religião sem novidade - UNASP · Enganam-se os que optam pela lógica, simples, de que o...

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escola adventista - ano 19 - volume 32 25 artigo 24 escola adventista - ano 19 - volume 32 religião sem novidade para que a educação religiosa ocorra, é essencial reconhecer a natureza dos saberes, estabelecendo assim condições para a reorganização crítica da religião em sala de aula Felipe Carmo professor de religião no Unasp Ser criança não é igual a não saber nada. Enganam-se os que optam pela lógica, simples, de que o conhecimento deve ser transferido a uma folha em branco. Há sempre um saber no infante que, embora frágil, melindroso e modesto, corroborará com as novas experiências oferecidas pelo educador. Julgamos apresentar no- vidades que, pasmem, no universo infantil, já cria- vam raízes fundamentais para uma elaboração pos- terior. Da mesma forma, podemos compreender que temas relativos à religião não são inovadores. São, de fato, mais sistêmicos, mas podem não passar de blá-blá-blá dogmático, em face à complexidade das experiências religiosas dos alunos. Isso basta para o flerte com um truísmo freiriano de que “ensinar exige respeito aos saberes do edu- cando”. Em sua obra Pedagogia da autonomia, Pau- lo Freire esclarece que o educando possui alguns saberes já impregnados. Esses saberes surgem, de maneira ainda inocente, pela carência de virtudes a serem amadurecidas no processo de ensino-apren- dizagem. Assim, a “curiosidade ingênua”, uma es- pécie de senso comum, deve transformar-se em “curiosidade epistemológica” a partir da habilidade crítica do aluno. Em outros termos, o “ensinar” es- taria mais relacionado à criação de possibilidades para a construção do conhecimento, visto que o sa- ber sobre determinado assunto é embrionário, ne- Há mais filosofia e teologia do que imaginamos em filmes e na cultura pop. Portanto, há muito que pode ser aprendido a respeito do ser humano e do mundo a partir do entretenimento.

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religião sem novidade

para que a educação religiosa ocorra, é essencial reconhecer a natureza dos saberes, estabelecendo assim condições para

a reorganização crítica da religião em sala de aula

Felipe Carmoprofessor de religião no Unasp

Ser criança não é igual a não saber nada. Enganam-se os que optam pela lógica, simples, de que o conhecimento deve ser

transferido a uma folha em branco. Há sempre um saber no infante que, embora frágil, melindroso e modesto, corroborará com as novas experiências oferecidas pelo educador. Julgamos apresentar no-vidades que, pasmem, no universo infantil, já cria-vam raízes fundamentais para uma elaboração pos-terior. Da mesma forma, podemos compreender que temas relativos à religião não são inovadores. São, de fato, mais sistêmicos, mas podem não passar de blá-blá-blá dogmático, em face à complexidade das experiências religiosas dos alunos.

Isso basta para o flerte com um truísmo freiriano de que “ensinar exige respeito aos saberes do edu-cando”. Em sua obra Pedagogia da autonomia, Pau-lo Freire esclarece que o educando possui alguns saberes já impregnados. Esses saberes surgem, de maneira ainda inocente, pela carência de virtudes a serem amadurecidas no processo de ensino-apren-dizagem. Assim, a “curiosidade ingênua”, uma es-pécie de senso comum, deve transformar-se em “curiosidade epistemológica” a partir da habilidade crítica do aluno. Em outros termos, o “ensinar” es-taria mais relacionado à criação de possibilidades para a construção do conhecimento, visto que o sa-ber sobre determinado assunto é embrionário, ne-

Há mais filosofia e teologia do que imaginamos em filmes e na cultura pop. Portanto, há muito

que pode ser aprendido a respeito do ser humano e do mundo a partir do entretenimento.

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cessitando apenas ser superado e amadurecido por meio da capacidade analítica e criadora do próprio educando. Como felizmente apontou Adolfo Suá-rez, no livro Redenção, liberdade e serviço, a noção freiriana de seres “inacabados”, ou seja, portadores de saberes individuais passíveis de aprimoramento, encontra eco em elaborações whiteanas. Fala-se a respeito de um ser humano incompleto, que “está sendo para poder ser”. Este indivíduo carece de apri-moramento; precisa refazer-se a partir de novas e melhores experiências com o conhecimento. Quan-do o processo de ensino-aprendizagem é visto como um aprimoramento de um saber incipiente, fica evi-dente a relação entre “redenção” e “educação” como restauração contínua de um sujeito que ainda carece de completude para atingir a “imagem de Deus”.

Nesse sentido, pode soar arrogante a ideia de que o aluno, principalmente o não adventis-ta, nada saiba de religião. Ou que, pelo menos, é ignorante sobre assuntos formativos da religião cristã, como o pecado, a salvação em Jesus Cris-to etc. Deve existir algo ainda embrionário nas elaborações pessoais do aprendiz que tomarão forma, com tempo e cuidado. De fato, como “sa-ber religioso”, ele estará ainda inserido em cons-truções rudimentares, normalmente associadas às do senso comum. Com efeito, a fim de que a educação religiosa ocorra, é essencial reconhe-cer, se possível, a natureza e a procedência de tais saberes, a fim de estabelecer condições próprias em sala de aula para a reorganização crítica da religião dos estudantes.

Em minha bagagem “dodicente”, tive a oportu-nidade de experienciar situações propícias ao meu aprendizado, e também o contrário. As melhores experiências que tive na infância tiveram relação com o aproveitamento de meus saberes indivi-duais como aluno, em prol de uma reflexão crítica de conteúdos ainda embrionários. A maioria de-les, é importante pontuar, não possui ligação com temáticas religiosas, pelo menos de forma direta. Pretendo inseri-las aqui como exemplo do que te-nho dito, com o propósito de convencer acerca de

sua aplicabilidade e, posteriormente, realizar uma ponte com os objetivos deste texto.

Quando repensei filosofiasNo oitavo ano do meu Ensino Fundamental, existia uma matéria chamada “Área Econômica Secundá-ria”, cujos objetivos me são desconhecidos. Lembro--me apenas que eram realizadas em uma oficina e dirigidas por um antigo professor meu, chamado Roberto. Na mesma época, o filme Matrix, dos ir-mãos Wachowski, era assunto do momento, devido à revolução de efeitos especiais promovidos pela obra. Como já era de se esperar, ao menos pelos “alunos do professor Roberto”, a temática seria abordada na sala de aula a fim de cumprir com objetivos que, para nós, não eram relevantes. Só queríamos ver o filme. Assim, o professor assistiu ao filme em nossa companhia e sugeriu que conver-sássemos sobre ele na próxima aula. Adolescentes como éramos, e ainda agitados com a ação, nos dirigimos à aula com o mesmo ímpeto anterior. Qual não foi a surpresa quando Roberto passou a nos falar sobre algo que dizia ser “genial”, e que não havíamos notado enquanto absortos pela ação: “o filme”, segundo ele, “falava a respeito da ‘alegoria da caverna’, de Platão”. A partir daquele momento fui introduzido ao meu primeiro filósofo.

A relação construída, por meu professor, en-tre Matrix e a “alegoria da caverna”, sendo legíti-ma ou não, demonstrou-se tão fantástica que, ao passo que adorava pancadaria, passei a adorar fi-losofia. E passei a apreciar mais o tal de Platão do que Keanu Reeves. Afinal, Keanu Reeves só sabia bater nos agentes do matrix; Platão, por outro lado, espancava e resignificava minha frágil rea-lidade. Aliás, vale ainda ressaltar que, no mesmo ano, em uma quarta-feira à noite, fui convidado a pregar pela primeira vez em minha igreja. Ao invés de abrir a Bíblia, me preocupei em descre-ver detalhadamente a “alegoria da caverna”, falei a respeito do filósofo Platão e, para não parecer “não bíblico”, li um verso que, talvez, se relacio-nasse ao tema (mas esse não era o foco!).

A personagem acima foi criado para a história em quadrinhos que eu e meu colega

fizemos para o trabalho de história. Ele se chamava C-WOOD e era um extraterrestre que

roubava dos ricos para dar aos pobres, como o personagem Robin Hood.

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De alguma forma, eu já conhecia Platão e sua alegoria. Aliás, de outra forma, eu mesmo era o personagem da história, me libertando da igno-rância ao encontro da “luz”. Se apresentada em uma lousa, na época fosca e impregnada de poei-ra, de forma “bancária”, a alegoria não surtiria tanta importância. A eficácia do ensino se deu em virtude da não vulgarização de meus gostos e saberes enquanto adolescente que, em relação ao filme, não passavam de pancadaria envolvida por uma história fictícia. O professor Roberto respei-tou meus conhecimento como alunos e expandiu meus horizontes filosóficos.

Quando repensei cosmovisõesNo sétimo ano do meu Ensino Fundamental, ou seja, um ano antes da experiência acima, fui presenteado com outra ocasião para a ressignificação de meus saberes. O assunto a ser estudado em classe estava, de alguma forma, relacionado à idade média e, por conseguinte, à organização social da época. Como é evidente, a aula era de História e, por coincidência, o professor também se chamava Roberto. Outra vez,

em virtude da minha falta de memória, não posso me recordar os motivos, mas estou ciente de que o professor exigiu trabalhos em dupla que falassem sobre o período que estudávamos. Por ocasião de alguma “iluminação divina”, o professor, ao contrário do que havia exigido ao restante da turma, sugeriu que eu e meu colega (e eterno amigo Henrique Pires) nos esforçássemos na elaboração de uma história em quadrinhos sobre o mesmo tema, cujos personagens e enredo seriam livres. Na época, não fazíamos outra coisa além de ler gibis e desenhar, portanto, a tarefa não poderia ter sido mais prazerosa.

Algo que não esperávamos, pelo menos de minha parte, era a necessidade do conhecimen-to detalhado a respeito do contexto histórico do período. Com efeito, a fim de facilitar o proces-so, nos permitimos retratar a história de Robin Hood (que diz respeito à época) em trajes de ficção científica. Ao invés de feudos e senhores feudais, foi mais prático desenhar extraterrestres com superpoderes que roubavam dos ricos para dar aos pobres. A história foi intitulada “C-Hood”, em virtude do nome de um dos personagens. Por

fim, atrasamos a entrega do trabalho, mas fize-mos questão de não participar da festa que ocor-ria na escola a fim de permanecer na sala de aula, rabiscando as últimas páginas da “obra”.

Depois de alguns anos, em séries subsequentes, especialmente no Ensino Médio, sempre que eram abordados assuntos relativos à idade média, me lem-brava de minha história em quadrinhos. Não, po-rém, com esforço meramente conteudista, afinal, eu mesmo havia vivenciado “As aventuras de C-Hood”; ninguém melhor do que eu exemplificaria a impor-tância daquele período para a história da humanida-de – mesmo que protagonizada por extraterrestres. O professor de História nos permitiu reaproveitar o que restava de nossa “cosmovisão”, composta por se-res dos mais variados nichos, para retratar uma rea-lidade feudal – um mundo novo que, até então, pa-recia desinterenssante a viajantes de nossa categoria.

De fato, como qualquer adolescente, eu saberia fazer a distinção entre realidade e ficção; ou seja, assumiria a cosmovisão extraterrestre como algo banal, embora muito mais emocionante. Ocorre que essa visão de mundo passou a ser útil para compreender realidades mais úteis para minha formação. A história passou a ser concreta e não mais aquele período turvo, definido por datas, no-mes e locais. O processo de transformação, contu-do, foi simples: percebi que meu mundo conferia ocasião a outros mais reais e complexos.

No ensino religiosoDe alguma forma, estas e outras experiências soma-ram ao meu conhecimento religioso, mesmo que de maneira indireta, mas isso por esforços pessoais. O que me leva à reflexão: seria a “cultura infantil”, expressa em desenhos animados, filmes, quadri-nhos etc., tão estulta, a ponto de inutilizar qualquer discurso religioso? Quão úteis seriam, talvez, os mesmos saberes antigos, agora aplicados à religião?

Atualmente, a sociedade produz conteúdos e discute assuntos de convergência religiosa que variam da existência de deuses à concepção de apocalipses. Basta uma conversa objetiva com

um estudante do Ensino Fundamental para com-preender que, de forma assombrosa, possui mais conhecimentos sobre mitologia, antropologia filosófica e escatologia do que imaginaríamos. A facilitação do conhecimento ocasionada pelo fácil acesso à informação fez questão de semear os primeiros saberes religiosos nos estudantes. O desafio do professor de Ensino Religioso é “dar nome aos bois”, articulando as proximidades e diferenças entre o saber dos educandos e o saber pretendido na aula. Desse modo, quem sabe, seja mais fácil convencer os alunos de que religião é um tema necessário, empolgante! E mesmo não sendo exatamente uma “novidade” para eles, é fundamental para a vida diária.

1. Escolha um livro, filme ou série que a maior parte de seus alunos gostem;

2. Peça, como lição de casa, que todos se familiarizem com ele;

3. Em sala de aula, aborde um dos temas filosóficos tratados nessa obra;

4. Logo a seguir, apresente um tema bíblico que se relacione com a discussão já iniciada.

O aluno deve ser encarado como um sujeito que, embora ainda muito novo, já possui uma

espécie de bagagem religiosa que precisa ser canalizada ao estudo bíblico. Não se trata de

conhecimentos impróprios, mas de saberes que facilitarão a comunicação do conteúdo bíblico.

Revolucione sua aula

Felipe Carmo

Especialista em Teologia Bíblica pelo Unasp-EC, professor de Religião na mesma universidade e mestrando em Literatura Judaica pela USP.