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RELÍQUIAS DA CASA VELHA Machado de Assis APRESENTAÇÃO Estamos muito felizes em poder disponibilizar para você o livro de contos Relíquias da Casa Velha, que foi escrito por Machado de Assis, e publicado pela primeira vez em 1906. Como o nosso desejo é possibilitar que todas as pessoas possam desfrutar da leitura, desenvolvemos

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RELÍQUIAS DA CASA VELHA

Machado de Assis

APRESENTAÇÃO

Estamos muito felizes em poder

disponibilizar para você o livro de

contos Relíquias da Casa Velha, que

foi escrito por Machado de Assis, e

publicado pela primeira vez em

1906.

Como o nosso desejo é possibilitar

que todas as pessoas possam

desfrutar da leitura, desenvolvemos

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esta versão audiovisual acessível,

que tem como princípio ser um livro

para todos, onde pessoas com

diferentes tipos de deficiência, e

também sem deficiência, terão

acesso a este texto através de

diferentes formatos.

Você poderá ler em Língua

Portuguesa, por meio de legendas e

ao mesmo tempo, escutará a

narração do texto do livro e a

descrição das imagens.

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Acreditamos que existem diferentes

formas de ler e que estas formas

possibilitam diferentes modos de se

relacionar com o texto, com as

histórias, com o mundo e com a vida.

Boa leitura!

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Advertência

Uma casa tem muita vez as suas

relíquias, lembranças de um dia ou

de outro, da tristeza que passou, da

felicidade que se perdeu. Supõe que

o dono pense em as arejar e expor

para teu e meu desenfado. Nem

todas serão interessantes, não raras

serão aborrecidas, mas, se o dono

tiver cuidado, pode extrair uma dúzia

delas que mereçam sair cá fora.

Chama-lhe à minha vida uma casa,

dá o nome de relíquias aos inéditos e

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impressos que aqui vão, ideias,

histórias, críticas, diálogos, e verás

explicados o livro e o título.

Possivelmente não terão a mesma

suposta fortuna daquela dúzia de

outras, nem todas valerão a pena de

sair cá fora. Depende da tua

impressão, leitor amigo, como

dependerá de ti a absolvição da má

escolha.

Machado de Assis

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro

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Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores – restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

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PAI CONTRA MÃE

A escravidão levou consigo ofícios e

aparelhos, como terá sucedido a

outras instituições sociais. Não cito

alguns aparelhos senão por se

ligarem a certo ofício. Um deles era o

ferro ao pescoço, outro o ferro ao

pé; havia também a máscara de

folha-de-flandres. A máscara fazia

perder o vício da embriaguez aos

escravos, por lhes tapar a boca.

Tinha só três buracos, dois para ver,

um para respirar, e era fechada atrás

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da cabeça por um cadeado. Com o

vício de beber, perdiam a tentação

de furtar, porque geralmente era dos

vinténs do senhor que eles tiravam

com que matar a sede, e aí ficavam

dois pecados extintos, e a

sobriedade e a honestidade certas.

Era grotesca tal máscara, mas a

ordem social e humana nem sempre

se alcança sem o grotesco, e alguma

vez o cruel. Os funileiros as tinham

penduradas, à venda, na porta das

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lojas. Mas não cuidemos de

máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos

escravos fujões. Imaginai uma coleira

grossa, com a haste grossa também,

à direita ou à esquerda, até ao alto

da cabeça e fechada atrás com

chave. Pesava, naturalmente, mas

era menos castigo que sinal. Escravo

que fugia assim, onde quer que

andasse, mostrava um reincidente, e

com pouco era pegado.

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Há meio século, os escravos fugiam

com frequência. Eram muitos, e nem

todos gostavam da escravidão.

Sucedia ocasionalmente apanharem

pancada, e nem todos gostavam de

apanhar pancada. Grande parte era

apenas repreendida; havia alguém

de casa que servia de padrinho, e o

mesmo dono não era mau; além

disso, o sentimento da propriedade

moderava a ação, porque dinheiro

também dói. A fuga repetia-se,

entretanto. Casos houve, ainda que

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raros, em que o escravo de

contrabando, apenas comprado no

Valongo, deitava a correr, sem

conhecer as ruas da cidade. Dos que

seguiam para casa, não raros, apenas

ladinos, pediam ao senhor que lhes

marcasse aluguel, e iam ganhá-lo

fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga

dava algum dinheiro a quem lho

levasse. Punha anúncios nas folhas

públicas, com os sinais do fugido, o

nome, a roupa, o defeito físico, se o

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tinha, o bairro por onde andava e a

quantia de gratificação. Quando não

vinha a quantia, vinha promessa:

"gratificar-se-á generosamente", - ou

"receberá uma boa gratificação".

Muita vez o anúncio trazia em cima

ou ao lado uma vinheta, figura de

preto, descalço, correndo, vara ao

ombro, e na ponta uma trouxa.

Protestava-se com todo o rigor da lei

contra quem o acoitasse.

Ora, pegar escravos fugidos era um

ofício do tempo. Não seria nobre,

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mas por ser instrumento da força

com que se mantêm a lei e a

propriedade, trazia esta outra

nobreza implícita das ações

reivindicadoras. Ninguém se metia

em tal ofício por desfastio ou estudo;

a pobreza, a necessidade de uma

achega, a inaptidão para outros

trabalhos, o acaso, e alguma vez o

gosto de servir também, ainda que

por outra via, davam o impulso ao

homem que se sentia bastante rijo

para pôr ordem à desordem.

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Cândido Neves, - em família,

Candinho, - é a pessoa a quem se liga

a história de uma fuga, cedeu à

pobreza, quando adquiriu o ofício de

pegar escravos fugidos. Tinha um

defeito grave esse homem, não

aguentava emprego nem ofício,

carecia de estabilidade; é o que ele

chamava caiporismo. Começou por

querer aprender tipografia, mas viu

cedo que era preciso algum tempo

para compor bem, e ainda assim

talvez não ganhasse o bastante; foi o

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que ele disse a si mesmo. O

comércio chamou-lhe a atenção, era

carreira boa. Com algum esforço

entrou de caixeiro para um

armarinho. A obrigação, porém, de

atender e servir a todos feria-o na

corda do orgulho, e ao cabo de cinco

ou seis semanas estava na rua por

sua vontade. Fiel de cartório,

contínuo de uma repartição anexa

ao Ministério do Império, carteiro e

outros empregos foram deixados

pouco depois de obtidos.

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Quando veio a paixão da moça Clara,

não tinha ele mais que dívidas, ainda

que poucas, porque morava com um

primo, entalhador de ofício. Depois

de várias tentativas para obter

emprego, resolveu adotar o ofício do

primo, de que aliás já tomara

algumas lições. Não lhe custou

apanhar outras, mas, querendo

aprender depressa, aprendeu mal.

Não fazia obras finas nem

complicadas, apenas garras para

sofás e relevos comuns para

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cadeiras. Queria ter em que

trabalhar quando casasse, e o

casamento não se demorou muito.

Contava trinta anos. Clara vinte e

dois. Ela era órfã, morava com uma

tia, Mônica, e cosia com ela. Não

cosia tanto que não namorasse o seu

pouco, mas os namorados apenas

queriam matar o tempo; não tinham

outro empenho. Passavam às tardes,

olhavam muito para ela, ela para

eles, até que a noite a fazia recolher

para a costura. O que ela notava é

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que nenhum deles lhe deixava

saudades nem lhe acendia desejos.

Talvez nem soubesse o nome de

muitos. Queria casar, naturalmente.

Era, como lhe dizia a tia, um pescar

de caniço, a ver se o peixe pegava,

mas o peixe passava de longe; algum

que parasse, era só para andar à

roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-

la e ir a outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a

moça viu Cândido Neves, sentiu que

era este o possível marido, o marido

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verdadeiro e único. O encontro deu-

se em um baile; tal foi - para

lembrar o primeiro ofício do

namorado, - tal foi a página inicial

daquele livro, que tinha de sair mal

composto e pior brochado. O

casamento fez-se onze meses

depois, e foi a mais bela festa das

relações dos noivos. Amigas de Clara,

menos por amizade que por inveja,

tentaram arredá-la do passo que ia

dar. Não negavam a gentileza do

noivo, nem o amor que lhe tinha,

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nem ainda algumas virtudes; diziam

que era dado em demasia a

patuscadas.

- Pois ainda bem, replicava a noiva;

ao menos, não caso com defunto.

- Não, defunto não; mas é que...

Não diziam o que era. Tia Mônica,

depois do casamento, na casa pobre

onde eles se foram abrigar, falou-

lhes uma vez nos filhos possíveis.

Eles queriam um, um só, embora

viesse agravar a necessidade.

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- Vocês, se tiverem um filho, morrem

de fome, disse a tia à sobrinha.

- Nossa Senhora nos dará de comer,

acudiu Clara.

Tia Mônica devia ter-lhes feito a

advertência, ou ameaça, quando ele

lhe foi pedir a mão da moça; mas

também ela era amiga de

patuscadas, e o casamento seria uma

festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal

ria a propósito de tudo. Os mesmos

nomes eram objeto de trocados,

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Clara, Neves, Cândido; não davam

que comer, mas davam que rir, e o

riso digeria-se sem esforço. Ela cosia

agora mais, ele saía a empreitadas

de uma coisa e outra; não tinha

emprego certo. Nem por isso abriam

mão do filho. O filho é que, não

sabendo daquele desejo específico,

deixava-se estar escondido na

eternidade. Um dia, porém, deu sinal

de si a criança; varão ou fêmea, era o

fruto abençoado que viria trazer ao

casal a suspirada ventura. Tia Mônica

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ficou desorientada, Cândido e Clara

riram dos seus sustos.

- Deus nos há de ajudar, titia, insistia

a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha.

Não houve mais que espreitar a

aurora do dia grande. A esposa

trabalhava agora com mais vontade,

e assim era preciso, uma vez que,

além das costuras pagas, tinha de ir

fazendo com retalhos o enxoval da

criança. À força de pensar nela, vivia

já com ela, media-lhe fraldas, cosia-

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lhe camisas. A porção era escassa, os

intervalos longos. Tia Mônica

ajudava, é certo, ainda que de má

vontade.

- Vocês verão a triste vida, suspirava

ela.

- Mas as outras crianças não nascem

também? perguntou Clara.

- Nascem, e acham sempre alguma

coisa certa que comer, ainda que

pouco...

- Certa como?

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- Certa, um emprego, um ofício, uma

ocupação, mas em que é que o pai

dessa infeliz criatura que aí vem,

gasta o tempo?

Cândido Neves, logo que soube

daquela advertência, foi ter com a

tia, não áspero, mas muito menos

manso que de costume, e lhe

perguntou se já algum dia deixara de

comer.

- A senhora ainda não jejuou senão

pela semana santa, e isso mesmo

quando não quer jantar comigo.

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Nunca deixamos de ter o nosso

bacalhau...

- Bem sei, mas somos três.

- Seremos quatro.

- Não é a mesma coisa.

- Que quer então que eu faça, além

do que faço?

- Alguma coisa mais certa. Veja o

marceneiro da esquina, o homem do

armarinho, o tipógrafo que casou

sábado, todos têm um emprego

certo... Não fique zangado; não digo

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que você seja vadio, mas a ocupação

que escolheu, é vaga. Você passa

semanas sem vintém.

- Sim, mas lá vem uma noite que

compensa tudo, até de sobra. Deus

não me abandona, e preto fugido

sabe que comigo não brinca; quase

nenhum resiste, muitos entregam-se

logo.

Tinha glória nisto, falava da

esperança como de capital seguro.

Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que

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era naturalmente alegre, e previa

uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de

entalhador, como abrira mão de

outros muitos, melhores ou piores.

Pegar escravos fugidos trouxe-lhe

um encanto novo. Não obrigava a

estar longas horas sentado. Só exigia

força, olho vivo, paciência, coragem

e um pedaço de corda. Cândido

Neves lia os anúncios, copiava-os,

metia-os no bolso e saía às

pesquisas. Tinha boa memória.

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Fixados os sinais e os costumes de

um escravo fugido, gastava pouco

tempo em achá-lo, segurá-lo,

amarrá-lo e levá-lo. A força era

muita, a agilidade também. Mais de

uma vez, a uma esquina,

conversando de coisas remotas, via

passar um escravo como os outros, e

descobria logo que ia fugido, quem

era, o nome, o dono, a casa deste e a

gratificação; interrompia a conversa

e ia atrás do vicioso. Não o apanhava

logo, espreitava lugar azado, e de um

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salto tinha a gratificação nas mãos.

Nem sempre saía sem sangue, as

unhas e os dentes do outro

trabalhavam, mas geralmente ele os

vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a

escassear. Os escravos fugidos não

vinham já, como dantes, meter-se

nas mãos de Cândido Neves. Havia

mãos novas e hábeis. Como o

negócio crescesse, mais de um

desempregado pegou em si e numa

corda, foi aos jornais, copiou

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anúncios e deitou-se à caçada. No

próprio bairro havia mais de um

competidor. Quer dizer que as

dívidas de Cândido Neves

começaram de subir, sem aqueles

pagamentos prontos ou quase

prontos dos primeiros tempos. A

vida fez-se difícil e dura. Comia-se

fiado e mal; comia-se tarde. O

senhorio mandava pelo aluguéis.

Clara não tinha sequer tempo de

remendar a roupa ao marido, tanta

era a necessidade de coser para fora.

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Tia Mônica ajudava a sobrinha,

naturalmente. Quando ele chegava à

tarde, via-se-lhe pela cara que não

trazia vintém. Jantava e saía outra

vez, à cata de algum fugido. Já lhe

sucedia, ainda que raro, enganar-se

de pessoa, e pegar em escravo fiel

que ia a serviço de seu senhor; tal

era a cegueira da necessidade. Certa

vez capturou um preto livre; desfez-

se em desculpas, mas recebeu

grande soma de murros que lhe

deram os parentes do homem.

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- É o que lhe faltava! exclamou a tia

Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de

ouvir narrar o equívoco e suas

consequências. Deixe-se disso,

Candinho; procure outra vida, outro

emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer

outra coisa, não pela razão do

conselho, mas por simples gosto de

trocar de ofício; seria um modo de

mudar de pele ou de pessoa. O pior

é que não achava à mão negócio que

aprendesse depressa.

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A natureza ia andando, o feto

crescia, até fazer-se pesado à mãe,

antes de nascer. Chegou o oitavo

mês, mês de angústias e

necessidades, menos ainda que o

nono, cuja narração dispenso

também. Melhor é dizer somente os

seus efeitos. Não podiam ser mais

amargos.

- Não, tia Mônica! bradou Candinho,

recusando um conselho que me

custa escrever, quanto mais ao pai

ouvi-lo. Isso nunca!

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Foi na última semana do derradeiro

mês que a tia Mônica deu ao casal o

conselho de levar a criança que

nascesse à Roda dos Enjeitados. Em

verdade, não podia haver palavra

mais dura de tolerar a dois jovens

pais que espreitavam a criança, para

beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer,

engordar, pular... Enjeitar quê?

enjeitar como? Candinho arregalou

os olhos para a tia, e acabou dando

um murro na mesa de jantar. A

mesa, que era velha e

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desconjuntada, esteve quase a se

desfazer inteiramente. Clara

interveio.

- Titia não fala por mal, Candinho.

- Por mal? replicou tia Mônica. Por

mal ou por bem, seja o que for, digo

que é o melhor que vocês podem

fazer. Vocês devem tudo; a carne e o

feijão vão faltando. Se não aparecer

algum dinheiro, como é que a família

há de aumentar? E depois, há

tempo; mais tarde, quando o senhor

tiver a vida mais segura, os filhos que

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vierem serão recebidos com o

mesmo cuidado que este ou maior.

Este será bem criado, sem lhe faltar

nada. Pois então a Roda é alguma

praia ou monturo? Lá não se mata

ninguém, ninguém morre à toa,

enquanto que aqui é certo morrer,

se viver à míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um

gesto de ombros, deu as costas e foi

meter-se na alcova. Tinha já

insinuado aquela solução, mas era a

primeira vez que o fazia com tal

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franqueza e calor, - crueldade, se

preferes. Clara estendeu a mão ao

marido, como a amparar-lhe o

ânimo; Cândido Neves fez uma

careta, e chamou maluca à tia, em

voz baixa. A ternura dos dois foi

interrompida por alguém que batia à

porta da rua.

- Quem é? perguntou o marido.

- Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três

meses de aluguel, que vinha em

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pessoa ameaçar o inquilino. Este quis

que ele entrasse.

- Não é preciso...

- Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se,

deitou os olhos à mobília para ver se

daria algo à penhora; achou que

pouco. Vinha receber os aluguéis

vencidos, não podia esperar mais; se

dentro de cinco dias não fosse pago,

pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado

para regalo dos outros. Ao vê-lo,

ninguém diria que era proprietário;

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mas a palavra supria o que faltava ao

gesto, e o pobre Cândido Neves

preferiu calar a retorquir. Fez uma

inclinação de promessa e súplica ao

mesmo tempo. O dono da casa não

cedeu mais.

- Cinco dias ou rua! repetiu, metendo

a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses

lances não chegava nunca ao

desespero, contava com algum

empréstimo, não sabia como nem

onde, mas contava. Demais, recorreu

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aos anúncios. Achou vários, alguns já

velhos, mas em vão os buscava

desde muito. Gastou algumas horas

sem proveito, e tornou para casa. Ao

fim de quatro dias, não achou

recursos; lançou mão de empenhos,

foi a pessoas amigas do proprietário,

não alcançando mais que a ordem de

mudança.

A situação era aguda. Não achavam

casa, nem contavam com pessoa que

lhes emprestasse alguma; era ir para

a rua. Não contavam com a tia. Tia

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Mônica teve arte de alcançar

aposento para os três em casa de

uma senhora velha e rica, que lhe

prometeu emprestar os quartos

baixos da casa, ao fundo da cocheira,

para os lados de um pátio. Teve

ainda a arte maior de não dizer nada

aos dois, para que Cândido Neves,

no desespero da crise, começasse

por enjeitar o filho e acabasse

alcançando algum meio seguro e

regular de obter dinheiro; emendar a

vida, em suma. Ouvia as queixas de

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Clara, sem as repetir, é certo, mas

sem as consolar. No dia em que

fossem obrigados a deixar a casa, fá-

los-ia espantar com a notícia do

obséquio e iriam dormir melhor do

que cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa,

passaram ao aposento de favor, e

dois dias depois nasceu a criança. A

alegria do pai foi enorme, e a tristeza

também. Tia Mônica insistiu em dar

a criança à Roda. "Se você não a quer

levar, deixe isso comigo; eu vou à

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Rua dos Barbonos." Cândido Neves

pediu que não, que esperasse, que

ele mesmo a levaria. Notai que era

um menino, e que ambos os pais

desejavam justamente este sexo.

Mal lhe deram algum leite; mas,

como chovesse à noite, assentou o

pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de

escravos fugidos. As gratificações

pela maior parte eram promessas;

algumas traziam a soma escrita e

escassa. Uma, porém, subia a cem

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mil-réis. Tratava-se de uma mulata;

vinham indicações de gesto e de

vestido. Cândido Neves andara a

pesquisá-la sem melhor fortuna, e

abrira mão do negócio; imaginou

que algum amante da escrava a

houvesse recolhido. Agora, porém, a

vista nova da quantia e a

necessidade dela animaram Cândido

Neves a fazer um grande esforço

derradeiro. Saiu de manhã a ver e

indagar pela Rua e Largo da Carioca,

Rua do Parto e da Ajuda, onde ela

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parecia andar, segundo o anúncio.

Não a achou; apenas um

farmacêutico da Rua da Ajuda se

lembrava de ter vendido uma onça

de qualquer droga, três dias antes, à

pessoa que tinha os sinais indicados.

Cândido Neves parecia falar como

dono da escrava, e agradeceu

cortesmente a notícia. Não foi mais

feliz com outros fugidos de

gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe

haviam emprestado. Tia Mônica

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arranjara de si mesma a dieta para a

recente mãe, e tinha já o menino

para ser levado à Roda. O pai, não

obstante o acordo feito, mal pôde

esconder a dor do espetáculo. Não

quis comer o que tia Mônica lhe

guardara; não tinha fome, disse, e

era verdade. Cogitou mil modos de

ficar com o filho; nenhum prestava.

Não podia esquecer o próprio

albergue em que vivia. Consultou a

mulher, que se mostrou resignada.

Tia Mônica pintara-lhe a criação do

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menino; seria maior a miséria,

podendo suceder que o filho achasse

a morte sem recurso. Cândido Neves

foi obrigado a cumprir a promessa;

pediu à mulher que desse ao filho o

resto do leite que ele beberia da

mãe. Assim se fez; o pequeno

adormeceu, o pai pegou dele, e saiu

na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em

voltar para casa com ele, é certo;

não menos certo é que o agasalhava

muito, que o beijava, que cobria o

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rosto para preservá-lo do sereno. Ao

entrar na Rua da Guarda Velha,

Cândido Neves começou a afrouxar o

passo.

- Hei de entregá-lo o mais tarde que

puder, murmurou ele.

Mas não sendo a rua infinita ou

sequer longa, viria a acabá-la; foi

então que lhe ocorreu entrar por um

dos becos que ligavam aquela à Rua

da Ajuda. Chegou ao fim do beco e,

indo a dobrar à direita, na direção do

Largo da Ajuda, viu do lado oposto

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um vulto de mulher; era a mulata

fugida. Não dou aqui a comoção de

Cândido Neves por não podê-lo fazer

com a intensidade real. Um adjetivo

basta; digamos enorme. Descendo a

mulher, desceu ele também; a

poucos passos estava a farmácia

onde obtivera a informação, que

referi acima. Entrou, achou o

farmacêutico, pediu-lhe a fineza de

guardar a criança por um instante;

viria buscá-la sem falta.

- Mas...

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Cândido Neves não lhe deu tempo

de dizer nada; saiu rápido,

atravessou a rua, até ao ponto em

que pudesse pegar a mulher sem dar

alarma. No extremo da rua, quando

ela ia a descer a de São José, Cândido

Neves aproximou-se dela. Era a

mesma, era a mulata fujona.

- Arminda! bradou, conforme a

nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar

malícia. Foi só quando ele, tendo

tirado o pedaço de corda da

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algibeira, pegou dos braços da

escrava, que ela compreendeu e quis

fugir. Era já impossível. Cândido

Neves, com as mãos robustas, atava-

lhe os pulsos e dizia que andasse. A

escrava quis gritar, parece que

chegou a soltar alguma voz mais alta

que de costume, mas entendeu logo

que ninguém viria libertá-la, ao

contrário. Pediu então que a soltasse

pelo amor de Deus.

- Estou grávida, meu senhor!

exclamou. Se Vossa Senhoria tem

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algum filho, peço-lhe por amor dele

que me solte; eu serei tua escrava,

vou servi-lo pelo tempo que quiser.

Me solte, meu senhor moço!

- Siga! repetiu Cândido Neves.

- Me solte!

- Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava,

gemendo, arrastava-se a si e ao filho.

Quem passava ou estava à porta de

uma loja, compreendia o que era e

naturalmente não acudia. Arminda ia

alegando que o senhor era muito

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mau, e provavelmente a castigaria

com açoites, - coisa que, no estado

em que ela estava, seria pior de

sentir. Com certeza, ele lhe mandaria

dar açoites.

- Você é que tem culpa. Quem lhe

manda fazer filhos e fugir depois?

perguntou Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por

causa do filho que lá ficara na

farmácia, à espera dele. Também é

certo que não costumava dizer

grandes coisas. Foi arrastando a

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escrava pela Rua dos Ourives, em

direção à da Alfândega, onde residia

o senhor. Na esquina desta a luta

cresceu; a escrava pôs os pés à

parede, recuou com grande esforço,

inutilmente. O que alcançou foi,

apesar de ser a casa próxima, gastar

mais tempo em lá chegar do que

devera. Chegou, enfim, arrastada,

desesperada, arquejando. Ainda ali

ajoelhou-se, mas em vão. O senhor

estava em casa, acudiu ao chamado

e ao rumor.

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- Aqui está a fujona, disse Cândido

Neves.

- É ela mesma.

- Meu senhor!

- Anda, entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo

o senhor da escrava abriu a carteira

e tirou os cem mil-réis de

gratificação. Cândido Neves guardou

as duas notas de cinquenta mil-réis,

enquanto o senhor novamente dizia

à escrava que entrasse. No chão,

onde jazia, levada do medo e da dor,

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e após algum tempo de luta a

escrava abortou.

O fruto de algum tempo entrou sem

vida neste mundo, entre os gemidos

da mãe e os gestos de desespero do

dono. Cândido Neves viu todo esse

espetáculo. Não sabia que horas

eram. Quaisquer que fossem, urgia

correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele

fez sem querer conhecer as

consequências do desastre.

Quando lá chegou, viu o

farmacêutico sozinho, sem o filho

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que lhe entregara. Quis esganá-lo.

Felizmente, o farmacêutico explicou

tudo a tempo; o menino estava lá

dentro com a família, e ambos

entraram. O pai recebeu o filho com

a mesma fúria com que pegara a

escrava fujona de há pouco, fúria

diversa, naturalmente, fúria de

amor. Agradeceu depressa e mal, e

saiu às carreiras, não para a Roda

dos Enjeitados, mas para a casa de

empréstimo, com o filho e os cem

mil-réis de gratificação. Tia Mônica,

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ouvida a explicação, perdoou a volta

do pequeno, uma vez que trazia os

cem mil-réis. Disse, é verdade,

algumas palavras duras contra a

escrava, por causa do aborto, além

da fuga. Cândido Neves, beijando o

filho, entre lágrimas, verdadeiras,

abençoava a fuga e não se lhe dava

do aborto.

- Nem todas as crianças vingam,

bateu-lhe o coração.

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MARIA CORA

Capítulo I

Uma noite, voltando para casa, trazia

tanto sono que não dei corda ao

relógio. Pode ser também que a vista

de uma senhora que encontrei em

casa do comendador T... contribuísse

para aquele esquecimento; mas

estas duas razões destroem-se.

Cogitação tira o sono e o sono

impede a cogitação; só uma das

causas devia ser verdadeira.

Ponhamos que nenhuma, e fiquemos

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no principal, que é o relógio parado,

de manhã, quando me levantei,

ouvindo dez horas no relógio da

casa.

Morava então (1893) em uma casa

de pensão no Catete. Já por esse

tempo este gênero de residência

florescia no Rio de Janeiro. Aquela

era pequena e tranquila. Os

quatrocentos contos de réis

permitiam-me casa exclusiva e

própria; mas, em primeiro lugar, já

eu ali residia quando os adquiri, por

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jogo de praça; em segundo lugar, era

um solteirão de quarenta anos, tão

afeito à vida de hospedaria que me

seria impossível morar só. Casar não

era menos impossível. Não é que me

faltassem noivas. Desde os fins de

1891 mais de uma dama, - e não das

menos belas, - olhou para mim com

olhos brandos e amigos. Uma das

filhas do comendador tratava-me

com particular atenção. A nenhuma

dei corda; o celibato era a minha

alma, a minha vocação, o meu

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costume, a minha única ventura.

Amaria de empreitada e por

desfastio. Uma ou duas aventuras

por ano bastavam a um coração

meio inclinado ao ocaso e à noite.

Talvez por isso dei alguma atenção à

senhora que vi em casa do

comendador, na véspera. Era uma

criatura morena, robusta, vinte e

oito a trinta anos, vestida de escuro;

entrou às dez horas, acompanhada

de uma tia velha. A recepção que lhe

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fizeram, foi mais cerimoniosa que as

outras; era a primeira vez que ali ia.

Eu era a terceira. Perguntei se era

viúva.

- Não; é casada.

- Com quem?

- Com um estancieiro do Rio Grande.

- Chama-se?

- Ele? Fonseca, ela Maria Cora.

- O marido não veio com ela?

- Está no Rio Grande.

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Não soube mais nada; mas a figura

da dama interessou-me pelas graças

físicas, que eram o oposto do que

poderiam sonhar poetas românticos

e artistas seráficos. Conversei com

ela alguns minutos, sobre coisas

indiferentes, - mas suficientes para

escutar-lhe a voz, que era musical, e

saber que tinha opiniões

republicanas. Vexou-me confessar

que não as professava de espécie

alguma; declarei-me vagamente pelo

futuro do país. Quando ela falava,

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tinha um modo de umedecer os

beiços, não sei se casual, mas

gracioso e picante. Creio que, vistas

assim ao pé, as feições não eram tão

corretas como pareciam a distância,

mas eram mais suas, mais originais.

Capítulo II

De manhã tinha o relógio parado.

Chegando à cidade, desci a Rua do

Ouvidor, até à da Quitanda, e indo a

voltar à direita, para ir ao escritório

do meu advogado, lembrou-me ver

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que horas eram. Não me acudiu que

o relógio estava parado.

- Que maçada! exclamei.

Felizmente, naquela mesma Rua da

Quitanda, à esquerda, entre as do

Ouvidor e Rosário, era a oficina onde

eu comprara o relógio, e a cuja

pêndula usava acertá-lo. Em vez de ir

para um lado, fui para outro. Era

apenas meia hora; dei corda ao

relógio, acertei-o, troquei duas

palavras com o oficial que estava ao

balcão, e indo a sair, vi à porta de

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uma loja de novidades que ficava

defronte, nem mais nem menos que

a senhora de escuro que encontrara

em casa do comendador.

Cumprimentei-a, ela correspondeu

depois de alguma hesitação, como se

me não houvesse reconhecido logo,

e depois seguiu pela Rua da

Quitanda fora, ainda para o lado

esquerdo.

Como tivesse algum tempo ante mim

(pouco menos de trinta minutos),

dei-me a andar atrás de Maria Cora.

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Não digo que uma força violenta me

levasse já, mas não posso esconder

que cedia a qualquer impulso de

curiosidade e desejo; era também

um resto da juventude passada. Na

rua, andando, vestida de escuro,

como na véspera, Maria Cora

pareceu-me ainda melhor. Pisava

forte, não apressada nem lenta, o

bastante para deixar ver e admirar as

belas formas, mui mais corretas que

as linhas do rosto. Subiu a Rua do

Hospício, até uma oficina de

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ocularista, onde entrou e ficou dez

minutos ou mais. Deixei-me estar a

distância, fitando a porta

disfarçadamente. Depois saiu,

arrepiou caminho, e dobrou a Rua

dos Ourives, até à do Rosário, por

onde subiu até ao Largo da Sé; daí

passou ao de São Francisco de Paula.

Todas essas reminiscências

parecerão escusadas, senão

aborrecíveis; a mim dão-me uma

sensação intensa e particular, são os

primeiros passos de uma carreira

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penosa e longa. Demais, vereis por

aqui que ela evitava subir a Rua do

Ouvidor, que todos e todas

buscariam àquela ou a outra hora

para ir ao Largo de São Francisco de

Paula. Foi atravessando o largo, na

direção da Escola Politécnica, mas a

meio caminho veio ter com ela um

carro que estava parado defronte da

Escola; meteu-se nele, e o carro

partiu.

A vida tem suas encruzilhadas, como

outros caminhos da terra. Naquele

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momento achei-me diante de uma

assaz complicada, mas não tive

tempo de escolher direção, - nem

tempo nem liberdade. Ainda agora

não sei como é que me vi dentro de

um tílburi; é certo que me vi nele,

dizendo ao cocheiro que fosse atrás

do carro.

Maria Cora morava no Engenho

Velho; era uma boa casa, sólida,

posto que antiga, dentro de uma

chácara. Vi que morava ali, porque a

tia estava a uma das janelas. Demais,

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saindo do carro, Maria Cora disse ao

cocheiro (o meu tílburi ia passando

adiante) que naquela semana não

sairia mais, e que aparecesse

segunda-feira ao meio-dia. Em

seguida, entrou pela chácara, como

dona dela, e parou a falar ao feitor,

que lhe explicava alguma coisa com

o gesto.

Voltei depois que ela entrou em

casa, e só muito abaixo é que me

lembrou de ver as horas, era quase

uma e meia. Vim a trote largo até à

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Rua da Quitanda, onde me apeei à

porta do advogado.

- Pensei que não vinha, disse-me ele.

- Desculpe, doutor, encontrei um

amigo que me deu uma maçada.

Não era a primeira vez que mentia

na minha vida, nem seria a última.

Capítulo III

Fiz-me encontradiço com Maria

Cora, na casa do comendador,

primeiro, e depois em outras. Maria

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Cora não vivia absolutamente

reclusa, dava alguns passeios e fazia

visitas. Também recebia, mas sem

dia certo, uma ou outra vez, e

apenas cinco a seis pessoas da

intimidade. O sentimento geral é que

era pessoa de fortes sentimentos e

austeros costumes. Acrescentai a

isto o espírito, um espírito agudo,

brilhante e viril. Capaz de

resistências e fadigas, não menos

que de violências e combates, era

feita, como dizia um poeta que lá ia à

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casa dela, "de um pedaço de pampa

e outro de pampeiro". A imagem era

em verso e com rima, mas a mim só

me ficou a ideia e o principal das

palavras. Maria Cora gostava de

ouvir definir-se assim, posto não

andasse mostrando aquelas forças a

cada passo, nem contando as suas

memórias da adolescência. A tia é

que contava algumas, com amor,

para concluir que lhe saía a ela, que

também fora assim na mocidade. A

justiça pede que se diga que, ainda

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agora, apesar de doente, a tia era

pessoa de muita vida e robustez.

Com pouco, apaixonei-me pela

sobrinha. Não me pesa confessá-lo,

pois foi a ocasião da única página da

minha vida que merece atenção

particular. Vou narrá-la brevemente;

não conto novela nem direi

mentiras.

Gostei de Maria Cora. Não lhe confiei

logo o que sentia, mas é provável

que ela o percebesse ou adivinhasse,

como todas as mulheres. Se a

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descoberta ou adivinhação foi

anterior à minha ida à casa do

Engenho Velho, nem assim deveis

censurá-la por me haver convidado a

ir ali uma noite. Podia ser-lhe então

indiferente a minha disposição

moral; podia também gostar de se

sentir querida, sem a menor ideia de

retribuição. A verdade é que fui essa

noite e tornei outras; a tia gostava

de mim e dos meus modos. O poeta

que lá ia, tagarela e tonto, disse uma

vez que estava afinando a lira para o

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casamento da tia comigo. A tia riu-

se; eu, que queria as boas graças

dela, não podia deixar de rir

também, e o caso foi matéria de

conversação por uma semana; mas

já então o meu amor à outra tinha

atingido ao cume.

Soube, pouco depois, que Maria

Cora vivia separada do marido.

Tinham casado oito anos antes, por

verdadeira paixão. Viveram felizes

cinco. Um dia, sobreveio uma

aventura do marido que destruiu a

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paz do casal. João da Fonseca

apaixonou-se por uma figura de

circo, uma chilena que voava em

cima do cavalo, Dolores, e deixou a

estância para ir atrás dela. Voltou

seis meses depois, curado do amor,

mas curado à força, porque a

aventureira se enamorou do redator

de um jornal, que não tinha vintém,

e por ele abandonou Fonseca e a sua

prataria. A esposa tinha jurado não

aceitar mais o esposo, e tal foi a

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declaração que lhe fez quando ele

apareceu na estância.

- Tudo está acabado entre nós;

vamos desquitar-nos.

João da Fonseca teve um primeiro

gesto de acordo; era um

quadragenário orgulhoso, para quem

tal proposta era de si mesma uma

ofensa. Durante uma noite tratou

dos preparativos para o desquite;

mas, na seguinte manhã, a vista das

graças da esposa novamente o

comoveram. Então, sem tom

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implorativo, antes como quem lhe

perdoava, entendeu dizer-lhe que

deixasse passar uns seis meses. Se ao

fim de seis meses, persistisse o

sentimento atual que inspirava a

proposta do desquite, este se faria.

Maria Cora não queria aceitar a

emenda, mas a tia, que residia em

Porto Alegre e fora passar algumas

semanas na estância, interveio com

boas palavras. Antes de três meses

estavam reconciliados.

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- João, disse-lhe a mulher no dia

seguinte ao da reconciliação, você

deve ver que o meu amor é maior

que o meu ciúme, mas fica

entendido que este caso da nossa

vida é único. Nem você me fará

outra, nem eu lhe perdoarei nada

mais.

João da Fonseca achava-se então em

um renascimento do delírio conjugal;

respondeu à mulher jurando tudo e

mais alguma coisa. Aos quarenta

anos, concluiu ele, não se fazem

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duas aventuras daquelas, e a minha

foi de doer. Você verá, agora é para

sempre.

A vida recomeçou tão feliz, como

dantes, - ele dizia que mais. Com

efeito, a paixão da esposa era

violenta, e o marido tornou a amá-la

como outrora. Viveram assim dois

anos. Ao fim desse tempo, os

ardores do marido haviam

diminuído, alguns amores

passageiros vieram meter-se entre

ambos. Maria Cora, ao contrário do

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que lhe dissera, perdoou essas faltas,

que aliás não tiveram a extensão

nem o vulto da aventura Dolores. Os

desgostos, entretanto, apareceram e

grandes. Houve cenas violentas. Ela

parece que chegou mais de uma vez

a ameaçar que se mataria; mas,

posto não lhe faltasse o preciso

ânimo, não fez tentativa nenhuma, a

tal ponto lhe doía deixar a própria

causa do mal, que era o marido. João

da Fonseca percebeu isto mesmo, e

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acaso explorou a fascinação que

exercia na mulher.

Uma circunstância política veio

complicar esta situação moral. João

da Fonseca era pelo lado da

revolução, dava-se com vários dos

seus chefes, e pessoalmente

detestava alguns dos contrários.

Maria Cora, por laços de família, era

adversa aos federalistas. Esta

oposição de sentimentos não seria

bastante para separá-los, nem se

pode dizer que, por si mesma,

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azedasse a vida dos dois. Embora a

mulher, ardente em tudo, não o

fosse menos em condenar a

revolução, chamando nomes crus

aos seus chefes e oficiais; embora o

marido, também excessivo,

replicasse com igual ódio, os seus

arrufos políticos apenas

aumentariam os domésticos, e

provavelmente não passariam dessa

troca de conceitos, se uma nova

Dolores, desta vez Prazeres, e não

chilena nem saltimbanca, não

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revivesse os dias amargos de outro

tempo. Prazeres era ligada ao

partido da revolução, não só pelos

sentimentos, como pelas relações da

vida com um federalista. Eu a

conheci pouco depois, era bela e

airosa; João da Fonseca era também

um homem gentil e sedutor. Podiam

amar-se fortemente, e assim foi.

Vieram incidentes, mais ou menos

graves, até que um decisivo

determinou a separação do casal.

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Já cuidavam disto desde algum

tempo, mas a reconciliação não seria

impossível, apesar da palavra de

Maria Cora, graças à intervenção da

tia; esta havia insinuado à sobrinha

que residisse três ou quatro meses

no Rio de Janeiro ou em São Paulo.

Sucedeu, porém, uma coisa triste de

dizer. O marido, em um momento de

desvario, ameaçou a mulher com o

rebenque. Outra versão diz que ele

tentara esganá-la. Quero crer que a

verídica é a primeira, e que a

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segunda foi inventada para tirar à

violência de João da Fonseca o que

pudesse haver deprimente e vulgar.

Maria Cora não disse mais uma só

palavra ao marido. A separação foi

imediata; a mulher veio com a tia

para o Rio de Janeiro, depois de

arranjados amigavelmente os

interesses pecuniários. Demais, a tia

era rica.

João da Fonseca e Prazeres ficaram

vivendo juntos uma vida de

aventuras que não importa escrever

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aqui. Só uma coisa interessa

diretamente à minha narração.

Tempos depois da separação do

casal, João da Fonseca estava

alistado entre os revolucionários. A

paixão política, posto que forte, não

o levaria a pegar em armas, se não

fosse uma espécie de desafio da

parte de Prazeres; assim correu

entre os amigos dele, mas ainda este

ponto é obscuro. A versão é que ela,

exasperada com o resultado de

alguns combates, disse ao

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estancieiro que iria, disfarçada em

homem, vestir farda de soldado e

bater-se pela revolução. Era capaz

disto; o amante disse-lhe que era

uma loucura, ela acabou propondo-

lhe que, nesse caso, fosse ele bater-

se em vez dela; era uma grande

prova de amor que lhe daria.

- Não te tenho dado tantas?

- Tem, sim; mas esta é a maior de

todas, esta me fará cativa até à

morte.

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- Então agora ainda não é até à

morte? perguntou ele rindo.

- Não.

Pode ser que as coisas se passassem

assim. Prazeres era, com efeito, uma

mulher caprichosa e imperiosa, e

sabia prender um homem por laços

de ferro. O federalista, de quem se

separou para acompanhar João da

Fonseca, depois de fazer tudo para

reavê-la, passou à campanha

oriental, onde dizem que vive

pobremente, encanecido e

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envelhecido vinte anos, sem querer

saber de mulheres nem de política.

João da Fonseca acabou cedendo;

ela pediu para acompanhá-lo, e até

bater-se, se fosse preciso; ele negou-

lho. A revolução triunfaria em breve,

disse; vencidas as forças do governo,

tornaria à estância, onde ela o

esperaria.

- Na estância, não, respondeu

Prazeres; espero-te em Porto Alegre.

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Capítulo IV

Não importa dizer o tempo que

despendi nos inícios da minha

paixão, mas não foi grande. A paixão

cresceu rápida e forte. Afinal senti-

me tão tomado dela que não pude

mais guardá-la comigo, e resolvi

declarar-lha uma noite; mas a tia,

que usava cochilar desde as nove

horas (acordava às quatro), daquela

vez não pregou olho, e, ainda que o

fizesse, é provável que eu não

alcançasse falar; tinha a voz presa e

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na rua senti uma vertigem igual à

que me deu a primeira paixão da

minha vida.

- Sr. Correia, não vá cair, disse a tia

quando eu passei à varanda,

despedindo-me.

- Deixe estar, não caio.

Passei mal a noite; não pude dormir

mais de duas horas, aos pedaços, e

antes das cinco estava em pé.

- É preciso acabar com isto!

exclamei.

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De fato, não parecia achar em Maria

Cora mais que benevolência e

perdão, mas era isso mesmo que a

tornava apetecível. Todos os amores

da minha vida tinham sido fáceis; em

nenhum encontrei resistência, a

nenhuma deixei com dor; alguma

pena, é possível, e um pouco de

recordação. Desta vez sentia-me

tomado por ganchos de ferro. Maria

Cora era toda vida; parece que, ao

pé dela, as próprias cadeiras

andavam e as figuras do tapete

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moviam os olhos. Põe nisso uma

forte dose de meiguice e graça;

finalmente, a ternura da tia fazia

daquela criatura um anjo. É banal a

comparação, mas não tenho outra.

Resolvi cortar o mal pela raiz, não

tornando ao Engenho Velho, e assim

fiz por alguns dias largos, duas ou

três semanas. Busquei distrair-me e

esquecê-la, mas foi em vão. Comecei

a sentir a ausência como de um bem

querido; apesar disso, resisti e não

tornei logo. Mas, crescendo a

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ausência, cresceu o mal, e enfim

resolvi tornar lá uma noite. Ainda

assim pode ser que não fosse, a não

achar Maria Cora na mesma oficina

da Rua da Quitanda, aonde eu fora

acertar o relógio parado.

- É freguês também? perguntou-me

ao entrar.

- Sou.

- Vim acertar o meu. Mas, por que

não tem aparecido?

- É verdade, por que não voltou lá à

casa? completou a tia.

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- Uns negócios, murmurei; mas, hoje

mesmo contava ir lá.

- Hoje não; vá amanhã, disse a

sobrinha. Hoje vamos passar a noite

fora.

Pareceu-me ler naquela palavra um

convite a amá-la de vez, assim como

a primeira trouxera um tom que

presumi ser de saudade. Realmente,

no dia seguinte, fui ao Engenho

Velho. Maria Cora acolheu-me com a

mesma boa vontade de antes. O

poeta lá estava e contou-me em

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verso os suspiros que a tia dera por

mim. Entrei a frequentá-las

novamente e resolvi declarar tudo.

Já acima disse que ela

provavelmente percebera ou

adivinhara o que eu sentia, como

todas as mulheres; referi-me aos

primeiros dias. Desta vez com

certeza percebeu, nem por isso me

repeliu. Ao contrário, parecia gostar

de se ver querida, muito e bem.

Pouco depois daquela noite escrevi-

lhe uma carta e fui ao Engenho

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Velho. Achei-a um pouco retraída; a

tia explicou-me que recebera

notícias do Rio Grande que a

afligiram. Não liguei isto ao

casamento e busquei alegrá-la;

apenas consegui vê-la cortês. Antes

de sair, perto da varanda, entreguei-

lhe a carta; ia a dizer-lhe: "Peço-lhe

que leia", mas a voz não saiu. Vi-a

um pouco atrapalhada, e para evitar

dizer o que melhor ia escrito,

cumprimentei-a e enfiei pelo jardim.

Pode imaginar-se a noite que passei,

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e o dia seguinte foi naturalmente

igual, à medida que a outra noite

vinha. Pois, ainda assim, não tornei à

casa dela; resolvi esperar três ou

quatro dias, não que ela me

escrevesse logo, mas que pensasse

nos termos da resposta. Que estes

haviam de ser simpáticos, era

certeza minha; as maneiras dela, nos

últimos tempos, eram mais que

afáveis, pareciam-me convidativas.

Não cheguei, porém, aos quatro dias;

mal pude esperar três. Na noite do

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terceiro fui ao Engenho Velho. Se

disser que entrei trêmulo da

primeira comoção, não minto. Achei-

a ao piano, tocando para o poeta

ouvir; a tia, na poltrona, pensava em

não sei que, mas eu quase não a vi,

tal a minha primeira alucinação.

- Entre, Sr. Correia, disse esta; não

caia em cima de mim.

- Perdão...

Maria Cora não interrompeu a

música; ao ver-me chegar, disse:

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- Desculpe, se lhe não dou a mão,

estou aqui servindo de musa a este

senhor.

Minutos depois, veio a mim, e

estendeu-me a mão com tanta

galhardia, que li nela a resposta, e

estive quase a dar-lhe um

agradecimento. Passaram-se alguns

minutos, quinze ou vinte. Ao fim

desse tempo, ela pretextou um livro,

que estava em cima das músicas, e

pediu-me para dizer se o conhecia;

fomos ali ambos, e ela abriu-mo;

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entre as duas folhas estava um

papel.

- Na outra noite, quando aqui esteve,

deu-me esta carta; não podia dizer-

me o que tem dentro?

- Não adivinha?

- Posso errar na adivinhação.

- É isso mesmo.

- Bem, mas eu sou uma senhora

casada, e nem por estar separada do

meu marido deixo de estar casada. O

senhor ama-me, não é? Suponha,

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pelo melhor, que eu também o amo;

nem por isso deixo de estar casada.

Dizendo isto, entregou-me a carta;

não fora aberta. Se estivéssemos sós,

é possível que eu lha lesse, mas a

presença de estranhos impedia-me

este recurso. Demais, era

desnecessário; a resposta de Maria

Cora era definitiva ou me pareceu

tal. Peguei na carta, e antes de a

guardar comigo:

- Não quer então ler?

- Não.

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- Nem para ver os termos?

- Não.

- Imagine que lhe proponho ir

combater contra seu marido, matá-

lo e voltar, disse eu cada vez mais

tonto.

- Propõe isto?

- Imagine.

- Não creio que ninguém me ame

com tal força, concluiu sorrindo.

Olhe, que estão reparando em nós.

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Dizendo isto, separou-se de mim, e

foi ter com a tia e o poeta. Eu fiquei

ainda alguns segundos com o livro na

mão, como se deveras o examinasse,

e afinal deixei-o. Vim sentar-me

defronte dela. Os três conversavam

de coisas do Rio Grande, de

combates entre federalistas e

legalistas, e da vária sorte deles. O

que eu então senti não se escreve;

pelo menos, não o escrevo eu, que

não sou romancista. Foi uma espécie

de vertigem, um delírio, uma cena

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pavorosa e lúcida, um combate e

uma glória. Imaginei-me no campo,

entre uns e outros, combatendo os

federalistas, e afinal matando João

da Fonseca, voltando e casando-me

com a viúva. Maria Cora contribuía

para esta visão sedutora; agora, que

me recusara a carta, parecia-me

mais bela que nunca, e a isto

acrescia que se não mostrava

zangada nem ofendida, tratava-me

com igual carinho que antes, creio

até que maior. Disto podia sair uma

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impressão dupla e contrária, - uma

de aquiescência tácita, outra de

indiferença, mas eu só via a primeira,

e saí de lá completamente louco.

O que então resolvi foi realmente de

louco. As palavras de Maria Cora:

"Não creio que ninguém me ame

com tal força" - soavam-me aos

ouvidos, como um desafio. Pensei

nelas toda a noite, e no dia seguinte

fui ao Engenho Velho; logo que tive

ocasião de jurar-lhe a prova, fi-lo.

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- Deixo tudo o que me interessa, a

começar pela paz, com o único fim

de lhe mostrar que a amo, e a quero

só e santamente para mim. Vou

combater a revolta.

Maria Cora fez um gesto de

deslumbramento. Daquela vez

percebi que realmente gostava de

mim, verdadeira paixão, e se fosse

viúva, não casava com outro. Jurei

novamente que ia para o sul. Ela,

comovida, estendeu-me a mão.

Estávamos em pleno romantismo.

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Quando eu nasci, os meus não

acreditavam em outras provas de

amor, e minha mãe contava-me os

romances em versos de cavaleiros

andantes que iam à Terra Santa

libertar o sepulcro de Cristo por

amor da fé e da sua dama.

Estávamos em pleno romantismo.

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Capítulo V

Fui para o sul. Os combates entre

legalistas e revolucionários eram

contínuos e sangrentos, e a notícia

deles contribuiu a animar-me.

Entretanto, como nenhuma paixão

política me animava a entrar na luta,

força é confessar que por um

instante me senti abatido e hesitei.

Não era medo da morte, podia ser

amor da vida, que é um sinônimo;

mas, uma ou outra coisa, não foi tal

nem tamanha que fizesse durar por

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muito tempo a hesitação. Na cidade

do Rio Grande encontrei um amigo, a

quem eu por carta do Rio de Janeiro

dissera muito reservadamente que ia

lá por motivos políticos. Quis saber

quais.

- Naturalmente são reservados,

respondi tentando sorrir.

- Bem; mas uma coisa creio que

posso saber, uma só, porque não sei

absolutamente o que pense a tal

respeito, nada havendo antes que

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me instrua. De que lado estás,

legalistas ou revoltosos?

- É boa! Se não fosse dos legalistas,

não te mandaria dizer nada; viria às

escondidas.

- Vens com alguma comissão secreta

do marechal?

- Não.

Não me arrancou então mais nada,

mas eu não pude deixar de lhe

confiar os meus projetos, ainda que

sem os seus motivos. Quando ele

soube que aqueles eram alistar-me

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entre os voluntários que combatiam

a revolução, não pôde crer em mim,

e talvez desconfiasse que

efetivamente eu levava algum plano

secreto do presidente. Nunca da

minha parte ouviu nada que pudesse

explicar semelhante passo.

Entretanto, não perdeu tempo em

despersuadir-me; pessoalmente era

legalista e falava dos adversários

com ódio e furor. Passado o espanto,

aceitou o meu ato, tanto mais nobre

quanto não era inspirado por

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sentimento de partido. Sobre isto

disse-me muita palavra bela e

heroica, própria a levantar o ânimo

de quem já tivesse tendência para a

luta. Eu não tinha nenhuma, fora das

razões particulares; estas, porém,

eram agora maiores. Justamente

acabava de receber uma carta da tia

de Maria Cora, dando-me notícias

delas, e recomendações da sobrinha,

tudo com alguma generalidade e

certa simpatia verdadeira.

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Fui a Porto Alegre, alistei-me e

marchei para a campanha. Não disse

a meu respeito nada que pudesse

despertar a curiosidade de ninguém,

mas era difícil encobrir a minha

condição, a minha origem, a minha

viagem com o plano de ir combater a

revolução. Fez-se logo uma lenda a

meu respeito. Eu era um republicano

antigo, riquíssimo, entusiasta,

disposto a dar pela República mil

vidas, se as tivesse, e resoluto a não

poupar a única. Deixei dizer isto e o

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mais, e fui. Como eu indagasse das

forças revolucionárias com que

estaria João da Fonseca, alguém quis

ver nisto uma razão de ódio pessoal;

também não faltou quem me

supusesse espião dos rebeldes, que

ia pôr-me em comunicação secreta

com aquele. Pessoas que sabiam das

relações dele com a Prazeres,

imaginavam que era um antigo

amante desta que se queria vingar

dos amores dele. Todas aquelas

suposições morreram, para só ficar a

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do meu entusiasmo político; a da

minha espionagem ia-me

prejudicando; felizmente, não

passou de duas cabeças e de uma

noite.

Levava comigo um retrato de Maria

Cora; alcançara-o dela mesmo, uma

noite, pouco antes do meu

embarque, com uma pequena

dedicatória cerimoniosa. Já disse que

estava em pleno romantismo; dado o

primeiro passo, os outros vieram de

si mesmos. E agora juntai a isto o

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amor próprio, e compreendereis que

de simples cidadão indiferente da

capital saísse um guerreiro áspero da

campanha rio-grandense.

Nem por isso conto combates, nem

escrevo para falar da revolução, que

não teve nada comigo, por si mesma,

senão pela ocasião que me dava, e

por algum golpe que lhe desfechei

na estreita área da minha ação. João

da Fonseca era o meu rebelde.

Depois de haver tomado parte no

combate de Sarandi e Coxilha Negra,

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ouvi que o marido de Maria Cora

fora morto, não sei em que recontro;

mais tarde deram-me a notícia de

estar com as forças de Gumercindo,

e também que fora feito prisioneiro

e seguira para Porto Alegre; mas

ainda isto não era verdade. Disperso,

com dois camaradas, encontrei um

dia um regimento legal que ia em

defesa da Encruzilhada, investida

ultimamente por uma força dos

federalistas; apresentei-me ao

comandante e segui. Aí soube que

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João da Fonseca estava entre essa

força; deram-me todos os sinais

dele, contaram-me a história dos

amores e a separação da mulher.

A ideia de matá-lo no turbilhão de

um combate tinha algo fantástico;

nem eu sabia se tais duelos eram

possíveis em semelhantes ocasiões,

quando a força de cada homem tem

de somar com a de toda uma força

única e obediente a uma só direção.

Também me pareceu, mais de uma

vez, que ia cometer um crime

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pessoal, e a sensação que isto me

dava, podeis crer que não era leve

nem doce; mas a figura de Maria

Cora abraçava-me e absolvia com

uma bênção de felicidades. Atirei-me

de vez. Não conhecia João da

Fonseca; além dos sinais que me

haviam dado, tinha de memória um

retrato dele que vira no Engenho

Velho; se as feições não estivessem

mudadas, era provável que eu o

reconhecesse entre muitos. Mas,

ainda uma vez, seria este encontro

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possível? Os combates em que eu

entrara, já me faziam desconfiar que

não era fácil, ao menos.

Não foi fácil nem breve. No combate

da Encruzilhada creio que me houve

com a necessária intrepidez e

disciplina, e devo aqui notar que eu

me ia acostumando à vida da guerra

civil. Os ódios que ouvia, eram forças

reais. De um lado e outro batiam-se

com ardor, e a paixão que eu sentia

nos meus ia-se pegando em mim. Já

lera o meu nome em uma ordem do

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dia, e de viva voz recebera louvores,

que comigo não pude deixar de

achar justos, e ainda agora tais os

declaro. Mas vamos ao principal, que

é acabar com isto.

Naquele combate achei-me um tanto

como o herói de Stendhal na batalha

de Waterloo; a diferença é que o

espaço foi menor. Por isso, e

também porque não me quero deter

em coisas de recordação fácil, direi

somente que tive ocasião de matar

em pessoa a João da Fonseca.

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Verdade é que escapei de ser morto

por ele. Ainda agora trago na testa a

cicatriz que ele me deixou. O

combate entre nós foi curto. Se não

parecesse romanesco demais, eu

diria que João da Fonseca adivinhara

o motivo e previra o resultado da

ação.

Poucos minutos depois da luta

pessoal, a um canto da vila, João da

Fonseca caiu prostrado. Quis ainda

lutar, e certamente lutou um pouco;

eu é que não consenti na desforra,

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que podia ser a minha derrota, se é

que raciocinei; creio que não. Tudo o

que fiz foi cego pelo sangue em que

o deixara banhado, e surdo pelo

clamor e tumulto do combate.

Matava-se, gritava-se, vencia-se; em

pouco ficamos senhores do campo.

Quando vi que João da Fonseca

morrera deveras, voltei ao combate

por instantes; a minha ebriedade

cessara um pouco, e os motivos

primários tornaram a dominar-me,

como se fossem únicos. A figura de

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Maria Cora apareceu-me como um

sorriso de aprovação e perdão; tudo

foi rápido.

Haveis de ter lido que ali se

apreenderam três ou quatro

mulheres. Uma destas era a

Prazeres. Quando, acabado tudo, a

Prazeres viu o cadáver do amante,

fez uma cena que me encheu de ódio

e de inveja. Pegou em si e deitou-se

a abraçá-lo; as lágrimas que verteu,

as palavras que disse, fizeram rir a

uns; a outros, se não enterneceram,

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deram algum sentimento de

admiração. Eu, como digo, achei-me

tomado de inveja e ódio, mas

também esse duplo sentimento

desapareceu para não ficar nem

admiração; acabei rindo. Prazeres,

depois de honrar com dor a morte

do amante, ficou sendo a federalista

que já era; não vestia farda, como

dissera ao desafiar João da Fonseca,

quis ser prisioneira com os rebeldes

e seguir com eles.

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É claro que não deixei logo as forças,

bati-me ainda algumas vezes, mas a

razão principal dominou, e abri mão

das armas. Durante o tempo em que

estive alistado, só escrevi duas cartas

a Maria Cora, uma pouco depois de

encetar aquela vida nova, - outra

depois do combate da Encruzilhada;

nesta não lhe contei nada do marido,

nem da morte, nem sequer que o

vira. Unicamente anunciei que era

provável acabasse brevemente a

guerra civil. Em nenhuma das duas

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fiz a menor alusão aos meus

sentimentos nem ao motivo do meu

ato; entretanto, para quem soubesse

deles, a carta era significativa. Maria

Cora só respondeu à primeira das

cartas, com serenidade, mas não

com isenção. Percebia-se, - ou

percebia-o eu, - que, não

prometendo nada, tudo agradecia, e,

quando menos, admirava. Gratidão e

admiração podiam encaminhá-la ao

amor.

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Ainda não disse, - e não sei como

diga este ponto, - que na

Encruzilhada, depois da morte de

João da Fonseca, tentei degolá-lo;

mas nem queria fazê-lo, nem

realmente o fiz. O meu objeto era

ainda outro e romanesco. Perdoa-me

tu, realista sincero, há nisto também

um pouco de realidade, e foi o que

pratiquei, de acordo com o estado

da minha alma: o que fiz foi cortar-

lhe um molho de cabelos. Era o

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recibo da morte que eu levaria à

viúva.

Capítulo VI

Quando voltei ao Rio de Janeiro,

tinham já passado muitos meses do

combate da Encruzilhada. O meu

nome figurou não só em partes

oficiais como em telegramas e

correspondências, por mais que eu

buscasse esquivar-me ao ruído e

desaparecer na sombra. Recebi

cartas de felicitações e de

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indagações. Não vim logo para o Rio

de Janeiro, note-se; podia ter aqui

alguma festa; preferi ficar em São

Paulo. Um dia, sem ser esperado,

meti-me na estrada de ferro e entrei

na cidade. Fui para a casa de pensão

do Catete.

Não procurei logo Maria Cora.

Pareceu-me até mais acertado que a

notícia da minha vinda lhe chegasse

pelos jornais. Não tinha pessoa que

lhe falasse; vexava-me ir eu mesmo a

alguma redação contar o meu

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regresso do Rio Grande; não era

passageiro de mar, cujo nome viesse

em lista nas folhas públicas.

Passaram dois dias; no terceiro,

abrindo uma destas, dei com o meu

nome. Dizia-se ali que viera de São

Paulo e estivera nas lutas do Rio

Grande, citavam-se os combates,

tudo com adjetivos de louvor; enfim,

que voltava à mesma pensão do

Catete. Como eu só contara alguma

coisa ao dono da casa, podia ser ele

o autor das notas; disse-me que não.

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Entrei a receber visitas pessoais.

Todas queriam saber tudo; eu pouco

mais disse que nada.

Entre os cartões, recebi dois de

Maria Cora e da tia, com palavras de

boas-vindas. Não era preciso mais;

restava-me ir agradecer-lhes, e

dispus-me a isso; mas, no próprio dia

em que resolvi ir ao Engenho Velho,

tive uma sensação de... De quê?

Expliquem, se podem, o

acanhamento que me deu a

lembrança do marido de Maria Cora,

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morto às minha mãos. A sensação

que ia ter diante dela tolheu-me

inteiramente. Sabendo-se qual foi o

móvel principal da minha ação

militar, mal se compreende aquela

hesitação; mas, se considerares que,

por mais que me defendesse do

marido e o matasse para não morrer,

ele era sempre o marido, terás

entendido o mal-estar que me fez

adiar a visita. Afinal, peguei em mim

e fui à casa dela.

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Maria Cora estava de luto. Recebeu-

me com bondade, e repetiu-me,

como a tia, as felicitações escritas.

Falamos da guerra civil, dos

costumes do Rio Grande, um pouco

de política, e mais nada. Não se disse

de João da Fonseca. Ao sair de lá,

perguntei a mim mesmo se Maria

Cora estaria disposta a casar comigo.

"Não me parece que recuse, embora

não lhe ache maneiras especiais.

Creio até que está menos afável que

dantes... Terá mudado?"

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Pensei assim, vagamente. Atribuí a

alteração ao estado moral da viuvez;

era natural. E continuei a frequentá-

la, disposto a deixar passar a

primeira fase do luto para lhe pedir

formalmente a mão. Não tinha que

fazer declarações novas; ela sabia

tudo. Continuou a receber-me bem.

Nenhuma pergunta me fez sobre o

marido, a tia também não, e da

própria revolução não se falou mais.

Pela minha parte, tornando à

situação anterior, busquei não

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perder tempo, fiz-me pretendente

com todas as maneiras do ofício. Um

dia, perguntei-lhe se pensava em

tornar ao Rio Grande.

- Por ora, não.

- Mas irá?

- É possível; não tenho plano nem

prazo marcado; é possível.

Eu, depois de algum silêncio, durante

o qual olhava interrogativamente

para ela, acabei por inquirir se antes

de ir, caso fosse, não alteraria nada

em sua vida.

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- A minha vida está tão alterada.. .

Não me entendera; foi o que supus.

Tratei de me explicar melhor, e

escrevi uma carta em que lhe

lembrava a entrega e a recusa da

primeira e lhe pedia francamente a

mão. Entreguei a carta, dois dias

depois, com estas palavras:

- Desta vez não recusará ler-me.

Não recusou, aceitou a carta. Foi à

saída, à porta da sala. Creio até que

lhe vi certa comoção de bom agouro.

Não me respondeu por escrito, como

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esperei. Passados três dias, estava

tão ansioso que resolvi ir ao Engenho

Velho. Em caminho imaginei tudo;

que me recusasse, que me aceitasse,

que me adiasse, e já me contentava

com a última hipótese, se não

houvesse de ser a segunda. Não a

achei em casa; tinha ido passar

alguns dias na Tijuca. Saí de lá

aborrecido. Pareceu-me que não

queria absolutamente casar; mas

então era mais simples dizê-lo ou

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escrevê-lo. Esta consideração trouxe-

me esperanças novas.

Tinha ainda presentes as palavras

que me dissera, quando me

devolveu a primeira carta, e eu lhe

falei da minha paixão: ''Suponha que

eu o amo; nem por isso deixo de ser

uma senhora casada". Era claro que

então gostava de mim, e agora

mesmo não havia razão decisiva para

crer o contrário, embora a aparência

fosse um tanto fria. Ultimamente,

entrei a crer que ainda gostava, um

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pouco por vaidade, um pouco por

simpatia, e não sei se por gratidão

também; tive alguns vestígios disso.

Não obstante, não me deu resposta

à segunda carta. Ao voltar da Tijuca,

vinha menos expansiva, acaso mais

triste. Tive eu mesmo de lhe falar na

matéria; a resposta foi que por ora,

estava disposta a não casar.

- Mas um dia ...? perguntei depois de

algum silêncio.

- Estarei velha.

- Mas então... será muito tarde?

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- Meu marido pode não estar morto.

Espantou-me esta objeção.

- Mas a senhora está de luto.

- Tal foi a notícia que li e me deram;

pode não ser exata. Tenho visto

desmentir outras que se reputavam

certas.

- Quer certeza absoluta? perguntei.

Eu posso dá-la.

Maria Cora empalideceu. Certeza.

Certeza de quê? Queria que lhe

contasse tudo, mas tudo. A situação

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era tão penosa para mim que não

hesitei mais, e, depois de lhe dizer

que era intenção minha não lhe

contar nada, como não contara a

ninguém, ia fazê-lo, unicamente para

obedecer à intimação. E referi o

combate, as suas fases todas, os

riscos, as palavras, finalmente a

morte de João da Fonseca. A ânsia

com que me ouviu foi grande, e não

menor o abatimento final. Ainda

assim, dominou-se, e perguntou-me:

- Jura que me não está enganando?

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- Para que a enganar? O que tenho

feito é bastante para provar que sou

sincero. Amanhã, trago-lhe outra

prova, se é preciso mais alguma.

Levei-lhe os cabelos que cortara ao

cadáver. Contei-lhe, - e confesso que

o meu fim foi irritá-la contra a

memória do defunto, - contei-lhe o

desespero da Prazeres. Descrevi essa

mulher e as suas lágrimas. Maria

Cora ouviu-me com os olhos grandes

e perdidos; estava ainda com

ciúmes. Quando lhe mostrei os

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cabelos do marido, atirou-se a eles,

recebeu-os, beijou-os, chorando,

chorando, chorando... Entendi

melhor sair e sair para sempre. Dias

depois recebi a resposta à minha

carta; recusava casar.

Na resposta havia uma palavra que é

a única razão de escrever esta

narrativa: "Compreende que eu não

podia aceitar a mão do homem que,

embora lealmente, matou meu

marido". Comparei-a àquela outra

que me dissera antes, quando eu me

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propunha sair a combate, matá-lo e

voltar: "Não creio que ninguém me

ame com tal força". E foi essa

palavra que me levou à guerra.

Maria Cora vive agora reclusa; de

costume manda dizer uma missa por

alma do marido, no aniversário do

combate da Encruzilhada. Nunca

mais a vi; e, coisa menos difícil,

nunca mais esqueci de dar corda ao

relógio.

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MARCHA FÚNEBRE

O deputado Cordovil não podia

pregar olho uma noite de agosto de

186... Viera cedo do Cassino

Fluminense, depois da retirada do

imperador, e durante o baile não

tivera o mínimo incômodo moral

nem físico. Ao contrário, a noite foi

excelente, tão excelente que um

inimigo seu, que padecia do coração,

faleceu antes das dez horas, e a

notícia chegou ao Cassino pouco

depois das onze.

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Naturalmente concluis que ele ficou

alegre com a morte do homem,

espécie de vingança que os corações

adversos e fracos tomam em falta de

outra. Digo-te que concluis mal; não

foi alegria, foi desabafo. A morte

vinha de meses, era daquelas que

não acabam mais, e moem, mordem,

comem, trituram a pobre criatura

humana. Cordovil sabia dos

padecimentos do adversário. Alguns

amigos, para o consolar de antigas

injúrias, iam contar-lhe o que viam

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ou sabiam do enfermo, pregado a

uma cadeira de braços, vivendo as

noites horrivelmente, sem que as

auroras lhe trouxessem esperanças,

nem as tardes desenganos. Cordovil

pagava-lhes com alguma palavra de

compaixão, que o alvissareiro

adotava, e repetia, e era mais sincera

naquele que neste. Enfim acabara de

padecer; daí o desabafo.

Este sentimento pegava com a

piedade humana. Cordovil, salvo em

política, não gostava do mal alheio.

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Quando rezava, ao levantar da cama:

"Padre Nosso, que estás no céu,

santificado seja o teu nome, venha a

nós o teu reino, seja feita a tua

vontade, assim na terra como no

céu; o pão nosso de cada dia nos dá

hoje; perdoa as nossas dívidas, como

nós perdoamos aos nossos

devedores"... não imitava um de

seus amigos que rezava a mesma

prece, sem todavia perdoar aos

devedores, como dizia de língua;

esse chegava a cobrar além do que

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eles lhe deviam, isto é, se ouvia

maldizer de alguém, decorava tudo e

mais alguma coisa e ia repeti-lo a

outra parte. No dia seguinte, porém,

a bela oração de Jesus tornava a sair

dos lábios da véspera com a mesma

caridade de ofício.

Cordovil não ia nas águas desse

amigo; perdoava deveras. Que

entrasse no perdão um tantinho de

preguiça, é possível, sem aliás ser

evidente. Preguiça amamenta muita

virtude. Sempre é alguma coisa

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minguar força à ação do mal. Não

esqueça que o deputado só gostava

do mal alheio em política, e o

inimigo morto era inimigo pessoal.

Quanto à causa da inimizade, não a

sei eu, e o nome do homem acabou

com a vida.

- Coitado! descansou, disse Cordovil.

Conversaram da longa doença do

finado. Também falaram das várias

mortes deste mundo, dizendo

Cordovil que a todas preferia a de

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César, não por motivo do ferro, mas

por inesperada e rápida.

- Tu quoque? perguntou-lhe um

colega rindo.

Ao que ele, apanhando a alusão,

replicou:

- Eu, se tivesse um filho, quisera

morrer às mãos dele. O parricídio,

estando fora do comum, faria a

tragédia mais trágica.

Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu

do baile com sono, e foi cochilando

no carro, apesar do mal calçado das

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ruas. Perto de casa, sentiu parar o

carro e ouviu rumor de vozes. Era o

caso de um defunto, que duas praças

de polícia estavam levantando do

chão.

- Assassinado? perguntou ele ao

lacaio, que descera da almofada para

saber o que era.

- Não sei, não, senhor.

- Pergunta o que é.

- Este moço sabe como foi, disse o

lacaio, indicando um desconhecido,

que falava a outros.

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O moço aproximou-se da portinhola,

antes que o deputado recusasse

ouvi-lo. Referiu-lhe então em poucas

palavras o acidente a que assistira.

- Vínhamos andando, ele adiante, eu

atrás. Parece que assobiava uma

polca. Indo a atravessar a rua para o

lado do Mangue, vi que estacou o

passo, a modo que torceu o corpo,

não sei bem, e caiu sem sentidos.

Um doutor, que chegou logo,

descendo de um sobradinho,

examinou o homem e disse que

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"morreu de repente". Foi-se

juntando gente, a patrulha levou

muito tempo a chegar. Agora pegou

dele. Quer ver o defunto?

- Não, obrigado. Já se pode passar?

- Pode.

- Obrigado. Vamos, Domingos.

Domingos trepou à almofada, o

cocheiro tocou os animais, e o carro

seguiu até à Rua de São Cristóvão,

onde morava Cordovil.

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Antes de chegar à casa , Cordovil foi

pensando na morte do

desconhecido. Em si mesma, era

boa; comparada à do inimigo

pessoal, excelente. Ia a assobiar,

cuidando sabe Deus em que delícia

passada ou em que esperança

futura; revivia o que vivera, ou

antevia o que podia viver, senão

quando, a morte pegou da delícia ou

da esperança, e lá se foi o homem ao

eterno repouso. Morreu sem dor,

ou, se alguma teve, foi acaso

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brevíssima, como um relâmpago que

deixa a escuridão mais escura.

Então pôs o caso em si. Se lhe tem

acontecido no Cassino a morte do

Aterrado? Não seria dançando; os

seus quarenta anos não dançavam.

Podia até dizer que ele só dançou até

aos vinte. Não era dado a moças,

tivera uma afeição única na vida, -

aos vinte e cinco anos, casou e

enviuvou ao cabo de cinco semanas

para não casar mais. Não é que lhe

faltassem noivas, - mormente depois

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de perder o avô, que lhe deixou duas

fazendas. Vendeu-as ambas e passou

a viver consigo, fez duas viagens à

Europa, continuou a política e a

sociedade. Ultimamente parecia

enojado de uma e de outra, mas não

tendo em que matar o tempo, não

abriu mão delas. Chegou a ser

ministro uma vez, creio que da

Marinha, não passou de sete meses.

Nem a pasta lhe deu glória, nem a

demissão desgosto. Não era

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ambicioso, e mais puxava para a

quietação que para o movimento.

Mas se lhe tivesse sucedido morrer

de repente no Cassino, ante uma

valsa ou quadrilha, entre duas

portas? Podia ser muito bem.

Cordovil compôs de imaginação a

cena, ele caído de bruços ou de

costas, o prazer turbado, a dança

interrompida... e dali podia ser que

não; um pouco de espanto apenas,

outro de susto, os homens animando

as damas, a orquestra continuando

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por instantes a oposição do

compasso e da confusão. Não

faltariam braços que o levassem para

um gabinete, já morto, totalmente

morto.

- Tal qual a morte de César, ia

dizendo consigo.

E logo emendou:

- Não, melhor que ela; sem ameaça,

nem armas, nem sangue, uma

simples queda e o fim. Não sentiria

nada.

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Cordovil deu consigo a rir ou a sorrir,

alguma coisa que afastava o terror e

deixava a sensação da liberdade. Em

verdade, antes a morte assim que

após longos dias ou longos meses e

anos, como o adversário que perdera

algumas horas antes. Nem era

morrer; era um gesto de chapéu, que

se perdia no ar com a própria mão e

a alma que lhe dera movimento. Um

cochilo e o sono eterno. Achava-lhe

um só defeito, - o aparato. Essa

morte no meio de um baile defronte

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do imperador, ao som de Strauss,

contada, pintada, enfeitada nas

folhas públicas, essa morte pareceria

de encomenda. Paciência, uma vez

que fosse repentina.

Também pensou que podia ser na

Câmara, no dia seguinte, ao começar

o debate do orçamento. Tinha a

palavra; já andava cheio de

algarismos e citações. Não quis

imaginar o caso, não valia a pena;

mas o caso teimou e apareceu de si

mesmo. O salão da Câmara, em vez

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do do Cassino, sem damas ou com

poucas, nas tribunas. Vasto silêncio.

Cordovil em pé começaria o discurso,

depois de circular os olhos pela casa,

fitar o ministro e fitar o presidente:

"Releve-me a Câmara que lhe tome

algum tempo, serei breve, buscarei

ser justo..." Aqui uma nuvem lhe

taparia os olhos, a língua pararia, o

coração também, e ele cairia de

golpe no chão. Câmara, galerias,

tribunas ficariam assombradas.

Muitos deputados correriam a

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erguê-lo; um, que era médico,

verificaria a morte; não diria que fora

de repente, como o do sobradinho

do Aterrado, mas por outro estilo

mais técnico. Os trabalhos seriam

suspensos, depois de algumas

palavras do presidente e escolha da

comissão que acompanharia o finado

ao cemitério...

Cordovil quis rir da circunstância de

imaginar além da morte, o

movimento e o saimento, as próprias

notícias dos jornais, que ele leu de

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cor e depressa. Quis rir, mas preferia

cochilar; os olhos é que, estando já

perto de casa e da cama, não

quiseram desperdiçar o sono, e

ficaram arregalados.

Então a morte, que ele imaginara

pudesse ter sido no baile, antes de

sair, ou no dia seguinte em plena

sessão da Câmara, apareceu ali

mesmo no carro. Supôs ele que, ao

abrirem-lhe a portinhola, dessem

com o seu cadáver. Sairia assim de

uma noite ruidosa para outra

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pacífica, sem conversas, nem danças,

nem encontros, sem espécie alguma

de luta ou resistência. O estremeção

que teve fez-lhe ver que não era

verdade. Efetivamente, o carro

entrou na chácara, estacou, e

Domingos saltou da almofada para

vir abrir-lhe a portinhola. Cordovil

desceu com as pernas e a alma vivas,

e entrou pela porta lateral, onde o

aguardava com um castiçal e vela

acesa o escravo Florindo. Subiu a

escada, e os pés sentiam que os

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degraus eram deste mundo; se

fossem do outro, desceriam

naturalmente. Em cima, ao entrar no

quarto, olhou para a cama; era a

mesma dos sonos quietos e

demorados.

- Veio alguém?

- Não, senhor, respondeu o escravo

distraído, mas corrigiu logo: Veio,

sim, senhor; veio aquele doutor que

almoçou com meu senhor domingo

passado.

- Queria alguma coisa?

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- Disse que vinha dar a meu senhor

uma boa notícia, e deixou este

bilhete - que eu botei ao pé da cama.

O bilhete referia a morte do inimigo;

era de um dos amigos que usavam

contar-lhe a marcha da moléstia.

Quis ser o primeiro a anunciar o

desenlace, um alegrão, com um

abraço apertado. Enfim, morrera o

patife. Não disse a coisa assim por

esses termos claros, mas os que

empregou vinham a dar neles,

acrescendo que não atribuiu esse

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único objeto à visita. Vinha passar a

noite; só ali soube que Cordovil fora

ao Cassino. Ia a sair, quando lhe

lembrou a morte e pediu ao Florindo

que lhe deixasse escrever duas

linhas. Cordovil entendeu o

significado, e ainda uma vez lhe doeu

a agonia do outro. Fez um gesto de

melancolia e exclamou a meia voz:

- Coitado! Vivam as mortes súbitas!

Florindo, se referisse o gesto e a

frase ao doutor do bilhete, talvez o

fizesse arrepender da canseira. Nem

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pensou nisso; ajudou o senhor a

preparar-se para dormir, ouviu as

últimas ordens e despediu-se.

Cordovil deitou-se.

- Ah! suspirou ele estirando o corpo

cansado.

Teve então uma ideia, a de

amanhecer morto. Esta hipótese, a

melhor de todas, porque o apanharia

meio morto, trouxe consigo mil

fantasias que lhe arredaram o sono

dos olhos. Em parte, era a repetição

das outras, a participação à Câmara,

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as palavras do presidente, comissão

para o saimento, e o resto. Ouviu

lástimas de amigos e de fâmulos, viu

notícias impressas, todas lisonjeiras

ou justas. Chegou a desconfiar que

era já sonho. Não era. Chamou-se ao

quarto, à cama, a si mesmo: estava

acordado.

A lamparina deu melhor corpo à

realidade. Cordovil espancou as

ideais fúnebres e esperou que as

alegres tomassem conta dele e

dançassem até cansá-lo. Tentou

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vencer uma visão com outra. Fez até

uma coisa engenhosa, convocou os

cinco sentidos, porque a memória de

todos eles era aguda e fresca; foi

assim evocando lances e rasgos

longamente extintos. Gestos, cenas

de sociedade e de família,

panoramas, repassou muita coisa

vista, com o aspecto do tempo

diverso e remoto. Deixara de comer

acepipes que outra vez lhe sabiam,

como se estivesse agora a mastigá-

los. Os ouvidos escutavam passos

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leves e pesados, cantos joviais e

tristes, e palavras de todos os feitios.

O tato, o olfato, todos fizeram o seu

ofício, durante um prazo que ele não

calculou.

Cuidou de dormir e cerrou bem os

olhos. Não pôde, nem do lado

direito, nem do esquerdo, de costas

nem de bruços. Ergueu-se e foi ao

relógio; eram três horas.

Insensivelmente levou-o à orelha a

ver se estava parado; estava

andando, dera-lhe corda. Sim, tinha

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tempo de dormir um bom sono;

deitou-se, cobriu a cabeça para não

ver a luz.

Ah! foi então que o sono tentou

entrar, calado e surdo, todo cautelas,

como seria a morte, se quisesse levá-

lo de repente, para nunca mais.

Cordovil cerrou os olhos com força, e

fez mal, porque a força acentuou a

vontade que tinha de dormir; cuidou

de os afrouxar, e fez bem. O sono,

que ia a recuar, tornou atrás, e veio

estirar-se ao lado deles, passando-

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lhe aqueles braços leves e pesados, a

um tempo, que tiram à pessoa todo

movimento. Cordovil os sentia, e

com os seus quis conchegá-los ainda

mais... A imagem não é boa, mas não

tenho outra à mão nem tempo de ir

buscá-la. Digo só o resultado do

gesto, que foi arredar o sono de si,

tão aborrecido ficou este reformador

de cansados.

- Que terá ele hoje contra mim?

perguntaria o sono, se falasse.

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Tu sabes que ele é mudo por

essência. Quando parece que fala é o

sonho que abre a boca à pessoa; ele

não, ele é a pedra, e ainda a pedra

fala, se lhe batem, como estão

fazendo agora os calceteiros da

minha rua. Cada pancada acorda na

pedra um som, e a regularidade do

gesto torna aquele som tão pontual

que parece a alma de um relógio.

Vozes de conversa ou de pregão,

rodas de carro, passos de gente, uma

janela batida pelo vento, nada

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dessas coisas que ora ouço, animava

então a rua e a noite de Cordovil.

Tudo era propício ao sono.

Cordovil ia finalmente dormir,

quando a ideia de amanhecer morto

apareceu outra vez. O sono recuou e

fugiu. Esta alternativa durou muito

tempo. Sempre que o sono ia a

grudar-lhe os olhos, a lembrança da

morte os abria, até que ele sacudiu o

lençol e saiu da cama. Abriu uma

janela e encostou-se ao peitoril. O

céu queria clarear, alguns vultos iam

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passando na rua, trabalhadores e

mercadores que desciam para o

centro da cidade. Cordovil sentiu um

arrepio; não sabendo se era frio ou

medo, foi vestir um camisão de

chita, e voltou para a janela. Parece

que era frio, porque não sentia mais

nada.

A gente continuava a passar, o céu a

clarear, um assobio da estrada de

ferro deu sinal de trem que ia partir.

Homens e coisas vinham do

descanso; o céu fazia economia de

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estrelas, apagando-as à medida que

o sol ia chegando para o seu ofício.

Tudo dava ideia de vida.

Naturalmente a ideia da morte foi

recuando e desapareceu de todo,

enquanto o nosso homem, que

suspirou por ela no Cassino, que a

desejou para o dia seguinte na

Câmara dos Deputados, que a

encarou no carro, voltou-lhe as

costas quando a viu entrar com o

sono, seu irmão mais velho, - ou

mais moço não sei.

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Quando veio a falecer, muitos anos

depois, pediu e teve a morte, não

súbita, mas vagarosa, a morte de um

vinho filtrado, que sai impuro de

uma garrafa para entrar purificado

em outra; a borra iria; para o

cemitério. Agora é que lhe via a

filosofia; em ambas as garrafas era

sempre o vinho que ia ficando, até

passar inteiro e pingado para a

segunda. Morte súbita não acabava

de entender o que era.

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UM CAPITÃO DE VOLUNTÁRIOS

Indo a embarcar para a Europa, logo

depois da proclamação da República,

Simão de Castro fez inventário das

cartas e apontamentos; rasgou tudo.

Só lhe ficou a narração que ides ler;

entregou-a a um amigo para

imprimi-la quando ele estivesse

barra fora. O amigo não cumpriu a

recomendação por achar na história

alguma coisa que podia ser penosa, e

assim lho disse em carta. Simão

respondeu que estava por tudo o

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que quisesse; não tendo vaidades

literárias, pouco se lhe dava de vir ou

não a público. Agora que os dois

faleceram, e não há igual escrúpulo,

dá-se o manuscrito ao prelo.

Éramos dois, elas duas. Os dois

íamos ali por visita, costume,

desfastio, e finalmente por amizade.

Fiquei amigo do dono da casa, ele

meu amigo. As tardes, sobre o

jantar, - jantava-se cedo em 1866, -

ia ali fumar um charuto. O sol ainda

entrava pela janela, onde se via um

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morro com casas em cima. A janela

oposta dava para o mar. Não digo a

rua nem o bairro; a cidade posso

dizer que era o Rio de Janeiro.

Ocultarei o nome do meu amigo,

ponhamos uma letra, X... Ela, uma

delas, chamava-se Maria.

Quando eu entrava, já ele estava na

cadeira de balanço. Os móveis da

sala eram poucos, os ornatos raros,

tudo simples. X... estendia-me a mão

larga e forte; eu ia sentar-me ao pé

da janela, olho na sala, olho na rua.

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Maria, ou já estava ou vinha de

dentro. Éramos nada um para o

outro; ligava-nos unicamente a

afeição de X... Conversávamos; eu

saía para casa ou ia passear, eles

ficavam e iam dormir. Algumas vezes

jogávamos cartas, às noites, e, para o

fim do tempo, era ali que eu passava

a maior parte destas.

Tudo em X... me dominava. A figura

primeiro. Ele robusto, eu franzino; a

minha graça feminina, débil,

desaparecia ao pé do garbo varonil

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dele, dos seus ombros largos,

cadeiras largas, jarrete forte e o pé

sólido que, andando, batia rijo no

chão. Dai-me um bigode escasso e

fino; vede nele as suíças longas,

espessas e encaracoladas, e um dos

seus gestos habituais, pensando ou

escutando, era passar os dedos por

elas, encaracolando-as sempre. Os

olhos completavam a figura, não só

por serem grandes e belos, mas

porque riam mais e melhor que a

boca. Depois da figura, a idade; X...

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era homem de quarenta anos, eu

não passava dos vinte e quatro.

Depois da idade, a vida; ele vivera

muito, em outro meio, donde saíra a

encafuar-se naquela casa, com

aquela senhora, eu não vivera nada

nem com pessoa alguma. Enfim, - e

este rasgo é capital, - havia nele uma

fibra castelhana, uma gota do

sangue que circula nas páginas de

Calderon, uma atitude moral que

posso comparar, sem depressão nem

riso, à do herói de Cervantes.

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Como se tinham amado? Datava de

longe. Maria contava já vinte e sete

anos, e parecia haver recebido

alguma educação. Ouvi que o

primeiro encontro fora em um baile

de máscaras, no antigo Teatro

Provisório. Ela trajava uma saia

curta, e dançava ao som de um

pandeiro. Tinha os pés admiráveis, e

foram eles ou o seu destino a causa

do amor de X... Nunca lhe perguntei

a origem da aliança; sei só que ela

tinha uma filha, que estava no

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colégio e não vinha à casa; a mãe é

que ia vê-la. Verdadeiramente as

nossas relações eram respeitosas, e

o respeito ia ao ponto de aceitar a

situação sem a examinar.

Quando comecei a ir ali, não tinha

ainda o emprego no banco. Só dois

ou três meses depois é que entrei

para este, e não interrompi as

relações. Maria tocava piano; às

vezes, ela e a amiga Raimunda

conseguiam arrastar X... ao teatro;

eu ia com eles. No fim, tomávamos

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chá em sala particular, e, uma ou

outra vez, se havia lua, acabávamos

a noite indo de carro a Botafogo.

A estas festas não ia Barreto, que só

mais tarde começou a frequentar a

casa. Entretanto, era bom

companheiro, alegre e rumoroso.

Uma noite, como saíssemos de lá,

encaminhou a conversa para as duas

mulheres, e convidou-me a namorá-

las.

- Tu escolhes uma, Simão, eu outra.

Estremeci e parei.

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- Ou antes, eu já escolhi, continuou

ele, escolhi a Raimunda. Gosto muito

da Raimunda. Tu, escolhe a outra.

- A Maria?

- Pois que outra há de ser?

O alvoroço que me deu este

tentador foi tal que não achei

palavra de recusa, nem palavra nem

gesto. Tudo me pareceu natural e

necessário. Sim, concordei em

escolher Maria; era mais velha que

eu três anos, mas tinha a idade

conveniente para ensinar-me a

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amar. Está dito, Maria. Deitamo-nos

às duas conquistas com ardor e

tenacidade. Barreto não tinha que

vencer muito; a eleita dele não trazia

amores, mas até pouco antes

padecera de uns que rompera contra

a vontade, indo o amante casar com

uma moça de Minas. Depressa se

deixou consolar. Barreto um dia,

estando eu a almoçar, veio anunciar-

me que recebera uma carta dela, e

mostrou-ma.

- Estão entendidos?

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- Estamos. E vocês?

- Eu não.

- Então quando?

- Deixa ver; eu te digo.

Naquele dia fiquei meio vexado. Com

efeito, apesar da melhor vontade

deste mundo, não me atrevia a dizer

a Maria os meus sentimentos. Não

suponhas que era nenhuma paixão.

Não tinha paixão, mas curiosidade.

Quando a via esbelta e fresca, toda

calor e vida, sentia-me tomado de

uma força nova e misteriosa; mas,

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por um lado, não amara nunca, e,

por outro, Maria era a companheira

de meu amigo. Digo isto, não para

explicar escrúpulos, mas unicamente

para fazer compreender o meu

acanhamento. Viviam juntos desde

alguns anos, um para o outro. X...

tinha confiança em mim, confiança

absoluta, comunicava-me os seus

negócios, contava-me coisas da vida

passada. Apesar da desproporção da

idade, éramos como estudantes do

mesmo ano.

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Como entrasse a pensar mais

constantemente em Maria, é

provável que por algum gesto lhe

houvesse descoberto o meu recente

estado, certo é que, um dia, ao

apertar-lhe a mão, senti que os

dedos dela se demoravam mais

entre os meus. Dois dias depois, indo

ao correio, encontrei-a selando uma

carta para a Bahia. Ainda não disse

que era baiana? Era baiana. Ela é que

me viu primeiro e me falou. Ajudei-

lhe a pôr o selo e despedimo-nos. À

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porta ia a dizer alguma coisa, quando

vi ante nós, parada, a figura de X...

- Vim trazer a carta para mamãe,

apressou-se ela em dizer.

Despediu-se de nós e foi para casa;

ele e eu tomamos outro rumo. X...

aproveitou a ocasião para fazer

muitos elogios de Maria. Sem entrar

em minudências acerca da origem

das relações, assegurou-me que fora

uma grande paixão igual em ambos,

e concluiu que tinha a vida feita.

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- Já agora não me caso; vivo

maritalmente com ela, morrerei com

ela. Tenho uma só pena, é ser

obrigado a viver separado de minha

mãe. Minha mãe sabe, disse-me ele

parando. E continuou andando:

sabe, e até já me fez uma alusão

muito vaga e remota, mas que eu

percebi. Consta-me que não

desaprova; sabe que Maria é séria e

boa, e uma vez que eu seja feliz, não

exige mais nada. O casamento não

me daria mais que isto...

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Disse muitas outras coisas, que eu fui

ouvindo sem saber de mim; o

coração batia-me rijo, e as pernas

andavam frouxas. Não atinava com

resposta idônea; alguma palavra que

soltava, saía-me engasgada. Ao cabo

de algum tempo, ele notou o meu

estado e interpretou-o erradamente;

supôs que as suas confidências me

aborreciam, e disse-mo rindo.

Contestei sério:

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- Ao contrário, ouço com interesse, e

trata-se de pessoas de toda a

consideração e respeito.

Penso agora que cedia

inconscientemente a uma

necessidade de hipocrisia. A idade

das paixões é confusa, e naquela

situação não posso discernir bem os

sentimentos e suas causas.

Entretanto, não é fora de propósito

que buscasse dissipar no ânimo de

X... qualquer possível desconfiança.

A verdade é que ele me ouviu

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agradecido. Os seus grandes olhos

de criança envolveram-me todo, e

quando nos despedimos, apertou-

me a mão com energia. Creio até

que lhe ouvi dizer: "Obrigado!"

Não me separei dele aterrado, nem

ferido de remorsos prévios. A

primeira impressão da confidência

esvaiu-se, ficou só a confidência, e

senti crescer-me o alvoroço da

curiosidade. X... falara-me de Maria

como de pessoa casta e conjugal;

nenhuma alusão às suas prendas

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físicas, mas a minha idade

dispensava qualquer referência

direta. Agora, na rua, via de cor a

figura da moça, os seus gestos

igualmente lânguidos e robustos, e

cada vez me sentia mais fora de

mim. Em casa escrevi-lhe uma carta

longa e difusa, que rasguei meia hora

depois, e fui jantar. Sobre o jantar fui

à casa de X...

Eram ave-marias. Ele estava na

cadeira de balanço, eu sentei-me no

lugar do costume, olho na sala, olho

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no morro. Maria apareceu tarde,

depois das horas, e tão anojada que

não tomou parte na conversação.

Sentou-se e cochilou; depois tocou

um pouco de piano e saiu da sala.

- Maria acordou hoje com a mania

de colher donativos para a guerra,

disse-me ele. Já lhe fiz notar que

nem todos quererão parecer que...

Você sabe... A posição dela...

Felizmente, a ideia há de passar; tem

dessas fantasias...

- E por que não?

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- Ora, porque não! E depois, a guerra

do Paraguai, não digo que não seja

como todas as guerras, mas palavra,

não me entusiasma. A princípio, sim,

quando o López tomou o Marquês

de Olinda, fiquei indignado; logo

depois perdi a impressão, e agora,

francamente, acho que tínhamos

feito muito melhor se nos aliássemos

ao López contra os argentinos.

- Eu não. Prefiro os argentinos.

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- Também gosto deles, mas, no

interesse da nossa gente, era melhor

ficar com o López.

- Não; olhe, eu estive quase a alistar-

me como voluntário da pátria.

- Eu, nem que me fizessem coronel,

não me alistava.

Ele disse não sei que mais. Eu, como

tinha a orelha afiada, à escuta dos

pés de Maria, não respondi logo,

nem claro, nem seguido; fui

engrolando alguma palavra e sempre

à escuta. Mas o diabo da moça não

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vinha; imaginei que estariam

arrufados. Enfim, propus cartas,

podíamos jogar uma partida de

voltarete.

- Podemos, disse ele.

Passamos ao gabinete. X... pôs as

cartas na mesa e foi chamar a amiga.

Dali ouvi algumas frases sussurradas,

mas só estas me chegaram claras:

- Vem! é só meia hora.

- Que maçada! Estou doente.

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Maria apareceu no gabinete,

bocejando. Disse-me que era só meia

hora; tinha dormido mal, doía-lhe a

cabeça e contava deitar-se cedo.

Sentou-se enfastiada, e começamos

a partida. Eu arrependia-me de haver

rasgado a carta; lembrava-me alguns

trechos dela, que diriam bem o meu

estado, com o calor necessário a

persuadi-la. Se a tenho conservado,

entregava-lha agora; ela ia muita vez

ao patamar da escada despedir-se de

mim e fechar a cancela. Nessa

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ocasião podia dar-lha; era uma

solução da minha crise.

Ao cabo de alguns minutos, X...

levantou-se para ir buscar tabaco de

uma caixa de folha-de-flandres,

posta sobre a secretária. Maria fez

então um gesto que não sei como

diga nem pinte. Ergueu as cartas à

altura dos olhos para os tapar,

voltou-os para mim que lhe ficava à

esquerda, e arregalou-os tanto e

com tal fogo e atração, que não sei

como não entrei por eles. Tudo foi

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rápido. Quando ele voltou fazendo

um cigarro, Maria tinha as cartas

embaixo dos olhos, abertas em

leque, fitando-as como se calculasse.

Eu devia estar trêmulo; não

obstante, calculava também, com a

diferença de não poder falar. Ela

disse então com placidez uma das

palavras do jogo, passo ou licença.

Jogamos cerca de uma hora. Maria,

para o fim, cochilava literalmente, e

foi o próprio X... que lhe disse que

era melhor ir descansar. Despedi-me

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e passei ao corredor, onde tinha o

chapéu e a bengala. Maria, à porta

da sala, esperava que eu saísse e

acompanhou-me até à cancela, para

fechá-la. Antes que eu descesse,

lançou-me um dos braços ao

pescoço, chegou-me a si, colou-me

os lábios nos lábios, onde eles me

depositaram um beijo grande, rápido

e surdo. Na mão senti alguma coisa.

- Boa-noite, disse Maria fechando a

cancela.

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Não sei como não caí. Desci

atordoado, com o beijo na boca, os

olhos nos dela, e a mão apertando

instintivamente um objeto. Cuidei de

me pôr longe. Na primeira rua, corri

a um lampião, para ver o que trazia.

Era um cartão de loja de fazendas,

um anúncio, com isto escrito nas

costas, a lápis: "Espere-me amanhã,

na ponte das barcas de Niterói, à

uma hora da tarde".

O meu alvoroço foi tamanho que

durante os primeiros minutos não

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soube absolutamente o que fiz. Em

verdade, as emoções eram

demasiado grandes e numerosas, e

tão de perto seguidas que eu mal

podia saber de mim. Andei até ao

Largo de São Francisco de Paula.

Tornei a ler o cartão; arrepiei

caminho, novamente parei, e uma

patrulha que estava perto, talvez

desconfiou dos meus gestos.

Felizmente, a despeito da comoção,

tinha fome e fui cear ao Hotel dos

Príncipes. Não dormi antes da

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madrugada; às seis horas estava em

pé. A manhã foi lenta como as

agonias lentas. Dez minutos antes de

uma hora cheguei à ponte; já lá achei

Maria, envolvida numa capa, e com

um véu azul no rosto. Ia sair uma

barca, entramos nela.

O mar acolheu-nos bem. A hora era

de poucos passageiros. Havia

movimento de lanchas, de aves, e o

céu luminoso parecia cantar a nossa

primeira entrevista. O que dissemos

foi tão de atropelo e confusão que

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não me ficou mais de meia dúzia de

palavras, e delas nenhuma foi o

nome de X... ou qualquer referência

a ele. Sentíamos ambos que

traíamos eu o meu amigo, ela o seu

amigo e protetor. Mas, ainda que o

não sentíssemos, não é provável que

falássemos dele, tão pouco era o

tempo para o nosso infinito. Maria

apareceu-me então como nunca a vi

nem suspeitara, falando de mim e de

si, com a ternura possível naquele

lugar público, mas toda a possível,

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não menos. As nossas mãos

colavam-se, os nossos olhos comiam-

se e os corações batiam

provavelmente ao mesmo compasso

rápido e rápido. Pelo menos foi a

sensação com que me separei dela,

após a viagem redonda a Niterói e

São Domingos. Convidei-a a

desembarcar em ambos os pontos,

mas recusou; na volta, lembrei-lhe

que nos metêssemos numa caleça

fechada: "Que ideia faria de mim?"

perguntou-me com gesto de pudor

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que a transfigurou. E despedimo-nos

com prazo dado, jurando-lhe que eu

não deixaria de ir vê-los, à noite,

como de costume.

Como eu não tomei da pena para

narrar a minha felicidade, deixo a

parte deliciosa da aventura, com as

suas entrevistas, cartas e palavras, e

mais os sonhos e esperanças, as

infinitas saudades e os renascentes

desejos. Tais aventuras são como os

almanaques, que, com todas as suas

mudanças, hão de trazer os mesmos

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dias e meses, com os seus eternos

nomes e santos. O nosso almanaque

apenas durou um trimestre, sem

quartos minguantes nem ocasos de

sol. Maria era um modelo de graças

finas, toda vida, toda movimento.

Era baiana, como disse, fora educada

no Rio Grande do Sul, na campanha,

perto da fronteira. Quando lhe falei

do seu primeiro encontro com X... no

Teatro Provisório, dançando ao som

de um pandeiro, disse-me que era

verdade, fora ali vestida à castelhana

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e de máscara; e, como eu lhe pedisse

a mesma coisa, menos a máscara, ou

um simples lundu nosso, respondeu-

me como quem recusa um perigo:

- Você poderia ficar doido.

- Mas X... não ficou doido.

- Ainda hoje não está no seu juízo,

replicou Maria rindo. Imagina que eu

fazia isto só...

E em pé, num maneio rápido, deu

uma volta ao corpo, que me fez

ferver o sangue.

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O trimestre acabou depressa, como

os trimestres daquela casta. Maria

faltou um dia à entrevista. Era tão

pontual que fiquei tonto quando vi

passar a hora. Cinco, dez, quinze

minutos; depois vinte, depois trinta,

depois quarenta... Não digo as vezes

que andei de um lado para outro, na

sala, no corredor, à espreita e à

escuta, até que de todo passou a

possibilidade de vir. Poupo a notícia

do meu desespero, o tempo que

rolei no chão, falando, gritando ou

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chorando. Quando cansei, escrevi-

lhe uma longa carta; esperei que me

escrevesse também, explicando a

falta. Não mandei a carta, e à noite

fui à casa deles.

Maria pôde explicar-me a falta pelo

receio de ser vista e acompanhada

por alguém que a perseguia desde

algum tempo. Com efeito, haviam-

me já falado em não sei que vizinho

que a cortejava com instância; uma

vez disse-me que ele a seguira até à

porta da minha casa. Acreditei na

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razão, e propus-lhe outro lugar de

encontro, mas não lhe pareceu

conveniente. Desta vez achou

melhor suspendermos as nossas

entrevistas, até fazer calar as

suspeitas. Não sairia de casa. Não

compreendi então que a principal

verdade era ter cessado nela o ardor

dos primeiros dias. Maria era outra,

principalmente outra. E não podes

imaginar o que vinha a ser essa bela

criatura, que tinha em si o fogo e o

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gelo, e era mais quente e mais fria

que ninguém.

Quando me entrou a convicção de

que tudo estava acabado, resolvi não

voltar lá, mas nem por isso perdia a

esperança; era para mim questão de

esforço. A imaginação, que torna

presentes os dias passados, fazia-me

crer facilmente na possibilidade de

restaurar as primeiras semanas. Ao

cabo de cinco dias, voltei; não podia

viver sem ela.

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X... recebeu-me com o seu grande

riso infante, os olhos puros, a mão

forte e sincera; perguntou a razão da

minha ausência. Aleguei uma

febrezinha, e, para explicar o

enfadamento que eu não podia

vencer, disse que ainda me doía a

cabeça. Maria compreendeu tudo;

nem por isso se mostrou meiga ou

compassiva, e, à minha saída, não foi

até ao corredor, como de costume.

Tudo isto dobrou a minha angústia.

A ideia de morrer entrou a passar-

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me pela cabeça; e, por uma simetria

romântica, pensei em meter-me na

barca de Niterói, que primeiro

acolheu os nossos amores, e, no

meio da baía, atirar-me ao mar. Não

iniciei tal plano nem outro. Tendo

encontrado casualmente o meu

amigo Barreto, não vacilei em lhe

dizer tudo; precisava de alguém para

falar comigo mesmo. No fim pedi-lhe

segredo; devia pedir-lhe

especialmente que não contasse

nada a Raimunda. Nessa mesma

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noite ela soube tudo. Raimunda era

um espírito aventureiro, amigo de

entrepresas e novidades. Não se lhe

dava, talvez, de mim nem da outra,

mas viu naquilo um lance, uma

ocupação, e cuidou em reconciliar-

nos; foi o que eu soube depois, e é o

que dá lugar a este papel.

Falou-lhe uma e mais vezes. Maria

quis negar a princípio, acabou

confessando tudo, dizendo-se

arrependida da cabeçada que dera.

Usaria provavelmente de

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circunlóquios e sinônimos, frases

vagas e truncadas, alguma vez

empregaria só gestos. O texto que aí

fica é o da própria Raimunda, que

me mandou chamar à casa dela e me

referiu todos os seus esforços,

contente de si mesma.

- Mas não perca as esperanças,

concluiu; eu disse-lhe que o senhor

era capaz de matar-se.

- E sou.

- Pois não se mate por ora; espere.

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No dia seguinte vi nos jornais uma

lista de cidadãos que, na véspera,

tinham ido ao quartel general

apresentar-se como voluntários da

pátria, e nela o nome de X..., com o

posto de capitão. Não acreditei logo;

mas eram os mesmos, na mesma

ordem, e uma das folhas fazia

referências à família de X..., ao pai,

que fora oficial de marinha, e à

figura esbelta e varonil do novo

capitão; era ele mesmo.

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A minha primeira impressão foi de

prazer; íamos ficar sós. Ela não iria

de vivandeira para o sul. Depois,

lembrou-me o que ele me disse

acerca da guerra, e achei estranho o

seu alistamento de voluntário, ainda

que o amor dos atos generosos e a

nota cavalheiresca do espírito de X...

pudessem explicá-lo. Nem de

coronel iria, disse-me, e agora

aceitava o posto de capitão. Enfim,

Maria; como é que ele, que tanto lhe

queria, ia separar-se dela

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repentinamente, sem paixão forte

que o levasse à guerra?

Havia três semanas que eu não ia à

casa deles. A notícia do alistamento

justificava a minha visita imediata e

dispensava-me de explicações.

Almocei e fui. Compus um rosto

ajustado à situação e entrei. X... veio

à sala, depois de alguns minutos de

espera. A cara desdizia das palavras;

estas queriam ser alegres e leves,

aquela era fechada e torva, além de

pálida. Estendeu-me a mão, dizendo:

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- Então, vem ver o capitão de

voluntários?

- Venho ouvir o desmentido.

- Que desmentido? É pura verdade.

Não sei como isto foi, creio que as

últimas notícias... Você por que não

vem comigo?

- Mas então é verdade?

- É.

Após alguns instantes de silêncio,

meio sincero, por não saber

realmente que dissesse, meio

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calculado, para persuadi-lo da minha

consternação, murmurei que era

melhor não ir, e falei-lhe na mãe. X...

respondeu-me que a mãe aprovava;

era viúva de militar. Fazia esforços

para sorrir, mas a cara continuava a

ser de pedra. Os olhos buscavam

desviar-se, e geralmente não fitavam

bem nem longo. Não conversamos

muito; ele ergueu-se, alegando que

ia liquidar um negócio, e pediu-me

que voltasse a vê-lo. À porta, disse-

me com algum esforço:

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- Venha jantar um dia destes, antes

da minha partida.

- Sim.

- Olhe, venha jantar amanhã.

- Amanhã?

- Ou hoje, se quiser

- Amanhã.

Quis deixar lembranças a Maria; era

natural e necessário, mas faltou-me

o ânimo. Embaixo arrependi-me de o

não ter feito. Recapitulei a

conversação, achei-me atado e

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incerto; ele pareceu-me, além de

frio, sobranceiro. Vagamente, senti

alguma coisa mais. O seu aperto de

mão tanto à entrada, como à saída,

não me dera a sensação do costume.

Na noite desse dia, Barreto veio ter

comigo, atordoado com a notícia da

manhã, e perguntando-me o que

sabia; disse-lhe que nada. Contei-lhe

a minha visita da manhã, a nossa

conversação, sem as minhas

suspeitas.

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- Pode ser engano, disse ele, depois

de um instante.

- Engano?

- Raimunda contou-me hoje que

falara a Maria, que esta negara tudo

a princípio, depois confessara, e

recusara reatar as relações com

você.

- Já sei.

- Sim, mas parece que da terceira vez

foram pressentidas e ouvidas por

ele, que estava na saleta ao pé.

Maria correu a contar a Raimunda

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que ele mudara inteiramente; esta

dispôs-se a sondá-lo, eu opus-me,

até que li a notícia nos jornais. Vi-o

na rua, andando: não tinha aquele

gesto sereno de costume, mas o

passo era forte.

Fiquei aturdido com a notícia, que

confirmava a minha impressão. Nem

por isso deixei de ir lá jantar no dia

seguinte. Barreto quis ir também;

percebi que era com o fim único de

estar comigo, e recusei.

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X... não dissera nada a Maria; achei-

os na sala, e não me lembro de outra

situação na vida em que me sentisse

mais estranho a mim mesmo.

Apertei-lhes a mão, sem olhar para

ela. Creio que ela também desviou

os olhos. Ele é que, com certeza, não

nos observou; riscava um fósforo e

acendia um cigarro. Ao jantar falou o

mais naturalmente que pôde, ainda

que frio. O rosto exprimia maior

esforço que na véspera. Para explicar

a possível alteração, disse-me que

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embarcaria no fim da semana, e que,

à proporção que a hora ia chegando,

sentia dificuldade em sair.

- Mas é só até fora da barra; lá fora

torno a ser o que sou, e na

campanha, serei o que devo ser.

Usava dessas palavras rígidas,

alguma vez enfáticas. Notei que

Maria trazia os olhos pisados, soube

depois que chorara muito e tivera

grande luta com ele, na véspera,

para que não embarcasse. Só

conhecera a resolução pelos jornais,

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prova de alguma coisa mais

particular que o patriotismo. Não

falou à mesa, e a dor podia explicar o

silêncio, sem nenhuma outra causa

de constrangimento pessoal. Ao

contrário, X... procurava falar muito,

contava os batalhões, os oficiais

novos, as probabilidades de vitória, e

referia anedotas e boatos, sem curar

de ligação. Às vezes, queria rir; para

o fim, disse que naturalmente

voltaria general, mas ficou tão

carrancudo depois deste gracejo,

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que não tentou outro. O jantar

acabou frio; fumamos, ele ainda quis

falar da guerra, mas o assunto estava

exausto. Antes de sair, convidei-o a ir

jantar comigo.

- Não posso; todos os meus dias

estão tomados.

- Venha almoçar.

- Também não posso. Faço uma

coisa; na volta do Paraguai, o

terceiro dia é seu.

Creio ainda hoje que o fim desta

última frase era indicar que os dois

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primeiros dias seriam da mãe e de

Maria; assim, qualquer suspeita que

eu tivesse dos motivos secretos da

resolução, devia dissipar-se. Nem

bastou isso; disse-me que escolhesse

uma prenda em lembrança, um livro,

por exemplo. Preferi o seu último

retrato, fotografado a pedido da

mãe, com a farda de capitão de

voluntários. Por dissimulação, quis

que assinasse; ele prontamente

escreveu: "Ao seu leal amigo Simão

de Castro oferece o capitão de

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voluntários da pátria X..." O

mármore do rosto era mais duro, o

olhar mais torvo; passou os dedos

pelo bigode, com um gesto convulso,

e despedimo-nos.

No sábado embarcou. Deixou a

Maria os recursos necessários para

viver aqui, na Bahia, ou no Rio

Grande do Sul; ela preferiu o Rio

Grande, e partiu para lá, três

semanas depois, a esperar que ele

voltasse da guerra. Não a pude ver

antes; fechara-me a porta, como já

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me havia fechado o rosto e o

coração.

Antes de um ano, soube-se que ele

morrera em combate, no qual se

houve com mais denodo que perícia.

Ouvi contar que primeiro perdera

um braço, e que provavelmente a

vergonha de ficar aleijado o fez

atirar-se contra as armas inimigas,

como quem queria acabar de vez.

Esta versão podia ser exata, porque

ele tinha desvanecimento das belas

formas; mas a causa foi complexa.

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Também me contaram que Maria,

voltando do Rio Grande, morreu em

Curitiba; outros dizem que foi acabar

em Montevidéu. A filha não passou

dos quinze anos.

Eu cá fiquei entre os meus remorsos

e saudades; depois, só remorsos;

agora admiração apenas, uma

admiração particular, que não é

grande senão por me fazer sentir

pequeno. Sim, eu não era capaz de

praticar o que ele praticou. Nem

efetivamente conheci ninguém que

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se parecesse com X... E por que

teimar nesta letra? Chamemo-lo pelo

nome que lhe deram na pia, Emílio, o

meigo, o forte, o simples Emílio.

SUJE-SE, GORDO!

Uma noite, há muitos anos, passeava

eu com um amigo no terraço do

Teatro de São Pedro de Alcântara.

Era entre o segundo e o terceiro ato

da peça A sentença ou o Tribunal do

júri. Só me ficou o título, e foi

justamente o título que nos levou a

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falar da instituição e de um fato que

nunca mais me esqueceu.

- Fui sempre contrário ao júri, - disse-

me aquele amigo, - não pela

instituição em si, que é liberal, mas

porque me repugna condenar

alguém, e por aquele preceito do

Evangelho: "Não queirais julgar, para

que não sejais julgados". Não

obstante, servi duas vezes. O tribunal

era então no antigo Aljube, fim da

Rua dos Ourives, princípio da Ladeira

da Conceição.

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Tal era o meu escrúpulo que, salvo

dois, absolvi todos os réus. Com

efeito, os crimes não me pareceram

provados; um ou dois processos

eram malfeitos. O primeiro réu que

condenei, era um moço limpo,

acusado de haver furtado certa

quantia, não grande, antes pequena,

com falsificação de um papel. Não

negou o fato, nem podia fazê-lo,

contestou que lhe coubesse a

iniciativa ou inspiração do crime.

Alguém, que não citava, foi que lhe

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lembrou esse modo de acudir a uma

necessidade urgente; mas Deus, que

via os corações, daria ao criminoso

verdadeiro o merecido castigo. Disse

isso sem ênfase, triste, a palavra

surda. Os olhos mortos, com tal

palidez que metia pena; o promotor

público achou nessa mesma cor do

gesto a confissão do crime. Ao

contrário, o defensor mostrou que o

abatimento e a palidez significavam

a lástima da inocência caluniada.

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Poucas vezes terei assistido a debate

tão brilhante. O discurso do

promotor foi curto, mas forte,

indignado, com um tom que parecia

ódio, e não era. A defesa, além do

talento do advogado, tinha a

circunstância de ser a estreia dele na

tribuna. Parentes, colegas e amigos

esperavam o primeiro discurso do

rapaz, e não perderam na espera. O

discurso foi admirável, e teria salvo o

réu, se ele pudesse ser salvo, mas o

crime metia-se pelos olhos dentro. O

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advogado morreu dois anos depois,

em 1865. Quem sabe o que se

perdeu nele! Eu, acredite, quando

vejo morrer um moço de talento,

sinto mais que quando morre um

velho... Mas vamos ao que ia

contando. Houve réplica do

promotor e tréplica do defensor. O

presidente do tribunal resumiu os

debates, e, lidos os quesitos, foram

entregues ao presidente do

conselho, que era eu.

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Não digo o que se passou na sala

secreta; além de ser secreto o que lá

se passou, não interessa ao caso

particular, que era melhor ficasse

também calado, confesso. Cantarei

depressa; o terceiro ato não tarda.

Um dos jurados do conselho, cheio

de corpo e ruivo, parecia mais que

ninguém convencido do delito e do

delinquente. O processo foi

examinado, os quesitos lidos, e as

respostas dadas (onze votos contra

um); só o jurado ruivo estava

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inquieto. No fim, como os votos

assegurassem a condenação, ficou

satisfeito, disse que seria um ato de

fraqueza, ou coisa pior, a absolvição

que lhe déssemos. Um dos jurados,

certamente o que votara pela

negativa, - proferiu algumas palavras

de defesa do moço. O ruivo, -

chamava-se Lopes, - replicou com

aborrecimento:

- Como, senhor? Mas o crime do réu

está mais que provado.

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- Deixemos de debate, disse eu, e

todos concordaram comigo.

- Não estou debatendo, estou

defendendo o meu voto, continuou

Lopes. O crime está mais que

provado. O sujeito nega, porque

todo o réu nega, mas o certo é que

ele cometeu a falsidade, e que

falsidade! Tudo por uma miséria,

duzentos mil-réis! Suje-se gordo!

Quer sujar-se? Suje-se gordo!

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"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que

fiquei de boca aberta, não que

entendesse a frase, ao contrário,

nem a entendi nem a achei limpa, e

foi por isso mesmo que fiquei de

boca aberta. Afinal caminhei e bati à

porta, abriram-nos, fui à mesa do

juiz, dei as respostas do conselho e o

réu saiu condenado. O advogado

apelou; se a sentença foi confirmada

ou a apelação aceita, não sei; perdi o

negócio de vista.

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Quando saí do tribunal, vim

pensando na frase do Lopes, e

pareceu-me entendê-la. "Suje-se

gordo!" era como se dissesse que o

condenado era mais que ladrão, era

um ladrão reles, um ladrão de nada.

Achei esta explicação na esquina da

Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos

Ourives. Cheguei a desandar um

pouco, a ver se descobria o Lopes

para lhe apertar a mão; nem sombra

de Lopes. No dia seguinte, lendo nos

jornais os nossos nomes, dei com o

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nome todo dele; não valia a pena

procurá-lo, nem me ficou de cor.

Assim são as páginas da vida, como

dizia meu filho quando fazia versos,

e acrescentava que as páginas vão

passando umas sobre outras,

esquecidas apenas lidas. Rimava

assim, mas não me lembra a forma

dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo

depois, que eu não devia faltar ao

júri, para o qual acabava de ser

designado. Respondi-lhe que não

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compareceria, e citei o preceito

evangélico; ele teimou, dizendo ser

um dever de cidadão, um serviço

gratuito, que ninguém que se

prezasse podia negar ao seu país. Fui

e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do

Banco do Trabalho Honrado, o caixa,

acusado de um desvio de dinheiro.

Ouvira falar no caso, que os jornais

deram sem grande minúcia, e aliás

eu lia pouco as notícias de crimes. O

acusado apareceu e foi sentar-se no

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famoso banco dos réus. Era um

homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e

estremeci, pareceu-me ver o meu

colega daquele julgamento de anos

antes. Não poderia reconhecê-lo

logo por estar agora magro, mas era

a mesma cor dos cabelos e das

barbas, o mesmo ar, e por fim a

mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

- Como se chama? perguntou o

presidente.

- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

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Já me não lembravam os três

primeiros nomes, o quarto era o

mesmo, e os outros sinais vieram

confirmando as reminiscências; não

me tardou reconhecer a pessoa

exata daquele dia remoto. Digo-lhe

aqui com verdade que todas essas

circunstâncias me impediram de

acompanhar atentamente o

interrogatório, e muitas coisas me

escaparam. Quando me dispus a

ouvi-lo bem, estava quase no fim.

Lopes negava com firmeza tudo o

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que lhe era perguntado, ou

respondia de maneira que trazia uma

complicação ao processo. Circulava

os olhos sem medo nem ansiedade;

não sei até se com uma pontinha de

riso nos cantos da boca.

Seguiu-se a leitura do processo. Era

uma falsidade e um desvio de cento

e dez contos de réis. Não lhe digo

como se descobriu o crime nem o

criminoso, por já ser tarde; a

orquestra está afinando os

instrumentos. O que lhe digo com

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certeza é que a leitura dos autos me

impressionou muito, o inquérito, os

documentos, a tentativa de fuga do

caixa e uma série de circunstâncias

agravantes; por fim o depoimento

das testemunhas. Eu ouvia ler ou

falar e olhava para o Lopes. Também

ele ouvia, mas com o rosto alto,

mirando o escrivão, o presidente, o

teto e as pessoas que o iam julgar;

entre elas eu. Quando olhou para

mim não me reconheceu; fitou-me

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algum tempo e sorriu, como fazia

aos outros.

Todos esses gestos do homem

serviram à acusação e à defesa, tal

como serviram, tempos antes, os

gestos contrários do outro acusado.

O promotor achou neles a revelação

clara do cinismo, o advogado

mostrou que só a inocência e a

certeza da absolvição podiam trazer

aquela paz de espírito.

Enquanto os dois oradores falavam,

vim pensando na fatalidade de estar

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ali, no mesmo banco do outro, este

homem que votara a condenação

dele, e naturalmente repeti comigo o

texto evangélico: “Não queirais

julgar, para que não sejais julgados".

Confesso-lhe que mais de uma vez

me senti frio. Não é que eu mesmo

viesse a cometer algum desvio de

dinheiro, mas podia, em ocasião de

raiva, matar alguém ou ser caluniado

de desfalque. Aquele que julgava

outrora, era agora julgado também.

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Ao pé da palavra bíblica lembrou-me

de repente a do mesmo Lopes:

"Suje-se gordo!" Não imagina o

sacudimento que me deu esta

lembrança. Evoquei tudo o que

contei agora, o discursinho que lhe

ouvi na sala secreta, até àquelas

palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não

era um ladrão reles, um ladrão de

nada, sim de grande valor. O verbo é

que definia duramente a ação. "Suje-

se gordo!" Queria dizer que o

homem não se devia levar a um ato

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daquela espécie sem a grossura da

soma. A ninguém cabia sujar-se por

quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-

se gordo!

Ideias e palavras iam assim rolando

na minha cabeça, sem eu dar pelo

resumo dos debates que o

presidente do tribunal fazia. Tinha

acabado, leu os quesitos e

recolhemo-nos à sala secreta. Posso

dizer-lhe aqui em particular que

votei afirmativamente, tão certo me

pareceu o desvio dos cento e dez

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contos. Havia, entre outros

documentos, uma carta de Lopes

que fazia evidente o crime. Mas

parece que nem todos leram com os

mesmos olhos que eu. Votaram

comigo dois jurados. Nove negaram

a criminalidade do Lopes, a sentença

de absolvição foi lavrada e lida, e o

acusado saiu para a rua. A diferença

da votação era tamanha que cheguei

a duvidar comigo se teria acertado.

Podia ser que não. Agora mesmo

sinto uns repelões de consciência.

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Felizmente, se o Lopes não cometeu

deveras o crime, não recebeu a pena

do meu voto, e esta consideração

acaba por me consolar do erro, mas

os repelões voltam. O melhor de

tudo é não julgar ninguém para não

vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-

se magro! suje-se como lhe parecer!

o mais seguro é não julgar

ninguém... Acabou a música, vamos

para as nossas cadeiras.

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UMAS FÉRIAS

Vieram dizer ao mestre-escola que

alguém lhe queria falar.

- Quem é?

- Diz que meu senhor não o conhece,

respondeu o preto.

- Que entre.

Houve um movimento geral de

cabeças na direção da porta do

corredor, por onde devia entrar a

pessoa desconhecida. Éramos não

sei quantos meninos na escola. Não

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tardou que aparecesse uma figura

rude, tez queimada, cabelos

compridos, sem sinal de pente, a

roupa amarrotada, não me lembra

bem a cor nem a fazenda, mas

provavelmente era brim pardo.

Todos ficaram esperando o que

vinha dizer o homem, eu mais que

ninguém, porque ele era meu tio,

roceiro, morador em Guaratiba.

Chamava-se tio Zeca.

Tio Zeca foi ao mestre e falou-lhe

baixo. O mestre fê-lo sentar, olhou

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para mim, e creio que lhe perguntou

alguma coisa, porque tio Zeca entrou

a falar demorado, muito explicativo.

O mestre insistiu, ele respondeu, até

que o mestre, voltando-se para mim,

disse alto:

- Sr. José Martins, pode sair.

A minha sensação de prazer foi tal

que venceu a de espanto. Tinha dez

anos apenas, gostava de folgar, não

gostava de aprender. Um chamado

de casa, o próprio tio, irmão de meu

pai, que chegara na véspera de

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Guaratiba, era naturalmente alguma

festa, passeio, qualquer coisa. Corri a

buscar o chapéu, meti o livro de

leitura no bolso e desci as escadas da

escola, um sobradinho da rua do

Senado. No corredor beijei a mão a

tio Zeca. Na rua fui andando ao pé

dele, amiudando os passos, e

levantando a cara. Ele não me dizia

nada, eu não me atrevia a nenhuma

pergunta. Pouco depois chegávamos

ao colégio de minha irmã Felícia;

disse-me que esperasse, entrou,

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subiu, desceram, e fomos os três

caminho de casa. A minha alegria

agora era maior. Certamente havia

festa em casa, pois que íamos os

dois, ela e eu; íamos na frente,

trocando as nossas perguntas e

conjecturas. Talvez anos de tio Zeca.

Voltei a cara para ele; vinha com os

olhos no chão, provavelmente para

não cair.

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Fomos andando. Felícia era mais

velha que eu um ano. Calçava sapato

raso, atado ao peito do pé por duas

fitas cruzadas, vindo acabar acima do

tornozelo com laço. Eu, botins de

cordovão, já gastos. As calcinhas dela

pegavam com a fita dos sapatos, as

minhas calças, largas, caíam sobre o

peito do pé; eram de chita. Uma ou

outra vez parávamos, ela para

admirar as bonecas à porta dos

armarinhos, eu para ver, à porta das

vendas, algum papagaio que descia e

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subia pela corrente de ferro atada ao

pé. Geralmente, era meu conhecido,

mas papagaio não cansa em tal

idade. Tio Zeca é que nos tirava do

espetáculo industrial ou natural.

Andem, dizia ele em voz sumida. E

nós andávamos, até que outra

curiosidade nos fazia deter o passo.

Entretanto, o principal era a festa

que nos esperava em casa.

- Não creio que sejam anos de tio

Zeca, disse-me Felícia.

- Por quê?

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- Parece meio triste.

- Triste, não, parece carrancudo.

- Ou carrancudo. Quem faz anos tem

a cara alegre.

- Então serão anos de meu

padrinho...

- Ou de minha madrinha...

- Mas por que é que mamãe nos

mandou para a escola?

- Talvez não soubesse.

- Há de haver jantar grande...

- Com doce...

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- Talvez dancemos.

Fizemos um acordo: podia ser festa,

sem aniversário de ninguém. A sorte

grande, por exemplo. Ocorreu-me

também que podiam ser eleições.

Meu padrinho era candidato a

vereador; embora eu não soubesse

bem o que era candidatura nem

vereação, tanto ouvira falar em

vitória próxima que a achei certa e

ganha. Não sabia que a eleição era

ao domingo, e o dia era sexta-feira.

Imaginei bandas de música, vivas e

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palmas, e nós, meninos, pulando,

rindo, comendo cocadas. Talvez

houvesse espetáculo à noite; fiquei

meio tonto. Tinha ido uma vez ao

teatro, e voltei dormindo, mas no dia

seguinte estava tão contente que

morria por lá tornar, posto não

houvesse entendido nada do que

ouvira. Vira muita cousa, isso sim,

cadeiras ricas, tronos, lanças

compridas, cenas que mudavam à

vista, passando de uma sala a um

bosque, e do bosque a uma rua.

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Depois, os personagens, todos

príncipes. Era assim que

chamávamos aos que vestiam calção

de seda, sapato de fivela ou botas,

espada, capa de veludo, gorra com

pluma. Também houve bailado. As

bailarinas e os bailarinos falavam

com os pés e as mãos, trocando de

posição e um sorriso constante na

boca. Depois os gritos do público e

as palmas...

Já duas vezes escrevi palmas; é que

as conhecia bem. Felícia, a quem

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comuniquei a possibilidade do

espetáculo, não me pareceu gostar

muito, mas também não recusou

nada. Iria ao teatro. E quem sabe se

não seria em casa, teatrinho de

bonecos? Íamos nessas conjecturas,

quando tio Zeca nos disse que

esperássemos; tinha parado a

conversar com um sujeito.

Paramos, à espera. A ideia da festa,

qualquer que fosse, continuou a

agitar-nos, mais a mim que a ela.

Imaginei trinta mil coisas, sem

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acabar nenhuma, tão precipitadas

vinham, e tão confusas que não as

distinguia; pode ser até que se

repetissem. Felícia chamou a minha

atenção para dois moleques de

carapuça encarnada, que passavam

carregando canas, - o que nos

lembrou as noites de Santo Antônio

e São João, já lá idas. Então falei-lhe

das fogueiras do nosso quintal, das

bichas que queimamos, das

rodinhas, das pistolas e das danças

com outros meninos. Se houvesse

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agora a mesma coisa... Ah! lembrou-

me que era ocasião de deitar à

fogueira o livro da escola, e o dela

também, com os pontos de costura

que estava aprendendo.

- Isso não, acudiu Felícia.

- Eu queimava o meu livro.

- Papai comprava outro.

- Enquanto comprasse, eu ficava

brincando em casa; aprender é

muito aborrecido.

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Nisto estávamos, quando vimos tio

Zeca e o desconhecido ao pé de nós.

O desconhecido pegou-nos nos

queixos e levantou-nos a cara para

ele, fitou-nos com seriedade, deixou-

nos e despediu-se.

- Nove horas? Lá estarei, disse ele.

- Vamos, disse-nos tio Zeca.

Quis perguntar-lhe quem era aquele

homem, e até me pareceu conhecê-

lo vagamente. Felícia também.

Nenhum de nós acertava com a

pessoa; mas a promessa de lá estar

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às nove horas dominou o resto. Era

festa, algum baile, conquanto às

nove horas costumássemos ir para a

cama. Naturalmente, por exceção,

estaríamos acordados. Como

chegássemos a um rego de lama,

peguei da mão de Felícia, e

transpusemo-lo de um salto, tão

violento que quase me caiu o livro.

Olhei para tio Zeca, a ver o efeito do

gesto; vi-o abanar a cabeça com

reprovação. Ri, ela sorriu, e fomos

pela calçada adiante.

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Era o dia dos desconhecidos. Desta

vez estavam em burros, e um dos

dois era mulher. Vinham da roça. Tio

Zeca foi ter com eles ao meio da rua,

depois de dizer que esperássemos.

Os animais pararam, creio que de si

mesmos, por também conhecerem a

tio Zeca, ideia que Felícia reprovou

com o gesto, e que eu defendi rindo.

Teria apenas meia convicção; tudo

era folgar. Fosse como fosse,

esperamos os dois, examinando o

casal de roceiros. Eram ambos

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magros, a mulher mais que o marido,

e também mais moça; ele tinha os

cabelos grisalhos. Não ouvimos o

que disseram, ele e tio Zeca; vimo-lo,

sim, o marido olhar para nós com ar

de curiosidade, e falar à mulher, que

também nos deitou os olhos, agora

com pena ou coisa parecida. Enfim

apartaram-se, tio Zeca veio ter

conosco e enfiamos para casa.

A casa ficava na rua próxima, perto

da esquina. Ao dobrarmos esta,

vimos os portais da casa forrados de

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preto, - o que nos encheu de

espanto. Instintivamente paramos e

voltamos a cabeça para tio Zeca. Este

veio a nós, deu a mão a cada um e ia

a dizer alguma palavra que lhe ficou

na garganta; andou, levando-nos

consigo. Quando chegamos, as

portas estavam meio cerradas. Não

sei se lhes disse que era um

armarinho. Na rua, curiosos. Nas

janelas fronteiras e laterais, cabeças

aglomeradas. Houve certo reboliço

quando chegamos. É natural que eu

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tivesse a boca aberta, como Felícia.

Tio Zeca empurrou uma das meias-

portas, entramos os três, ele tornou

a cerrá-la, meteu-se pelo corredor e

fomos à sala de jantar e à alcova.

Dentro, ao pé da cama, estava minha

mãe com a cabeça entre as mãos.

Sabendo da nossa chegada, ergueu-

se de salto, veio abraçar-nos entre

lágrimas, bradando:

- Meus filhos, vosso pai morreu!

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A comoção foi grande, por mais que

o confuso e o vago entorpecessem a

consciência da notícia. Não tive

forças para andar, e teria medo de o

fazer. Morto como? morto por quê?

Estas duas perguntas, se as meto

aqui, é para dar seguimento à ação;

naquele momento não perguntei

nada a mim nem a ninguém. Ouvi as

palavras de minha mãe, que se

repetiam em mim, e os seus soluços

que eram grandes. Ela pegou em nós

e arrastou-nos para a cama, onde

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jazia o cadáver do marido; e fez-nos

beijar-lhe a mão. Tão longe estava eu

daquilo que, apesar de tudo, não

entendera nada a princípio; a tristeza

e o silêncio das pessoas que

rodeavam a cama, ajudaram a

explicar que meu pai morrera

deveras. Não se tratava de um dia

santo, com a sua folga e recreio, não

era festa, não eram as horas breves

ou longas, para a gente desfiar em

casa, arredada dos castigos da

escola. Que essa queda de um sonho

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tão bonito fizesse crescer a minha

dor de filho não é coisa que possa

afirmar ou negar; melhor é calar. O

pai ali estava defunto, sem pulos,

nem danças, nem risadas, nem

bandas de música, coisas todas

também defuntas. Se me houvessem

dito à saída da escola por que é que

me iam lá buscar, é claro que a

alegria não houvera penetrado o

coração, donde era agora expelida a

punhadas.

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O enterro foi no dia seguinte às nove

horas da manhã, e provavelmente lá

estava aquele amigo de tio Zeca que

despediu na rua, com a promessa de

ir às nove horas. Não vi as

cerimônias; alguns vultos, poucos,

vestidos de preto, lembra-me que vi.

Meu padrinho, dono de um trapiche,

lá estava, e a mulher também, que

me levou a uma alcova dos fundos

para me mostrar gravuras. Na

ocasião da saída, ouvi os gritos de

minha mãe, o rumor dos passos,

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algumas palavras abafadas de

pessoas que pegavam nas alças do

caixão, creio eu: - vire de lado, - mais

à esquerda, - assim, segure bem...

Depois, ao longe, o coche andando e

as seges atrás dele...

Lá iam meu pai e as férias! Uma dia

de folga sem folguedo! Não, não foi

um dia, mas oito, oito dias de nojo,

durante os quais alguma vez me

lembrei do colégio. Minha mãe

chorava, cosendo o luto, entre duas

visitas de pêsames. Eu também

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chorava; não via meu pai às horas do

costume, não lhe ouvia as palavras à

mesa ou ao balcão, nem as carícias

que dizia aos pássaros. Que ele era

muito amigo de pássaros, e tinha

três ou quatro, em gaiolas. Minha

mãe vivia calada. Quase que só

falava às pessoas de fora. Foi assim

que eu soube que meu pai morrera

de apoplexia. Ouvi esta notícia

muitas vezes; as visitas perguntavam

pela causa da morte, e ela referia

tudo, a hora, o gesto, a ocasião:

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tinha ido beber água, e enchia um

copo, à janela da área. Tudo decorei,

à força de ouvi-lo contar.

Nem por isso os meninos do colégio

deixavam de vir espiar para dentro

da minha memória. Um deles chegou

a perguntar-me quando é que eu

voltaria.

- Sábado, meu filho, disse minha

mãe, quando lhe repeti a pergunta

imaginada; a missa é sexta-feira.

Talvez seja melhor voltar na

segunda.

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- Antes sábado, emendei.

- Pois sim, concordou.

Não sorria; se pudesse, sorriria de

gosto ao ver que eu queria voltar

mais cedo à escola. Mas, sabendo

que eu não gostava de aprender,

como entenderia a emenda?

Provavelmente, deu-lhe algum

sentido superior, conselho do céu ou

do marido. Em verdade, eu não

folgava, se lerdes isto com o sentido

de rir. Com o de descansar também

não cabe, porque minha mãe fazia-

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me estudar, e, tanto como o estudo,

aborrecia-me a atitude. Obrigado a

estar sentado, com o livro nas mãos,

a um canto ou à mesa, dava ao diabo

o livro, a mesa e a cadeira. Usava um

recurso que recomendo aos

preguiçosos: deixava os olhos na

página e abria a porta à imaginação.

Corria a apanhar as flechas dos

foguetes, a ouvir os realejos, a bailar

com meninas, a cantar, a rir, a

espancar de mentira ou de

brincadeira, como for mais claro.

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Uma vez, como desse por mim a

andar na sala sem ler, minha mãe

repreendeu-me, e eu respondi que

estava pensando em meu pai. A

explicação fê-la chorar, e, para dizer

tudo, não era totalmente mentira;

tinha-me lembrado o último

presentinho que ele me dera, e

entrei a vê-lo com o mimo na mão.

Felícia vivia tão triste como eu, mas

confesso a minha verdade, a causa

principal não era a mesma. Gostava

de brincar, mas não sentia a

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ausência do brinco, não se lhe dava

de acompanhar a mãe, coser com

ela, e uma vez fui achá-la a enxugar-

lhe os olhos. Meio vexado, pensei

em imitá-la, e meti a mão no bolso

para tirar o lenço, saiu sem pesar.

Creio que ao gesto não faltava só

originalidade, mas sinceridade

também.

Não me censurem. Sincero fui longos

dias calados e reclusos. Quis uma vez

ir para o armarinho, que se abriu

depois do enterro, onde o caixeiro

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continuou a servir. Conversaria com

este, assistiria à venda de linhas e

agulhas, à medição de fitas, iria à

porta, à calçada, à esquina da rua...

Minha mãe sufocou este sonho

pouco depois dele nascer. Mal

chegara ao balcão, mandou-me

buscar pela escrava; lá fui para o

interior da casa e para o estudo.

Arrepelei-me, apertei os dedos à

guisa de quem quer dar murro; não

me lembro se chorei de raiva.

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O livro lembrou-me a escola, e a

imagem da escola consolou-me. Já

então lhe tinha grandes saudades.

Via de longe as caras dos meninos,

os nossos gestos de troça nos

bancos, e os saltos à saída. Senti cair-

me na cara uma daquelas bolinhas

de papel com que espertávamos uns

aos outros, e fiz a minha e atirei-a ao

meu suposto espertador. A bolinha,

como acontecia às vezes, foi cair na

cabeça de terceiro, que se desforrou

depressa. Alguns, mais tímidos,

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limitavam-se a fazer caretas. Não era

folguedo franco, mas já me valia por

ele. Aquele degredo que eu deixei

tão alegremente com tio Zeca,

parecia-me agora um céu remoto, e

tinha medo de o perder. Nenhuma

festa em casa, poucas palavras, raro

movimento. Foi por esse tempo que

eu desenhei a lápis maior número de

gatos nas margens do livro de

leitura; gatos e porcos. Não alegrava,

mas distraía.

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A missa do sétimo dia restituiu-me à

rua; no sábado não fui à escola, fui à

casa de meu padrinho, onde pude

falar um pouco mais, e no domingo

estive à porta da loja. Não era alegria

completa. A total alegria foi

segunda-feira, na escola. Entrei

vestido de preto, fui mirado com

curiosidade, mas tão outro ao pé dos

meus condiscípulos, que me

esqueceram as férias sem gosto, e

achei uma grande alegria sem férias.

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EVOLUÇÃO

Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não

digo o resto dos nossos nomes por

um sentimento de compostura, que

toda gente discreta apreciará. Inácio

basta. Contentem-se com Benedito.

Não é muito, mas é alguma coisa, e

está com a filosofia de Julieta: “Que

valem nomes, perguntava ela ao

namorado. A rosa, como quer que se

lhe chame, terá sempre o mesmo

cheiro.” Vamos ao cheiro do

Benedito.

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E desde logo assentemos que ele era

o menos Romeu deste mundo. Tinha

quarenta e cinco anos, quando o

conheci; não declaro em que tempo,

porque tudo neste conto há de ser

misterioso e truncado. Quarenta e

cinco anos, e muitos cabelos pretos;

para os que não o eram usava um

processo químico, tão eficaz que se

não lhe distinguiam os pretos dos

outros - salvo ao levantar da cama;

mas ao levantar da cama não aprecia

a ninguém. Tudo mais era natural,

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pernas, braços, cabeça, olhos, roupa,

sapatos, corrente do relógio e

bengala. O próprio alfinete de

diamante, que trazia na gravata, um

dos mais lindos que tenho visto, era

natural e legítimo; custou-lhe bom

dinheiro; eu mesmo o vi comprar na

casa do.... lá me ia escapando o

nome do joalheiro; - fiquemos na

Rua do Ouvidor.

Moralmente, era ele mesmo.

Ninguém muda de caráter, e o do

Benedito era bom, - ou para melhor

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dizer, pacato. Mas, intelectualmente,

é que ele era menos original.

Podemos compará-lo a uma

hospedaria bem afreguesada, aonde

iam ter ideias de toda parte e de

toda sorte, que se sentavam à mesa

com a família da casa. Às vezes,

acontecia acharem-se ali duas

pessoas inimigas, ou simplesmente

antipáticas; ninguém brigava, o dono

da casa impunha aos hóspedes a

indulgência recíproca. Era assim que

ele conseguia ajustar uma espécie de

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ateísmo vago com duas irmandades

que fundou, não sei se na Gávea, na

Tijuca ou no Engenho Velho. Usava

assim, promiscuamente, a devoção,

a irreligião e as meias de seda. Nunca

lhe vi as meias, note-se; mas ele não

tinha segredos para os amigos.

Conhecemo-nos em viagem para

Vassouras. Tínhamos deixado o trem

e entrado na diligência que nos ia

levar da estação à cidade. Trocamos

algumas palavras, e não tardou

conversarmos francamente, ao sabor

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das circunstâncias que nos

impunham a convivência, antes

mesmo de saber quem éramos.

Naturalmente, o primeiro objeto foi

o progresso que nos traziam as

estradas de ferro. Benedito

lembrava-se do tempo em que toda

a jornada era feita às costas de

burro. Contamos então algumas

anedotas, falamos de alguns nomes,

e ficamos de acordo em que as

estradas de ferro eram uma

condição de progresso do país.

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Quem nunca viajou não sabe o valor

que tem uma dessas banalidades

graves e sólidas para dissipar os

tédios do caminho. O espírito areja-

se, os próprios músculos recebem

uma comunicação agradável, o

sangue não salta, fica-se em paz com

Deus e os homens.

- Não serão os nossos filhos que

verão todo este país cortado de

estradas, disse ele.

- Não, decerto. O senhor tem filhos?

- Nenhum.

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- Nem eu. Não será ainda em

cinquenta anos; e, entretanto, é a

nossa primeira necessidade. Eu

comparo o Brasil a uma criança que

está engatinhando; só começará a

andar quando tiver muitas estradas

de ferro.

- Bonita ideia! exclamou Benedito

faiscando-lhe os olhos.

- Importa-me pouco que seja bonita,

contanto que seja justa.

- Bonita e justa, redarguiu ele com

amabilidade. Sim, senhor, tem razão:

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- o Brasil está engatinhando; só

começará a andar quando tiver

muitas estradas de ferro.

Chegamos a Vassouras; eu fui para a

casa do juiz municipal, camarada

antigo; ele demorou-se um dia e

seguiu para o interior. Oito dias

depois voltei ao Rio de Janeiro, mas

sozinho. Uma semana mais tarde,

voltou ele; encontramo-nos no

teatro, conversamos muito e

trocamos notícias; Benedito acabou

convidando-me a ir almoçar com ele

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no dia seguinte. Fui; deu-me um

almoço de príncipe, bons charutos e

palestra animada. Notei que a

conversa dele fazia mais efeito no

meio da viagem – arejando o espírito

e deixando a gente em paz com Deus

e os homens; mas devo dizer que o

almoço pode ter prejudicado o resto.

Realmente era magnífico; e seria

impertinência histórica pôr a mesa

de Lúculo na casa de Platão. Entre o

café e o conhaque, disse-me ele,

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apoiando o cotovelo na borda da

mesa, e olhando o charuto que ardia:

- Na minha viagem agora, achei

ocasião de ver como o senhor tem

razão com aquela ideia do Brasil

engatinhando.

- Ah!

- Sim, senhor; é justamente o que o

senhor dizia na diligência de

Vassouras. Só começaremos a andar

quando tivermos muitas estradas de

ferro. Não imagina como isso é

verdade.

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E referiu muita coisa, observações

relativas aos costumes do interior,

dificuldades da vida, atraso,

concordando, porém, nos bons

sentimentos da população e nas

aspirações de progresso.

Infelizmente, o governo não

correspondia às necessidades da

pátria; parecia até interessado em

mantê-la atrás das outras nações

americanas. Mas era indispensável

que nos persuadíssemos de que os

princípios são tudo e os homens

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nada. Não se fazem os povos para os

governos, mas os governos para os

povos; e abyssus abyssum invocat.

Depois foi mostrar-me outras salas.

Eram todas alfaiadas com apuro.

Mostrou-me as coleções de quadros,

de moedas, de livros antigos, de

selos, de armas; tinha espadas e

floretes, mas confessou que não

sabia esgrimir. Entre os quadros vi

um lindo retrato de mulher;

perguntei-lhe quem era. Benedito

sorriu.

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- Não irei adiante, disse eu sorrindo

também.

- Não, não há que negar, acudiu ele;

foi uma moça de quem gostei muito.

Bonita, não? Não imagina a beleza

que era.. Os lábios eram mesmo de

carmim e as faces de rosa; tinha os

olhos negros, cor da noite. E que

dentes! verdadeiras pérolas. Um

mimo da natureza.

Em seguida, passamos ao gabinete.

Era vasto, elegante, um pouco trivial,

mas não lhe faltava nada. Tinha duas

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estantes, cheias de livros muito bem

encadernados, um mapa-mundi, dois

mapas do Brasil. A secretária era de

ébano, obra fina; sobre ela,

casualmente aberto, um almanaque

de Laemmert. O tinteiro era de

cristal, - “cristal de rocha”, disse-me

ele, explicando o tinteiro, como

explicava as outras coisas. Na sala

contígua havia um órgão. Tocava

órgão, e gostava muito de música,

falou dela com entusiasmo, citando

as óperas, os trechos melhores, e

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noticiou-me que, em pequeno,

começara a aprender flauta;

abandonou-a logo, - o que foi pena,

concluiu, porque é, na verdade, um

instrumento muito saudoso.

Mostrou-me ainda outras salas,

fomos ao jardim, que era esplêndido,

tanto ajudava a arte à natureza, e

tanto a natureza coroava a arte. Em

rosas, por exemplo, (não há negar,

disse-me ele, que é a rainha das

flores) em rosas, tinha-as de toda

casta e de todas as regiões.

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Saí encantado. Encontramo-nos

algumas vezes, na rua, no teatro, em

casa de amigos comuns, tive ocasião

de apreciá-lo. Quatro meses depois

fui à Europa, negócio que me

obrigava a ausência de um ano; ele

ficou cuidando da eleição; queria ser

deputado. Fui eu mesmo que o

induzi a isso, sem a menor intenção

política, mas com o único fim de lhe

ser agradável; mal comparando, era

como se lhe elogiasse o corte do

colete. Ele pegou da ideia, e

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apresentou-se. Um dia, atravessando

uma rua de Paris, dei subitamente

com o Benedito.

- Que é isto? exclamei.

- Perdi a eleição, disse ele, e vim

passear à Europa.

- Não me deixou mais; viajamos

juntos o resto do tempo. Confessou-

me que a perda da eleição não lhe

tirara a ideia de entrar no

parlamento. Ao contrário, incitara-o

mais. Falou-me de um grande plano.

- Quero vê-lo ministro, disse-lhe.

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Benedito não contava com esta

palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas

disfarçou depressa.

- Não digo isso, respondeu. Quando,

porém, seja ministro, creia que serei

tão-somente ministro industrial.

Estamos fartos de partidos:

precisamos desenvolver as forças

vivas do país, os seus grandes

recursos. Lembra-se do que nós

dizíamos nas diligências de

Vassouras? O Brasil está

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engatinhando; só andará com

estradas de ferro...

- Tem razão, concordei um pouco

espantado. E por que é que eu

mesmo vim à Europa? Vim cuidar de

uma estrada de ferro. Deixo as coisas

arranjadas em Londres.

- Sim?

- Perfeitamente.

Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os

deslumbrado. Como eu tivesse então

recolhido alguns apontamentos,

dados estatísticos, folhetos,

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relatórios, cópias de contratos, tudo

referente a matérias industriais, e

lhos mostrasse, Benedito declarou-

me que ia também coligir algumas

coisas daquelas. E, na verdade, vi-o

andar por ministérios, bancos,

associações, pedindo muitas notas e

opúsculos, que amontoava nas

malas; mas o ardor com que o fez, se

foi intenso, foi curto; era de

empréstimo. Benedito recolheu com

muito mais gosto os anexins políticos

e fórmulas parlamentares. Tinha na

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cabeça um vasto arsenal deles. Nas

conversas comigo repetia-os muita

vez, à laia de experiência; achava

neles grande prestígio e valor

inestimável. Muitos eram de tradição

inglesa, e ele os preferia aos outros,

como trazendo em si um pouco da

Câmara dos Comuns. Saboreava-os

tanto que eu não sei se ele aceitaria

jamais a liberdade real sem aquele

aparelho verbal; creio que não. Creio

até que, se tivesse de optar, optaria

por essas formas curtas, tão

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cômodas, algumas, lindas, outras

sonoras, todas axiomáticas, que não

forçam a reflexão, preenchem os

vazios, e deixam a gente em paz com

Deus e os homens.

Regressamos juntos; mas eu fiquei

em Pernambuco, e tornei mais tarde

a Londres, donde vim ao Rio de

Janeiro, um ano depois. Já então

Benedito era deputado. Fui visitá-lo;

achei-o preparando o discurso de

estreia. Mostrou-me alguns

apontamentos, trechos de relatórios,

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livros de economia política, alguns

com páginas marcadas por meio de

tiras e papel rubricadas assim: -

Câmbio, Taxa das terras, Questão

dos cereais em Inglaterra, Opinião de

Stuart Mill, Erro de Thiers sobre

caminhos de ferro, etc. Era sincero,

minucioso e cálido. Falava-me

daquelas coisas, como se acabasse

de as descobrir, expondo-me tudo,

ab ovo; tinha a peito mostrar aos

homens práticos da Câmara que

também ele era prático. Em seguida,

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perguntou-me pela empresa; disse-

lhe o que havia.

- Dentro de dois anos conto

inaugurar o primeiro trecho da

estrada.

- E os capitalistas ingleses?

- Que tem?

- Estão contentes, esperançados?

- Muito; não imagina.

Contei-lhe algumas particularidades

técnicas, que ele ouviu

distraidamente, ou porque a minha

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narração fosse em extremo

complicada, ou por outro motivo.

Quando acabei, disse-me que

estimava ver-me entregue ao

movimento industrial; era dele que

precisávamos, e a este propósito fez-

me o favor de ler o exórdio do

discurso que devia proferir dali a

dias.

Está ainda em borrão, explicou-me;

mas as ideais capitais ficam. E

começou: “No meio da agitação

crescente dos espíritos, do alarido

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partidário que encobre as vozes dos

legítimos interesses, permiti que

alguém faça ouvir uma súplica da

nação. Senhores, é tempo de cuidar,

exclusivamente, - notai que digo

exclusivamente, - dos

melhoramentos materiais do país.

Não desconheço o que se me pode

replicar; dir-me-eis que uma nação

não se compõe só de estômago para

digerir, mas de cabeça para pensar e

de coração para sentir. Respondo-

vos que tudo isso não valerá nada ou

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pouco, se ela não tiver pernas para

caminhar; e aqui repetirei o que, há

alguns anos, dizia eu a um amigo, em

viagem pelo interior: o Brasil é uma

criança que engatinha; só começará

a andar quando estiver cortado de

estradas de ferro...”

Não pude ouvir mais nada e fiquei

pensativo. Mais que pensativo, fiquei

assombrado, desvairado diante do

abismo que a psicologia rasgava aos

meus pés. Este homem é sincero,

pensei comigo, está persuadido do

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que escreveu. E fui por aí abaixo até

ver se achava a explicação dos

trâmites por que passou aquela

recordação da diligência de

Vassouras. Achei (perdoem-me se há

nisto enfatuação) achei ali mais um

efeito da lei da evolução, tal como a

definiu Spencer - Spencer ou

Benedito, um deles.

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PÍLADES E ORESTES

Quintanilha engendrou Gonçalves.

Tal era a impressão que davam os

dois juntos, não que se parecessem.

Ao contrário, Quintanilha tinha o

rosto redondo, Gonçalves comprido,

o primeiro era baixo e moreno, o

segundo alto e claro, e a expressão

total divergia inteiramente. Acresce

que eram quase da mesma idade. A

ideia da paternidade nascia das

maneiras com que o primeiro tratava

o segundo; um pai não se desfaria

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mais em carinhos, cautelas e

pensamentos. Tinham estudado

juntos, morado juntos, e eram

bacharéis do mesmo ano.

Quintanilha não seguiu advocacia

nem magistratura, meteu-se na

política; mas, eleito deputado

provincial em 187... cumpriu o prazo

da legislatura e abandonou a

carreira. Herdara os bens de um tio,

que lhe davam de renda cerca de

trinta contos de réis. Veio para o seu

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Gonçalves, que advogava no Rio de

Janeiro.

Posto que abastado, moço, amigo do

seu único amigo, não se pode dizer

que Quintanilha fosse inteiramente

feliz, como vais ver. Ponho de lado o

desgosto que lhe trouxe a herança

com o ódio dos parentes; tal ódio foi

que ele esteve prestes a abrir mão

dela, e não o fez porque o amigo

Gonçalves, que lhe dava ideais e

conselhos, o convenceu de que

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semelhante ato seria rematada

loucura.

- Que culpa tem você que merecesse

mais a seu tio que os outros

parentes? Não foi você que fez o

testamento nem andou a bajular o

defunto, como os outros. Se ele

deixou tudo a você, é que o achou

melhor que eles; fique-se com a

fortuna, que é a vontade do morto, e

não seja tolo.

Quintanilha acabou concordando.

Dos parentes alguns buscaram

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reconciliar-se com ele, mas o amigo

mostrou-lhe a intenção recôndita

dos tais, e Quintanilha não lhes abriu

a porta. Um desses, ao vê-lo ligado

com o antigo companheiro de

estudos, bradava por toda a parte:

- Aí está, deixa os parentes para se

meter com estranhos; há de ver o

fim que leva.

Ao saber disto, Quintanilha correu a

contá-lo a Gonçalves, indignado.

Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e

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aquietou-lhe o ânimo; não valia a

pena irritar-se por ditinhos.

- Uma só coisa desejo, continuou, é

que nos separemos, para que não se

diga...

- Que não se diga o quê? É boa!

Tinha de ser, se eu passava a

escolher as minhas amizades

conforme o capricho de alguns

peraltas sem-vergonha!

- Não fale assim, Quintanilha. Você é

grosseiro com seus parentes.

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- Parentes do diabo que os leve! Pois

eu hei de viver com as pessoas que

me forem designadas por meia dúzia

de velhacos que o que querem é

comer-me o dinheiro? Não,

Gonçalves; tudo o que você quiser,

menos isso. Quem escolhe os meus

amigos sou eu, é o meu coração. Ou

você está... está aborrecido de mim?

- Eu? tinha graça.

- Pois então?

- Mas é...

- Não é tal!

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A vida que viviam os dois, era a mais

unida deste mundo. Quintanilha

acordava, pensava no outro,

almoçava e ia ter com ele. Jantavam

juntos, faziam alguma visita,

passeavam ou acabavam a noite no

teatro. Se Gonçalves tinha algum

trabalho que fazer à noite,

Quintanilha ia ajudá-lo como

obrigação; dava busca aos textos de

lei, marcava-os, copiava-os,

carregava os livros. Gonçalves

esquecia com facilidade, ora um

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recado, ora uma carta, sapatos,

charutos, papéis. Quintanilha supria-

lhe a memória. Às vezes, na Rua do

Ouvidor, vendo passar as moças,

Gonçalves lembrava-se de uns autos

que deixara no escritório.

Quintanilha voava a buscá-los e

tornava com eles, tão contente que

não se podia saber se eram autos, se

a sorte grande; procurava-o

ansiosamente com os olhos, corria,

sorria, morria de fadiga.

- São estes?

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- São; deixa ver, são estes mesmos.

Dá cá.

- Deixa, eu levo.

A princípio, Gonçalves suspirava:

- Que maçada que dei a você!

Quintanilha ria do suspiro com tão

bom humor que o outro, para não o

molestar, não se acusou de mais

nada; concordou em receber os

obséquios. Com o tempo, os

obséquios ficaram sendo puro ofício.

Gonçalves dizia ao outro: “Você hoje

há de lembrar-me isto e aquilo”. E o

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outro decorava as recomendações,

ou escrevia-as, se eram muitas.

Algumas dependiam de horas; era de

ver como o bom Quintanilha

suspirava aflito, à espera que

chegasse tal ou tal hora para ter o

gosto de lembrar os negócios ao

amigo. E levava-lhe as cartas e

papéis, ia buscar as respostas,

procurar as pessoas, esperá-las na

estrada de ferro, fazia viagens ao

interior. De si mesmo descobria-lhe

bons charutos, bons jantares, bons

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espetáculos. Gonçalves já não tinha a

liberdade de falar de um livro novo,

ou somente caro, que não achasse

um exemplar em casa.

- Você é um perdulário, dizia-lhe em

tom repreensivo.

- Então gastar com letras e ciências é

botar fora? É boa! concluía o outro.

No fim do ano quis obrigá-lo a passar

fora as férias. Gonçalves acabou

aceitando, e o prazer que lhe deu

com isto foi enorme. Subiram a

Petrópolis. Na volta, serra abaixo,

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como falassem de pintura,

Quintanilha advertiu que não tinham

ainda uma tela com o retrato dos

dois, e mandou fazê-la. Quando a

levou ao amigo, este não pode

deixar de lhe dizer que não prestava

para nada. Quintanilha ficou sem

voz.

- É uma porcaria, insistiu Gonçalves.

- Pois o pintor disse-me...

- Você não entende de pintura,

Quintanilha, e o pintor aproveitou a

ocasião para meter a espiga. Pois

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isto é cara decente? Eu tenho este

braço torto?

- Que ladrão!

- Não, ele não tem culpa, fez o seu

negócio; você é que não tem o

sentimento da arte, nem prática, e

espichou-se redondamente. A

intenção foi boa, creio...

- Sim, a intenção foi boa.

- E aposto que já pagou?

- Já.

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Gonçalves abanou a cabeça,

chamou-lhe ignorante e acabou

rindo. Quintanilha, vexado e

aborrecido, olhava para a tela, até

que sacou de um canivete e rasgou-a

de alto a baixo. Como se não

bastasse esse gesto de vingança,

devolveu a pintura ao artista com

um bilhete em que lhe transmitiu

alguns dos nomes recebidos e mais o

de asno. A vida tem muitas de tais

pagas. Demais, uma letra de

Gonçalves que se venceu dali a dias e

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que este não pôde pagar, veio trazer

ao espírito de Quintanilha uma

diversão. Quase brigaram; a ideia de

Gonçalves era reformar a letra;

Quintanilha, que era o endossante,

entendia não valer a pena pedir o

favor por tão escassa quantia (um

conto e quinhentos), ele emprestaria

o valor da letra, e o outro que lhe

pagasse, quando pudesse. Gonçalves

não consentiu e fez-se a reforma.

Quando, ao fim dela, a situação se

repetiu, o mais que este admitiu foi

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aceitar uma letra de Quintanilha,

com o mesmo juro.

- Você não vê que me envergonha,

Gonçalves? Pois eu hei de receber

juro de você...?

- Ou recebe, ou não fazemos nada.

- Mas, meu querido...

Teve que concordar. A união dos

dois era tal que uma senhora

chamava-lhes os “casadinhos de

fresco”, e um letrado, Pílades e

Orestes. Eles riam, naturalmente,

mas o riso de Quintanilha trazia

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alguma coisa parecida com lágrimas:

era, nos olhos, uma ternura úmida.

Outra diferença é que o sentimento

de Quintanilha tinha uma nota de

entusiasmo, que absolutamente

faltava ao de Gonçalves; mas,

entusiasmo não se inventa. É claro

que o segundo era mais capaz de

inspirá-lo ao primeiro do que este a

ele. Em verdade, Quintanilha era mui

sensível a qualquer distinção; uma

palavra, um olhar bastava a acender-

lhe o cérebro. Uma pancadinha no

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ombro ou no ventre, com o fim de

aprová-lo ou só acentuar a

intimidade, era para derretê-lo de

prazer. Contava o gesto e as

circunstâncias durante dois ou três

dias.

Não era raro vê-lo irritar-se, teimar,

descompor os outros. Também era

comum vê-lo rir-se; alguma vez o riso

era universal, entornava-se-lhe da

boca, dos olhos, da testa, dos braços,

das pernas, todo ele era um riso

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único. Sem ter paixões, estava longe

de ser apático.

A letra sacada contra Gonçalves

tinha o prazo de seis meses. No dia

do vencimento, não só não pensou

em cobrá-la, mas resolveu ir jantar a

algum arrabalde para não ver o

amigo, se fosse convidado à reforma.

Gonçalves destruiu todo esse plano;

logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O

primeiro gesto de Quintanilha foi

recusá-lo, dizendo-lhe que o

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guardasse, podia precisar dele; o

devedor teimou em pagar e pagou.

Quintanilha acompanhava os atos de

Gonçalves; via a constância do seu

trabalho, o zelo que ele punha na

defesa das demandas, e vivia cheio

de admiração. Realmente, não era

grande advogado, mas na medida

das suas habilitações, era distinto.

- Você por que não se casa?

perguntou-lhe um dia; um advogado

precisa casar.

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Gonçalves respondia rindo. Tinha

uma tia, única parenta, a quem ele

queria muito, e que lhe morreu,

quando eles iam em trinta anos. Dias

depois, dizia ao amigo:

- Agora só me resta você.

Quintanilha sentiu os olhos

molhados, e não achou que lhe

respondesse. Quando se lembrou de

dizer que “iria até à morte” era

tarde. Redobrou então de carinhos, e

um dia acordou com a ideia de fazer

testamento. Sem revelar nada ao

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outro, nomeou-o testamenteiro e

herdeiro universal.

- Guarde-me este papel, Gonçalves,

disse-lhe entregando o testamento.

Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e

não quero confiar a qualquer pessoa

as minhas últimas vontades.

Foi por esse tempo que sucedeu um

caso que vou contar.

Quintanilha tinha uma prima

segunda, Camila, moça de vinte e

dois anos, modesta, educada e

bonita. Não era rica; o pai, João

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Bastos, era guarda-livros de uma

casa de café. Haviam brigado por

ocasião da herança; mas, Quintanilha

foi ao enterro da mulher de João

Bastos, e este ato de piedade

novamente os ligou. João Bastos

esqueceu facilmente alguns nomes

crus que dissera ao primo, chamou-

lhe outros nomes doces, e pediu-lhe

que fosse jantar com ele. Quintanilha

foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o

elogio da finada mulher; numa

ocasião em que Camila os deixou a

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sós, João Bastos louvou as raras

prendas da filha, que afirmava haver

recebido integralmente a herança

moral da mãe.

- Não direi isto nunca à pequena,

nem você lhe diga nada. É modesta,

e, se começarmos a elogiá-la, pode

perder-se. Assim, por exemplo,

nunca lhe direi que é tão bonita

como foi a mãe, quando tinha a

idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a

verdade é que é mais, não lhe

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parece? Tem ainda o talento de

tocar piano, que a mãe não possuía.

Quando Camila voltou à sala de

jantar, Quintanilha sentiu vontade de

lhe descobrir tudo, conteve-se e

piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la

ao piano; ela respondeu, cheia de

melancolia:

- Ainda não, há apenas um mês que

mamãe faleceu, deixe passar mais

tempo. Demais, eu toco mal.

- Mal?

- Muito mal.

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Quintanilha tornou a piscar o olho ao

primo, e ponderou à moça que a

prova de tocar bem ou mal só se

dava ao piano. Quanto ao prazo, era

certo que apenas passara um mês;

todavia era também certo que a

música é uma distração natural e

elevada. Além disso, bastava tocar

um pedaço triste. João Bastos

aprovou este modo de ver e lembrou

uma composição elegíaca. Camila

abanou a cabeça.

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- Não, não, sempre é tocar piano; os

vizinhos são capazes de inventar que

eu toquei uma polca.

Quintanilha achou graça e riu.

Depois concordou e esperou que os

três meses fossem passados. Até lá,

viu a prima algumas vezes, sendo as

três últimas visitas mais próximas e

longas. O pai confessou que, ao

princípio, não gostava muito

daquelas músicas alemãs; com o

tempo e o costume achou-lhes

sabor. Chamava à filha “a minha

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alemãzinha”, apelido que foi

adotado por Quintanilha, apenas

modificado para o plural: “a nossa

alemãzinha”. Pronomes possessivos

dão intimidade; dentro em pouco,

ela existia entre os três, - ou quatro,

se contarmos Gonçalves, que ali foi

apresentado pelo amigo; - mas

fiquemos nos três.

Que ele é coisa já farejada por ti,

leitor sagaz. Quintanilha acabou

gostando da moça. Como não, se

Camila tinha uns longos olhos

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mortais? Não é que os pousasse

muita vez nele, e, se o fazia, era com

tal ou qual constrangimento, a

princípio, como as crianças que

obedecem sem vontade às ordens

do mestre ou do pai; mas pousava-

os, e eles eram tais que, ainda sem

intenção, feriam de morte. Também

sorria com frequência e falava com

graça. Ao piano, e por mais

aborrecida que tocasse, tocava bem.

Em suma, Camila não faria obra de

impulso próprio, sem ser por isso

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menos feiticeira. Quintanilha

descobriu um dia de manhã que

sonhara com ela a noite toda, e à

noite que pensara nela todo o dia, e

concluiu da descoberta que a amava

e era amado. Tão tonto ficou que

esteve prestes a imprimi-lo nas

folhas públicas. Quando menos, quis

dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu

ao escritório deste. A afeição de

Quintanilha complicava-se de

respeito e temor. Quase a abrir a

boca, engoliu outra vez o segredo.

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Não ousou dizê-lo nesse dia nem no

outro.

Antes dissesse; talvez fosse tempo

de vencer a campanha. Adiou a

revelação por uma semana. Um dia

foi jantar com o amigo, e, depois de

muitas hesitações, disse-lhe tudo;

amava a prima e era amado.

- Você aprova, Gonçalves?

Gonçalves empalideceu, - ou, pelo

menos, ficou sério; nele a seriedade

confundia-se com a palidez. Mas

não; verdadeiramente ficou pálido.

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- Aprova? repetiu Quintanilha.

Após alguns segundos, Gonçalves ia

abrir a boca para responder, mas

fechou-a de novo, e fitou os olhos

“em ontem”, como ele mesmo dizia

de si, quando os estendia ao longe.

Em vão Quintanilha teimou em saber

o que era, o que pensava, se aquele

amor era asneira. Estava tão

acostumado a ouvir-lhe este

vocábulo que já lhe não doía nem

afrontava, ainda em matéria tão

melindrosa e pessoal. Gonçalves

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tornou a si daquela meditação,

sacudiu os ombros, com ar

desenganado, e murmurou esta

palavra tão surdamente que o outro

mal a pôde ouvir.

- Não me pergunte nada; faça o que

quiser.

- Gonçalves, que é isso? perguntou

Quintanilha, pegando-lhe nas mãos,

assustado.

Gonçalves soltou um grande suspiro,

que, se tinha asas, ainda agora

estará voando. Tal foi, sem esta

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forma paradoxal, a impressão de

Quintanilha. O relógio da sala de

jantar bateu oito horas, Gonçalves

alegou que ia visitar um

desembargador, e o outro despediu-

se.

Na rua, Quintanilha parou

atordoado. Não acabava de entender

aqueles gestos, aquele suspiro,

aquela palidez, todo o efeito

misterioso da notícia dos seus

amores. Entrara e falara, disposto a

ouvir do outro um ou mais daqueles

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epítetos costumados e amigos,

idiota, crédulo, paspalhão, e não

ouviu nenhum. Ao contrário, havia

nos gestos de Gonçalves alguma

coisa que pegava com o respeito.

Não se lembrava de nada ao jantar,

que pudesse tê-lo ofendido; foi só

depois de lhe confiar o sentimento

novo que trazia a respeito da prima

que o amigo ficou acabrunhado.

- Mas, não pode ser, pensava ele; o

que é que Camila tem que não possa

ser boa esposa?

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Nisto gastou, parado, defronte da

casa, mais de meia hora. Advertiu

então que Gonçalves não saíra.

Esperou mais meia hora, nada. Quis

entrar outra vez, abraçá-lo,

interrogá-lo... Não teve forças;

enfiou pela rua fora, desesperado.

Chegou à casa de João Bastos, e não

viu Camila; tinha-se recolhido,

constipada. Queria justamente

contar-lhe tudo, e aqui é preciso

explicar que ele ainda não se havia

declarado à prima. Os olhares da

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moça não fugiam dos seus; era tudo,

e podia não passar de faceirice. Mas

o lance não podia ser melhor para

clarear a situação. Contando o que

se passara com o amigo, tinha o

ensejo de lhe fazer saber que a

amava e ia pedi-la ao pai. Era uma

consolação no meio daquela agonia;

o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu

da casa, pior que entrara. Recolheu-

se à sua.

Não dormiu antes das duas horas da

manhã, e não foi para repouso,

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senão para agitação maior e nova.

Sonhou que ia a atravessar uma

ponte velha e longa, entre duas

montanhas, e a meio caminho viu

surgir debaixo um vulto e fincar os

pés defronte dele. Era Gonçalves.

“Infame, disse este com os olhos

acesos, por que me vens tirar a noiva

do meu coração, a mulher que eu

amo e é minha? Toma, toma logo o

meu coração, é mais completo.” E

com um gesto rápido abriu o peito,

arrancou o coração e meteu-lho na

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boca. Quintanilha tentou pegar da

víscera amiga e repô-la no peito de

Gonçalves; foi impossível. Os queixos

acabaram por fechá-la. Quis cuspi-la

e foi pior; os dentes cravaram-se no

coração. Quis falar, mas vá alguém

falar com a boca cheia daquela

maneira. Afinal o amigo ergueu os

braços e estendeu-lhe as mãos com

o gesto de maldição que ele vira nos

melodramas, em dias de rapaz; logo

depois, brotaram-lhe dos olhos duas

imensas lágrimas, que encheram o

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vale de água, atirou-se abaixo e

desapareceu.

Quintanilha acordou sufocado.

A ilusão do pesadelo era tal que ele

ainda levou as mãos à boca, para

arrancar de lá o coração do amigo.

Achou a língua somente, esfregou os

olhos e sentou-se. Onde estava? Que

era? E a ponte? E o Gonçalves?

Voltou a si de todo, compreendeu e

novamente se deitou, para outra

insônia, menor que a primeira, é

certo; veio a dormir às quatro horas.

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De dia, rememorando toda a

véspera, realidade e sonho, chegou à

conclusão de que o amigo Gonçalves

era seu rival, amava a prima dele, era

talvez amado por ela... Sim, sim,

podia ser. Quintanilha passou duas

horas cruéis. Afinal pegou em si e foi

ao escritório de Gonçalves, para

saber tudo de uma vez; e, se fosse

verdade, sim, se fosse verdade...

Gonçalves redigia umas razões de

embargo. Interrompeu-as para fitá-lo

um instante, erguer-se, abrir o

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armário de ferro, onde guardava os

papéis graves, tirar de lá o

testamento de Quintanilha, e

entregá-lo ao testador.

- Que é isto?

- Você vai mudar de estado,

respondeu Gonçalves, sentando-se à

mesa.

Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na

voz; assim lhe pareceu, ao menos.

Pediu-lhe que guardasse o

testamento; era o seu depositário

natural. Instou muito; só lhe

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respondia o som áspero da pena

correndo no papel. Não corria bem a

pena, a letra era tremida, as

emendas mais numerosas que de

costume, provavelmente as datas

erradas. A consulta dos livros era

feita com tal melancolia que

entristecia o outro. Às vezes, parava

tudo, pena e consulta, para só ficar o

olhar fito “em ontem”.

- Entendo, disse Quintanilha, ela será

tua.

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- Ela quem? quis perguntar

Gonçalves, mas já o amigo voava

escada abaixo, como uma flecha, e

ele continuou as suas razões de

embargo.

Não se adivinha todo o resto; basta

saber o final. Nem se adivinha nem

se crê; mas a alma humana é capaz

de esforços grandes, no bem como

no mal. Quintanilha fez outro

testamento, legando tudo à prima,

com a condição de desposar o

amigo. Camila não aceitou o

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testamento, mas ficou tão contente,

quando o amigo lhe falou das

lágrimas do Gonçalves, que aceitou

Gonçalves e as lágrimas. Então

Quintanilha não achou melhor

remédio que fazer terceiro

testamento legando tudo ao amigo.

O final da história foi dito em latim.

Quintanilha serviu de testemunha ao

noivo, e de padrinho aos dois

primeiro filhos. Um dia em que,

levando doces para os afilhados,

atravessava a Praça Quinze de

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Novembro, recebeu uma bala

revoltosa (1893) que o matou quase

instantaneamente. Está enterrado

no cemitério de São João Batista; a

sepultura é simples, a pedra tem um

epitáfio que termina com esta pia

frase: “Orai por ele!” É também o

fecho da minha história. Orestes vive

ainda, sem os remorsos do modelo

grego. Pílades é agora o personagem

mudo de Sófocles. Orai por ele!

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ANEDOTA DO CABRIOLET

- Cabriolet está aí, sim senhor, dizia o

preto que viera à matriz de São José

chamar o vigário para sacramentar

dois moribundos.

A geração de hoje não viu a entrada

e a saída do Cabriolet no Rio de

Janeiro. Também não saberá do

tempo em que o cab e o tílburi

vieram para o rol dos nossos veículos

de praça ou particulares. O cab

durou pouco. O tílburi, anterior aos

dois, promete ir à destruição da

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cidade. Quando esta acabar e

entrarem os cavadores de ruínas,

achar-se-á um parado, com o cavalo

e o cocheiro em ossos esperando o

freguês de costume. A paciência será

a mesma de hoje, por mais que

chova, a melancolia maior, como

quer que brilhe o sol, porque juntará

a própria atual à do espectro dos

tempos. O arqueólogo dirá coisas

raras sobre os três esqueletos. O

Cabriolet não teve história; deixou

apenas a anedota que vou dizer.

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- Dois! exclamou o sacristão.

- Sim, senhor, dois, nhã Anunciada e

nhô Pedrinho. Coitado de nhô

Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada!

continuou o preto a gemer, andando

de um lado para outro, aflito, fora de

si.

Alguém que leia isto com a alma

turva de dúvidas, é natural que

pergunte se o preto sentia deveras,

ou se queria picar a curiosidade do

coadjutor e do sacristão. Eu estou

que tudo se pode combinar neste

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mundo, como no outro. Creio que

ele sentia deveras; não descreio que

ansiasse por dizer alguma história

terrível. Em todo caso, nem o

coadjutor nem o sacristão lhe

perguntaram nada.

Não é que o sacristão não fosse

curioso. Em verdade, pouco mais era

que isso. Trazia a paróquia de cor,

sabia o nome às devotas, a vida

delas, a dos maridos e a dos pais, as

prendas e os recursos de cada uma,

e o que comiam, e o que bebiam, e o

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que diziam, os vestidos e as virtudes,

os dotes das solteiras, o

comportamento das casadas, as

saudades das viúvas. Pesquisava

tudo; nos intervalos, ajudava a missa

e o resto. Chamava-se João das

Mercês, homem quarentão, pouca

barba e grisalho, magro e meão.

- Que Pedrinho e que Anunciada

serão esses? dizia consigo,

acompanhando o coadjutor.

Embora ardesse por sabê-los, a

presença do coadjutor impediria

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qualquer pergunta. Este ia tão calado

e pio, caminhando para a porta da

igreja, que era força mostrar o

mesmo silêncio e piedade que ele.

Assim foram andando. O Cabriolet

esperava-os; o cocheiro desbarretou-

se, os vizinhos e alguns passantes

ajoelharam-se, enquanto o padre e o

sacristão entravam e o veículo

enfiava pela Rua da Misericórdia. O

preto desandou o caminho a passo

largo.

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Que andem burros e pessoas na rua,

e as nuvens no céu, se as há, e os

pensamentos nas cabeças, se os têm.

A do sacristão tinha-os vários e

confusos. Não era acerca do Nosso-

Pai, embora soubesse adorá-lo, nem

da água-benta e do hissope que

levava; também não era acerca da

hora - oito e quarto da noite - aliás, o

céu estava claro e a lua ia

aparecendo. O próprio Cabriolet, que

era novo na terra, e substituía neste

caso a sege, esse mesmo veículo não

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ocupava o cérebro todo de João das

Mercês, a não ser na parte que

pegava com nhô Pedrinho e nhá

Anunciada.

- Há de ser gente nova, ia pensando

o sacristão, mas hóspede em alguma

casa, decerto, porque não há casa

vazia na praia, e o número é da do

comendador Brito. Parentes, serão?

Que parentes, se nunca ouvi...?

Amigos, não sei; conhecidos, talvez,

simples conhecidos. Mas então

mandariam Cabriolet? Este mesmo

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preto é novo na casa; há de ser

escravo de um dos moribundos, ou

de ambos.

Era assim que João das Mercês ia

cogitando, e não foi por muito

tempo. O Cabriolet parou à porta de

um sobrado, justamente a casa do

comendador Brito, José Martins de

Brito. Já havia algumas pessoas

embaixo com velas, o padre e o

sacristão apearam-se e subiram a

escada, acompanhados do

comendador. A esposa deste, no

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patamar, beijou o anel ao padre.

Gente grande, crianças, escravos, um

burburinho surdo, meia claridade, e

os dois moribundos à espera, cada

um no seu quarto, ao fundo.

Tudo se passou, como é de uso e

regra, em tais ocasiões. Nhô

Pedrinho foi absolvido e ungido, nhã

Anunciada também, e o coadjutor

despediu-se da casa para tornar à

matriz com o sacristão. Este não se

despediu do comendador sem lhe

perguntar ao ouvido se os dois eram

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parentes seus. Não, não eram

parentes, respondeu Brito; eram

amigos de um sobrinho que vivia em

Campinas; uma história terrível... Os

olhos de João das Mercês escutaram

arregaladamente estas duas

palavras, e disseram, sem falar, que

viriam ouvir o resto – talvez naquela

mesma noite. Tudo foi rápido,

porque o padre descia a escada, era

força ir com ele.

Foi tão curta a moda do Cabriolet

que este provavelmente não levou

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outro padre a moribundos. Ficou-lhe

a anedota, que vou acabar já, tão

escassa foi ela, uma anedota de

nada. Não importa. Qualquer que

fosse o tamanho ou a importância,

era sempre uma fatia de vida para o

sacristão, que ajudou o padre a

guardar o pão sagrado, a despir a

sobrepeliz, e a fazer tudo mais, antes

de se despedir e sair. Saiu, enfim, a

pé, rua acima, praia fora, até parar à

porta do comendador.

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Em caminho foi evocando toda a

vida daquele homem, antes e depois

da comenda. Compôs o negócio, que

era fornecimento de navios, creio eu,

a família, as festas dadas, os cargos

paroquiais, comerciais e eleitorais, e

daqui aos boatos e anedotas não

houve mais que um passo ou dois. A

grande memória de João das Mercês

guardava todas as coisas, máximas e

mínimas, com tal nitidez que

pareciam da véspera, e tão

completas que nem o próprio objeto

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delas era capaz de as repetir iguais.

Sabia-as como Padre-Nosso, isto é,

sem pensar nas palavras; ele rezava

tal qual comia, mastigando a oração,

que lhe saía dos queixos sem sentir.

Se a regra mandasse rezar três

dúzias de padre-nossos

seguidamente, João das Mercês os

diria sem contar. Tal era com as

vidas alheias; amava sabê-las,

pesquisava-as, decorava-as, e nunca

mais lhe saíam da memória.

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Na paróquia todos lhe queriam bem,

porque ele nem enredava nem

maldizia. Tinha o amor da arte pela

arte. Muita vez nem era preciso

perguntar nada. José dizia-lhe a vida

de Antônio e Antônio a de José. O

que ele fazia era ratificar ou retificar

um com outro, e os dois com

Sancho, Sancho com Martinho, e

vice-versa, todos com todos. Assim é

que enchia as horas vagas, que eram

muitas. Alguma vez, à própria missa,

recordava uma anedota da véspera,

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e, a princípio, pedia perdão a Deus;

deixou de lho pedir quando refletiu

que não falhava uma só palavra ou

gesto do santo sacrifício, tão

consubstanciados os trazia em si. A

anedota que então revivia por

instantes era como a andorinha que

atravessa uma paisagem. A paisagem

fica sendo a mesma, e a água, se há

água, murmura o mesmo som. Esta

comparação, que era dele, valia mais

do que ele pensava, porque a

andorinha, ainda voando, faz parte

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da paisagem, e a anedota fazia nele

parte da pessoa; era um dos seus

atos de viver.

Quando chegou à casa do

comendador, tinha desfiado o

rosário da vida deste, e entrou com o

pé direito para não sair mal. Não

pensou em sair cedo, por mais aflita

que fosse a ocasião, e nisto a fortuna

o ajudou. Brito estava na sala da

frente, em conversa com a mulher,

quando lhe vieram dizer que João

das Mercês perguntava pelo estado

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dos moribundos. A esposa retirou-se

da sala, o sacristão entrou pedindo

desculpas e dizendo que era por

pouco tempo; ia passando e

lembrava-se de saber se os enfermos

tinham ido para o céu – ou se ainda

eram deste mundo. Tudo o que

dissesse respeito ao comendador

seria ouvido por ele com interesse.

- Não morreram, nem sei se

escaparão; quando menos, ela creio

que morrerá, concluiu Brito.

- Parecem bem mal.

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- Ela, principalmente; também é a

que mais padece da febre. A febre os

pegou aqui em nossa casa, logo que

chegaram de Campinas, há dias.

- Já estavam aqui? perguntou o

sacristão, pasmado de não o saber.

- Já; chegaram há quinze dias – ou

quatorze. Vieram com o meu

sobrinho Carlos e aqui apanharam a

doença.

Brito interrompeu o que ia dizendo;

assim pareceu ao sacristão, que pôs

no semblante toda a expressão de

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pessoa que espera o resto.

Entretanto, como o outro estivesse a

morder os beiços e a olhar para as

paredes, não viu o gesto de espera, e

ambos se detiveram calados. Brito

acabou andando ao longo da sala,

enquanto João das Mercês dizia

consigo que havia alguma coisa mais

que febre. A primeira ideia que lhe

acudiu foi se os médicos teriam

errado na doença ou no remédio;

também pensou que podia ser outro

mal escondido, a que deram o nome

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de febre para encobrir a verdade. Ia

acompanhando com os olhos o

comendador, enquanto este andava

e desandava a sala toda, apagando

os passos para não aborrecer mais os

que estavam dentro. De lá vinha

algum murmúrio de conversação,

chamado, recado, porta que se abria

ou fechava. Tudo isso era coisa

nenhuma para quem tivesse outro

cuidado; mas o nosso sacristão já

agora não tinha mais que saber o

que não sabia. Quando menos, a

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família dos enfermos, a posição, o

atual estado, alguma página da vida

deles, tudo era conhecer algo, por

mais arredado que fosse da

paróquia.

- Ah! Exclamou Brito estacando o

passo.

Parecia haver nele o desejo

impaciente de referir um caso - a

“história terrível”, que anunciara ao

sacristão, pouco antes; mas nem

este ousava pedi-la nem aquele dizê-

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la, e o comendador pegou a andar

outra vez.

João das Mercês sentou-se. Viu bem

que em tal situação cumpria

despedir-se com boas palavras de

esperança ou de conforto, e voltar

no dia seguinte; preferiu sentar-se e

aguardar. Não viu na cara do outro

nenhum sinal de reprovação do seu

gesto; ao contrário, ele parou

defronte e suspirou com grande

cansaço.

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- Triste, sim, triste, concordou João

das Mercês. Boas pessoas, não?

- Iam casar.

- Casar? Noivos um do outro?

- Brito confirmou de cabeça. A nota

era melancólica, mas não havia sinal

da história terrível anunciada, e o

sacristão esperou por ela. Observou

consigo que era a primeira vez que

ouvia alguma coisa de gente que

absolutamente não conhecia. As

caras, vistas há pouco, eram o único

sinal dessas pessoas. Nem por isso se

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sentia menos curioso. Iam casar...

Podia ser que a história terrível fosse

isso mesmo. Em verdade, atacados

de um mal na véspera de um bem, o

mal devia ser terrível. Noivos e

moribundos...

Vieram trazer recado ao dono da

casa; este pediu licença ao sacristão,

tão depressa que nem deu tempo a

que ele se despedisse e saísse.

Correu para dentro, e lá ficou

cinquenta minutos. Ao cabo, chegou

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à sala um pranto sufocado; logo

após, tornou o comendador.

- Que lhe dizia eu, há pouco?

Quando menos, ela ia morrer;

morreu.

Brito disse isto sem lágrimas e quase

sem tristeza. Conhecia a defunta de

pouco tempo. As lágrimas, segundo

referiu, eram do sobrinho de

Campinas e de uma parenta da

defunta, que morava em Mata-

Porcos. Daí a supor que o sobrinho

do comendador gostasse da noiva do

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moribundo foi um instante para o

sacristão, mas não se lhe pegou a

ideia por muito tempo; não era

forçoso, e depois se ele próprio os

acompanhara... Talvez fosse

padrinho de casamento. Quis saber,

e era natural, - o nome da defunta. O

dono da casa - ou por não querer

dar-lho, - ou porque outra ideia lhe

tomasse agora a cabeça, - não

declarou o nome da noiva, nem do

noivo. Ambas as causas seriam.

- Iam casar...

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- Deus a receberá em sua santa

guarda, e a ele também, se vier a

expirar, disse o sacristão cheio de

melancolia.

E esta palavra bastou a arrancar

metade do segredo que parece

ansiava por sair da boca do

fornecedor de navios. Quando João

das Mercês lhe viu a expressão dos

olhos, o gesto com que o levou à

janela, e o pedido que lhe fez de

jurar, - jurou por todas as almas dos

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seus que ouviria e calaria tudo. Nem

era homem de assoalhar as

confidências alheias, mormente as

de pessoas gradas e honradas como

era o comendador. Ao que este se

deu por satisfeito e animado, e

então lhe confiou a primeira metade

do segredo, a qual era que os dois

noivos, criados juntos, vinham casar

aqui quando souberam, pela parenta

de Mata-Porcos, uma notícia

abominável...

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- E foi...? precipitou-se em dizer João

das Mercês, sentindo alguma

hesitação no comendador.

- Que eram irmãos.

- Irmãos como? Irmãos de verdade?

- De verdade; irmãos por parte de mãe.

O pai é que não era o mesmo. A

parenta não lhes disse tudo nem claro,

mas jurou que era assim, e eles ficaram

fulminados durante um dia ou mais...

João das Mercês não ficou menos

espantado que eles; dispôs-se a não

sair dali sem saber o resto. Ouviu dez

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horas, ouviria todas as demais da

noite, velaria o cadáver de um ou de

ambos, uma vez que pudesse juntar

mais esta página às outras da

paróquia, embora não fosse da

paróquia.

- E vamos, vamos, foi então que a

febre os tomou...?

Brito cerrou os dentes para não dizer

mais nada. Como, porém, o viessem

chamar de dentro, acudiu depressa,

e meia hora depois estava de volta,

com a nova do segundo passamento.

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O choro, agora mais franco, posto

que mais esperado, não havendo já

de quem o esconder, trouxera a

notícia ao sacristão.

- Lá se foi o outro, o irmão, o noivo...

que Deus lhes perdoe! Saiba agora

tudo, meu amigo. Saiba que eles se

queriam tanto que alguns dias

depois de conhecido o impedimento

natural e canônico do consórcio,

pegaram de si e, fiados em serem

apenas meios irmãos e não irmãos

inteiros, meteram-se em um

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Cabriolet e fugiram de casa. Dado

logo o alarma, alcançamos pegar o

Cabriolet em caminho da Cidade

Nova, e eles ficaram tão pungidos e

vexados da captura que adoeceram

de febre e acabam de morrer.

Não se pode escrever o que sentiu o

sacristão, ouvindo-lhe este caso.

Guardou-o por algum tempo, com

dificuldade. Soube os nomes das

pessoas pelo obituário dos jornais, e

combinou as circunstâncias ouvidas

ao comendador com outras. Enfim,

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sem se ter por indiscreto, espalhou a

história, só com esconder os nomes

e contá-la a um amigo, que a passou

a outro, este a outros, e todos a

todos. Fez mais; meteu-se-lhe em

cabeça que o Cabriolet da fuga podia

ser o mesmo dos últimos

sacramentos; foi à cocheira,

conversou familiarmente com um

empregado, e descobriu que sim.

Donde veio chamar-se a esta página

a “anedota do Cabriolet.”

FIM

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FICHA TÉCNICA

Projeto Acessibilidade em Bibliotecas

Públicas

Convênio Nº 800812 Executado pela

Mais Diferenças

Em parceria com:

Ministério da Cultura - Secretaria

Executiva; Diretoria do Livro, Leitura,

Literatura e Biblioteca -

DLLLB e Sistema Nacional de

Bibliotecas Públicas - SNBP

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Coordenação Técnica do Projeto -

Wagner Santana

Desenvolvimento e Execução das

versões acessíveis - BRDN

Supervisão - Carla Mauch

Coordenação Técnica e Produção de

roteiros/ Audiolivro/ LIBRAS/

Legenda/ Daisy/ Leitura

Ampliada/ Leitura Fácil - Ana Rosa

Bordin Rabello

Locução - Benedito Sverberi

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Interpretação em LIBRAS - Felix

Oliveira

Captação, Edição e Animação (áudio

e vídeo) - Saulo Tomé e Maria Vitoria

Canezin

Design gráfico - Tiago Marchesano

Produção em Daisy - Otavio Santos

Versão acessível executada nos

termos da Lei 9.610/98, artigo 46,

inciso I, letra d