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6º Encontro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) 25 a 28 de julho de 2017, PUC Minas, Belo Horizonte MG RELIGIÃO E VIOLÊNCIA EM CONFLITOS INTRATÁVEIS: A RADICALIZAÇÃO DO BUDISMO EM MIANMAR FÁBIO NOBRE (UEPB)

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6º Encontro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI)

25 a 28 de julho de 2017, PUC Minas, Belo Horizonte – MG

RELIGIÃO E VIOLÊNCIA EM CONFLITOS INTRATÁVEIS: A RADICALIZAÇÃO DO

BUDISMO EM MIANMAR

FÁBIO NOBRE (UEPB)

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Religião e violência em conflitos intratáveis: a radicalização do budismo em Mianmar

Fábio Nobre1

Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Trabalho preparado para o 6º Encontro da ABRI, 25-28 de julho de 2017 – Belo Horizonte, PUC-

Minas.

Religião e violência, apesar de comumente apontados como imensuráveis, são,

provavelmente, os elementos mais presentes no tecido social das relações

internacionais. Sua associação é, por vezes, errônea e feita sem os devidos

parâmetros. Inegavelmente, a lógica das supostas novas guerras estaria ligada à

política de identidades particularistas, sendo a religião uma de suas principais

dimensões. A transição política na maioria budista Mianmar (também

conhecida como Birmânia), que começou em 2011, foi marcada por surtos

regulares de violência entre comunidades religiosas, embora o conflito

inicialmente parecesse ser um incidente isolado alimentado por tensões

regionais específicas, a violência dirigida aos muçulmanos logo apareceu em

outras partes do país. Comumente associado à paz, em especial pela visão

ocidental, o budismo se manifesta das mais diferentes maneiras. Em Mianmar,

o movimento budista extremista conhecido como 969, se expressa como um

credo comunitário de base. Seu principal defensor, um monge chamado

Wirathu, já foi preso pela antiga junta militar por violência antimuçulmana e já

se denominou o "Bin Laden birmanês". O presente artigo se dedica a traçar

considerações preliminares sobre as relações entre a violência e a religião. Para

tanto, o texto está alicerçado na literatura crítica dos Estudos para a Paz, em

especial o debate sobre conflitos intratáveis, e se propõe a utilizar o caso

birmanês como pano de fundo empírico para as observações.

Palavras-chave: Religião; violência; Mianmar; Budismo; 969.

Mianmar, também conhecido como Birmânia, é uma ex-colônia britânica que foi governada por uma

junta militar de 1962 a 2011 e que passa, desde então, por um processo de transição democrática. Esse

cenário de instabilidade política propiciou a ascensão de organizações radicais budistas, como o grupo

969, formado por monges budistas munidos de um discurso claramente anti-islâmico.

O 696 faz parte de uma face relativamente recente no tocante à condução das disputas religiosas

na região, algo que vem sendo levantado como fundamentalismo, extremismo, e mesmo nacionalismo

budista. Expressões desse movimento, ao qual nos referiremos, doravante, como radicalização do

1 Doutor em Ciência Política. Professor do Programa de Pós-Graduação (PPGRI) e da Graduação em Relações

Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba – (UEPB)

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budismo, também se manifestam em países próximos, como Sri Lanka e Tailândia, nos quais a religião

também é proeminente. Cristãos e, especialmente, muçulmanos, são adereçados como os principais

alvos da violência budista, como reação ao crescimento de tais expressões religiosas em suas regiões.

(MANN, 2014).

A ascensão de grupos de tal natureza, em regiões de anterior instabilidade política e seu

entrelaçamento com as frágeis condições político-sociais que ali já residiam, configuram a situação de

conflitos intratáveis. Essa denominação se dá aos eventos de segurança nos quais é possível identificar

uma tendência quase física de continuidade e alta improbabilidade de resolução. São situações

complexas com importantes aspectos históricos, políticos, culturais, morais, legais, espirituais e

universais. São conflitos que se espalharam por anos, alguns por gerações, com pouca mudança de

direção e que provavelmente continuarão a persistir. (COLEMAN, 2003, p.3).

Os conflitos intratáveis apresentam um dos grandes desafios para a literatura dos Estudos Para

a Paz (EPP), como campo autônomo2 em plena evolução desde os anos 50. De certa forma, a inclusão

dos temas de religião e a maior parte dos conflitos religiosos em tal categoria, representa um esforço da

área em abraçar a temática e rejeitar a suposta secularização das relações internacionais. Foi através da

busca de soluções para os conflitos religiosos, mesmo os mais enraizados e prolongados, que os Estudos

para a Paz se inseriram no que Petito e Hatzopoulos chamaram de retorno do exílio3 para a religião,

estimulando uma série de pesquisas e atividades práticas locais de transformação de tais conflitos.

Contudo, a discussão de conflitos intratáveis e suas causas e desdobramentos religiosos, em

larga medida, se desenvolveram apenas em paralelo aos debates da tipificação e multifacetação da

violência, como consagrado por Johan Galtung (1969; 1990). Dessa forma, uma importante ferramenta

analítica do campo deixou de ser utilizado para debruçar-se sobre a violência nesse tipo de conflito.

O presente artigo se dedica a traçar considerações preliminares sobre as relações entre a

violência e a religião. Para tanto, o texto está alicerçado na literatura crítica dos Estudos para a Paz, em

especial o debate sobre conflitos intratáveis, e se propõe a utilizar o caso birmanês como pano de fundo

empírico para as observações. Objetiva-se questionar se é possível identificar padrões nos tipos de

violência e traçar estratégias para a transformação de conflitos religiosos prolongados, tendo como case

a atuação do 969.

O artigo está estruturado da seguinte maneira: inicialmente, são expostas nossas reflexões

iniciais sobre a paz e a violência, apresentando o ferramental utilizado para se pensar violência e analisar

2 Entende-se, aqui, que os Estudos para a Paz (EPP) constituem um campo de estudos definido. Embora este

pressuposto pareça tautológico, é importante destacar este aspecto, uma vez que frequentemente esta área é

classificada como um subcampo das Relações Internacionais. Não cabe aqui entrar na complexa discussão sobre

a subjetividade e os parâmetros envolvidos na definição de campos disciplinares. No entanto, vale destacar aqui o

próprio desenvolvimento institucional da disciplina desde o surgimento das primeiras publicações especializadas

no final da década de 1950. Não apenas existem hoje inúmeros cursos de graduação e pós-graduação em Estudos

para a Paz (especialmente no hemisfério norte), como existem inúmeros periódicos especializados e livros

dedicados ao campo (ver, por exemplo, discussão em ALGER, 2014). 3 Ver o livro e seu título: “Religião e Relações Internacionais: o Retorno do Exílio (Petito & Hatzopoulos 2003)

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o caso proposto a partir da perspectiva dos EPP. Em seguida, apresentamos uma análise sobre as diversas

faces da violência religiosa, vinculando o campo da religião com o aparato teórico apresentado. Um

breve histórico da radicalização do budismo em Mianmar e região antecipam uma análise do grupo 969

e sua atuação. A apresentação do modelo de ciclo completo da violência conclui o texto, seguido apenas

por nossas conclusões e recomendações para pesquisas futuras.

Reflexões sobre a paz e a violência

Quando se fala de conflitos, seja ele a nível pessoal, entre grupos internos ou entre Estados, traz-

se uma conotação ruim, sempre associada ao sofrimento e à violência. Entretanto, conflito e violência

podem ser vistos de forma dissociada, deixando claro que “o conflito é normal nos relacionamentos

humanos e ele é o motor de mudanças” (LEDERACH, 2012, p. 16). Sendo assim, o que se pode

entender, na verdade, é que a violência pode ser um instrumento ou ferramenta utilizada durante um

conflito que se acentuou de forma não construtiva. A violência é um “comportamento de alguém incapaz

de imaginar outras soluções para o problema em pauta”. (FISAS, 2008, p.58). A partir disso, o que se

pode trabalhar não é a prevenção ou resolução de conflitos e sim, a prevenção ou transformação da

violência (GALTUNG, 2006, p. 10).

Entretanto, torna-se necessário captar os diferentes tipos de violência existentes. Seguindo

aquilo que foi definido por Johan Galtung (1969, p.169-172) como dimensões da violência, e

posteriormente, presente no triângulo das violências – vide imagem 1 –, é possível compreender a

existência de três vértices que se traduzem em três expressões distintas do fenômeno da violência – cada

uma “como categorias abrangentes ou ‘super-tipos’” (GALTUNG, 1990, p. 254). Segundo o autor,

A violência direta é um fato; a violência estrutural é um processo com altos e baixos; a violência

cultural é uma invariância, uma permanência. […] As três formas de violência incluem o tempo

de modo diferenciado, assemelhando-se, na teoria sísmica, à distinção entre um abalo sísmico

como um fato, o movimento das placas tectônicas como um processo e a falha como uma

condição mais permanente (GALTUNG, 1990, p. 294).

Figura 1 – Triângulo da Violência

Adaptado pelo autor a partir de Ramsbotham, Miall, Woodhouse, 2011, p.10

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Sendo assim, violência direta pode ser entendida como ato intencional proveniente de um

comportamento agressivo, isto é, se caracteriza por ser visível e de imediato impacto. A violência

estrutural ocorre, na verdade de forma indireta e invisível se olhada rapidamente, portanto, esse tipo

advém da própria estrutura social, isto é, surge a partir de contradições entre seres humanos e os grupos

aos quais pertencem. Assim, temos “a repressão, na sua forma política, ou a exploração, na sua forma

econômica” (PUREZA, CRAVO, 2005, p.9). Por fim, a terceira tipologia, que serve de sustentação às

demais: a violência cultural. Ela sustenta e constrói o sistema de normas e comportamentos que legitima

socialmente as duas violências anteriores, portanto é conectada a atitude, já que é a mais difícil de ser

modificada e mais arraigada às sociedades.

Partindo disso, portanto, percebe-se que a definição de paz não pode ser entendida como

ausência de conflitos. Por outro lado, pensar na paz como ausência total da violência, pode ser

potencialmente utópico – não só a ausência, como também a guerra de todos contra todos, a partir da

visão hobbesiana, seriam os extremos utópicos (GALTUNG, 1964, p.1-2). Desse modo, a partir das

definições desenvolvidas por Johan Galtung, a paz pode ser definida em duas vertentes: paz negativa e

paz positiva. A paz negativa, podendo ser definida como a ausência da violência e da guerra – isto é,

está restrita às agressões físicas já cometidas, seja em relação a indivíduos, grupos ou no nível macro,

entre nações –, o que não elimina a predisposição para ela. Em contraposição, a ideia da paz positiva

pode ser definida como a integração da sociedade humana, o que implica em ajuda mútua, educação e

interdependência dos povos – portanto, essa paz pressupõe interação entre grupos, construção do tecido

social com base na justiça e capacitação para realizar ações desejadas (IBIDEM, 1964, p.2-3;

LEDERACH, 2012, p. 16).

A partir de tais definições, é possível perceber que ainda que não seja possível considerar todos

os conflitos da mesma forma, algo sempre se coloca como ponto em comum, isto é, o uso ou não da

violência e a sua intensidade é capaz de definir a profundidade do conflito e destruição ou não do tecido

social. Conflitos que consigam se encontrar apenas em estado latente, se administrados de forma

positiva, podem trazer ganhos às partes, ao gerar diálogo dentro das próprias sociedades. Entretanto,

aumentando os níveis de violência, aumenta-se também o ódio e a dificuldade para construção de uma

paz durável.

A violência religiosa

Existe uma asserção que beira o senso comum, quando se trata da relação entre violência e

religião: a religião causou mais conflitos e fomentou mais violência do que qualquer outro fenômeno,

movimento ou ideologia, na história. Essa afirmação é uma falácia. Sua conclusão, mesmo numérica,

pode estar correta, mas se baseia em uma premissa errada, a de que apenas a religião estimulou tais

disputas violentas.

Como será apontado adiante, a religião está presente na maior parte das contendas humanas da

história, permeando todas as suas dimensões, entretanto, apontar que o fenômeno é venenosamente

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responsável por tais explosões de violência é ingênuo e potencialmente perverso, em especial na própria

perspectiva institucional que costuma fazer tal apontamento.

A própria divisão de ideologias e instituições nas categorias "religiosa" e "secular" é uma divisão

arbitrária e incoerente. Quando examinamos argumentos acadêmicos de que a religião causa violência,

descobrimos que o que conta ou não como religião baseia-se em suposições subjetivas e indefensáveis.

Como resultado, certos tipos de violência são condenados e outros são ignorados. (CAVANAUGH,

2017).

O mito da violência religiosa ajuda a criar um ponto cego sobre a violência do Estado-nação

putativamente laico. Nós gostamos de acreditar que o estado liberal surgiu para fazer a paz entre facções

religiosas em guerra. Hoje, o Estado liberal ocidental é encarregado do ônus de criar a paz diante do

cruel fanatismo religioso do mundo muçulmano. O mito da violência religiosa promove uma dicotomia

entre o nós no Ocidente secular, que somos racionais e pacificadores, e o eles, as hordas de violentos

fanáticos religiosos no mundo muçulmano. Sua violência é religiosa e, portanto, irracional e divisiva.

Nossa violência, por outro lado, é racional, pacificadora e necessária. Lamentavelmente, nos

encontramos forçados a bombardeá-los na racionalidade superior. (CAVANAUGH, 2017. HALL,

2001).

Nos basta raciocinar sobre a existência do próprio Estado, seu sistema de instituições e

funcionamento. Nos basta remeter a qualquer dos contratualistas ou filósofo político clássico, para

entender que, com uma mera troca de palavras, temos a visão enturvecida e deixamos de perceber que

o Estado é, em sua essência um sistema de crença. Ele existe, pois nele acreditamos. Em tempo, como

se poderia, por exemplo, separar a religião da política no Islã, quando os próprios muçulmanos não

fazem essa separação? Em segundo lugar, pode ser o caso que o Cruzado se apropriou indevidamente

da verdadeira mensagem de Cristo, mas não se pode desculpar o cristianismo de toda responsabilidade.

O cristianismo não é principalmente um conjunto de doutrinas, mas uma experiência histórica vivida

incorporada e moldada pelas ações empiricamente observáveis dos cristãos, o que também fez e faz

parte das instituições governamentais que o acompanham pela história. Em suma, a religião faz parte

dos sistemas violentos que incitam conflitos, não podendo ser responsabilizada pela totalidade de sua

ocorrência. Seguramente, a religião e a violência dificilmente são estranhas. No entanto, raros são os

episódios em que eles se conectam em totalidade.

Claro, não podemos eximir o fenômeno de sua parcela na existência de eventos violentos e

conflitos. Na medida em que os “ativistas religiosos” se apropriam dos instrumentos modernos do poder

político, incluindo as redes globais, a tecnologia e o próprio Estado há uma demanda inevitável para que

o fenômeno seja compreendido e seus impactos globais mensurados.

É seguro afirmar que existem, pelo menos, um elemento intrínseco e basicamente exclusivo da

religião, que a torna sempre a variável mais evidente a ser apontada como fonte das fagulhas finais que

acendem um conflito.

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A religião baseia-se no absoluto e no incondicional, e, como resultado, pode assumir

características totalitárias [...] Quando afirma validade absoluta e exclusiva, a

convicção religiosa pode levar à intolerância, ao proselitismo sobrezeloso e à

fragmentação religiosa [...] A religião pode aumentar a agressividade e a vontade para

utilizar a violência [...] (HAYNES 2007, p. 79).

Como aponta Haynes, o universalismo – elemento intrínseco, mas não obrigatório de todas as

religiões – por sua vez, pode sim figurar como fagulha suficiente para a eclosão de conflitos violentos.

De forma que a religião tem potencial suficiente para ser combustível desse tipo de dinâmica, em

circunstâncias específicas.

Conflitos intratáveis – Um modelo de sistema complexo

Abordar a incidência e influência do fenômeno religioso em conflitos, exige uma perspectiva

muito mais ampla do que os estudos tradicionais de segurança estão habituados. Profundamente

influenciados pelo pensamento realista, esses estudos, normalmente apresentados como Estudos

Estratégicos, carecem de uma abrangência ontológica que os permita identificar nuances da dinâmica

social que estejam além de uma disputa de poder simplista.

A própria definição de segurança, por muito tempo foi tomada como implícita, desse modo,

pouca discussão meta-teórica foi desenvolvida (BUZAN, HANSEN, 2012, p.46). Tal lacuna em sua

definição acabou, por muitos anos, sendo preenchida pela ideia de Segurança Nacional, tomada como

representação política clara da aplicação dos estudos da área. Por esse motivo, a origem dos Estudos de

Segurança Internacional contemporâneos costuma ser associada à escola dos Estudos Estratégicos.

Tal linha de pensamento acabou sendo tomada como o alicerce e a corrente tradicional da

conceituação de segurança sendo a mais aceita nos estudos que sucederiam. Houve, desta forma, certo

vácuo conceitual no que diz respeito à segurança, sendo encarada apenas como fim, se apresentava como

uma situação ótima, derivada unicamente de determinadas estratégias durante o inevitável conflito. Com

o objetivo de sanar este vazio, uma relativamente curta discussão metateórica foi levantada. Foi a partir,

principalmente, do pensamento de Wolfers (1952) e Baldwin (1997, p.12), que se inferiu a ideia de que

o conceito de Segurança era particularmente ambíguo. Sendo vazia ou insuficiente, “a segurança é mais

apropriadamente descrita como um conceito confuso ou inadequadamente explicado [...]” (BALDWIN,

1997, p.12).

Notada a insuficiência analítica dos estudos tradicionais de segurança para analisar um caso de

entrelaçamento complexo com o fenômeno religioso, como dado a priori imensurável, lançamos sobre

a presente análise a luz de um conceito mais próximo ao campo dos Estudos para a Paz, a noção de

conflitos intratáveis. Apesar de certo debate sobre a definição de conflitos desse tipo, eles se

caracterizam exponencialmente por sua natureza prolongada, enraizada e profundamente destrutiva, se

refletindo não apenas na dimensão física, mas em consequentes traumas no tecido social que são

potencialmente irreversíveis. São lutas pessoais, grupais e internacionais que parecem ser inerentemente

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irreconciliáveis e potencialmente catastróficas. A intransigência, a complexidade e o trauma associados

a esses fenômenos apresentam desafios substanciais aos modelos e abordagens utilizados pelos

estudiosos e praticantes da resolução conflitos contemporâneos. (COLEMAN, 2003).

Esse debate tem combinado os elementos cada vez mais comuns do terrorismo, aspectos

religiosos, movimentos de independência local e ameaça nuclear, como tópicos de impossível ou

improvável mensuração, assim como a variabilidade da percepção que está envolvida. Uma vez que é

impossível medir e, em muitas vezes, mesmo identificar o papel e o peso dos elementos – no caso ora

abordado, elementos religiosos, por exemplo – torna-se também pouco provável a elaboração de

estratégias de transformação do conflito e construção da paz.

Entender o conflito birmanês, por exemplo, como um conflito intratável, não significa abdicar

de buscar pela sua resolução. Pelo contrário, significa a compreensão de que estamos lidando com uma

dinâmica complexa que envolve valores, por vezes, mais valiosos do que a vida, para alguns dos atores

envolvidos no conflito. Esta noção, desafia a suposta racionalidade do pensamento tradicional para a

segurança e paz. O pensamento padrão pensa o conflito em termos lineares de escalada, ou seja, o

conflito nasce, a violência explode, escala, desescala, e caminha para o fim do conflito.

Simultaneamente, os elementos que geraram a disputa inicial que motivou o conflito são atendidos por

um dos lados, e/ou perdidos pelo outro. O fenômeno do conflito intratável é melhor caracterizado como

um sistema complexo, dinâmico e não linear com um conjunto central de variáveis inter-relacionadas e

mutuamente influentes. A natureza desses sistemas exige e desafia uma análise sistemática e concreta

de suas variáveis. Isso porque, por um lado, é necessário especificar claramente as variáveis centrais do

sistema para definir os limites do domínio do conflito intratável que o diferenciam dos sistemas de

conflito comuns. É crítico, ao descrever tais sistemas dinâmicos, evitar variáveis simplificadoras ou que

muitas vezes são dicotômicas.

Baseado vagamente num modelo anteriormente apresentado por Coleman (2003), organizei as

características distintivas nas seguintes categorias altamente interativas: aspectos do contexto, questões,

relacionamentos, processos e resultados do conflito. Essas cinco categorias representam os elementos

de um sistema de conflito prolongado e intratável em um alto nível de abstração. Estes elementos

interagem de acordo com um princípio de causalidade circular, onde cada um influencia e, por sua vez,

é influenciada pelos outros.

Figura 1. Sistema complexo de conflitos intratáveis

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Fonte: Elaboração própria, com base em Coleman, 2003.

Um conjunto adicional de desafios inerentes à apresentação de uma visão geral das

características dos conflitos intratáveis diz respeito à natureza idiossincrática desses conflitos e à

dificuldade de generalizar o conhecimento em todos os níveis de análise. Conflitos podem ser ou podem

tornar-se prolongados e intratáveis por uma variedade de razões. Portanto, nem sempre pode ser útil

comparar, digamos, conflitos morais com conflitos intratáveis em relação ao território ou aos direitos

de água, ou conflitos entre marido e mulher nos Estados Unidos, com um conflito entre um poderoso

grupo majoritário e membros de um grupo de baixo poder no Leste Asiático.

- A violência religiosa nesse sistema complexo

Enquanto determinadas questões tradicionalmente utilizadas para o estudo de conflitos podem

ser identificadas em algum, ou mesmo mais de um dos espectros desse sistema, quero reforçar que a

religião se apresenta igualmente compreendida em todos os espectros. A religião está envolvida,

normalmente, em todos os momentos do conflito, e em todos os seus níveis. Ela pode desempenhar

papéis muito diferentes, mesmo inconsistentes, em conflitos. Por um lado, a religião proporciona

restrições a ações de natureza autônoma ou hedonista, ao mesmo tempo que promove ações que refletem

valores morais conducentes a relações pacíficas e cooperativas com outras pessoas. A maioria das

religiões enfatiza o controle de impulsos, a tolerância e a preocupação com o bem-estar dos outros. Essas

características da religiosidade possuem potencial para a prevenção e resolução pacífica de conflitos.

(VALLACHER et al., 2010, p.272)

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Por outro lado, a maioria das religiões divide a humanidade no bem contra o mal, os santos

contra os pecadores. A distinção entre bem e maldade é muitas vezes manifesta como a distinção entre

aqueles que compartilham suas crenças religiosas e aqueles que não. Assim, mesmo que alguém de uma

fé diferente se comporte de maneira moralmente louvável, ele ou ela pode ser julgado de forma negativa

(por exemplo, como infiel) em virtude de adorar um deus diferente ou abraçar um mito de criação

diferente. (Id. 2010)

É preciso evitar, no entanto, uma leitura simplista e simplória da religião como apenas um

elemento instrumentalizado e potencialmente alienador, que apenas serve para mover os atores néscios

como peças de um tabuleiro a seu bel prazer. Em diversas circunstâncias conflituosas, aliás, a religião

funcionou como combustível para a revolução, sendo uma fonte de resistência dos povos contra os

desmandos de poderes escusos.

(...) a Revolução Sandinista em particular, no contexto geral do cristianismo da

libertação, provocou mesmo uma ruptura, uma quebra, mas não se trata da quebra de

um paradigma, e sim da quebra dessa hermenêutica equivocada da religião ópio,

erroneamente considerada marxista, e que se tornou célebre. (BENTO, 2016, p.26)

Apenas fica mais visível o aspecto poroso da religião, ao ser atravessada – enquanto atravessa

– todos os possíveis níveis do sistema complexo que torna um conflito intratável. Vejamos cada nível

da figura 1. Os conflitos intratáveis emergem de um contexto com uma história de dominação e injustiça

percebida, sendo que tal percepção está profundamente influenciada pelas diferentes perspectivas

religiosas. As disputas são geradas por polaridades humanas e sociais básicas de natureza paradoxal. Os

conflitos intratáveis envolvem questões profundamente simbólicas, ideologias e processos de construção

de significado. Estão incorporados em relacionamentos inescapáveis e destrutivos com uma complexa

constelação de questões e uma estrutura social exclusiva. Quanto aos processos, os conflitos intratáveis

são alimentados por emoção intensa. Os outcomes, por sua vez, são encarados como positivos ou

negativos também a partir de uma leitura influenciada por fatores exógenos. Por vezes, esses conflitos

resultam em um prolongado estado de trauma para indivíduos e comunidades.

Um breve histórico do problema mianmarense (birmanês)

Como apontado acima, é preciso desassociar a problemática birmanesa dos elementos

religiosos por apenas alguns segundos, para entendê-lo numa perspectiva maior. Desde 1962, o país

passou a ser controlado por uma junta militar que aplicou um golpe de estado com o objetivo de chegar

ao poder. Após o que foram quase cinco décadas de isolamento da comunidade internacional, o governo

militar começou uma transição “lenta e gradual” para a democracia.

Em 2011, o poder foi entregue a um governo quase civil, representado pelo presidente

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Thein Sein. Quase, pois Sein era um antigo general eleito por um parlamento ainda dominado por

militares. Não obstante, esse governo deu início a uma série de reformas que abriram espaço para a

participação política e o desenvolvimento econômico. Entre algumas das medidas tomadas, estavam a

libertação de centenas de prisioneiros políticos, a flexibilização das restrições à imprensa, a permissão

de manifestações pacíficas, a formação de sindicatos e participação de partidos de oposição em eleições

(incluindo a Liga Nacional pela Democracia, liderada por Aung San Suu Kyi, que teve uma grande

vitória nas eleições de 2012), além da realização de acordos de cessar-fogo com vários grupos armados

de minorias étnicas que combatiam as forças do governo.

Um dos grandes problemas do país é a relação entre o governo e as minorias étnicas. O governo

de Mianmar reconhece oficialmente a existência de 135 etnias no país, sendo que dos 51,4 milhões de

habitantes, 68% são formados por birmaneses (ou bamar); 9% são shan; 7%, kayin (ou karen); 4%,

rakhine (ou arakan); 2%, mon; 1,5%, kachin, entre outros, segundo censo de 2014.4 Muitos desses

grupos não-birmaneses vivem em áreas que fazem fronteira com Bangladesh, Índia, China e Tailândia,

possuindo língua e práticas culturais próprias. O budismo theravada é seguido por 89% das pessoas,

principalmente a maioria birmanesa; o cristianismo (batista, principalmente) é a fé de muitos que

compõem as etnias karen, kachin e chin; o islã é a religião de 4% da população, e os demais 3% são

devotos dos nats (espíritos) ou de outras religiões como hinduísmo e bahá’i. (WALTON, HAYWARD.

2014, p.3)

Durante o período do regime militar, a liberdade religiosa era bastante restrita para outras

crenças não budistas. O governo militar via qualquer manifestação de diferença étnica ou religiosa como

algo que ameaçava a integridade do país. Com isso, o nacionalismo birmanês passou a se identificar

com a identidade religiosa budista, passando a ideia de que para ser um autêntico cidadão de Mianmar

era preciso ser budista – e etnicamente birmanês. Os indianos tornaram-se alvo do crescente movimento

nacionalista de birmanês. Uma música popular da década de 1930 tinha letras dizendo que os indianos

estavam “explorando nossos recursos econômicos e se aproveitando de nossas mulheres, corremos o

perigo de extinção racial” - surpreendentemente semelhante aos termos em que a agenda nacionalista

atual está emoldurada.

Nesse período, o Dobama Asiayone emergiu como a principal organização política de pro-

dependência, com o princípio de “Birmânia para os Birmaneses” e o slogan “que aquele que deseja a

paz prepare-se para a guerra”. (YI, 1988, p.96) Um dos jovens líderes do movimento foi Aung San. Ele

e outros proeminentes líderes do Dobama, conhecidos como os “Trinta Camaradas”, passaram a compor

o Exército de Independência da Birmânia com apoio e treinamento do Japão Imperial, o que formou a

espinha dorsal das forças armadas pós-independência. Os surtos ocasionais de violência anti-indiana e

4 A etnia rohingya, que segue a religião islâmica, não é reconhecida oficialmente pelo governo. Eles serão

abordados mais adiante, neste texto.

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anti-muçulmana continuaram após a independência. (WALTON, HAYWARD. 2014. SHARMA,

ARORA, 2014).

A radicalização do budismo

O termo que vem sendo utilizado com frequência para descrever uma série de ataques violentos

contra minorias religiosas em países asiáticos onde a fé predominante é o budismo é “fundamentalismo

budista”. O termo "fundamentalismo" é derivado do cristianismo. Lá, possui basicamente o mesmo

significado do termo mais moderno inerrantismo: é uma afirmação de que a Bíblia, o fundamento da

religião cristã, é um guia suficiente para todos os aspectos da vida religiosa de um cristão e deve ser

entendido como literalmente verdadeiro. Mesmo que alguém dê ao "fundamentalismo" um sentido um

pouco mais fraco, o termo não se refere apenas a uma reivindicação de retornar aos fundamentos de uma

religião, tal como consagrada nos seus primeiros textos sagrados - pois, provavelmente, todos os

movimentos de reforma religiosa afirmam fazer isso – mas, ao mesmo tempo, uma rejeição da tradição.

O fundamentalismo também não é uma mera idealização do passado, que novamente é extremamente

comum, e provavelmente parte integrante de todo movimento nacionalista.

Fundamentalistas parece ser exatamente o que a maioria dos budistas em questão não são. Na

medida em que usam qualquer texto ou carta, é uma crônica local que todos reconhecem ter sido

composta um milênio após o tempo do Buda e o fundamento do budismo. Na medida em que são

agressivos, podemos descrevê-los como "militantes" ou até "chauvinistas". Mas chamá-los de

"fundamentalistas" quando são exatamente o contrário, não só priva o termo de todo valor heurístico,

mas, na minha opinião, oferece uma imagem completamente enganosa da situação. (GOMBRICH. 2006,

p.35)

Tratamos, doravante, de um fenômenos ao qual nos referiremos como radicalização do budismo

na região. Este artigo tem como objeto de estudo o caso de Mianmar, onde, desde 2012, a minoria

muçulmana tem sido alvo de ataques violentos, incentivados por um sentimento anti-islâmico que tem

no grupo 969, formado por monges budistas, um de seus principais divulgadores. Mas antes de entrar

diretamente no tema é pertinente fazer uma breve síntese desse fenômeno no Sri Lanka e na Tailândia

que, como Mianmar, são países onde parece emergir uma forma de nacionalismo budista

simultaneamente ao aumento de embates violentos devido a diferenças religiosas.

No Sri Lanka, onde cerca de 70 por cento da população é budista Theravada5, um grupo de

monges formou o Bodu Bala Sena ou a Força de Poder Budista em 2012 para "proteger" a cultura budista

5 O budismo não é uma religião homogênea e tem dois ou três ramos principais, dependendo da classificação:

theravada (seguido no Sri Lanka e Sudeste Asiático), mahayana (concentrado no Extremo Oriente) e vajrayana (o

tibetano). O theravada é a corrente mais antiga do budismo atual, remontando a uma época anterior ao século I

a.C., e tem sua ênfase no “conjunto de instruções práticas em prol da superação imediata das condições do samsara

[ciclo de reencarnações] e da libertação do sofrimento”. Para alcançar o nirvana, é preciso se voltar para a vida

monástica, pois as atividades mundanas dificultariam a rotina de disciplina espiritual exigida para se chegar a esse

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do país. A força, apelidada de BBS, realizou pelo menos 241 ataques contra muçulmanos e 61 ataques

contra cristãos em 2013, de acordo com o Congresso muçulmano do Sri Lanka. Na Tailândia de maioria

budista, pelo menos 5.000 pessoas morreram da violência muçulmana-budista no sul do país. A Knowing

Buddha Foundation (Fundação do Saber do Buda, em tradução livre) do país, não é um grupo violento,

mas defende uma lei de blasfêmia para punir qualquer pessoa que ofenda a fé6. Quer que o budismo seja

declarado religião do estado e retrata a cultura popular como uma ameaça para os crentes. (SHARMA,

ARORA, 2014).

Em Myanmar, pelo menos 300 muçulmanos Rohingya, cujos antepassados eram migrantes de

Bangladesh, foram mortos e até 300 mil deslocados, de acordo com o Genocide Watch. Ashin Wirathu,

um monge que se descreve como o "Bin Laden birmanês ", está encorajando a violência ao ver a

presença Rohingya como uma invasão muçulmana.

969 - O budismo violento em Mianmar

A situação dessa população muçulmana em particular, os Rohingya no Estado de Rakhine, tem

sido especialmente séria, prolongada e intratável. Como observou o estudioso de Myanmar, Martin

Smith, quase duas décadas atrás: “enquanto a Birmânia tem muitos problemas étnicos complexos, a

situação dos muçulmanos de Arakan [Rakhine] é, de longe, o mais tenso e difícil de todos os problemas

étnicos que encontrei". (2005, s/p)

O crescimento numérico e de visibilidade do movimento 969 acontece em convergência com o

aumento da visibilidade de seu membro mais famoso, o supracitado monge U Wirathu (“U” é um termo

honorífico birmanês). Wirathu acabou se tornando a face da mobilização monástica contra a comunidade

muçulmana, sendo descrito pela revista Time em 2013, como “a face do terror budista”. O monge seria,

de fato, uma

(...) “figura complexa”, que espelha as ações de monges nacionalistas budistas do

início do século XX, quando realizavam discursos inflamados contra a colonização

britânica, organizavam grupos políticos monásticos e até conduziam treinamento

político em áreas rurais. (WALTON. 2005, s/p)

Preso em 2003 – pela incitação de tumultos anti-islâmicos em Mandalay – passou nove anos

preso até ser libertado em 2012, após o governo conceder anistia geral. Retornou, logo em seguida, para

as atividades monásticas e a militância política na região. Enquanto a violência contra os muçulmanos

aumentava em Rakhine no ano de 2012, Wirathu, em setembro desse mesmo ano, liderou uma marcha

fim. USARSKI, Frank. O budismo e as outras: encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais.

Aparecida: Editora Ideias & Letras, 2009, p. 36 6 O guia do comportamento do “bom budista”, e como lidar com aqueles que não o são, podem ser conferidos no

site do grupo, em http://www.knowingbuddha.org/. Acesso em 14 de junho de 2017.

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que reuniu milhares de monges em Mandalay, pedindo aos birmaneses que apoiassem a proposta do

presidente birmanês, feita à ONU, de enviar os 800 mil rohingya de Rakhine para um outro país, uma

vez que representariam uma “ameaça” à nação birmanesa. (WALTON. 2005, s/p. WALTON,

HAYWARD. 2014. ASIA REPORT. 2013, p.17)

As origens do movimento contemporâneo 969 não são inteiramente claras, mas Wirathu surgiu

como um dos seus defensores mais fortes. O movimento enxerga a numeração 969 como um antagônico

simbólico do número 786, uma taquigrafia numerológica para o Islã, usada entre alguns muçulmanos

nos países asiáticos. 786 tem uma finalidade prática, uma vez que as empresas muçulmanas

(especialmente os restaurantes) exibem um adesivo 786 para indicar aos clientes que servem comida

halal, embora também funcione como uma notificação mais geral de que o negócio é de propriedade

muçulmana. O movimento 969 procurou instituir uma prática de autoidentificação semelhante por

empresas de propriedade budista através da distribuição de adesivos 969 e do encorajamento de budistas

a apenas patrocinar estabelecimentos de propriedade budista. (WALTON. 2005, s/p. WALTON,

HAYWARD. 2014)

Desta forma, 969 funcionou como uma espécie de campanha de "compra budista" e seus

apoiantes afirmam que estão apenas respondendo a práticas de compra similarmente insulares nas

comunidades islâmicas. Mas muito da literatura e sermões monásticos do grupo também criticaram

diretamente o Islã e espalharam rumores infundados sobre práticas islâmicas em Mianmar. Um dos mais

persistentes é que os homens muçulmanos são pagos para se casar com mulheres budistas e convertê-

las, tornando sua prole muçulmana também. O 969 tem sido particularmente vocal em sua retórica

extremista, incluindo reivindicações selvagens de uma trama muçulmana para conquistar o país e

infiltrados jihadistas. Também encoraja os budistas a boicotar os negócios muçulmanos e tem sido uma

voz de liderança para a adoção de uma lei para restringir o casamento inter-fés.

A violência adentra o movimento desde sua incitação, uma de suas canções é intitulada Song to

Whip Up Religious Blood e contém as letras "Os budistas não devem mais ficar calmos". Um slogan

encontrado nos panfletos de uma rede do 969 declara: “Se necessário, construiremos uma cerca com os

nossos ossos”. (MARSHALL, 2012). Entretanto, os monges e leigos envolvidos com o movimento 969

negam consistentemente qualquer responsabilidade pela violência que tem sido realizada em seu nome

ou em conexão com sua propaganda antimuçulmana. Eles insistem que o propósito do movimento é

simplesmente defender o budismo e atribuem qualquer evidência relacionada (como o fato de que "969"

foi encontrado pintado por spray nas paredes de edifícios destruídos na cidade de Meikhtila) ao fato de

que "outros" fora do seu controle estão difamando um símbolo de outra forma sagrado. Na verdade, os

monges culparam os muçulmanos, alegando que eles eram os instigadores dos piores incidentes.

Wirathu afirmou ter ido para a área afetada para expor a culpa descarada das populações muçulmanas

locais pelos tumultos, apesar de evidências amplas em contrário. (WALTON, HAYWARD. 2014)

A religião e o ciclo completo da violência

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A violência tem várias faces. Frequentemente, quando nos referimos à conflitos violentos,

estamos presos na cilada da violência física e direta, ignorando as outras dimensões desse fenômeno.

Abordar a incidência do fenômeno religioso num conflito violento como o birmanês, caracterizado, em

especial, pelo suposto nacionalismo radical budista, nos abre os olhos para duas colocações importantes,

a priori.

A primeira delas, dissecada em tópico anterior, ressalta a proeminência da religião em todos os

níveis e períodos de um conflito intratável, como ficou claro no esquema apresentado na Figura 1. A

segunda, por sua vez, nos remete diretamente ao triângulo de Galtung, e nos faz compreender que a

religião pode ser instrumentalizada e influenciada -0 enquanto obviamente influencia – a violência em

todas as suas manifestações. Física ou direta, cultural e estrutural.

Percebamos que, além dos tumultos violentos, destruição de comércios, prédios e agressão

velada, a ação antimuçulmana instigada pelo grupo 969 limita a ação num plano além do físico. Em

parte, isso reflete a realidade perturbadora do forte sentimento antimuçulmano em muitos lugares, mas

também é devido ao fato de que 969 é vendido frequentemente como um movimento de "solidariedade

budista" destinado a fortalecer a religião. Muitos seguidores dizem que estão apoiando o budismo, não

atacando o Islã. Mesmo os birmanes que não seguem 969 são muito relutantes em criticá-lo por medo

de serem vistos como críticos do budismo. Além disso, o movimento gera um profundo sentimento

xenófobo e preconceituoso dirigido a grupos específicos, que passam a ser atingidos por uma profunda

violência cultural.

Por fim, mas absolutamente não menos importante, os grupos veem cerceada a sua liberdade de

culto, por uma pressão violenta que age sobre eles em todos os aspectos possíveis da violência. Tomando

que, por vezes, a religião e sua manifestação pode representar para um indivíduo uma expressão mais

valiosa do que sua própria vida – vista desprovida de sentido sem tal liberdade – essa violência toma

ares de incomum agressividade.

Munido com essa importante constatação, é possível afirmar que a religião é um dos fenômenos

que – presente em todos os níveis do conflito intratável, todos os seus momentos, do surgimento ao pós-

acordo, em todas as formas da violência – representa o que podemos chamar de ciclo completo da

violência.

Figura 2. Ciclo completo da violência religiosa

Picos de Violência

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Elaboração Própria

Tentamos expor como a violência religiosa representa todas as faces do triângulo da violência

galtungiano, representado na figura por um triângulo preenchido. Da mesma forma, o triângulo se repte

ao longo de todo o conflito – que, por sua vez, não é linear – e mesmo antes do início do conflito violento.

Isso significa que as perseguições, agressões e exclusões religiosas começam a acontecer antes mesmo

da eclosão da violência direta identificada.

Assim, a religião é um fenômeno que pode representar a ferramenta mais valiosa na construção

da paz e eliminação da violência num conflito intratável, sendo a mesma, o único fenômeno presente

em todas as etapas, momentos, níveis e dimensões daquele. Um ciclo completo.

Considerações Finais

A religião percorreu uma longa jornada no campo das Relações Internacionais e, por sua vez,

no que concerne aos estudos de Segurança e Estudos para a Paz. Seu sumiço é reflexo de uma suposta

secularização do campo, teórico e prático, processo que teria sido iniciado após os tratados de

Westphalia, ponto de partida da separação entre a religião e a política internacional.

Entretanto, a relação entre os novos Estados, suas populações, grupos e dinâmicas que se

seguiram nos próximos três séculos, apenas demonstraram que o fenômeno religioso e seus

desdobramentos jamais abandonaram o tecido social das relações internacionais. Isto se comprova numa

rápida observação do elemento religioso nas principais dinâmicas das ri, como a guerra, as migrações,

o terrorismo, ou mesmo elementos dados como técnicos, como acordos de cooperação e tratados. Isso

se não levarmos em consideração a atuação dos Estados ditos religiosos, como o Vaticano, o Irã, ou

mesmo os Estados Unidos da América, no sistema internacional. Dessa forma, como a obra nos ajuda a

compreender a proposta da secularização pós-westphaliana, apenas insurgiu como esforço de

fortalecimento do recém-nascido sistema de Estados, que tentou colocar a religião como irrelevante,

para ampliar o poder relativo das novas unidades políticas.

Para os Estudos para a Paz, em específico, bastante foco foi dado nas dinâmicas institucionais

e, posteriormente, locais que induzem um conflito a tornar-se um intricado de violência e caos social de

difícil resolução. Abordar a religião como fonte da violência sempre foi um processo limitado e

superficial. Propôs-se, nesse texto, indagar qual o papel desempenhado pelo fenômeno religioso durante

o que a literatura se empenha em chamar de conflitos intratáveis – realidades complexas e violentas,

permeadas por relações de ideologias e crenças tais como as religiões.

Evolução do conflito

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Para tanto, observamos o caso da radicalização do budismo em uma região específica da Ásia,

em especial, em Mianmar, um país conturbado por uma série de problemas sociais e políticos de caráter

nacionalista. Observamos como tal circunstância foi propícia para o desenvolvimento da violência em

suas mais diversas faces, caracterizada, principalmente, pelo grupo radical 969.

Além de discutir problemas no termo fundamentalismo budista, essa análise nos permitiu

identificar uma característica peculiar dos conflitos que contam com a violência religiosa em seu

espectro, sob a luz dos Estudos para a Paz: a violência religiosa preenche o que podemos chamar de

ciclo completo da violência, estando presente em todos níveis e períodos do conflito, e caracterizada

pelas três dimensões da violência.

Se esse fenômeno representa um padrão e pode ser enquadrado num possível modelo, deve ser

objeto de pesquisas futuras, que tendem a observar conflitos intratáveis em outras regiões e,

preferencialmente, entre grupos religiosos ainda mais diversos. Dessa forma, podemos enquadrar a

religião como variável de controle. Um estudo dessa natureza, pode representar uma ferramenta preciosa

para a construção da paz em regiões abarrotadas pela violência religiosa por anos.

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