa 2005)

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