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2011

REMANDO POR CAMPOS E FLORESTAS:Memrias & Paisagens dos Marajs

Denise Pahl Schaan Agenor Sarraf Pacheco Jane Felipe Beltro Organizadores

REMANDO POR CAMPOS E FLORESTAS:Memrias & Paisagens dos Marajs

Livro Ensino Fundamental 5 a 8 Sries

Rio BrancoGknOROnhA 2011

Organizadores Denise Pahl Schaan Agenor Sarraf Pacheco Jane Felipe Beltro Produo Editorial Denise Pahl Schaan Conselho Editorial Fernando Luiz Tavares Marques Flavio Leonel da Silveira hilton Pereira da Silva Marcia Bezerra de Almeida Rosa Acevedo-Marn Projeto Grfico e Direo de Design Gknoronha Ilustraes Desenhos: Deise Lobo Cores: Clementino Almeida Impresso e Acabamento Amaznia Indstria Grfica e Editora Ltda. Financiamento CNPq Processo n. 553622/2006-4 IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Apoio Universidade Federal do Par - UFPA AMAM - Associao dos Municpios do Arquiplago do Maraj Secult Secretaria de Cultura do Estado do Par Prefeituras dos Municpios de Anajs, Afu, Breves, Cachoeira do Arari, Chaves, Curralinho, Melgao, Muan, Ponta de Pedras, Portel, Salvaterra, Santa Cruz do Arari, So Sebastio da Boa Vista e Soure. Distribuio Gratuita Programa de Ps-Graduao em Antropologia - PPGA/UFPA Disponvel na internet www.ppga-ufpa.com.br www.marajoara.com

SumrioAPrESENtAo

Sou marajoara nos campos e nas florestas dos Marajs Jane Felipe Beltro

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I - PAISAGENS & PASSAGENS1. PAISAGENS E ESPAoS DE MELGAo EM trANSForMAo Manoel Moreira Almeida 2. DEIXANDo A tErrA NAtAL: As Migraes atravs dos tempos Denise Pahl Schaan 3. A MIGrAo NorDEStINA PArA SALVAtErrA Luiz Antonio da Silva Waldeci Pena Miranda 4. NorDEStINoS EM PortEL Jos Mendes Santana da Silva

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5. NArrAtIVAS E oLHArES DA MIGrAo PArA MELGAo Dailson Guatassara Santos Glindes Ribeiro Wanzeler

II - HISTRIAS DE VILAS E CIDADES6. F, FoGo E MAr: Histrias e Memrias da Vila de Arapix Denise da Costa dos Passos 7. JoANES EM DUAS MEMrIAS Shirleide Rodrigues neves

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Remando por Campos e Florestas: Memrias & Paisagens dos Marajs / Denise Pahl Schaan, Agenor Sarraf Pacheco, Jane Felipe Beltro, organizadores.- Rio Branco: GknOROnhA, 2011. 172 p. Inclui bibliografias. ISBN 978-85-62913-05-1 1. Maraj, Ilha do (PA) - Histria. 2. Patrimnio cultural- Maraj, Ilha do (PA). 3. Migrao - Maraj, Ilha do (PA). 4. Memria.I. Schaan, Denise Pahl.II. Pacheco, Agenor Sarraf. III. Beltro, Jane Felipe. CDD - 22. ed. 981.15

8. trABALHo, rELIGIoSIDADE E EDUCAo: 55 histrias de uma Comunidade Ribeirinha no Maraj das Florestas Dalcides Santana Pinheiro 9. MEMrIAS Do PAtrIMNIo PBLICo MAtErIAL DE CHAVES Marinilza Coelho Loureiro 10. PELAS RUAS DA CIDADE DE ChAVES Ilma de Ftima da Silva Tavares

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11. VoZES DA BorrACHA EM ANAJS: outras Histrias sobre trabalho e Seringal Mnica Malcher

III - PATRIMNIO MATERIAL E IMATERIAL12. HIStrIAS DA CoBrA GrANDE Denise Pahl Schaan

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13. MEXENDo CoM CoISA DE NDIo: Descoberta Arqueolgica nas guas de Anajs Mnica Malcher

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17. BrINCANDo NoS CAMPoS Do MArAJ: Memrias de Brincadeiras de Salvaterra Simone Azevedo de Oliveira 18. ESPICHANDo A ProSA: os Msicos do Jubim Alice Rodrigues de Freitas 19. A ARTE DE PARTEJAR Deomarina Cardoso Ferreira Ediane do Carmo Freitas

Sou marajoara nos campos e nas florestas dos MarajsJane Felipe Beltro

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20. oFCIoS DAS MAtAS E DAS GUAS: Sabedoria e Medicina Caboclas em Salvaterra Maria Pscoa Sarmento de Sousa Alice Rodrigues de Freitas

IV - NARRATIVAS FANTSTICAS21. O EnCAnTE DA COBRA BRAnCA DO RIO SIRICARI EM SAnTA LUZIA Marcelli de Cssia Monteiro Santa Brgida Rodrigo Oliveira dos Santos 22. o MArAJ E SUAS LENDAS Isa Maria do nascimento Silva

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SOBRE OS AUTORES

169Ao idealizar o projeto Por Campos e Florestas, Denise Pahl Schaan e Agenor Sarraf Pacheco, dois apaixonados pelo Maraj, no imaginavam a dimenso do trabalho de construo e do alcance de produzir material didtico-pedaggico para o ensino transversal de contedos de histria, Arqueologia e Patrimnio Cultural no arquiplago, lugar que o orgulho maior dos paraenses. Com entusiasmo e competncia os coordenadores da proposta que, hoje, vem a lume, foram reunindo pares, professores da rede pblica dos diversos municpios marajoaras e demais pesquisadores, para pelejar pela causa.

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O trabalho foi arquitetado e tecido nas malhas do tempo e dos muitos encontros nos Marajs e em Belm, que compreenderam oficinas de dilogo e experincias, elaborao de textos escritos com conhecimento de causa, fotos retiradas dos bas da memria e horas a fio de discusso e reviso. Documentos que, cuidadosamente, foram caindo nas malhas da rede de saberes tradicionais que inundam as pginas do nosso livro apresentando a plasticidade dos conhecimentos e a urgente necessidade de colocar o saber local na pauta da educao escolar nos Marajs. O trabalho foi possvel porque todos se acreditavam participar de um empreendimento que reforaria o fato de serem marajoaras de nascimento ou de corao, por pertena ou por adeso. Do primeiro encontro, lembro o entusiasmo das declaraes, respondendo s perguntas quem voc? E ... por que participa do projeto? Enfaticamente, algum respondeu: sou marajoara, daquelas que saiu cedo de casa para tentar a vida. E outro, logo acrescentou: nasci na Vila de Joanes, distrito de Salvaterra, onde moro at hoje. Ou: Vim para a Ilha do Maraj recm-nascida, sou marajoara de corao; hoje, com sonhos realizados, me considero marajoara! Mas afinal, que orgulho esse de ser marajoara? Alguns informam: sou descendente de ndios, filha de portugus, cabocla da gema. Muitos so filhos de pescador, vaqueiro, agregado de fazenda, danarino de Carimb. Outros mais se declaram sourenses ou filhos de Soure, pontapedrense, chavense, salterrense ou apresentam-se como gente humilde e trabalhadora, nascida na roa com muito orgulho, quilombola que antes se pensava mestio, mas hoje luta por seus direitos. Todos marajoaras! no importa a descendncia, chegou Ilha parou, bebeu aa ficou orgulhoso e de l no se deixou sair. As declaraes intimidam os poucos forasteiros que no sendo filhos do lugar, consideram-se marajoaras por adoo. O ser marajoara papel assumido, compromisso rijo que forja compromissos que deixam os portadores da identidade acorrentados s tradies que no necessariamente conhecem a fundo, mas que impressiona os visitantes e os pesquisadores que ao arquiplago se dirigem. Ser marajoara atitude que levanta a cabea contra a invisibilidade da diversidade cultural que aoitou os moradores do Maraj durante o Brasil Colnia e, hoje, continua a exclu-los pelas formas coloniais internas. Os marajoaras resistiram s mazelas e ao ser paraense que generaliza e escamoteia as formas diversas de se apresentar e conviver. Altivos, chegam ao sculo XXI autores de muitas histrias que pretendem narrar, contar aos estudantes nas escolas o que se fazia/faz no Maraj, local onde como professores acolhem outros marajoaras para faz-los orgulhosos e compromissados com o pensar-se livre por agir e pensar diferenciadamente. Professores ararienses, cachoeirenses, chavienses, muanenses, ponta-pedrenses, salvaterrenses e sourenses, oriundos dos campos do Maraj, agregaram-se aos: anajaenses, bagrenses, boa-vistenses, brevense, curralinhenses, gurupaenses, melgacianos e portelenses, vindos das florestas, chegaram a Soure animados para indicar temas e possibilidades de trabalho para educao escolar no Arquiplago. Os docentes informaram que desejavam ver nos livros didticos, utilizados nas escolas do Maraj, a histria das comunidades da ribeira, das praias, dos campos e das florestas. textos que narrassem como eram/so as vilas? Como viviam/vivem as pessoas residentes nos diversos espaos do territrio marajoara? De que maneira os marajoaras vivem o dia-a-dia, que costumes

possuem ... e, tambm, querem registrar as estrias mitolgicas que regem a vida no arquiplago, seres como botos, iaras e encantados que assuntam os desavisados e auxiliam a manter a ordem social em equilbrio. Na verdade, os professores querem ver a memria reavivada indicando as trilhas do que se foi ou das lembranas que parecem ou esto adormecidas, pois recuperar as histrias em suas diferentes verses ensinar crianas e jovens que precisam conhecer a tradio para valorizar o ser, o viver, o pertencer, o agregar-se ao Maraj e sua imensido. Portanto, os profissionais da sala de aula no apenas so ou se dizem marajoaras, eles querem dar continuidade s formas de tornar-se marajoara, informando sobre ou reforando as narrativas que os estudantes escutam fora dos bancos escolares, pois querem, fazem questo de estar conectados realidade. A prioridade dos autores do nosso livro saber a histria dos conterrneos, para alm e conhecer a histria de pessoas e lugares do Brasil e at do estrangeiro. Segundo os docentes do Maraj, os livros didticos devem ser elaborados conforme a histria e as necessidades de cada lugar, pois assim os estudantes podem exercitar-se em comparaes e comear a formular propostas fundamentadas em experincias vividas. Portanto, ser marajoara coincide com estar em sintonia com parmetros curriculares que contemplem a si, aos estudantes e aos interlocutores de outras plagas, pois assim vivem identidade mpar sem desconsiderar as identidades dos demais, dando um saboroso realce diversidade. Ser marajoara parece indicar sou gente do meu tempo, com os olhos fixos no futuro, pois o futuro pertence aos mais jovens; entretanto, no se pode desconhecer a experincia dos mais velhos, guardadores da tradio que se renova. os professores acreditam que as brincadeiras de criana tradicionais ... foram esquecidas; entretanto, creio que, ao percorrerem os caminhos da memria e elaborarem textos sobre o assunto, transformam, no apenas os estudantes em viajantes do tempo do tempo foi, mas os leitores do nosso livro em passageiros da memria, e ensinam, para alm da escola, como se pode conhecer os Marajs. Assim, no lamentamos o surgimento de jogos e brinquedos eletrnicos, mas acrescemos ao conhecimento que h inmeras formas de brincar e que resgat-las aproxima jovens e velhos, criando laos fortes, forjando uma ciranda que torna os Marajs lugar de viver e imaginar! E quem sabe cantando ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta, volta e meia, vamos dar. O anel que tu me destes era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou. E, para complementar por isso Dona ciranda entre dentro dessa roda diga um verso bem bonito..., e ajustando o refro, em louvor dos marajoaras que cantam os Marajs!

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I PAISAGENS & PASSAGENS

Ainda teimam desnaufragar o navio. Ele virou fantasma, virou cobra boina. Sobre as enchentes em Maraj, o espetculo o mesmo. No meu romance Maraj eu falo da gua invasora. o Chove est encharcado assim como trs casas e um rio. toda a minha obra flutua na enchente. Vejo o jacar, o peixe aruan e os defuntos que escapam do cemitrio alagado. Morei numa casa em cima dgua. At hoje oio os peixes e as marrecas e as chuvas enormes. (...) Maraj ainda terra encantada. o gado anfbio. (...) Quando Maraj desencanta?MENEZES, Maria de Belm. Um retrato de Dalcdio Jurandir. In: Asas da Palavra. revista do Curso de Letras. Belm: Unama, n 04, junho, 1996, p. 24.

1PAISAGENS E ESPAOS DE MELGAO EM TRANSFORMAOManoel Moreira AlmeidaOs seres humanos, no decorrer de sua histria, tm mantido uma relao integral com a natureza e com os elementos que a compem. nessa relao, as pessoas provocam profundas transformaes no ambiente fsico, modificando-o e alterando sua forma, seu contedo, seus significados e suas funes. Com isso, transformam espaos e paisagens, buscando um melhor aproveitamento dos recursos naturais. As transformaes da paisagem podem ser entendidas como boas ou ruins, depende de como se promove a ao humana sobre um determinado ambiente; boas quando o agente

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transformador age de forma sensata, responsvel e cnscio da necessidade de se pensar nas geraes futuras; ruins quando seu ato est voltado apenas para os fins do que se quer conseguir, no considera os meios utilizados para alcanar seus objetivos, preocupando-se somente em atingir o resultado final, seja ele qual for. Assim, muitas vezes os seres humanos modificam de forma negativa os ambientes onde vivem pelo simples desejo de satisfazer suas necessidades pessoais ou empresariais. o espao geogrfico melgacense, assim como todo o planeta, tambm sofre a interferncia humana, atravs de mudanas que so sentidas por todos. Cada pessoa percebe as transformaes por um prisma diferente, com vises distintas; umas, como os professores de Geografia, analisam segundo as teorias geogrficas, j outros atores sociais as percebem pela vivncia cotidiana, atravs de sabedorias adquiridas, muitas vezes, em tradies familiares. Contudo, de seu lugar, cultura e posio social, todos percebem a metamorfose em escala planetria pela qual passam as paisagens. o professor Hlio Pena Baia nos relata como percebe essa mudana constante no seu dia-a-dia: Quando cheguei a Melgao, em fevereiro do ano de 1992, as ruas eram bastante diferentes. A Marechal rondon no era pavimentada, e nesse perodo de chuvas era difcil trafegar. V-se, pelo que nos fala o professor Hlio, haver uma significativa transformao no espao geogrfico de Melgao. Ele nos diz ainda que: Quando a gente estudava, cansei de sair da escola, noite abaixo de chuva ... e tnhamos que enfrentar a lama. Hoje, as ruas ganharam outra configurao. houve a abertura de outras ruas, a cidade j tomou conta de boa parte da estrada Melgao-Jangui. o senhor Jos Lino da silva, agricultor e morador h mais de quarenta anos em Melgao, tambm nos falou sobre as mudanas ocorridas na cidade, especialmente na ltima dcada. Deste modo expressou-se: Quando cheguei aqui, s tinha a rua da frente (Senador Lemos), at a Igreja de So Miguel, uma parte da 12 de outubro e um pedao da 31 de maro, o resto era matagal. Mas naquele tempo era melhor algumas coisas, tinha mais peixes, caas e a vida era mais tranquila. No tinha muita sujeira como tem hoje, no se via lixo pela cidade, s os capins que roavam. Por isso acho que naquele tempo era bom viver em Melgao. Isso caracteriza a interferncia humana na paisagem; muitas vezes, as pessoas pagam um preo alto por esse avano, sofrendo consequncias que podem ser mais negativas do que positivas do ponto de vista da qualidade de vida. Isso pode ser visualizado no que o professor Hlio comentou sobre as diferenas entre o viver em Melgao, no passado e no presente. Assim assinalou: Antes era melhor. No aspecto ambiental, a cidade no tinha, por exemplo, o problema da acumulao de lixo no perodo da chuva. Hoje temos locais crticos na cidade. Quando chove uma dificuldade enorme para trafegar porque a cidade no tem um sistema de esgoto. nesse aspecto, hoje bem pior morar em Melgao. Percebe-se mais uma vez pela fala do professor Hlio que no aspecto ambiental a situao da qualidade de vida hoje problemtica. Melgao apresenta problemas de falta de esgoto sanitrio,

servio regular de coleta de lixo e, em boa parte da cidade, at a limpeza urbana no atende a populao de maneira satisfatria. O processo de transformao pelo qual tem passado a cidade intenso e, nos dias atuais, acontece ainda de forma mais rpida. Porm, nem sempre isso justificvel; algumas mudanas geram mais problemas do que solues para a vida dos moradores. Muitas acabam criando dores de cabea e provocam, frequentemente, catstrofes naturais, como enchentes e alagamentos, resultando em mais problemas do que melhorias para a vida da populao urbana. nem sempre as mudanas rpidas so boas. H alguns anos, sob alguns aspectos, era melhor de se viver; isso comprovado pelo relato do professor Hlio. Segundo ele, essa transformao, considerando o aspecto ambiental, foi ruim. Essa opinio tambm foi acompanhada por Seu Jos Lino, quando qualificou a problemtica com sua experincia cotidiana: Hoje, com a grande quentura t difcil at ficar em casa de dia, meio dia muito quente, um caloro danado, e ainda ficou pior depois que comearam a fazer caladas nas ruas e tinha umas rvores na cidade que foram derrubadas. Sobre a poluio ambiental, professor Hlio nos disse o seguinte: Aumentou a carga de lixo na cidade, e a Prefeitura, o poder pblico, no consegue trabalhar o destino desse lixo. Essa situao gera um problema ambiental enorme na cidade, pois ela sofre uma poluio visual ao extremo. A cidade visualmente muito feia; eu a caracterizo como feia, ela fica feia porque est suja, isso reflexo dessa mudana no espao geogrfico. Assim, as transformaes nem sempre se apresentam como solues de melhoria, mas como entraves para a construo de uma realidade mais digna e de um mundo ecologicamente sustentvel. No mundo extremamente materialista e individualista em que vivemos, a nsia pelo poder e a necessidade de ter sempre mais, leva as pessoas a procurarem incansavelmente por algo mais, a quererem aumentar suas propriedades, no se preocupando com a forma como vo conseguir isso, se com explorao desordenada, ou no, dos recursos naturais. Sabemos que as pessoas podem produzir riqueza sem precisar devastar a natureza de forma irresponsvel. Sobre isso, o professor Hlio comentou que possvel produzir e trabalhar sem acabar com os recursos naturais que nos rodeiam. Assinala o professor: Eu concordo que pode haver desenvolvimento sustentvel, onde a sociedade se relaciona de uma forma sustentvel, preocupando-se com a existncia das espcies: isso possvel. Contudo, o que se percebe que o homem, na nsia de enriquecer rapidamente e a

Ilustrao: Mrcio de Menezes, funcionrio da DIPROE, Melgao, 2006.

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Orientao18 o texto Paisagens e Espaos de Melgao em Transformao indicado para ser trabalhado com alunos de 5 srie, nas disciplinas Geografia e Estudos Amaznicos. Pode ser tambm trabalhado em Estudos Amaznicos com alunos de 6 srie. 19

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qualquer custo, seja pelos mtodos nobres, atravs do trabalho srio, seja pelos caminhos obscuros e desonestos, age da forma mais vil que se possa imaginar para alcanar seu intento. na sociedade ocidental capitalista, o desejo do lucro move o sistema de relaes pessoais e regula o processo de Diviso Social e Territorial do Trabalho; todos querem o mesmo objetivo: ganhar dinheiro, e, de preferncia, sem muito sacrifcio. Porm, como isso no possvel para a humanidade inteira, os mais espertos que conseguem usufrutuar das riquezas naturais e ganhar dinheiro antes que os demais possam fazer uso dela. Assim, os recursos naturais so explorados sem qualquer cerimnia e vo sendo dizimados, extintos de forma indiscriminada, predatria e, em alguns casos, de forma irreversvel. Aqui em Melgao, esta realidade tambm vivenciada: a madeira, o palmito e outros recursos naturais esto desaparecendo das florestas, e a populao, que no passado vivia do extrativismo desses produtos, hoje padece, sofre sem t-los para seu alimento. Um exemplo disso o aa, que em alguns meses do ano importado de outros municpios por um preo elevado, o que deixa o povo mais humilde sem condies de consumi-lo diariamente. Diante de nossos comentrios e das opinies desses dois atores sociais, que representam categorias diferentes, mas complementares do tecido social melgacense, cabe-nos afirmar que o espao geogrfico da cidade de Melgao, como quase todo o planeta, tem passado por uma metamorfose permanente, seja provocada pelos elementos da natureza (sol, chuva, vento e outros fenmenos climticos), seja pela ao humana. Esta ltima a responsvel pelas piores consequncias, como o aquecimento e a elevao da temperatura mdia, de ocorrncia em todos os lugares. Algo interessante de ser percebido nas falas dos entrevistados que, talvez pelo nvel de educao escolarizada que apresentam para avaliar estas paisagens em transformaes, a mesma ao vista sob diferentes olhares; enquanto para o professor Hlio, algumas mudanas so vistas como positivas, caso do asfaltamento de ruas, para Seu Jos Lino, isso motivou o calor elevado de hoje, e visto como negativo. Porm, algo comum no modo de analisar essa mudana o fato de ambos perceberam as transformaes e alteraes no arranjo espacial da cidade de Melgao.

Propostas de Atividades1. Faa dois desenhos retratando a paisagem geogrfica do lugar onde voc mora em dois momentos: no presente e no passado (pea ajuda de seus pais ou de pessoas de mais idade para o segundo desenho). 2. Descreva como o espao geogrfico onde voc mora. Destaque o aspecto ambiental, assim como aqueles relacionados segurana, alimentao e moradia, por exemplo. 3. Voc acredita ser possvel que as populaes explorem o meio ambiente e gerem riqueza, sem destruir irresponsavelmente a natureza? De que forma isso pode ser feito? 4. Voc concorda ou discorda do professor Hlio quando afirma que a cidade fica feia porque est suja, que o lixo tira a beleza do ambiente? D sua opinio. 5. Faa um quadro, divida em duas colunas, relacione em uma os elementos naturais e em outra os elementos artificiais visualizados na paisagem onde voc mora. Depois responda: existem ambientes totalmente naturais, sem a interferncia humana? 6. o professor tambm pode pedir aos alunos para fazerem uma redao sobre as transformaes da paisagem e os reflexos que essas mudanas podem trazer para o ser humano. 7. Leitura da imagem do texto. observando atentamente a ilustrao de Mrcio de Menezes, diga o que voc pensa ao ver essa imagem. O que ela tem a ver com a sua vida? o que voc acrescentaria? Faa uma lista dessas propostas e depois construa uma nova imagem e um texto, abordando as questes que no ficaram bem expressas na ilustrao.

2DEIXANDO A TERRA NATAL as Migraes atravs dos TemposDenise Pahl SchaanA pr-histria o perodo mais extenso da histria humana. Comea h 2,5 milhes de anos, com a produo e uso de artefatos de pedra pelos primeiros homindeos nossos antepassados mais remotos. Se pararmos por um momento para pensar que os primeiros indivduos de nossa espcie - homo sapiens se desenvolveram no continente africano e a partir de l colonizaram todo o globo terrestre, cruzando mares e oceanos, teremos a exata dimenso da aventura migratria dos seres humanos. Mas talvez o impulso para migrar provenha primeiro de nossa carga biolgica. Sabemos que animais migram em busca de alimento e climas mais favorveis, frequentemente em pocas especficas do ano. As migraes humanas, entretanto, tendem a ser mais complexas e envolvem no apenas fatores econmicos ou seja, a busca de melhores condies de vida mas tambm razes polticas, religiosas, afetivas e simblicas. Moramos em um pas de migrantes. Para c vieram portugueses, africanos, alemes, italianos, espanhis, japoneses... Da mesma forma, brasileiros imigrantes esto presentes em quase todos os pases do mundo. Estima-se que cerca de 100 milhes de pessoas ou 2% da populao do globo viva longe de seus pases de origem. O ser humano parece ser migrante por natureza, o que comprovado pela trajetria de seu comportamento social desde o passado distante at a atualidade, quando os transportes mais rpidos e o fluxo quase instantneo de informaes no mundo globalizado facilitam os contatos e deslocamentos. Por que as pessoas migram? Antes de mais nada, vamos tentar entender o que leva as pessoas ou povos inteiros a migrarem. Um dos fatores primordiais apontados tem sido o econmico. As pessoas se sentem atradas por oportunidades de trabalho ou terra para cultivar (vantagens no destino), por um lado, e por outro se sentem expulsas de uma regio natal onde as oportunidades para alimentar a si e sua famlia j no so to promissoras (desvantagens no local de origem). A essa receita se deveArtefato: tudo aquilo que produzido por seres humanos a partir de matriasprimas existentes na natureza. Artefatos so, portanto, coisas culturais, no naturais.

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adicionar custos razoveis de transporte e a disponibilidade de informao sobre as vantagens do local de destino. A fome e a carncia de recursos mnimos necessrios sobrevivncia ocasionados pela seca no caso do Nordeste brasileiro aliados crescente industrializao no sudeste brasileiro, levaram a que milhares de mulheres e homens deixassem o Nordeste a partir da dcada de 1960 em direo ao eixo rio-So Paulo, onde se juntaram s populaes pobres de periferia para preencher as vagas de trabalho nas fbricas, na construo civil e nas casas de famlia - os chamados empregos domsticos. A partir da dcada de 1970, populaes rurais do sul do pas migraram para a Amaznia, seduzidos pela poltica desenvolvimentista do governo militar. Ao mesmo tempo, grandes contingentes populacionais ficaram para trs, muitas vezes sem condies de arcarem com as despesas da longa viagem. Percebe-se, por numerosos exemplos, que nem sempre os mais pobres migram, pois esses tm dificuldades de acesso informao e aos recursos mnimos para encarar uma longa jornada. Por isso, se aqueles que tm um pouco mais de recursos migram, parte da razo pode no ser somente econmica, pois se percebe que h outros desejos e situaes favorecendo esses deslocamentos. Estudos atuais mostram que a existncia de uma rede de solidariedade nos locais de destino um fator importante que contribui para o sucesso da migrao. ou seja, o migrante viaja j esperando encontrar algum apoio de familiares e amigos que chegaram antes dele no local, para que possa ter algum suporte nos primeiros meses de adaptao nova realidade. Outro dado importante que a migrao no uma deciso individual, mesmo nos casos em que uma s pessoa migra. Geralmente o migrante se engaja na aventura de tentar a vida em um local estranho por deciso conjunta dos membros da famlia e com seu apoio. Espera-se que o migrante bemsucedido mande dinheiro para casa e ajude os familiares que ficaram para trs. As migraes podem tambm ser temporrias e acontecer em funo de perodos especficos do ciclo produtivo de plantas e animais, quando vantajoso migrar para outra rea para coletar

recursos alimentares. Bioarquelogos brasileiros identificaram vestgios de migraes humanas temporrias entre o planalto e o litoral no extremo sul do estado de So Paulo a partir de seis mil anos antes do presente, com base em semelhanas genticas e da cultura material. Algo semelhante pode ter acontecido na regio de Santa Catarina, onde se supe que grupos indgenas alimentavamse de pinhes no planalto (um fruto com uma massa bastante calrica que se cozinha em gua e sal) durante o inverno e que no vero desciam para o litoral onde pescavam e coletavam mariscos. Migraes temporrias e entre curtas distncias podem ter ocorrido na ilha de Maraj em funo da variao da disponibilidade de peixes entre as estaes de inverno (cheia) e vero (seca). Quando as guas baixavam rapidamente no final do inverno, a quantidade de peixes presos em lagos e igaraps nos campos outrora alagados atraam populaes que viviam a mais de 100 km de distncia, que l se estabeleciam por alguns meses aproveitando-se da fartura de alimentos. Uma vez em sua nova terra, os migrantes podem sofrer com a adaptao s novas condies, especialmente se esto em menor nmero, pois se devem ajustar a situaes que frequentemente lhes colocam em um patamar inferior aos demais habitantes do local. Disporas talvez voc j tenha ouvido falar nessa palavra: dispora. No? Disporas so migraes foradas, em que sucessivas levas de povos so obrigados a deixar sua terra natal por fuga ou coero. Quando se fala da dispora africana, por exemplo, estamos no referindo aos milhes de pessoas que foram retiradas do continente africano a partir do sculo IX e levadas para o oriente mdio e a sia, e depois, a partir do sculo XVI, para a Europa e Amricas por mercadores de escravos para serem comercializados como mo-de-obra. A dispora africana a principal responsvel pela presena significativa de populaes afro-descendentes em pases do Caribe, no Brasil, Estados Unidos, e diversos pases sul-americanos, norte-americanos e europeus. no caso das populaes africanas, seu prprio status de escravos contribuiu para difi-

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cultar sua absoro mesmo depois do final da escravido. Uma maneira dos povos migrantes conservarem a memria de sua terra de origem manter laos culturais com ela, dando continuidade s tradies no preparo de alimentos, confeco e uso de vestimentas e adornos, manuteno do idioma materno, assim como procurando a realizao de festas, rituais e cerimnias que reavivam esses laos. Migraes Indgenas No final do sculo XIX, quando foram descobertos cemitrios indgenas no Maraj que indicavam a existncia de sociedades complexas, com alto nvel de desenvolvimento tcnico, pensou-se que essas populaes teriam vindo de fora, pois contrastavam com a aparente simplicidade das populaes indgenas amaznicas ento conhecidas. Nos anos de 1950, essa idia ganhou fora principalmente com os trabalhos de Betty Meggers, arqueloga que defendeu a tese de que a cultura marajoara teria sido trazida ao Maraj por povos que migraram dos Andes. Mesmo no tendo sido encontrados vestgios dessa suposta migrao ao longo do rio Amazonas, tal idia predominou por mais de trs dcadas, povoando ainda hoje o imaginrio de cientistas e leigos. A partir da dcada de 1980, com as pesquisas da arqueloga americana Anna roosevelt no Maraj, a idia de um desenvolvimento autctone da cultura marajoara, no baixo Amazonas, ganhou fora, especialmente quando ficou provado que aquelas populaes l viveram por cerca de 900 anos. Hoje incontestvel que a semelhana existente entre as prticas desenvolvidas pelas sociedades marajoaras e aquelas que a antecederam comprova o desenvolvimento local.

Autctone: Aquele que natural de uma regio, nativo.

de Maraj e l se estabelecer sem ter deixado vestgios em seu caminho. Alm disso, teriam que contar com informaes sobre o local do destino, alm de ter planejado muito cuidadosamente essa aventura. Quando as migraes ocorrem sobre distncias maiores, porque h informantes que vo na frente explorando os novos locais e buscando assegurar-se de que haver boas condies nos locais de destino. Apesar da dificuldade de se obter dados seguros sobre as migraes de indgenas americanos pela falta de censos demogrficos e documentao escrita, sabe-se que grandes movimentos migratrios seguiram-se ao contato com os europeus, na medida em que diversos grupos indgenas optaram ou foram obrigados pelos invasores europeus e depois pelos colonizadores a deixarem suas terras localizadas nas vrzeas e procurarem locais mais seguros no interior da floresta. Chegando s cabeceiras dos rios, os remanescentes das guerras de conquista, das correrias para capturar escravos e das doenas europias juntaram-se aos povos que l vivam, formando novas sociedades, agora multitnicas e multilingusticas. As migraes so sem dvida um tema fascinante. Os migrantes que retornam sempre tm histrias incrveis para contar sobre suas experincias em locais to diferentes. tais relatos, se por um lado fascinam o interlocutor, por outro acabam dando-lhe a impresso de que, afinal de contas, o melhor mesmo ficar em casa. No podemos nos esquecer de que, se nossa espcie colonizou o planeta, no o fez apenas se movendo, mas principalmente permanecendo nos locais onde nasceu e cresceu, onde construiu paisagens plenas de significados, memrias e afetos.

PAISAGENS & PASSAGENS

Propostas de Atividades1. Identifique no texto as idias da autora sobre migrao: motivos que levam as pessoas a migrarem, fatores que favorecem as migraes, problemas enfrentados pelos migrantes. A partir disso elabore um roteiro de entrevistas para que voc possa entrevistar imigrantes em sua cidade. Identifique seus potenciais entrevistados e pea que lhe concedam a entrevista. Responda: a realidade que voc identificou a partir de sua entrevista corresponde ao que a autora coloca no texto? Compare a sua entrevista com a de seus colegas. o que h de comum e o que h de diferente nas respostas obtidas? 2. A partir de todas as entrevistas feitas em sala de aula, os alunos podem montar um mapa identificando os locais de origem dos imigrantes que existem em sua vila ou cidade. 3. Como a participao dos imigrantes em sua cidade contribuiu para a diversidade cultural? Na maneira de falar? Na comida? Na maneira de vestir?

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Assim como hoje a maior parte dos movimentos migratrios ocorrem em curtas distncias, sobre rotas j conhecidas e contando-se com informaes sobre os destinos, supe-se que o mesmo ocorreu no passado. Seria impensvel que um grupo h mil e quinhentos anos teria deixado as montanhas andinas e navegado milhares de quilmetros para finalmente chegar na lha

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3A MIGRAO NORDESTINA PARA SALVATERRALuiz Antonio da Silva Waldeci Pena Miranda

No ano de 1900, o Estado do Par era governado por Jos Paes de Carvalho, o qual entendeu que para o desenvolvimento da agricultura no Estado eram necessrios mais braos na lavoura, o que seria possvel atravs dos migrantes. Ento, seguindo as metas desse projeto foi implantada no Maraj, mais especificamente, em Salvaterra, a Colnia Agrcola Paes de Carvalho. nesse perodo, Salvaterra, ainda na condio de vila atrelada ao municpio de Soure, possua apenas trs ruas e trs travessas, que compreendem respectivamente, as hoje conhecidas ruas 10 de maro, 29 de dezembro e Cearense e as travessas, Beira-mar, 2 e 3 travessa, essa chamada nos dias atuais de Avenida Victor Engelhard. A Colnia Paes de Carvalho ficava localizada a 3 km da vila. Segundo Edeltrudes Corra e Assis, filho de nordestinos emigrados e conhecido na cidade de Salvaterra como Seu Getlio Assis, a Colnia era distribuda em 45 lotes com aproximadamente 45.554 m2 no total, contando com uma estrutura em que cada lote possua as seguintes construes: uma casa residencial de madeira coberta com cavacos tambm de madeira, uma casa de forno coberta com palhas de anajazeiro, destinada tambm fabricao de farinha de mandioca, e um poo de gua potvel do tipo boca aberta. As casas, pequenas, eram cobertas com cavacos de madeira. Havia uma igrejinha, localizada prxima linha 2 estrada rumo comunidade de Bacabal. Em toda a colnia havia uma boa quantidade de pessoas, oriundas de vrios lugares do nordeste (Sr. Edeltrudes Corra de Assis,

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Freteiros: Embarcaes destinadas ao transporte de mercadorias para a Ilha de Maraj.

Cavernoso: Expresso local que indica a existncia de um inverno rigoroso.

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em entrevista realizada dia 31/08/08). Foram recrutadas para povoar e trabalhar na colnia, segundo Seu Getlio Assis, 25 famlias cearenses, 5 famlias rio-grandenses do norte, 3 famlias pernambucanas, 2 famlias piauienses e mais 10 famlias de outros estados do nordeste do Brasil, que chegaram a Salvaterra a partir de 1900, perfazendo 45 famlias assentadas. Sob o comando do coronel Bezerra, os imigrantes desembarcaram na ilha do Outeiro e de l foram encaminhados para Salvaterra. Segundo Seu Getlio Assis, foi o coronel Bezerra quem determinou que o Sr. Jos Corra de Lima imigrante do Estado do Cear fosse o primeiro administrador da colnia. Entretanto, como esse senhor tinha um pequeno comrcio (taberna) na 2 rua da vila de Salvaterra, e outros afazeres polticos, ele foi substitudo pelo Sr. Macrio Silva, na administrao da Colnia. Foi estipulado um prazo de dois anos para a aclimatao e adaptao dos colonos. nesse perodo cada famlia recebia a ajuda de um rancho de mercadorias (equivalente a uma cesta bsica por ms). No contexto da implantao das famlias nordestinas em solo salvaterrense, efetivou-se um problema a ser enfrentado pelos seus componentes. A desconfiana com que os moradores locais recebiam os imigrantes, o que teria levado a existir alguns litgios entre os nordestinos instalados e a populao local. Afirma-se que depois de ativada a Colnia Agrcola Paes de Carvalho, ela foi grande exportadora de tomate, aproveitando as viagens de barcos freteiros e do navio Miguel Bitar que passou a fazer viagens regulares na recm inaugurada linha martima Soure Belm, pelo ento Governador do Estado Sr. Dr. Augusto Montenegro. Segundo Seu Getlio Assis, com o passar dos anos a Colnia Agrcola Paes de Carvalho foi entrando em um processo de decadncia, efetivada atravs da diminuio da vinda de imigrantes para a regio, alm do deslocamento de seus moradores para outras vilas de Salvaterra. Para ele, os principais motivos que contriburam para isso foram: As constantes brigas entre os imigrantes e os nativos; As mortes nas famlias por motivo de aclimatao; O medo das consequncias climticas decorrentes da passagem do cometa halley, na noite de 18 de maio de 1910; Mudana no Governo do Estado, pois o Governador Augusto Montenegro priorizava os meios de transporte e no a agricultura e os assentamentos de imigrantes; o fim, aps dois anos, da ajuda com o rancho (cesta bsica mensal); Enchentes na rea, ocorridas nos invernos mais cavernosos. Alm desses fatores, o narrador ainda aponta o xodo interno, porque alguns agricul-

tores saram da Colnia e comearam a se deslocar vila para trabalharem como pescadores, o que os levou a morar na 3 rua da vila de Salvaterra, no permetro hoje localizado entre a Avenida Victor Engelhard e a Avenida Beira-Mar, espao batizado pelos moradores locais de Bairro dos Cearenses, o qual, em 1990, foi homologado por Lei Municipal como rua Cearense, como forma de perpetuar a importncia desse povo para o progresso, cultura e histria de Salvaterra. Muitos nordestinos, antes mesmo do fim da Colnia, deslocaram-se para a regio, hoje fica prximo do hospital municipal, na poca chamado de Bairro dos Cearenses. Eles se dedicaram pesca e, eram comandados pelo Seu Chico Cruz e pelo Seu Antnio Mendona, conhecido pelo apelido de Porm (Sr. Edeltrudes Corra de Assis em entrevista realizada no dia 31/08/2008). Apesar da dissoluo da colnia agrcola por volta de 1915, durante o perodo da 2 Guerra Mundial, entre 1941 e 1945, vrias outras famlias nordestinas continuaram chegando a Salvaterra, entre elas muitas das que fizeram parte do grupo ento chamado soldados da borracha destinados extrao gomfera na Amaznia. Segundo o Prof. Jaime Corra de Assis, idealizador da bandeira, braso e hino do municpio de Salvaterra, e filho de nordestinos emigrados para a regio, a segunda leva de imigrantes foi marcada pela espontaneidade. Pois, segundo ele, essas pessoas vieram induzidas por amigos e parentes que em Salvaterra moravam ou haviam morado. A respeito disso, conta Dona Francisca Craveiro, filha de cearenses, radicada desde esse perodo na regio: Viemos para o Par durante a 2 Guerra Mundial. Samos da cidade de Balsas no Cear e nos deslocamos para Belm. Em busca de terras viemos parar em Soure e, depois, nos deslocamos para Salvaterra. Viemos primeiro para o Carananduba (regio s margens do rio Paracauari), onde comeamos a nossa produo agrcola(Sra. Francisca Craveiro em entrevista realizada no dia 16/08/2008).

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Entre os muitos nordestinos emigrados, podem ser destacados o cearense Alexandre Almeida, que teria se destacado na poltica local por ser o primeiro a defender a emancipao poltica de Salvaterra em relao ao municpio de Soure; o norte rio-grandense Raimundo Pinheiro Gurgel, que era proprietrio de uma taberna que ficava localizada no porto da vila e de uma canoa freteira chamada Cidade de Salvaterra, que devido sua popularidade veio a ser eleito, durante a dcada de 1980, Prefeito de Salvaterra. Para muitos salvaterrenses os nordestinos deixaram um enorme legado, como a pesca artesanal, a produo de renda, a produo da rede de dormir tecida no tear, a produo do sabo da castanha de andiroba, o sabo de coco, a vela de sebo de carneiro, o mel ou melado feito da garapa da cana-de-acar, entre outras riquezas da cultura nordestina. Segundo a memria de muitas pessoas da populao salvaterrense, muitos saberes de sua farmcia caseira, fazem parte dessa herana, podendo ser destacados a carmelita ou ervacidreira, para desobstruir o intestino no caso de indigesto; o leo do bicho do coco do tucum, para se fazer frices nos inchaos e inflamaes; o ch da folha do pariri com a casca da sucuba branca, como remdio para a anemia; o sumo do mastruz para se livrar das verminoses; as garrafadas feitas com leite do amapazeiro com chocolate, noz moscada, puxuri e vinho tinto para curar a fraqueza em geral e atravs desses conhecimentos, do povo local dizia que os nordestinos inventaram a farmcia do pobre.

4NORDESTINOS EM PORTELJos Mendes Santana da SilvaA chegada de levas de migrantes ao local onde hoje se localiza o municpio de Portel se deu em pocas diferentes, comeando com a chegada dos ndios, portugueses, padres jesutas e com esses outros ndios de naes variadas, pejorativamente batizadas como nheengabas. Com a expulso das ordens religiosas da Amaznia, decorrente da Lei Pombalina de 6 de junho de 1755, a aldeia Arucar, na poca uma freguesia sob a invocao de Nossa Senhora da Luz, passou, como as demais aldeias do Gro-Par e Maranho, a ser governada por diretores de ndios. Por ato do ento governador do Gro-Par, Francisco Xavier de Mendona Furtado, em 1758 Arucar alcanou a categoria de vila. Neste perodo pombalino, os nomes das vilas foram substitudos por nomes portugueses. Dessa forma, o povoado foi batizado de Portel, nome de uma antiga cidade portuguesa, que significa Porto Pequeno, elevando-se ao nvel de municpio em 24 de janeiro do mesmo ano. Sabemos que tentar abarcar todas as levas migratrias para o municpio de Portel um trabalho que requereria muito mais tempo e dedicao, portanto caro leitor, neste texto, destacaremos apenas trs razes que contriburam para o processo migratrio nordestino para o municpio de Portel, que so: a explorao da borracha, o surgimento da Amaznia Compensados e Laminados (Amacol) e, mais recentemente, a extrao da madeira. A primeira se deu no incio do sculo XX em funo da abundncia da rvore nativa denominada seringueira, e tm como protagonistas principais os seringueiros, principalmente nordestinos, e os seus patres, os bares da borracha. os nordestinos realizavam a extrao do ltex em grandes latifndios pertencentes elite da poca, que residia em Belm. Memrias destes tempos foram recuperadas por Seu Jos Anastcio Santana da Silva:Nheengabas: nome dado pelos ndios Tupinambs aos povos indgenas habitantes da ilha de Maraj, cujo significado gente de lngua incompreensvel.

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1. Pesquise se existe alguma ascendncia nordestina na sua famlia ou na famlia de seus amigos ou vizinhos. 2. houve alguma personalidade que se destacou em seu municpio e que possua ascendncia nordestina? 3. Para voc existem traos da cultura nordestina em seu municpio? Exemplifique. 4. Qual a importncia dos imigrantes para a constituio da populao de seu municpio? 5. Aponte algum outro conhecimento popular existente na farmcia domstica de seu municpio. 6. Existem na sua cidade, bairros, ruas, portos, comrcios ou reparties que fazem referncias a pessoas ou cultura nordestina? 7. Para voc qual a importncia da imigrao nordestina para o desenvolvimento do estado do Par e da Amaznia? 8. Cite os aspectos da cultura nordestina que voc mais aprecia.

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Propostas de Atividades

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Aps a coleta do leite da seringueira, este produto natural era entregue ao patro, representante, em esfera local, do baro da borracha, geralmente situado na capital do Estado. O patro, em geral, fazia o adiantamento (aviamento) em forma de mercadorias, leo, sementes, ferramentas, entre outros produtos. Dessa forma o seringueiro j comeava devendo para o patro, realidade que, muitas vezes, impossibilitava a sua volta ao lugar de origem. A maioria dos imigrantes nordestinos eram pequenos agricultores, mas devido a fatores climticos e econmicos a permanncia do lugar de origem se tornava invivel. Devido a esta situao, muitas famlias migraram para o Estado do Par e, destes, algumas centenas desembarcaram em Portel. Sabe-se tambm que nesta poca Portel estava passando uma fase difcil, no to diferente dos dias atuais. Como nos relata Seu Jos Paulo de Souza, conhecido como Z comprido, de 75 anos, de Canit, Maranho: A chegada foi complicada. Portel estava passando por uma situao precria, porm ainda oferecia mais condies de sobrevivncia do que no lugar onde a gente vivia (agreste cearense). Mas o maior problema encontrado foi a falta de conhecimento com as pessoas e tambm a falta de credibilidade, mas com o tempo passei a ganhar confiana e resolvi ficar.

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Quando meu pai veio pela primeira vez, eu era um garoto de oito anos de idade. Samos de Cate, Cear, para trabalhar na extrao do ltex. Comeamos a trabalhar no rio Carnajuba, no interior de Melgao. O motivo principal da sada do lugar de origem era que l estava difcil de manter o sustento da famlia. Por l j se comentava que essa regio era boa de se viver, j que algumas pessoas iam no vero e voltavam no inverno, outros no mandavam nem notcia. Aps alguns anos paramos em Portel.

Os hbitos alimentares da maioria dos imigrantes baseavam-se no feijo, rapadura, toicinho, cuscuz, leite de gado e cobra, farinha de milho e carne seca de sol. Mas em Portel passaram a se alimentar de feijo, arroz, carne de caa, peixe, frutos das florestas, mandioca, milho e seus derivados. Nessa poca Portel era uma cidade pequena, com casas distantes uma das outras, no existia acesso praia, que hoje se encontra com sua orla totalmente urbanizada; no existiam as ruas, somente caminhos. A maior parte da cidade era tomada por capoeira e destacava-se como nica construo de alvenaria a igreja catlica. A segunda leva de imigrantes nordestinos para o municpio de Portel ocorreu em meados dos anos de 1950, com a abertura de uma grande empresa madeireira, a Amacol (Amaznia Compensados e Laminados), como nos conta Seu raimundo Ferreira dos Santos, de 66 anos, natural da cidade de Penalva, no Maranho: Nessa poca, Portel era uma cidade de pouco movimento, e o que gerava emprego era a Companhia Amaznica (Amacol). O bairro do Murucy era uma rea de pequenas lavouras; a rua que hoje 2 de fevereiro, era um caminho que levava s lavouras, no existia os colgios, a biblioteca, o ginsio, o estdio de futebol; Portel era muito pequena. A partir do surgimento da empresa Amacol, Portel recebe uma quantidade significativa de profissionais das diversas reas que antes no tnhamos, e a paisagem pacata e tranqila comea a se modificar. Surgem ento o primeiro posto mdico, a primeira escola, o primeiro campo de futebol e outras melhorias de que a populao local sentia necessidade. Percebe-se claramente a modificao do espao urbano que atribuda cidade a partir da chegada desses imigrantes, principalmente nordestinos. E por fim, o terceiro motivo que contribuiu para consolidar este processo migratrio em

Portel: a extrao madeireira. A implantao de serrarias s margens dos rios Anap e Pacaj acontece de maneira desenfreada a partir da dcada de 1980, consequentemente, atraindo uma grande quantidade de pessoas das diversas partes do pas. A cidade que mudava lentamente, agora muda diariamente, surgem ento alguns bairros de maneira desordenada e de infraestrutura inexistente, que transforma a nossa cidade em palco da prostituio infantil e violncia urbana e rural, com um grande ndice de pessoas no-alfabetizadas e desempregadas, enfrentando difceis condies para conseguir seu sustento dirio. hoje, esto presentes em um mesmo municpio posseiros, grileiros, grandes latifundirios, madeireiros, pequenos e grandes agricultores que vem em busca da imensa riqueza natural existente em Portel. Dentre esses grupos sociais, os retratos da cidade evidenciam aqueles migrantes nordestinos que, em diferentes momentos histricos, alcanaram a cidade e fizeram de Portel sua terra adotiva.

5NARRATIVAS E OLHARES DA MIGRAO PARA MELGAODailson Guatassara Santos Glindes Ribeiro WanzelerO processo migratrio faz parte da vida das populaes humanas. Em diferentes tempos e lugares, homens e mulheres sempre procuraram viver da melhor maneira possvel. Desde a gnese humana, o homem sempre foi um ser nmade, pois viveu e curtiu sua vida em processos de constantes movimentaes. Na ilha e arquiplago dos Marajs, os primeiros habitantes deixaram, entre seus muitos saberes, a alternativa de estar sempre descobrindo outros lugares, rios e outras florestas, e desvendando os enigmas dessa cartografia fsica. Para isso ensinaram a seus filhos e s futuras geraes que a vida humana e as relaes sociais nunca foram estticas, e o isolamento nunca fez parte de suas identidades culturais.

Propostas de Atividades1. represente atravs de uma pea teatral os trs momentos da chegada dos nordestinos a Portel. 2. A partir da leitura do texto, faa a representao da paisagem, mostrando o antes e o depois do municpio do Portel (atravs de maquetes ou desenhos). 3. Fazer o debate de alguns temas apresentados no texto, como: Migrao efetiva e migrao temporria. Explorao da borracha. Extrao madeireira e os impactos ambientais. Pluralidade cultural.

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O passar dos tempos e as transformaes em diferentes campos do saber fez homens e mulheres enraizarem-se em comunidades e cidades, tornando-se, em dado momento, sedentrios. Tal mudana, por seu turno, construiu duas facetas para o mesmo processo. Se muitas famlias habitando em cidades, vilas e povoados podem ficar mais tempo ali residindo, outras, em funo de diferentes razes, esto sempre a caminhar em busca de melhores condies de vida e paz de esprito. Em nossa regio, percebemos que entre as razes que produzem deslocamentos humanos e culturais da floresta para a cidade, destacam-se: a busca por um emprego no setor pblico, melhores condies de infraestrutura no espao de habitao, acesso sade, educao, moradia, maior aproximao com o poder legislativo e executivo e relaes familiares, envolvendo afetividades, como saudades e laos humanos. As movimentaes de ribeirinhos da floresta para a cidade no so sempre lineares. Isso pode ser facilmente visto quando algumas famlias se desencantam pela vida na cidade e retornam para suas antigas habitaes e propriedades no espao rural. Tais famlias percebem que a propaganda de obter uma vida melhor nem sempre se materializa. As linguagens urbanas desestruturam, muitas vezes, cdigos e comportamentos oriundos do espao ribeirinho/rural. Os migrantes, em sua maioria, so trabalhadores do campo ou de cidades de outras regies que saem de sua terra natal para melhorar de vida com as novas oportunidades oferecidas pelo novo municpio. Para demonstrar tal argumento, usaremos depoimentos de alguns migrantes, sendo um deles Dona Ilda, oriunda do estado do Maranho para Melgao, no Maraj das Florestas.

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Pensei que Melgao fosse um lugar igual ao Maranho, com uma enorme falta de gua, sem condies de fazer plantaes, cultivos e criao de gado, que so coisas da qual sempre gostamos de fazer. Porm, l, a tremenda falta de gua no permitia que fizssemos, mesmo assim viemos e quando aqui chegamos, me deparei com outra qualidade de vida

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Percebemos que da mesma forma que nordestinos migraram no perodo da borracha para os seringais de Melgao, como Raimundo Anacleto, Benevenuto nogueira, Germano Andrade e os primeiros Mamedes, ainda hoje muitas pessoas migram em buscas de melhores oportunidades, porm, esse processo migratrio no se d em funo somente da busca pelo trabalho, h outros motivos que precisamos levar em considerao para no restringirmos a complexidade do processo social. Perseguies polticas, melhor acesso educao, sade e moradia se mesclam com outros fatores apontados pelos entrevistados. Entre estes depoimentos, o de Dona Miraci, que veio de Benevides, para Melgao, torna-se revelador:

Como j citamos anteriormente, a educao tambm tem um papel fundamental no processo de migrao e formao da populao, habitante do ncleo urbano melgacense. Com a construo da primeira escola estadual na sede do municpio, na dcada de 60, e o processo de emancipao poltica que levou libertao de Melgao da custdia de Portel, a cidade passou a ser vista com outros olhos pelos moradores rurais. Um relato que esclarece tal argumento o testemunho de Lia Souza, coordenadora da E.M.E.F. Getlio Vargas, em Melgao, vinda de So Sebastio da Boa Vista, a qual falou de suas expectativas e conquistas, ao chegar ao municpio:

Eu realmente no tinha boas expectativas em relao a esse municpio, pois o achava muito pobre, os governantes no mostravam compromisso com o desenvolvimento. hoje eu vejo outra realidade. Estudei, me formei e trabalho na educao h sete anos, ganho razoavelmente bem. O padro de vida dos moradores est melhor, a educao caminha a passos largos e isso muito importante para o desenvolvimento do municpio.A mudana de olhar da coordenadora pedaggica Lia Souza sobre a cidade de Melgao deve-se muito pela maneira como estabeleceu laos de pertencimento com a cidade e as oportunidades conquistadas. Nesse caso, o ato de migrar lhe trouxe melhoria de vida, ascenso social pela formao de nvel superior conquistada, e oportunidade de fazer o concurso pblico e ser apro-

Sou de Benevides, conheci meu marido l. A famlia dele morava aqui em Melgao e depois que seus pais se separaram e eles foram morar em Benevides, l eu conheci ele, namoramos e casamos. Como l era difcil o emprego, resolvemos voltar para a cidade dele e comear uma nova vida.

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vada. Se para Lia a migrao para Melgao no apresentava, inicialmente, grandes expectativas, depois superadas, para outros entrevistados a opo por Melgao vem de conceitos pr-definidos como o de ser uma cidade extremamente familiar e acolhedora. nas palavras de Dona Ilda, que j havia residido em Melgao, mas estava habitando outro lugar, ao declarar sobre a questo de voltar a sua terra natal, comentou: Me sinto feliz aqui, me dou com as pessoas daqui, demorei muito tempo a me acostumar e agora no penso em sair daqui. O sentido do pertencimento ao lugar pesa muito nas avaliaes feitas pelas pessoas que pensam em deixar um lugar em troca de outro. relaes familiares, amizades, negcios em parceria, contam muito nesse processo de deciso. Por isso, alguns, ao sarem e terem a oportunidade de voltar, optam, quase sempre, pelo retorno. O relato de Lia Souza, ainda que esteja inserido nesse universo, amplia a questo e faz entendermos que diferentes so os motivos da migrao e complexas so as relaes constitudas pelas pessoas, tanto com o lugar deixado, quanto com o novo espao de moradia. Lia questionada sobre a ideia de voltar para So Sebastio da Boa Vista, entre indecises, trao prprio do ser humano, narrou: s vezes eu tenho vontade de voltar sim, s vezes no. Quando penso em voltar para minha cidade de origem, por causa de meus pais, mas a eu os visito e logo quero voltar para Melgao.

Envolvendo diferentes culturas, relaes, os deslocamentos ocorridos de outros lugares para Melgao demonstram, a partir de alguns poucos depoimentos por ns coletados, a construo de uma complexa teia de relaes, sendo impossvel classific-los em uma nica razo, como comumente se pensou. As condies econmicas ainda que sejam importantes na redefinio da vida de um sujeito social, no do conta de explicar todo o emaranhado de sentidos, significados, avaliaes, indecises e traumas que o ato de estar como corpos de passagem podem provocar. Enfim, ouvir outras vozes, dialogar com outras evidncias, podem ampliar esse leque de reflexes e conhecimentos que a pesquisa com a temtica da migrao suscitou em ns.

Trabalhando com o Texto1. Estudo do vocabulrio textual A partir da leitura do texto, procure conhecer os significados das novas palavras, para enriquecer o seu conhecimento idiomtico. Pesquise os significados das palavras desconhecidas. 2. Vamos compreender melhor o texto: a. o que os migrantes pensavam ao chegar ao novo municpio? b. Quais os motivos que fizeram as primeiras famlias povoarem Melgao? c. o que fez com que Dona Ilda migrasse para este municpio? d. Segundo o texto, que influncias as famlias de alguns migrantes possuem nas decises de voltar ou no a sua terra natal? e. Por que motivo muitas pessoas mudam de um lugar para outro? 3. Interpretao textual observando a leitura do texto, reflita e escreva: Como voc imagina Melgao, quando chegaram os primeiros migrantes? Desenhe e escreva suas impresses.

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II HISTRIAS DE VILAS E CIDADES

6F, FOGO E MAR: Histrias e Memrias da Vila de ArapixiDenise da Costa dos PassosA Vila de So Sebastio de Arapixi uma localidade que j passou por vrios problemas e processos de mudanas sociais, desde seu surgimento at os dias atuais. De aldeia, o Arapixi j foi stio e atualmente uma importante vila pertencente ao municpio de Chaves. Ali acontece uma das maiores festas tradicionais do municpio, que a festividade de So Sebastio de Arapix, realizada entre os dias 9 a 20 de janeiro, atraindo populaes de vrios lugares do Par e Amap.

HISTRIAS DE VILAS E CIDADES43

Um dos maiores dramas vividos atualmente pela Vila de Arapixi o difcil acesso. Para chegar at a vila o aventureiro enfrenta um enorme desafio, pois para navegar no rio Arapixi depende-se de mar alta. preciso conhecimento e pacincia. Como bem assinalou o padre Giovanni Gallo, quem manda no Maraj no o prefeito, nem o fazendeiro, quem manda no Maraj a gua. Assim, para que as pessoas possam ter tranquilidade em chegar at a vila sem correr risco de encalhar o barco nos bancos de areia ou de serem arrastadas pela fora dgua, preciso que a gua esteja grande. o rio largo, porm raso, e muda o seu leito a cada ms, deixando as pessoas confusas ao navegarem-no. Apesar dos altos e baixos que a vila tem passado e a falta de interesse das administraes pblicas para sua melhoria, observa-se que hoje existe um nmero considervel de pessoas que escolheram Arapixi como lugar para moradia. Um dos atrativos, conforme pude ouvir de avaliaes dos moradores com quem conversei para produzir este texto, a educao escolarizada ali existente. H pouco tempo foi implantado nesta vila o Ensino Mdio, que aos poucos comea a se expandir nos povoados amaznicos.

HISTRIAS DE VILAS E CIDADES

44 O municpio de Chaves est localizado na ilha de Maraj, limitando-se ao norte com o oceano Atlntico; ao sul com os municpios de Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari e Anajs; a leste com o municpio de Soure; a oeste com o municpio do Afu e rio Amazonas. Registros histricos informam que a origem do municpio derivou de uma antiga aldeia de ndios Arus. Em 1755, no dia 6 de junho, foi criada a lei que deu aldeia o predicamento de Vila. ressalta-se que, ainda no perodo colonial, Chaves foi tambm habitada por povos que exploravam a olaria, alm de servir de centro militar. Do municpio fazem parte as ilhas de Caviana, Mexiana e Viosa. os principais rios so o Cururu, Ganhoo, Arrozal, e Arapixi, que nasce na costa sul da Ilha de Maraj.

HISTRIAS DE VILAS E CIDADES45

A Vila de So Sebastio de Arapixi possui uma populao de aproximadamente 287 habitantes e est localizada margem direita do rio de mesmo nome. Suas principais atividades econmicas so a pesca artesanal, extrativismo do aa, pecuria e comrcio. Esta vila se estruturou a partir de um stio, uma grande rea de terra de um latifundirio da poca, pertencente famlia olmpio Ferreira, detentora do comrcio local. Esta famlia comprava os produtos em Belm e Macap para revender s famlias da localidade arapixiense, com um custo muito acima do preo geralmente praticado. Somente quem tinha poder aquisitivo razovel era capaz de consumir tais produtos. Essas prticas de comercializao, conjugadas com as atividades de pesca, de criao e de agricultura, sem esquecer as prticas religiosas, constituram o povoado. Wanderlia da Costa Almeida, 40 anos, filha de Jos Maria Barroso de Almeida e Gilka da Costa Almeida, ambos naturais do municpio de Chaves e ex-moradores de Arapixi, recuperaram lembranas ouvidas de sua av, hoje com 99 anos, que narrou que, em 31 de maio de um ano que no lembra, aconteceu uma festa de Nossa Senhora das Graas na vila de Arapixi. Nessa determinada festa houve uma briga, onde um homem da famlia Bezerra foi esfaqueado e morreu. Os familiares do assassinado, por sinal muitos violentos, voltaram para vingar a morte de seu parente. no encontrando os culpados, saram fazendo arruaas pela vila, botando as pessoas para correr e ateando fogo no espao fsico da comunidade. Wanderlia suspira e afirma: Graas a Deus nessa arruaa no morreu ningum! Isso s no aconteceu, porque na poca as pessoas no eram moradores fixos da vila, pois possuam a casa da vila e a casa do campo, permanecendo nesta ltima a maior parte do tempo. Aquele episdio de destruio constituiu-se em marco na histria da vila, pois, se por um lado viveu-se ali a tristeza da perda fsica e material; por outro lado, a vontade de reconstruir e transformar aquela vila na mais importante do municpio de Chaves tornou-se meta a ser alcanada entre os moradores que ali ficaram residindo. Segundo depoimentos orais coletados a partir desse episdio, aps o incidente os moradores fizeram um juramento entre si. Prometeram que, a partir daquela data, iriam levar

seus filhos para serem educados na cidade grande (Belm), para que um dia Arapixi fosse a localidade com maior nmero de pessoas formadas, como mdicos, advogados, pedagogos, entre outras profisses. A professora Luza Almeida Vasconcelos, 47 anos, filha de Gelcira Barroso de Almeida e temistocles Santa Cruz de Vasconcelos, foi uma das pessoas que saiu de Arapixi para estudar em Belm e voltou formada. Ela que, sempre veio a Arapixi, no conhecia a sede do municpio, Chaves. S conheci a sede em 1994, quando fui chamada para trabalhar no Sistema Modular de Ensino, um projeto da Secretaria de Educao do Estado do Par, que tinha como objetivo formar alunos em nvel de 2 Grau, lembrou a professora. Da em diante, a professora Luza ficou em Chaves, onde atualmente exerce a funo de Secretria de Educao. Segundo ela, apesar de a vila do Arapix ter ficado um tempo quase sem moradores, em funo daquele incndio, nunca perdeu a sua identidade e o valor que possua para o municpio de Chaves.

pos sociais e paroquiais. Muitos filhos da prpria Vila de Arapix, residentes em Belm, Macap e Braslia, fazem de tudo para estar em sua terra natal no perodo de 9 a 20 de janeiro, quando ocorre o festejo. Conversando com algumas dessas pessoas sobre as mudanas ocorridas na organizao da festa, seus avs contam que, na poca deles, a festa era to glamorosa que os senhores vestiam ternos e as senhoras vestidos sociais para assistir e acompanhar a procisso do santo. naquele tempo festivo, aconteciam apresentaes de bandas instrumentais, novenas e o arraial do santo ficava todo enfeitado. Algumas coisas mudaram na forma de organizao da festa; a Igreja passou a controlar mais o lado profano, muitas pessoas deixaram de frequentar a vila em funo de seu difcil acesso, pois o rio de Arapix chega a ser misterioso, uma vez que cada ms o canal muda de lugar. Isso faz com que os donos de embarcaes fiquem amedrontados, pois se vierem a encalhar a embarcao no rio, correm o risco de v-la arrastada pelo fenmeno da pororoca, comum no municpio. Desta forma, a vila de Arapix vive grandes ambiguidades em sua vida cotidiana e social, pois sendo a comunidade do espao rural mais importante do municpio de Chaves, local habitado por filhos ilustres, por sua formao superior, e sede da maior festa religiosa municipal, ainda precisa conviver com formas de isolamento por sua localizao geogrfica e pela prpria dinmica e perigo que as guas do rio-mar produzem, o que afeta, em ltima instncia, seu desenvolvimento integral.

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Isso se justifica pelo fato de l nunca deixar de se realizar a festividade de So Sebastio de Arapixi, conhecida como a maior festa religiosa do municpio. A trajetria dessa festa, sozinha, d conta de recontar uma boa parte da histria de Chaves, porque ela agrega no somente a manifestao religiosa, mas vrios conflitos que se estabeleceram pelo controle da festa entre polticos locais e os procos que por ali aportavam. Conforme a posio da igreja catlica, os polticos sempre viram a festa como espao de realizao de seus prprios projetos e interesses, desvirtuando o sentido maior do evento sagrado. J na viso dos polticos de Chaves, a Igreja sempre pretendeu modificar as tradies do povoado, desrespeitando sua prpria organizao e seus rituais. Como forma de repudiar a prtica centralizadora adotada pelos religiosos, os polticos passaram a realizar sua prpria festa em memria de So Sebastio, em uma sede danante, evitando se misturar com aqueles que concordavam com a posio da igreja. hoje aquele conflito foi amenizado; mesmo sem viverem relaes harmnicas, padres, polticos e moradores locais procuram negociar posies, tornando o tempo da festa um tempo de celebraes e diverses. no por acaso, atualmente a igreja conta com apoio de vrios gru-

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Trabalhando com o TextoDebatendo o texto Qual o maior evento religioso realizado na comunidade de Arapix? Em sua comunidade h algum evento que voc considera importante? Fale sobre ele. Como eram as festas passadas na Vila Arapix? Voc acredita que as festas de antigamente eram melhores do que as festas atuais? Explique a diferena. A populao que habita a Vila Arapix enfrenta um grande problema. Cite-o e comente o que preciso ser feito para resolv-lo. Para alm do texto Voc j morou em alguma vila? Como se chamava? Como era a vida naquele espao? Se voc nunca morou, converse com uma pessoa que tenha experincia de moradia e procure saber: Como a vida numa vila? Quais as vantagens e desvantagens? Na vila se realiza algum tipo de festividade ou programao? Como isso acontece? olhando o municpio: Voc sabe quantas vilas existem em seu municpio? Quais as vilas mais importantes? Do que se sustentam os moradores que habitam esses espaos? o que preciso ser feito para que as vilas se desenvolvam? Orientao: Para desenvolver essas atividades os alunos podem realizar entrevistas com pessoas que j moraram numa vila. Visitar rgos governamentais no municpio como Secretaria Municipal de Educao, Sade ou de Planejamento. Realizar levantamento em sites que guardam informaes sobre os municpios. Produo Artstica Em grupo de cinco alunos, visite uma vila ou uma rua de sua cidade. Observe os prdios, casas, ruas, pontes, sistema de iluminao, trapiches, entre outros bens pblicos. Baseado nesta observao, construa uma maquete, representando a vila ou a rua percorrida. Em grupos de trs alunos, procure saber quais as lendas mais contadas na vila ou cidade onde voc mora. Entreviste pessoas que saibam contar uma lenda. Tome nota da narrativa. A partir dessas informaes o grupo deve confeccionar uma revista em quadrinhos e apresentar em aula especial organizada pelo professor.

7JOANES EM DUAS MEMRIASShirleide Rodrigues nevesEsse texto o resultado de uma pesquisa feita junto aos moradores da vila de Joanes, com o objetivo de mostrar, ao pblico leitor, fatos importantes ocorridos na vila entre as dcadas de 1960 e 1970. o objetivo a valorizao das memrias familiares dessas pessoas, ressaltando fatos que, de certa forma, contriburam muito para a histria desse lugar. o texto teve a contribuio de dois narradores, os quais no acharam dificuldade em nos ajudar. Um deles, o senhor Edigar (tio Dco) pode ser considerado como um autntico guardio de memrias do lugar. descendente de portugueses por parte de pai, sendo filho de Ceclio Gomes rabelo e Abigail rabelo Gomes. o outro narrador o senhor Luiz Barros da Cruz (Pichuna), descendente de ndios por parte de pai e de negros por parte de me, filho de Pedro Penante da Cruz e Oscarina Barros da Cruz. Em meados da dcada de 1960, Joanes era uma vila pacata, habitada por um povo trabalhador que vivia da pesca e da plantao de tomate, jerimum, melancia, mamo, maxixe, macaxeira e, at mesmo, a mandioca. Seu Luiz conta que na pesca no tinha tempo ruim, tinha-se peixe todos os dias, as pessoas poderiam ir uma semana inteira no mesmo lugar que l estavam os animais, prontos para serem pescados e consumidos. Naquela poca, a pescaria utilizava apenas a prtica da linha, o que, de certa forma, explica o uso equilibrado dessa riqueza aqutica. Hoje j no fcil obter peixes como outrora. os moradores enfrentam muitas dificuldades para sobreviver e dar uma boa educao para seus filhos. Como exemplo dessa educao, observamos o respeito que as crianas tinham no passado com as pessoas mais velhas, pois as crianas tomavam beno de seus pais, de seus tios, avs, irmos e at mesmo de outras pessoas que no eram seus parentes. Portanto, pelo fato de j serem idosos, a obrigao era pedir a beno e tal prtica estava relacionada com o respeito s pessoas mais velhas. Os filhos no escutavam nem se envolviam nas conversas dos pais ou dos mais velhos. Alm disso, os afilhados de seus pais eram considerados como irmos, por isso podiam ser chamados de maninhos.Linhas: material feito com vrios anzis amarrados ao lado dos outros atravs de linha de pesca

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Enchi meio: barro misturado gua usado na fabricao de casas.

Riscos: tecidos comprados em metro.

Balangands: tamancos com cadaros que entrelaam as pernas.

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Segundo os narradores, Joanes era um lugar onde existiam poucas casas, sendo que a maioria delas era construda com enchi meio e palhas. Entre elas destacam-se dois casares cobertos de telhas. naquele tempo as ruas eram estreitas, apresentando apenas pequenos caminhos nicos ou duplos rodeados por algumas casas ou mato. tio Dco nos diz que um desses casares, construdo em estilo portugus, ficava exatamente onde hoje a sede de Nossa Senhora do Rosrio. L moravam quatro pessoas bem idosas: tia Maria (Maricota), tia honria, Seu Joaquim - antigo msico tocador de saxofone - e Seu Andrade. Nessa casa havia um relgio de corda, pendurado na parede, o qual fazia reverberar imenso barulho (blom-blom-blom); a moradia ainda detinha muitas louas e um tacho de cobre onde ferviam a castanha para tirar o leo, usado como combustvel no candelabro de barro. As senhoras habitantes deste casaro eram rendeiras. tio Dco, no seu tempo de criana, adorava ir at o casaro para ajud-las em alguma coisa e at observar como produziam as rendas; gostava de sentir o cheiro da morada, pois produziam seus prprios perfumes, alguns com patchioli. Os assoalhos dos casares eram altos, feitos de madeira de acapu e pau-amarelo. Existia uma batente de cimento usada para chegar ao assoalho. A outra casa do mesmo estilo localizava-se onde hoje o comrcio do Gacho. Nela moravam trs senhoras: tia Vel, me de tia Marcela (Machica) e tia Sab. Na poca, as senhoras vestiam-se com longos vestidos rendados e os homens com calas e camisas compridas; as crianas tambm vestiam-se de forma diferente: as meninas com vestidos ou conjuntos e os meninos com camisas e calas com suspensrio. Os tecidos eram comprados pelos marreteiros que traziam cortes e riscos de Belm. Esses eram talhados e costurados pelas mes ou costureiras em mquinas simples ou mo. no se vestia roupas com floro, nem coisas muito extravagantes. Alm disso, tanto os homens quanto as mulheres usavam tamancos de madeira e balangands. As crianas brincavam de peteca, futebol, peru-galo, ladro na roa de melancia e de balanos feitos nos galhos das mangueiras. Quando chegava a noite, principalmente nas noites de luar, as famlias visitavam-se

umas s outras. Em meio s conversas eram oferecidos chocolate com ovo e cabea-de-macaco, enquanto seguiam as conversas. As crianas brincavam na claridade da lua cheia, divertindo-se at chegar a hora de ir embora com seus pais. Naquele tempo, alguns pais permitiam que as meninas e os meninos brincassem juntos, j outros no. Os narradores afirmam que as crianas j trabalhavam ajudando a famlia, pois empalhavam tomates, lavavam jerimum e os armazenavam nas caixas para serem vendidos em Belm. os jovens pescavam para ajudar no sustento da famlia. J Seu Luiz conta que, no seu tempo de criana, ia escola para estudar e respeitava as professoras, que nesse tempo eram a professora olegria (Lelca) e Maria dos Santos (Maricota). Mais tarde, seria a professora tereza. todas elas ensinavam da primeira a terceira sries. Para os alunos desobedientes e desinteressados nas aulas existiam os temidos castigos, tais como a famosa palmatria e o castigo de joelhos no milho, ou nas pedrinhas no canto da sala. A merenda das crianas era leite, fornecido pela prefeitura, e cada uma levava acar e seu copo. o espao fsico escolar era precrio e carente de materiais didticos. Se algum fizesse algo errado e no se acusasse, todos ficavam de castigo e, ao chegaram em casa, eram repreendidos por seus pais. Os pais que tinham melhores condies financeiras mandavam seus filhos para estudar em Soure, onde a escola funcionava at a quinta srie, nvel de estudo que na poca j dava condies para trabalhar como professor leigo. Quando as pessoas adoeciam, recorriam a remdios caseiros, aos pajs e parteiras nos casos das gestantes. nesse tempo, ainda no havia hospital. Alguns anos depois veio a funcionar um posto na casa do Seu Marciano. o enfermeiro, na poca, era o Seu Ildo, que s podia atender os casos que utilizassem somente algodo e lcool, pois era o material que existia no posto. As parteiras eram Dona Maria (Lanchinha) e Maria Benedita; ambas praticavam seus trabalhos nas casas das gestantes, usando bacias, panos, esteiras e tesouras, material necessrio para os partos. Nos anos 1960, existia, atrs da igreja de Nossa Senhora do rosrio, uma sede denominada sede do pescador, construda de acapu e pau-amarelo, com assoalho alto apoiado por pilares de cimento e com cobertura de zinco. No local era apresentada a comdia do Periquito,

Cabea-de-macaco: espcie de biscoito servido com chocolate ou outro acompanhamento.

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Esteiras: material feito com uma espcie de palha utilizado para deitar no cho.

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Retalho: lugar onde os pescadores retalhavam os peixes para salgar.

Raspa-raspa: material utilizado para raspar o gelo colocado nos sucos vendidos no arraial no perodo de festas.

Pcaro: utenslio utilizado para retirar o suco de dentro do pote.

com cerca de 30 componentes, e todos os anos os atores modificavam as cenas. Alm da comdia, tocava a banda musical: os msicos apresentavam-se bem vestidos, com palets e gravatas. os instrumentos que utilizavam eram o trombone, o saxofone, o clarineta, a tumba, o pisto e o violino. A banda de msicos tocava em eventos e nas casas das pessoas, bem como no arraial em frente igreja, realizado em novembro. Atrs da sede funcionava um retalho de peixe usado pelos pescadores. A orquestra tocava at altas horas da madrugada e o povo ficava escutando as msicas antigas. s cinco horas da manh, com a alvorada, as pessoas acordavam-se cedo para assisti-la. Seu Luiz diz que hoje no existe mais documentao da banda. Naquele tempo, as pessoas no tinham a noo da importncia que teriam esses documentos para um estudo histrico. Seu Ceclio, pai do tio Dco, era leiloeiro no arraial. L existia um barraco de palha no qual eram vendidos raspa-raspa e vinho de muruci, depositado no pote de barro, e puxado por um pcaro. Ele afirma que hoje a banda musical do Jubim toca algumas msicas da antiga banda de Joanes, inclusive uma msica de autoria do Seu Mingota (um dos tocadores de clarinete da banda). o coreto antigamente era de estrutura baixa, fabricado de madeira, e no seu interior havia bancos, em crculo, onde a banda tocava. Apesar de estar em frente igreja, no atrapalhava a viso da mesma. Em meados de 1953, a sede foi construda para dar lugar s guaritas que serviam de local para estudo de portos e canais feitos por marinheiros vindos de So Paulo: esses chegavam de helicptero na rea do farol. As runas da antiga igreja, construda no tempo da colonizao por padres franciscanos, eram maiores e, com o tempo, foram sendo destrudas pela ao do tempo e das pessoas. Naquele tempo no havia energia eltrica, as pessoas utilizavam, alm do leo da andiroba, o leo da ucuuba como combustvel das lamparinas e dos candeeiros. Os lampies nas ruas funcionavam com querosene. tio Dco ajudava seu pai a acender os lampies todos os dias s 18 horas. Seu servio era carregar a querosene e a escada; ele lembra que s 22 horas os lampies eram apagados. Para tio Dco, esse tempo era to bom! Diz que sente muitas saudades, e pondera: pena que no pode ser mais como era antes, pois tudo muda com o passar do tempo. Aqueles tempos hoje se tornaram lembranas valiosas de quem viveu a poca, tempos guardados somente nas suas memrias.

Trabalhando com o Texto1. Compartilhe com os colegas e professor sua opinio a respeito do texto. Qual passagem do texto voc achou mais interessante? 2. o que aprendeu sobre o distrito de Joanes ao ler o texto? 3. Na sua opinio, por que tio Deco sente saudades do tempo de criana? 4. Como voc acha que as pessoas viviam com a falta da energia eltrica? 5. o que fez o lugar mudar? Como aconteceram essas mudanas? 6. Produza um poema a partir da leitura do texto. 7. Descreva, atravs de texto em prosa, como Joanes hoje. Se voc no conhece esse povoado, utilize sua imaginao para escrever sobre a vida nesta localidade. Pesquise! 1. Colha informaes sobre bandas musicais do lugar onde voc mora. Procure pessoas mais velhas e possveis parentes dos antigos msicos. Quem participava da banda e qual instrumento tocava? Por que ela no existe mais? Construa uma narrativa a partir dos resultados das pesquisas. 2. Forme equipes com os colegas e construa um mapeamento do local onde vivem, no passado e hoje em dia. 3. Que palavras eram utilizadas na dcada de 1960 e deixaram de ser usadas atualmente? Pergunte aos mais velhos. Gramtica Numerais Encontre no texto os numerais existentes, classificando-os. Substantivos Identifique no texto cinco substantivos prprios. Identifique no texto trs substantivos comuns e trs derivados. Grau do substantivo Encontre no texto um substantivo no grau diminutivo e um substantivo no grau aumentativo. Adjetivos Identifique no texto trs adjetivos. Verbos Identifique no texto trs verbos e classifique-os em pessoa, tempo e modo.

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Arte Construa uma maquete com diferentes tipos de moradias. Construa um painel com os instrumentos musicais utilizados no passado. Colha informaes e monte ilustraes das antigas residncias e comrcio no lugar onde voc mora. Geografia Rena-se com seus colegas para fazer um mapeamento das ruas de sua localidade hoje. O trabalho pode ser feito em painel apresentando os avanos ocorridos a partir dos anos 1960 em diante. Produza um texto caracterizando a(s) causa(s) dos tipos diferenciados de moradias. Histria Pesquise e produza um texto retratando que fato histrico se passou na sua cidade, vila, distrito ou regio. Matemtica Construa uma tabela com as quantidades de pescadores, canoas, seleo de peixes e perodos em que mais aparecem nas praias e igaraps de sua cidade, depois faa uma comparao entre os dados e os locais para serem apresentados em classe.

8Dalcides Santana Pinheiroo municpio de Portel, assim como os demais municpios do arquiplago marajoara apresenta suas particularidades no que diz respeito ao modo de vida, ao trabalho, realizao das festas, ao lazer, enfim, a tudo aquilo que diz respeito organizao da vida social de um povoado, vila ou cidade. Pois bem, vamos conhecer agora algumas dimenses da vida social e cultural de uma comunidade ribeirinha, localizada no rio Camarapi, no municpio de Portel. Pegaremos carona nas narrativas de alguns moradores que, com muito entusiasmo, contaram-nos suas experincias e lembranas de vida, voltadas para o campo do trabalho, da educao e da religiosidade. Ao ler essas histrias, voc amigo leitor, poder comparar com as coisas que ouve falar sobre o lugar onde voc mora. Constatar que o jeito de falar das pessoas no semelhante, assim como as prticas de ensino modificam-se no correr dos anos. Nessa caminhada pelo texto, caso voc no more ou no conhea alguma realidade ribeirinha marajoara, ainda ter condies de perceber como as pessoas se comunicam, o que pensam sobre a vida, o trabalho, suas festas, entre outras expresses de sua identidade cultural. Como se sabe, nos Marajs h uma grande mistura de culturas e linguagens que se diferenciam de um municpio para o outro, de uma vila para outra. Geralmente um lugarejo da parte do chamado Maraj dos Campos tem a organizao de sua vida social bem diferente de uma loca-

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TRABALHO, RELIGIOSIDADE E EDUCAO: Histrias de uma Comunidade Ribeirinha no Maraj das Florestas

lidade da parte de Florestas. Seus problemas sociais podem at ser parecidos, mas a forma como lutam para resolv-los nem sempre da mesma maneira. Isso j nos mostra que no podemos falar de apenas uma cultura marajoara ou de uma mulher ou homem marajoara. Tudo isso precisa ser pluralizado e analisado em cada contexto e tempo especfico para percebermos a diversidade de ambientes e prticas culturais. Castanhal Vamos agora, ento, conhecer a vila Castanhal, onde residem 8 famlias, que em mdia possuem 6 membros. A maioria destas famlias extrai seu sustento da produo da farinha, que negociada no prprio porto, na passagem dos regates, ou levada para vender aos comerciantes da cidade de Portel. No podemos esquecer que esse trabalho pouco valorizado tanto por aquele que adquire o produto para a venda, quanto pelos governos municipais que pouco investem em polticas de incentivos agricultura familiar. Alm desta economia, algumas famlias sobrevivem com a ajuda do Programa Federal Bolsa Famlia ou da aposentadoria concedida pela Previdncia Social.

A comunidade Santssima trindade completou, no ano de 2008, 25 anos de fundao. Antes dessa fundao, surgiu aqui um grupo de jovens denominado Judame, composto por 15 membros. Esse grupo foi fruto de uma articulao dentro da organizao dos festejos da Santssima trindade, quando na poca eram nove dias de festa, sendo que as duas primeiras noitadas aconteciam na vila do Acangat e em seguida a imagem da santa era trazida em procisso fluvial para a localidade denominada So Joaquim, hoje vila Castanhal. O povoamento da comunidade deu-se por conta das novas famlias formadas pela unio dos filhos de Dona nair e outros moradores e a chegada de novas famlias migrantes de outras localidades para residir naquele territrio em construo e expanso, como a de Seu Adalberto Gibson Marcelo de Aquino. As relaes de trabalho que historicamente se estabeleceram em Portel foram fortemente marcadas pelo chamado sistema de aviamento, no qual agentes privados, os patres, aviavam mercadorias s famlias dos posseiros, chamados fregueses, para serem pagas com os produtos extrados da floresta. Esse modelo de organizao social e econmica se fortaleceu particularmente durante o perodo que ficou conhecido como ciclo da Borracha (1870 a 1912), quando se acirraram as relaes de dominao entre seringalistas e seringueiros, visto que os primeiros tinham controle quase absoluto sobre a produo e o destino das famlias que viviam como posseiros em suas terras. De acordo com dados coletados na biblioteca municipal de Portel, podemos afirmar que, nas ltimas dcadas do sculo XX, o sistema de aviamento entrou em decadncia econmica. Nesse perodo, os trabalhadores rurais, a exemplo de muitos municpios do Estado do Par, iniciaram forte processo de organizao social para que pudessem se libertar das garras dos seus patres. Seu Adalton, um dos moradores da comunidade Castanhal, relatou que houve um tempo tambm que apareceu na regio um forte comrcio de pele de animais. Muitos ribeirinhos migravam para os rinces da floresta para tentar capturar onas, jacars, cobras, e lontras, entre outros animais que eram abatidos e depois negociados, geralmente, com vendedores ambulantes. Eu lamentava era quando se jogava fora a carne dos animais que poderia muito bem servir de alimentao para as futuras geraes e simplesmente se atirava no leito dos igaraps e as piranhas eram quem devoravam o bucho dos animais junto com carne e tudo. hoje, isso tudo est fazendo falta para ns, pois agora se quisermos comer carne de caa no s uma e nem duas noites que temos que ficar pelo mato em busca de alguma caa. A vida religiosa do municpio de Portel, a partir de 1963, passou a ser conduzida pelos padres Agostinianos Recoletos. Estes padres visitavam os povoados rurais geralmente em dois

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Em conversa com Dona Nair, 60 anos, em julho de 2008, moradora da localidade, ficamos sabendo um pouco da histria de origem da comunidade. 56 No incio a localidade se chamava So Joaquim, porque meu av, quando estava roando o local para fazer sua casa, ele cortou em cima de um santo feito de um material at hoje no identificado pelos moradores. Parece que cobre ou talvez metal. o santo mede 22cm e pesa 200 gramas. Meu av batizou ele de So Joaquim... Outro morador que narrou aspectos da histria da vila foi um de seus fundadores, Seu Adalton, 48 anos. Por meio de suas memrias, ficamos conhecendo outros detalhes do nascimento daquele povoado:

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momentos: nas desobrigas, quando batizavam, casavam e confessavam os moradores, e nas festas religiosas, quando acompanhavam os rituais em torno dos santos domsticos da localidade. O primeiro padre a passar pelo povoado foi Frei Faustino Legardo, que viajava com a irmandade da Santssima Trindade, visitando os locais onde se fazia festa no municpio de Portel. Contudo, coube a Frei ramon Salinos a fundao, na dcada de 1970, da Comunidade Eclesial de Base. Este segundo padre foi quem celebrou a primeira missa na localidade, j denominada vila Castanhal. Frei ramon, preocupado com a nova caminhada da comunidade catlica recm-fundada, aps acordos firmados com os moradores, nomeou para dirigente Seu Adalton, que j se reunia frequentemente com os moradores para rezar a ladainha capitulada para os santos de guarda. O padre, percebendo seu poder de liderana e prtica religiosa, recomendou a este homem contrito a Deus que tomasse conta da capela, de seus santos, e incentivasse os moradores a praticarem a religiosidade catlica.

Meu pai mandava rezar pro nosso santo So Joaquim, outros moradores faziam festa de mordomagem que eram as pessoas que sabiam tocar alguns instrumentos de corda como viola, violo, bater tambor e a se arrumavam e saam com o santo para esmolar, s vezes quinze dias antes da festa. A embarcao era o reboque, a faia e a ginga; quando chegava nos portos das casas, o dono ou a dona da casa era que vinha buscar a imagem do santo pra colocar no altar. A o mestre-sala cantava junto com os outros folies e rezava, saudando o dono da casa, e em seguida que eles iam cumprimentar os donos da casa. Quando esses folies chegavam, noite, eles pernoitavam e rezavam a ladainha naquela casa. Cinco horas da manh era a hora da alvorada, e quem ficasse com preguia de levantar ia pra debaixo da bandeira do santo no outro dia, e sua penitncia era rezar um tanto de Pai Nosso e um tanto de Ave-Maria que o mestre sala mandasse. Quando dava na vspera da festa era que os folies chegavam, trazendo todos os donativos que arrumavam com o santo. Era pato, galinha, porco, peru, milho, arroz, dinheiro e tudo quanto. Como voc pode imaginar, nessa poca, a realidade econmica e social era bastante diferente dos dias atuais; por exemplo, as escolas que existiam no municpio eram poucas e as pessoas conseguiam garantir seu sustento apenas com o trabalho da roa. No existia essa concorrncia que existe hoje dentro do mercado de trabalho, porque todo mundo podia trabalhar, mesmo que no tivesse nenhuma formao escolar. Com o passar dos anos, o municpio de Portel desenvolveu-se, especialmente do ponto de vista de suas secretarias municipais. Assim, a Secretaria de Educao, percebendo a necessidade de implantar uma escola na comunidade de Castanhal, criou a Escola Municipal Dr Dalva Patriarca, homenagem que se procurou fazer a uma odontloga que trabalhou no municpio de Portel durante dois anos e morreu em um acidente de avio, juntamente com o vereador Alcides Monteiro, o Sidoca, durante o percurso Portel-Belm. Em entrevista com Seu Marcelo de Aquino, ficamos sabendo que a construo da escola se deu em poca de campanha poltica, quando o ento candidato a vereador Manoel Baldoino se comprometeu em mandar constru-la na Vila Castanhal, caso fosse eleito. Aconteceu que ele foi eleito e voltou l para agradecer os votos j levando consigo parte do material para a possvel construo do prdio da escola. Com a escola construda, a vila Castanhal no apenas ganhou um novo visual, em funo do prdio em alvenaria com uma sala de aula, uma secretaria, uma copa e um banheiro interno, que passou a ter, mas seus habitantes no precisavam mais deixar seus familiares, parentes, amigos e pertences para ir estudar em outro lugar. Marcelo de Aquino, um dos primeiros professores da escola, contou que, h 36 anos, quando ele foi professor, no existiam, no municpio de Portel, pessoas com fo