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Religião e ciênciaAlvin Plantinga
Tradução de Desidério MurchoArtigo originalmente publicado em The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/sum2010/entries/religion-science/.
A ciência empírica ocidental moderna tem certamente sido o
desenvolvimento intelectual mais impressionante desde o séc. XVI. A
religião tem marcado presença desde há bastante mais tempo, é
claro, e está hoje em crescimento, talvez como nunca o esteve antes.
(É verdade que há a tese do secularismo, segundo a qual a ciência e
a tecnologia, por um lado, e a religião, por outro, estão inversamente
relacionadas: à medida que a primeira cresce, a segunda diminui.
Contudo, o ressurgimento da religião e da crença religiosa em muitas
partes do mundo levantam dúvidas consideráveis a esta tese.) A
relação entre estas duas grandes forças culturais tem sido tumultuosa,
multifacetada e confusa. Este artigo concentrar-se-á na relação entre
ciência e as religiões teístas: cristianismo, judaísmo, islamismo, sendo
o teísmo a crença de que há uma pessoa imaterial todo-poderosa,
omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo, criou os seres
humanos “à sua imagem,” e a quem devemos reverência, obediência
e fidelidade. A maior parte deste artigo aplicar-se-á também às
variedades monoteístas e henoteístas de budismo e hinduísmo.
Há muitos problemas e questões importantes nesta área; este
artigo concentrar-se-á apenas em alguns deles. A questão que talvez
mais salte à vista é se a relação entre religião e ciência se caracteriza
pelo conflito ou pela concórdia. (Claro que é possível que exista
simultaneamente conflito e concórdia: conflito no que respeita a certos
aspectos, e concórdia noutros.) Esta questão será o ponto central do
artigo. Outras questões importantes a considerar serão a natureza da
religião, a natureza da ciência, as epistemologias da ciência e, em
particular, da crença religiosa, e a questão de como a última figura no
conflito ou concórdia (alegado ou efectivo) entre a religião e a ciência.
1. A natureza da ciência e a natureza da religião
1. 1. Ciência
A primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil
caracterizar estes fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que
é exactamente a ciência? Como podemos caracterizá-la? Quais são
as condições necessárias e suficientes para que uma dada
investigação ou teoria ou tese seja científica, faça parte da ciência?
Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se várias condições essenciais
da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do método científico é
o postulado de que a natureza é objectiva [...] Por outras palavras, a
negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser
obtido interpretando a natureza em termos de causas finais [...]”
(Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de 1930, o eminente
químico alemão Walter Nernst defendeu que a ciência, por definição,
exige um universo infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não é
ciência (von Weizsäcker 1964, 151). Outra restrição proposta: a
ciência não pode envolver juízos morais, ou juízos de valor mais em
geral.
Há obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência e
o seu objectivo, as condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há quem diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou
não, ao serviço da verdade). Há quem afirme (os realistas) que o
objectivo da ciência é apresentar teorias verdadeiras; outros afirmam
que o objectivo da ciência é fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras ou não (van Fraassen 1980). Há quem
diga que a ciência não pode lidar com o subjectivo, mas apenas como
que é público e partilhável (e, portanto, os relatos sobre a consciência
constituem uma matéria mais adequada de estudo científico do que a
própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode lidar como
que é repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do
“Desígnio Inteligente” (DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse
que as teorias científicas têm de ser falsificáveis, e, dado que a
proposição de que as coisas vivas (os coelhos, por exemplo) foram
concebidas por um ou mais agentes inteligentes não é falsificável, o DI
não é ciência. Há quem faça notar que muitas teses eminentemente
científicas — por exemplo, há electrões — não são falsificáveis
isoladamente: o que é falsificável são teorias completas sobre
electrões. E apesar de a proposição de que as coisas vivas foram concebidas por um ser inteligente não ser falsificável isoladamente, a
proposição de que um ser inteligente concebeu e criou coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland é claramente falsificável (e falsa).
O primeiro grupo pode responder que esta proposição sobre coelhos
de meio quilo é apenas equivalente, na verdade, às suas implicações
empíricas, i.e., à proposição de que há coelhos de meio quilo que
vivem em Cleveland, de modo que o pedaço sobre quem os concebeu
desaparece, na verdade. O segundo grupo pode então retorquir que,
sendo assim, o mesmo tem de se aplicar às teorias sobre electrões;
mas nesse caso as teorias sobre electrões são apenas equivalentes,
na verdade, às suas implicações empíricas, de modo que os electrões
desaparecem.
Há ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo
metodológico” (NM) — a ideia de que nem os dados para uma
investigação científica nem uma teoria científica podem referir-se
apropriadamente a seres sobrenaturais (Deus, anjos, demónios);
assim, não se poderia apropriadamente propor (como parte da
ciência) uma teoria segundo a qual a irrupção recente de
comportamentos estranhos e irracionais em Washington D.C. se deve
ao aumento de comportamentos demoníacos nessa área. Como saber
se o NM é realmente uma limitação essencial da ciência? Há quem
diga que é apenas uma questão de definição; é o caso de Nancey
Murphy: “[...] há o que poderíamos chamar ateísmo metodológico, que
é por definição comum a toda a ciência da natureza” (Murphy 2001,
464). E continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as
explicações científicas procedem em termos de entidades e processos
naturais (e não sobrenaturais).” De modo semelhante, Michael Ruse: “
Os criacionistas crêem que o mundo começou milagrosamente. Mas
os milagres estão fora dos limites da ciência, que por definição lida
apenas com o natural, o repetível, o que é regido por leis” (Ruse 1982,
322). Por definição do quê? Por definição do termo “ciência,”
supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang?
Se afinal for irrepetível, teremos de concluir que não pode ser
estudado cientificamente? E considere-se a tese de que a ciência, por
definição, lida apenas com o que é regido por leis — leis da natureza,
supostamente. Alguns empiristas (em particular, Bas van Fraassen)
defendem que não há leis da natureza (só há regularidades): se
tiverem razão, seguir-se-á que não há coisa alguma para ser estudada
pela ciência? Além disso, apesar de algumas pessoas argumentarem
que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem isso em
causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma
definição?
Apresentar condições necessárias e suficientes plausíveis da
ciência está consequentemente longe de ser trivial; e muitos filósofos
da ciência desistiram do “problema da demarcação,” o problema de
propor tais condições (Laudan 1988). Talvez o melhor que podemos
fazer é apontar para exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos
paradigmáticos de não-ciência. Claro que pode ser um erro supor que
estamos aqui perante uma só actividade, e um só objectivo. As
ciências são muitíssimo variáveis; há o género de actividade que
ocorre em ramos muitíssimo teóricos da física (por exemplo,
investigações sobre o que aconteceu nos primeiros 10-43 segundos, ou
a tentativa de descobrir como sujeitar a teoria das cordas a verificação
empírica). Mas há também o género de projecto exemplificado por
uma tentativa de saber como a população de touconderos respondeu
à devastação da selva amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco
anos. No primeiro tipo de explicação pode fazer sentido pensar que o
que se quer é uma teoria empiricamente adequada, pondo-se pelo
menos temporariamente entre parêntesis a questão da verdade da
teoria. Mas o mesmo não acontece em casos do segundo tipo; aqui,
nada servirá a não ser a verdade sóbria.
O mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns
projectos científicos são claramente limitados pelo NM (veja-se
abaixo); uma condição de adequação teórica, nesses casos, será
certamente que a explicação em causa seja naturalista. Mas é o NM
em si parte da própria natureza da ciência enquanto tal? Segundo
Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o maior cientista de
todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem
intervenção externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava
periodicamente as suas órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de
que já não precisamos, será óbvio que acrescentá-la à explicação de
Newton dos movimentos dos planetas tem como resultado algo que
não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente excessivo.
Talvez devamos ver o conceito de ciência como um daqueles
conceitos aglomerativos para os quais Tomás de Aquino e Ludwig
Wittgenstein chamaram a atenção. Talvez haja várias actividades
bastante diferentes a que damos o nome “ciência;” estas actividades
relacionam-se entre si por semelhança e analogia, mas não há uma
actividade única que seja apenas ciência em si. Há projectos para os
quais o critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há
outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são
empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há
projectos limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa
limitação. Estes projectos ou actividades caem todos sob o significado
do termo “ciência;” mas não há uma actividade única da qual todos
sejam exemplos. (Do mesmo modo, o xadrez, o basquetebol e o
póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do qual todos
sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à
caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a
qualquer actividade que seja 1) uma actividade sistemática e
disciplinada que visa descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um
envolvimento empírico significativo. Isto é, evidentemente, vago (quão
sistemática? Quão disciplinada? Quanto envolvimento empírico?) e
talvez demasiado tolerante. (A astrologia conta como ciência, ainda
que seja má ciência?) Apesar de tudo, temos muitos exemplos
excelentes de ciência, e exemplos excelentes de não-ciência.
1.2. Religião
Se é difícil explicar a natureza da ciência, não é muito mais fácil dizer
o que é exactamente uma religião. Claro que há muitíssimos
exemplos: cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e
muitos outros. Que características são necessárias e suficientes para
que algo seja uma religião? Como distinguimos uma religião de um
modo de vida, como o confucionismo? Não é fácil dizer. Nem todas as
religiões envolvem a crença em algo como o Deus todo-poderoso,
omnisciente e moralmente perfeito das religiões teístas, ou até em
seres sobrenaturais. (Claro que uma maioria substancial das religiões
envolve tais crenças.) Com respeito à nossa investigação, o que é de
especial importância é a noção de uma crença religiosa: como tem de
ser uma crença para ser religiosa?
Uma vez mais, não é fácil dizer. Para citar uma vez mais o furor
quanto ao desígnio inteligente, há quem diga que a proposição de que
há um arquitecto inteligente do mundo vivo é religião, e não ciência.
Mas nem toda a crença que envolva um arquitecto inteligente — na
verdade, nem toda a crença que envolva Deus — é religiosa. Segundo
o livro de Tiago do Novo Testamento, “os demónios crêem [que Deus
existe] e enchem-se de terror”; as crenças dos demónios não são,
presumivelmente, religiosas.2 Uma pessoa poderia propor teorias
sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte
crucial de um sistema metafísico: a crença em tais teorias não tem de
ser religiosa. E que dizer de um sistema de crenças que responde às
mesmas grandes questões humanas a que dão resposta os exemplos
óbvios de religiões? Questões sobre a natureza fundamental do
universo, e do que é sumamente real e básico nele, sobre o lugar dos
seres humanos nesse universo, sobre se há pecado ou algo análogo
e, se há, o que fazer quanto a isso, se temos de tentar melhorar a
condição humana, se os seres humanos sobrevivem às suas mortes e
como deve agir uma pessoa racional. Uma vez mais, não é fácil dizer;
talvez não. A verdade aqui é, talvez, que uma crença não é
religiosa apenas em si. A propriedade de ser religiosa não é intrínseca
da crença; é antes uma propriedade que uma crença adquire quando
funciona de certo modo na vida de uma dada pessoa ou comunidade.
Para ser uma crença religiosa, a crença em questão teria de estar
apropriadamente conectada com atitudes caracteristicamente
religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração,
amor, compromisso, maravilhamento e afins. Considere-se alguém
que crê que a pessoa de Deus existe, certamente, porque a sua
existência ajuda a resolver vários problemas metafísicos (por exemplo,
sobre a natureza da causalidade, a natureza das proposições,
propriedades e conjuntos, e a natureza da função apropriada em
criaturas que não sejam artefactos humanos). Contudo, esta pessoa
não tem qualquer inclinação para venerar ou amar Deus, nenhum
compromisso para tentar levar por diante os projectos de Deus no
nosso mundo; talvez, como os demónios, odeie Deus e faça
intencionalmente tudo o que pode para frustrar os propósitos de Deus
no mundo. Para tal pessoa, a crença de que a pessoa de Deus existe
não tem de ser religiosa. Deste modo, é possível que duas pessoas
partilhem uma dada crença que funciona como religiosa na vida de
apenas uma delas.
Consequentemente, é extremamente difícil apresentar condições
necessárias e suficientes (informativas) tanto da ciência como da
religião. Talvez para os nossos propósitos presentes isso não seja um
problema sério; temos vários excelentes exemplos de cada uma delas,
e talvez isso seja suficiente para a nossa investigação.
2. Epistemologia e ciência e religião
Há muitas questões epistemológicas interessantes quanto à ciência.
Um tópico central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados:
os dados a favor de uma teoria raramente implicam a teoria, caso em
que haverá várias teorias empiricamente equivalentes — teorias com
as mesmas consequências com respeito à experiência. Podem as
teorias empiricamente equivalentes diferir em estatuto ou valor
epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença? Neste caso é
comum apelar para as chamadasvirtudes teóricas, como a
simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução
pessimista,” segundo a qual quase todas as teorias científicas do
passado foram mais tarde rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa
confiança nas teorias científicas actuais? Das convicções científicas
actuais, quantas constituem conhecimento, se é que algumas o são?
E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que a ciência
não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para
lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de
proceder parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as
ciências humanas parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à
boa fundamentação epistémica entre as diferentes ciências, ou talvez
entre as ciências duras e as ciências mais leves? Perguntas deste
género, apesar de serem de grande interesse intrínseco, não são
directamente relevantes para a nossa investigação. O que é mais
importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a
epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas:
memória, percepção, intuição racional (lógica e matemática),
testemunho, talvez a empatia de Reid, indução, etc. O que é
característico da ciência é que estas faculdades são empregues de
um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma
ênfase particular na experiência perceptiva.
Com respeito à crença religiosa, também há várias questões
epistemológicas. Haverá bons argumentos a favor da existência de
Deus? Se não há, é isso importante? É a existência do mal, em todas
as horríveis formas que exibe, indício contra a crença teísta? É algo
que refuta da crença teísta? E quanto à questão do pluralismo: a
religião conhece tantos tipos diferentes — cristianismo, islamismo,
judaísmo, hinduísmo, budismo (com diferentes versões de cada tipo),
mas também vários tipos menos comuns. Segundo Jean Bodin, “cada
uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta
diversidade algo que refuta cada variedade particular de crença
religiosa? Algumas doutrinas religiosas — Trindade, Incarnação,
Expiação — não são fáceis de entender; significa isso que não podem
ser conhecidas ou sequer ser objecto de crença racional? Se a crença
religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é na melhor
das hipóteses seriamente insegura, de modo que é apropriado falar de
um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido mais
aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim,
este artigo incide principalmente em algumas questões que dizem
respeito à epistemologia da crença cristã.
Para os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica
central seja esta: qual é a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto
epistémico positivo da crença religiosa, se é que o tem? É do mesmo
género do que o que tem a crença nos ensinamentos da ciência
actual? São os indícios a favor da crença religiosa, se é que existem,
do mesmo género do que os indícios a favor das crenças científicas?
Ou há uma fonte especial de estatuto epistémico positivo da crença
religiosa? Esta é, na verdade, uma versão contemporânea de uma
questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a
razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos
cogentes (argumentos racionais, argumentos que emanam do que a
razão nos dá) a favor da crença religiosa, e se a existência de
argumentos cogentes é necessária para a aceitação racional da
crença religiosa.
Aqui, há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o
“indiciarismo,” a fonte do estatuto epistémico positivo da crença
religiosa, se é que tem tal estatuto, é apenas a razão — o conjunto
das faculdades racionais, incluindo, principalmente, a percepção, a
memória, a intuição racional, o testemunho, etc. A fonte do estatuto
epistémico positivo da crença religiosa é, consequentemente, a
mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva remonta
pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes
contemporâneos proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de
argumentos cogentes a favor da crença religiosa é uma condição
necessária da aceitação racional dessa crença, ou pelo menos está
intimamente relacionada com a aceitação racional. Algumas pessoas
que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos
cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser
infundada e racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros
sustentam que há de facto excelentes argumentos a favor do teísmo,
e até especificamente a favor da crença cristã. Aqui o porta-voz
contemporâneo mais proeminente seria Richard Swinburne, cuja obra
dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como resultado o
desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia
natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004;
1981, 2005).
A outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por Tomás
de Aquino (Summa Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a
crença em Deus e 2) os ensinamentos cristãos podem ser objecto de
aceitação racional ainda que não existam argumentos cogentes a seu
favor que partam do que a razão nos oferece; têm uma fonte de aval
ou estatuto epistémico positivo independente do que a razão nos dá.
Este ponto de vista tem também representação contemporânea
proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984; Plantinga
2000). Usando a terminologia de Calvino, há o sensus divinitatis, que
é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito
Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo.
As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no
sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro
que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à
razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou
inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um
salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a fé como
“um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para
connosco [...]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de
vista, a religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente
racional independente da razão e da ciência; seria portanto possível
que a religião e a fé corrigissem a ciência e a razão, e também que
fossem por estas corrigidas.
Há alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto
verdadeiro, se realmente houver uma pessoa todo-poderosa,
omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo e os seres
humanos à sua imagem, então a crença religiosa será independente
dos argumentos baseados na razão; não exigirá tais argumentos para
ser racional ou ter estatuto epistémico positivo. Pois se o teísmo for
verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres humanos
conheçam a sua presença (e de facto a vasta maioria da população
humana acredita em Deus ou algo parecido a Deus); disporá portanto
as coisas de modo a que os seres humanos sejam capazes de ter
conhecimento de si. Mas se o conhecimento de Deus dependesse dos
argumentos teístas, ou de outros argumentos que resultam do que a
razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres humanos
chegariam ao conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois
de muito tempo, e com uma mistura substancial de erro.
3. Conflito e concórdia
3.1. Concórdia
Comecemos com a concórdia. Os primeiros pioneiros e heróis da
ciência ocidental — Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc. —
eram todos seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no
caso de Newton, não fossem cristologicamente ortodoxos. Além disso,
muitos autores (Foster 1934, 1935, 1936; Ratzsch 2009) fizeram notar
que a crença teísta e a ciência empírica exibem uma concórdia
profunda, combinando-se bem entre si. Isto resulta em parte das
doutrinas da criação que as religiões teístas abraçam — em particular,
dois aspectos dessas doutrinas. Primeiro, há a ideia de que Deus
criou o mundo, tendo também consequentemente, é claro, criado os
seres humanos. Além disso, criou os seres humanos à sua imagem.
Ora Deus, segundo a crença teísta, é uma pessoa: um ser que tem
conhecimento, afeição (gosta de umas coisas e não de outras) e
vontade executiva, podendo agir com base nas suas crenças para
atingir os seus fins. Uma das características centrais da imagem divina
nos seres humanos é, então, a capacidade para formar crenças e
adquirir conhecimento. Como afirmou Tomás de Aquino, “Uma vez
que se diz que os seres humanos foram feitos à imagem de Deus em
virtude de terem uma natureza que inclui um intelecto, tal natureza é à
imagem de Deus sobretudo em virtude de ser o que mais consegue
imitar Deus” (ST Ia q. 93 a. 4). Deus criou portanto quer os seres
humanos quer o mundo, e dispôs as coisas de modo a que os
primeiros conheçam o segundo. Concebendo a ciência no seu nível
mais básico como o projecto de adquirir conhecimento de nós e do
nosso mundo, é claro, desta perspectiva, que a doutrina daimago dei subscreve este projecto. Na verdade, a ciência é um exemplo claro
do desenvolvimento e aprofundamento da imagem de Deus nos seres
humanos, tanto individual como colectivamente.
Segundo, há o pensamento de que a criação divina
é contingente. Segundo o teísmo, muitas das propriedades de Deus —
a sua omnisciência e omnipotência, a sua bondade e amor — são-lhe
essenciais: tem-nas em todos os mundos possíveis em que existe. (E
uma vez que, segundo o pensamento teísta, Deus é um ser
necessário, existindo em todos os mundos possíveis, tem essas
propriedades em todos os mundos possíveis.) Mas isso não acontece,
contudo, com a sua propriedade da criação. Deus não está obrigado,
pela sua natureza ou seja pelo que for, a criar o mundo; trata-se,
antes, de uma acção livre da sua parte. Além disso, quando Deus cria,
não está obrigado a fazê-lo de qualquer modo particular, nem a criar
quaisquer tipos particulares de seres; que tenha criado os tipos de
coisas que efectivamente encontramos é uma vez mais contingente,
uma acção livre da sua parte.
É esta doutrina da contingência da criação divina que subjaz ao
carácter empírico da ciência ocidental moderna (Ratzsch, 2009). Pois
o domínio do necessário é (na sua maior parte) o domínio do
conhecimento a priori; é onde temos a matemática e a lógica e grande
parte da filosofia.3 O que é contingente, por outro lado, é o território ou
domínio do conhecimento a posteriori,4 o género de conhecimento
produzido pela percepção, memória e os métodos empíricos da
ciência. Esta relação entre a contingência da criação e a importância
do empírico foi reconhecida desde muito cedo. Assim, escreveu Roger
Cotes, no prefácio ao Principia Mathematica, de Newton:
“Sem dúvida alguma, este mundo, tão diversificado com essa pluralidade de formas e movimentos que nele encontramos, de nada poderia provir senão da vontade perfeita de Deus, dirigindo-o e presidindo-o.
É desta fonte que essas leis, a que chamamos leis da natureza, fluíram, e nas quais se vê muitos traços do mais sábio engenho, mas nem a mínima sombra de necessidade. Esta,consequentemente, não devemos procurar partindo de conjecturas
incertas, mas antes descobrir pela observação e pela experimentação.” (Cotes 1953, 132-133; itálicos meus)
O que vimos é que, de certo modo, a crença teísta sustenta a ciência
moderna ao permitir ou sancionar todo o projecto da investigação
empírica; afirma-se também por vezes que a ciência sustenta a crença
teísta. Neste caso, há vários argumentos, que historicamente se
agruparam em dois tipos básicos: biológicos e cosmológicos. Um
exemplo do primeiro tipo é o argumento proposto por Michael Behe
(Behe, 1996), segundo o qual algumas estruturas ao nível molecular
exibem uma “complexidade irredutível.” Estes sistemas exibem várias
partes que se ajustam delicadamente e interagem entre si, sendo que
todas têm de estar presentes e funcionando apropriadamente para
que o sistema faça o que faz; a eliminação de qualquer das partes
impediria o seu funcionamento. Entre os fenómenos que Behe cita
encontra-se o estolho bacteriano, os cílios usados por vários tipos de
células para se locomoverem, entre outras funções, a coagulação do
sangue, o sistema imunitário, o transporte de materiais nas células e a
sequência incrivelmente complexa e em cascata de reacções
bioquímicas e acontecimentos que ocorrem na visão. Tais estruturas e
fenómenos irredutivelmente complexos, defende, não poderiam ter
surgido por evolução darwinista gradual, passo-a-passo (sem a
intervenção da mão de Deus ou de qualquer outra pessoa); em
qualquer caso, a probabilidade de isso acontecer seria diminuta. Estes
são exemplos que apresentam, pois, o que Behe denomina um
desafio liliputiano ao darwinismo cego; se ele tiver razão, constituem
também um desafio colossal ao darwinismo. Mas não se limitam a pôr
em causa o darwinismo; foram também, afirma,
obviamente concebidos; que foram concebidos é tão óbvio como um
elefante numa sala de estar: “para uma pessoa que não se sinta
obrigada a restringir a sua procura a causas não-inteligentes, a
conclusão directa é que muitos sistemas bioquímicos foram
concebidos” (Behe, p. 193). Outros, por exemplo, Paul Draper (2002)
e Kenneth R. Miller (1999, 130-64), argumentam que Behe não provou
o que pretendia.
Um segundo tipo de argumento a favor do teísmo parte do
ajustamento delicado aparente de vários parâmetros físicos. A partir
dos anos sessenta e do começo dos setenta, os astrofísicos, entre
outros, deram-se conta que várias das constantes físicas básicas têm
de se situar dentro de limites muito estreitos para que a vida
inteligente se desenvolva — em qualquer caso, de um modo
semelhante ao que pensamos que efectivamente ocorreu. Assim, B. J.
Carr e M. J. Rees:
“As características básicas das galáxias, estrelas, planetas e do mundo quotidiano são essencialmente determinadas por algumas constantes microfísicas e pelos efeitos da gravitação [...] Vários aspectos do nosso universo — alguns dos quais parecem pré-requisitos para a evolução de qualquer forma de vida — dependem muito delicadamente de “coincidências” aparentes entre as constantes físicas.” (Carr e Rees, 1979, 605).
Por exemplo, se a força da gravidade fosse mais forte, ainda que
ligeiramente, todas as estrelas seriam gigantes azuis; se fosse muito
ligeiramente mais fraca, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum
desses casos poderia a vida ter-se desenvolvido (Carter 1979, 72). O
mesmo se pode dizer das forças nucleares fracas e fortes; se qualquer
delas tivesse sido ainda que ligeiramente diferente, a vida, em
qualquer caso a vida do género que temos, não poderia
provavelmente ter-se desenvolvido.
Aparentemente, a vida é possível apenas porque o universo está a
expandir-se na proporção exactamente necessária para evitar o
colapso. E no passado o ajuste delicado teve de ser ainda mais
extraordinário:
“[...] sabemos que teve de ter havido um equilíbrio muito delicado entre os efeitos contrários da expansão explosiva e da contracção gravitacional que, na época mais recuada sobre a qual podemos sequer fingir falar (denominada tempo de Planck, 10 -
43segundos depois do Big Bang), teria correspondido ao grau incrível de precisão representado por um desvio da unidade no seu rácio de apenas uma parte em 10 elevado à sexagésima.” (Polkinghorne 1989, 22)
Outros exemplos: o valor da constante cosmológica, do valor da
expectativa de vácuo do campo de Higgs, e o rácio da massa entre o
protão e o electrão têm de estar delicadamente ajustados num grau
incrível para que o universo permita a vida (Barr 2003, 123-130). Uma
explicação particularmente bem informada e tecnicamente
pormenorizada de alguns destes ajustamentos delicados encontra-se
em Robin Collins, “Evidence of Fine-Tuning” (Collins 2003). Há quem
considere que estas enormes coincidências aparentes substanciam a
tese teísta de que o universo foi criado por um Deus pessoal que tem
a intenção de que haja vida, e na verdade vida inteligente; consideram
que o ajustamento delicado oferece os elementos para um argumento
teísta apropriadamente restringido. Estes argumentos assumem várias
versões; talvez a mais bem-sucedida delas seja a que argumenta que
a probabilidade epistémica destes fenómenos de ajuste delicado é
muito maior sob a hipótese teísta do que a sua probabilidade
epistémica sob a hipótese ateísta do acaso. Aqui, a conclusão não é
(enquanto tal) que o teísmo é provavelmente verdadeiro, mas antes
que o teísmo é muito mais bem sustentado por estes fenómenos do
que a hipótese do acaso (Swinburne 2003; Collins 1999).
As objecções são muito diversificadas. Há quem ofereça estes
argumentos, em particular quem está associado ao chamado
movimento do “Desígnio Inteligente,” considerando-os contribuições
para a ciência e não para a filosofia ou para a teologia; a objecção
mais comum é que não obedecem às condições necessárias para ser
ciência, em particular porque a conclusão, que o universo foi
concebido por um ser inteligente, não éfalsificável. Outros há (como
vimos) que respondem que a falsificabilidade não é comummente uma
propriedade de proposições individuais, mas antes de teorias
completas, e que as teorias que envolve o desígnio inteligente podem
muito bem ser falsificáveis.
Uma objecção mais interessante aos argumentos do ajuste
delicado é a sugestão da “multiplicidade de universos”: talvez haja
muitíssimos universos ou mundos diferentes, talvez em número
infinito; as constantes cosmológicas assumem diferentes valores em
mundos diferentes, de modo que muitíssimos conjuntos diferentes de
tais valores (talvez todos os possíveis) são exemplificados num ou
noutro mundo. Não poderia haver um ciclo eterno de “Big Bangs,”
seguidos de expansão até um certo limite, e depois uma contracção
até ao “Big Crunch,” no qual os valores cosmológicos são
arbitrariamente reiniciados? (Dennett 1995, 179) Alternativamente,
não poderia ter ocorrido que no Big Bang houve uma inflação inicial
enorme, resultando daí muitos cosmoi, com muitos valores diferentes
nas suas constantes físicas? Em qualquer dos casos não é
surpreendente que num ou noutro dos universos resultantes, os
valores das constantes cosmológicas sejam tais que permitam a vida.
Nem é surpreendente que o universo em que nos encontramos tenha
valores que permitam a vida; não poderíamos existir em qualquer
outro. Sendo assim, o argumento do ajuste delicado não é eficaz: a
probabilidade de haver ajuste delicado dada a hipótese da pluralidade
de mundos juntamente com o ateísmo é pelo menos tão grande
quanto a probabilidade do ajuste delicado juntamente com o teísmo.
Há respostas (por exemplo, que nesta maneira de ver as coisas teria
de haver um gerador de universos que estivesse, também ele,
delicadamente ajustado (Collins 1999), ou que mesmo que seja
provável que algunsuniversos estejam delicadamente ajustados,
continua a ser verdade que a probabilidade de que este universo
esteja delicadamente ajustado não é afectada pela sugestão do
pluriverso (White 2003)) e respostas às respostas, etc.; não há
consenso, o que não é surpreendente, quanto a saber se estes
argumentos do ajuste delicado são bem-sucedidos.
3.2. Conflito?
A doutrina cristã da criação sustenta uma concórdia profunda entre a
crença cristã e a ciência; contudo, é claro que é compatível com este
género de concórdia que também haja conflito. Muitos autores
afirmaram existir conflito, ou até guerra, entre a religião e a ciência
(Draper 1875; White 1895). Isto é certamente demasiado forte; mas é
óbvio que a relação entre as duas nem sempre tem sido suave e
irénica. Há o famoso incidente de Galileu, muitas vezes retratado
como uma disputa no seio da hierarquia católica, representando as
forças da repressão e da tradição, a voz do velho mundo, a mão morta
do passado, e, por outro lado, as forças do progresso e a suave voz
da razão e da ciência. Este modo de ver a questão é simplista (Brooke
1991, 8-9); em causa estavam muitos outros factores. O pensamento
aristotélico dominante do dia era fortemente apriorístico; logo, parte do
que estava em causa era uma disputa sobre a importância relativa da
observação e do pensamento a priori na astronomia. Em causa
estavam também questões sobre o que a Bíblia cristã (e judaica)
ensina nesta área: será que uma passagem como a de Josué 10:12-
15 (em que Josué ordenou ao Sol para se imobilizar) favorece o
sistema ptolemaico em detrimento do coperniciano? E é claro que as
questões habituais de poder e autoridade estavam também
presentes.5
Mais recentemente, um lugar central de alegado conflito tem sido
a teoria da evolução. Este pânico particular está, é claro, ainda muito
presente. Muitos fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação
literal da narrativa da criação dos primeiros dois capítulos do Génesis;
consideram por isso incompatíveis as explicações darwinistas
contemporâneas das nossas origens e a fé cristã, pelo menos tal
como a entendem. Muitos fundamentalistas darwinistas (como o
falecido Stephen J. Gould lhes chamava) aceitam essa moção:
também eles defendem que há conflito entre a evolução darwinista e a
crença cristã ou teísta clássica. Os contemporâneos que defendem
esta perspectiva do conflito incluem, por exemplo, Richard Dawkins
(1986, 2003) e Daniel Dennett (1995). Uma parte importante do
alegado conflito depende da crença cristã de que os seres humanos e
as outras criaturas foram concebidos — concebidos por Deus;
segundo a evolução, contudo (pelo que dizem Dawkins e Dennett), os
seres humanos não foram concebidos, sendo antes produto do
processo cego sem direcção da selecção natural, operando sobre uma
fonte de variação genética como a mutação genética. Eis Dawkins:
“Apesar das aparências em contrário, o único relojoeiro na natureza é as forças cegas da física, ainda que aplicadas de uma maneira muito especial. Um verdadeiro relojoeiro é dotado de antevisão: concebe as suas engrenagens e molas, e planeia as suas interconexões, tendo em mente um propósito futuro. A selecção natural, e o processo automático cego, inconsciente, que Darwin descobriu, e que sabemos hoje ser a explicação da existência e da forma aparentemente dotada de propósito de toda a vida, não tem em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente. Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê coisa alguma. Se podemos dizer que desempenha o papel de relojoeiro na natureza, é o relojoeiro cego.” (Dawkins 1986, 5)
Outros autores fazem notar que este suposto conflito está longe de ser
óbvio. A característica central da doutrina moderna da evolução é que
a força motriz do processo é a selecção natural, peneirando uma
forma de variação genética, sendo a mais popular a mutação genética
aleatória. Não faz parte da teoria a afirmação de que estas mutações
ocorrem apenas ao acaso no sentido em que esse termo sugere que
não têm causa; são aleatórias apenas no sentido em que não
emergem do plano arquitectónico das criaturas que as sofrem, e não
ocorrem para melhorar a capacidade reprodutiva do organismo. Eis
Ernst Mayr, o decano da biologia do pós-guerra: “Quando se afirma
que a mutação ou variação é aleatória, isto quer simplesmente dizer
que não há qualquer correlação entre a produção de novos genótipos
e as necessidades adaptativas de um organismo no meio ambiente
em causa” (Mayr 1998, 98). Sendo assim, a evolução, tal como é
actualmente formulada e entendida, é perfeitamente compatível com
um deus que orquestre e supervisione todo o processo; na verdade, é
perfeitamente compatível com essa teoria que Deus cause as
mutações genéticas que são peneiradas pela selecção natural. Quem
defende que a evolução mostra que a humanidade e as outras coisas
vivas não foram concebidas, defendem os seus oponentes,
confundem uma interpretação naturalista da teoria científica com a
própria teoria. A afirmação de que a evolução demonstra que os seres
humanos e as outras criaturas vivas não foram concebidas, contra
todas as aparências, não faz parte nem é uma consequência da teoria
científica, mas antes um acrescento metafísico ou teológico (van
Inwagen 2003).6
Uma segunda área de alegado conflito tem a ver com a acção
divina no mundo. Segundo a religião teísta clássica, Deus criou o
mundo; também o sustém e preserva, mantendo-o em existência. Sem
a sua actividade de preservação, o mundo desapareceria como a
chama de uma vela ao vento. Assim, há criação e preservação; mas,
afirmam as religiões teístas clássicas, há também acção
divina especial, acção que vai além da criação e da preservação. Há
milagres relatados tanto na Bíblia judaica como na cristã: a separação
das águas do Mar Vermelho, por exemplo, assim como Jesus
caminhando sobre as águas, o fornecimento de alimento a cinco mil
pessoas, e o renascimento dos mortos. Os milagres são igualmente
relatados no Alcorão. Muitos crentes não pensam que estas acções
divinas especiais se restringem aos tempos bíblicos: ainda hoje Deus
responde às orações e efectua curas milagrosas. Além disso, segundo
o modo cristão de pensar, Deus opera nos corações e espíritos dos
seus filhos, de modo a produzir a fé; Tomás de Aquino chamou a esta
actividade divina “o incitamento interno do Espírito Santo” e João
Calvino chamou-lhe “o testemunho interno do Espírito Santo.” Todos
estes seriam exemplos de acção divina especial.
Ora, há quem veja aqui um conflito com a ciência moderna. Entre
esses autores conta-se Langdon Gilkey:
“[...] A teologia contemporânea não espera, nem fala, de acontecimentos divinos assombrosos à superfície da vida natural e histórica. O nexo causal no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo introduziram na mentalidade ocidental [...] é também pressuposto pelos teólogos e estudiosos modernos; uma vez que participam no mundo moderno da ciência, tanto intelectual como existencialmente, dificilmente poderiam fazer outra coisa. Ora, este pressuposto de uma ordem causal entre os acontecimentos fenoménicos, e portanto da autoridade da interpretação
científica dos acontecimentos observáveis, faz uma grande diferença no que respeita à validade que se atribui às narrativas bíblicas, e portanto ao modo como se entende o seu significado. Subitamente, uma vasta panóplia de feitos divinos e acontecimentos registados na escritura não são já encarados como se tivessem efectivamente acontecido [...] Seja o que for que os hebreus acreditavam, nós acreditamos que as pessoas bíblicas viviam no mesmo contínuo causal do espaço e do tempo em que nós vivemos, e portanto um contínuo em que não ocorrem quaisquer prodígios divinos nem se ouve quaisquer vozes divinas.” (Gilkey 1983, 31)
Claro que muitos filósofos e cientistas concordariam. O problema é,
supostamente, a acção especial de Deus no mundo; não há qualquer
problema particular no que respeita à criação e preservação, mas a
acção divina para lá disso é largamente considerada incompatível com
a ciência moderna. Onde se considera exactamente que surge a
incompatibilidade? Ao que parece, a ideia é que a actividade divina
especial seria incompatível com as leis da natureza que a ciência põe
a descoberto. Eis o distinto biólogo H. Allen Orr:
“Não que algumas facções de uma religião invoquem milagres: muitas facções de muitas religiões o fazem. (Afinal, Moisés separou as águas e Krishna curou os doentes.) Concordo, é claro, que nenhum cientista sensato pode tolerar tais excepções no que respeita às leis da natureza.” (Orr, 2004)
Ora, Gilkey, como outros autores, pensa aparentemente em termos de
uma mundividência newtoniana, segundo a qual o universo é como
uma máquina gigantesca que funciona segundo as leis postas a nu
pela ciência. Mas isto não é suficiente para a teologia do afastamento
e da não-intervenção destes teólogos. Afinal de contas, o próprio
Newton, supostamente, aceitava a mundividência newtoniana, mas
propôs que Deus ajustava periodicamente as órbitas planetárias, que
sem isso, segundo os seus cálculos, dariam gradualmente para o
torto. O que Gilkey e os seus amigos acrescentam aqui,
aparentemente, é o determinismo: a ideia de que as leis da natureza,
juntamente com o estado do universo em qualquer momento dado,
implicam o estado do universo em qualquer outro momento. A fonte
clássica aqui é Pierre Laplace:
“Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do que se lhe seguirá. Dado, por um instante, um espírito que
pudesse compreender todas as forças que animam a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem — um espírito suficientemente vasto para analisar estes dados — esse espírito abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor dos átomos; para ele, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos.” (Laplace 1796)
É a mundividência de Laplace que aparentemente anima Gilkey, et al. Vale a pena fazer notar, contudo, que o determinismo e a
mundividência laplaciana não se seguem da ciência clássica. Isto
porque as grandes leis da conservação deduzidas das leis de Newton
são formuladas para sistemas fechados ou isolados. Eis Sears e
Zemansky (1963):
“O princípio da conservação da energia afirma que a energia interna de um sistema isolado permanece constante. Esta é a formulação mais geral do princípio da conservação da energia.” (p. 415)
As leis de Newton (tal como a posterior física da electricidade e do
magnetismo de Maxwell) aplicam-se a
sistemas isolados ou fechados; descrevem como o mundo
funciona desde que o mundo seja um sistema fechado (isolado), não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas não faz
parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a
declaração de que o universo material é realmente um sistema
fechado. (Como poderia uma coisa dessas ser verificada
experimentalmente?) Logo, nada há na ciência clássica (pelo menos
nesta área) que seja incompatível com Deus mudar a velocidade ou
direcção de uma partícula, ou de todo um sistema de partículas (ou, já
agora, com a criação ex nihilo de um cavalo adulto). A energia, a força
cinética e coisas do género conservam-se num sistema fechado; mas
a tese de que o universo material é de facto um sistema fechado não
faz parte da física clássica; é um acrescento metafísico ou teológico.
Logo, não há conflito entre a física clássica e a acção divina especial
no mundo.
Esta imagem clássica, laplaciana, foi, evidentemente,
ultrapassada pelo desenvolvimento da mecânica quântica, que
começou nos primeiros pares de décadas do séc. XX. Segundo a
mecânica quântica, associado a qualquer sistema físico, um sistema
de partículas, por exemplo, há uma função de onda cuja evolução ao
longo do tempo é regida pela equação de Schrödinger para esse
sistema. Ora, o interessante no que respeita à mecânica quântica é
que, ao contrário da mecânica clássica, não especifica nem prevê uma
configuração única para este sistema de partículas num momento
futuro do tempo, t. A função de onda atribui um valor em t a cada uma
das configurações possivelmente resultantes das condições iniciais;
pela aplicação da regra de Born a esses valores, obtemos uma
atribuição de probabilidades a cada uma dessas possíveis
configurações em t. Assim, não nos é dito que configuração irá de
facto resultar (dadas as condições iniciais) quando o sistema é medido
em t; ao invés, é-nos dada uma distribuição de probabilidades para os
muitos resultados possíveis. É claro que os milagres (a separação das
águas, o renascimento dos mortos, etc.) não são incompatíveis com
estas atribuições. (Sem dúvida que a tais acontecimentos seriam
atribuídas probabilidades muito baixas; mas é claro que não
precisamos da mecânica quântica para saber que tais acontecimentos
são improváveis.) Além disso, em interpretações em termos de
colapso, como as de Ghirardi, Rimini e Weber, há muito espaço para a
actividade divina. Na verdade, Deus pode ser afinal a causa dos
colapsos, e do modo como ocorrem (i.e., sendoP a possibilidade que é
efectivada em t, pode ser Deus a causa de P se efectivar em t). (Isto
poderia talvez ser visto como um meio caminho entre o ocasionalismo
e a causalidade secundária.) Com o advento da mecânica quântica,
portanto, parece haver ainda menos razão para ver a acção divina
especial no mundo como uma coisa que de algum modo é
incompatível com a ciência.
Contudo, muitos autores inteiramente cientes da revolução da
mecânica quântica vêem mesmo assim um problema na acção divina
especial. Por exemplo, há o “Divine Action Project” (Wildman 1988-
2003, 31-75), uma série de conferências e publicações com quinze
anos que começou em 1988. Até agora, estas conferências resultaram
em seis volumes de ensaios, envolvendo pelo menos cinquenta ou
mais autores de vários campos da ciência, juntamente com filósofos e
teólogos, incluindo muitos dos mais proeminentes autores da área. A
maior parte destes autores consideram problemática a acção divina
especial. Isto porque crêem que uma explicação satisfatória da acção
de Deus no mundo teria de ser não-intervencionista, como Wildman
afirma. Eis Arthur Peacocke, comentando uma certa proposta de
acção divina:
“Deus teria de ser concebido como alguém que efectivamente manipula micro-acontecimentos (aos níveis, atómico, molecular e, segundo alguns autores, quântico) nestas flutuações iniciais do mundo natural para produzir os resultados a nível macroscópico que Deus quer. Mas tal concepção da acção de Deus [...] não seria então diferente em princípio da intervenção de Deus na ordem da natureza, com todos os problemas que isso evoca com respeito a uma crença racionalmente coerente em Deus como o criador dessa ordem.” (Peacocke 2004)
O projecto é assim, aparentemente, desenvolver uma concepção da
acção divina especial (acção para lá da criação e da preservação) que
não envolva intervenção. Mas o que seriaa intervenção na imagem da
mecânica quântica? Não é fácil dizer. Na verdade, não é fácil ver
como a intervenção poderia ser diferente da acção divina para lá da
criação e da preservação. Contudo, se não há qualquer diferença
entre elas, a acção divina especial seria apenas intervenção, caso em
que o projecto de desenvolver uma concepção da acção divina
especial que não envolva intervenção não é promissora.
Mesmo assim, uma terceira área de alegado conflito entre a
crença religiosa e a ciência tem a ver com as diferentes atitudes
epistémicas associadas a cada uma delas. Eis, por exemplo, John
Worrall:
“A ciência, ou antes, a atitude científica, é incompatível com a crença religiosa. A ciência e a religião estão num conflito irreconciliável [...] Não há maneira de ter uma mentalidade apropriadamente científica e ser um verdadeiro crente religioso.” (Worrall 2004, p. 60).
Na ciência, a atitude epistémica dominante (segundo esta tese) é a
investigação empírica crítica, propondo teorias que são sustentadas
hipotética e temporariamente; estamos sempre dispostos a abandonar
uma teoria a favor de uma sucessora mais satisfatória. Na crença
religiosa (e.g., cristã), a atitude epistémica da fé desempenha um
papel importante, uma atitude que difere tanto quanto à fonte da
crença em questão, como na disponibilidade para a abandonar.
Outros autores (Ratzsch, 2004), contudo, fazem notar que não há
aqui obviamente um conflito. É claro que essas duas atitudes
são diferentes, e talvez não possam ser assumidas simultaneamente
com respeito à mesma proposição. Mas mostra isso umconflito entre a
ciência e a crença religiosa? Talvez alguns modos de formar crenças
sejam apropriados numa área e outros modos noutras áreas. Para que
tenhamos um conflito, temos de acrescentar que a atitude epistémica
científica é a única apropriada a qualquerárea de actividade
cognitiva. Esta tese, contudo, não é em si parte da atitude científica; é
uma declaração epistemológica, a favor da qual se exige
argumentação substancial (mas que até agora não é visível). Além
disso, não parece que os próprios cientistas assumam a atitude
epistémica científica (acima caracterizada) com respeito a tudo o que
acreditam, ou mesmo com respeito a tudo o que acreditam como
cientistas. Assim, é comum que os cientistas acreditem que houve
passado, e na verdade dizem-nos muitas vezes há quanto tempo a
Terra, ou a nossa galáxia, ou até o universo inteiro, se formou. Os
cientistas raramente sustentam esta crença — que houve passado —
em resultado da investigação empírica; nem comummente a
sustentam desse modo hipotético, crítico, procurando sempre uma
alternativa melhor.
Consequentemente, nestas áreas é difícil encontrar conflito entre
a crença religiosa teísta e a ciência contemporânea.
4. Onde há conflito?
Parece haver outras áreas da ciência, contudo, que produzem conflito.
Primeiro, há a disciplina relativamente nova mas em rápido
crescimento da psicologia evolutiva. A alma e coração deste projecto é
o esforço para explicar traços distintamente humanos — a nossa arte,
humor, ludicidade, poesia, sentido de aventura, gosto por histórias, a
nossa música, a nossa moralidade e a nossa religião — em termos da
nossa origem e história evolutiva. E aqui encontramos realmente
teorias incompatíveis com a crença religiosa. Um tópico importante
nesta área tem sido o comportamento altruísta — comportamento que
promove a boa adaptação reprodutiva de outra pessoa às custas da
boa adaptação reprodutiva do próprio altruísta. Como explicar que
haja pessoas como os missionários e a Madre Teresa, pessoas que
dedicam as suas vidas ao serviço dos outros, dando pouca atenção às
suas próprias perspectivas reprodutivas? Herbert Simon procura
explicar o altruísmo de um ponto de vista evolutivo, em termos de dois
mecanismos, a docilidade e a racionalidade limitada:
“As pessoas dóceis tendem a aprender e acreditar no que pensam que os outros membros da sociedade querem que elas aprendam e creiam. Assim, o conteúdo do que aprendem não será completamente analisado quanto ao contributo dado à boa adaptação reprodutiva.
Devido à racionalidade de grupo, o indivíduo dócil será muitas vezes incapaz de distinguir entre os comportamentos socialmente prescritos que contribuem para a boa adaptação e o comportamento altruísta [i.e., o comportamento socialmente prescrito que não contribui para a boa adaptação]. De facto, a docilidade irá reduzir a inclinação para avaliar de modo independente quão contribui um comportamento para a boa adaptação [...]. Em virtude da racionalidade de grupo, a pessoa dócil não pode adquirir a aprendizagem pessoalmente vantajosa que fornece o incremento de boa adaptação sem adquirir também os comportamentos altruístas que têm como custo a sua diminuição.” (Simon 1990, 3, 4)
A teoria de Simon foi cuidadosamente trabalhada e bem desenvolvida,
sendo de considerável interesse; é também incompatível com a
crença religiosa. Segundo esta teoria, a explicação do comportamento
altruísta consiste em não se ver que o comportamento em questão
compromete a boa adaptação evolutiva. Assim, segundo a teoria de
Simon, a resposta à pergunta “Por que razão se comporta a Madre
Teresa de um modo que compromete a sua boa adaptação evolutiva?”
é “Devido à racionalidade de grupo, ela é incapaz de ver que o seu
modo de se comportar compromete a sua boa adaptação.” De uma
perspectiva cristã, esta não é de modo algum a resposta correcta, que
seria algo como “Ela quer seguir o exemplo de Jesus, fazendo o que
pode para ajudar os pobres e doentes.”
Outro exemplo desta área é fornecido por muitas teorias da
religião e da crença religiosa. Segundo algumas destas teorias, a
crença religiosa é falsa, mas adaptativa; segundo outras, é falsa e
contra-adaptativa. Um exemplo do primeiro grupo seria a teoria
proposta por David Sloan Wilson, que afirma que a religião é uma
adaptação de grupo: “Muitas características da religião, como a
natureza dos agentes sobrenaturais e as suas relações com os seres
humanos, podem ser explicadas como adaptações concebidas para
permitir que os grupos de seres humanos funcionem como unidades
adaptativas” (Wilson 2002, p. 51). A crença religiosa, afirma, é fictícia,
mas adaptativa a nível de grupo: promove a cooperação, o respeito
mútuo e a solidariedade, permitindo assim que o grupo se saia bem
em competição com outros grupos.
Que a religião possa funcionar como uma adaptação de grupo é,
evidentemente, consistente com a crença teísta; e que dizer do
pedaço sobre a crença religiosa — a crença teísta, por exemplo — ser
fictícia? Como poderia a tese de que a pessoa de Deus não existe
fazer parte da ciência empírica? E mesmo que o pudesse, a teoria de
Wilson, ao que parece, estaria em terreno mais sólido se esse
acrescento teológico facilmente eliminável fosse excluído. O que não é
tão fácil de excluir é a tese de que a crença religiosa (ao contrário da
memória, crenças perceptivas, intuição racional) é produzida por
faculdades cognitivas ou processos que não visam a produção de
crenças verdadeiras. Segundo Wilson, estes processos ou faculdades
têm uma função que lhes foi conferida pela evolução; mas essa
função não é a de produzir crenças verdadeiras. É antes a função de
produzir crenças que promovam a cooperação e a solidariedade; em
última análise, a sua função é fornecer crenças que são adaptativas,
i.e., promovem a boa adaptação reprodutiva.
Neste ponto, uma comparação com a perspectiva de Sigmund
Freud da crença teísta pode ser esclarecedor. Freud sustenta que a
crença teísta é uma ilusão. Isto não significa que seja falsa (apesar de
Freud pensar que é falsa); o que significa é que a crença teísta é
produzida por um processo cognitivo (sonhar alto) que não se “orienta
pela realidade”; o seu propósito não é a produção da crença
verdadeira, mas (neste caso) uma crença que permita ao crente evitar
a depressão e apatia que se instalaria se ele visse claramente a
miserável chocante condição em que os seres humanos se
encontram. A perspectiva de Wilson é assim como a de Freud, uma
vez que também ele propõe que a crença teísta é produzida por
faculdades cognitivas que não se orientam pela realidade. Ao passo
que Freud assume uma perspectiva pessimista da crença teísta,
Wilson é muito mais elogioso:
“Em primeiro lugar, muitas crenças religiosas não estão separadas da realidade [...] Ao invés, estão intimamente conectadas com a realidade, motivando comportamentos que são adaptativos no mundo real — um feito espantoso quando nos damos conta da complexidade exigida para ficarmos conectados neste sentido prático [...]. A adaptação é o padrão máximo contra o qual a racionalidade tem de ser ajuizada, juntamente com todas as outras formas de pensamento. Os biólogos evolucionistas devem entender este aspecto especialmente bem porque estão cientes de que uma mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução.” (Wilson 2002, p. 228)
Apesar de Wilson dirigir palavras simpáticas à religião, a sua tese de
que a crença religiosa não visa a verdade é incompatível com a
crença religiosa teísta. Segundo o cristianismo, por exemplo, a fé,
incluindo a crença nos aspectos essenciais da fé cristã, é uma dádiva
divina; e o processo de a produzir no crente (o incitamento interno do
Espírito Santo, segundo Tomás de Aquino, o testemunho interno do
Espírito Santo, segundo João Calvino) visa realmente a verdade e tem
como função a produção de crença verdadeira.
Assim, há um conflito entre a ciência e a religião. O que o explica?
Várias coisas, sem dúvida; mas parte da explicação encontra-se
no naturalismo metodológico, uma restrição muitíssimo aceite na
ciência. Segundo o naturalismo metodológico (NM), ao fazer ciência
temos de proceder “como se Deus não fosse dado,” para usar as
palavras de Hugo Grócio. O que significa isto exactamente? Há várias
sugestões; eis uma delas. Segundo o NM, 1) o conjunto de dados (o
modelo) de uma teoria apropriadamente científica não pode referir
Deus ou outros agentes sobrenaturais (anjos, demónios), ou empregar
o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação (divina).
Assim, os dados para uma teoria não incluiriam, por exemplo, a
proposição de que houve recentemente um surto de possessão
demoníaca em Washington, D. C. 2) Uma teoria científica apropriada
não pode referir Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, nem
empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação.
Assim, se o modelo contiver a proposição de que houve um surto de
comportamentos bizarros e irracionais em Washington, D. C., não
seria apropriado propor uma teoria que envolvesse a possessão
demoníaca para o explicar. 3) Note-se, para começar, que a
probabilidade ou plausibilidade de possíveis teorias e a sua
capacidade para explicar os dados, assim como as suas implicações
empíricas, é sempre relativa a uma série de informações de fundo ou
uma base epistémica. A terceira restrição é, então, que a base
epistémica de uma teoria apropriadamente científica não pode incluir
proposições que impliquem obviamente7 a existência de Deus ou
quaisquer outros agentes sobrenaturais, ou proposições que sabemos
ou pensamos que sabemos por meio da revelação. Pois considere-se
alguém que de facto aceita as linhas principais de uma das religiões
teístas, e trabalha na área da psicologia evolucionista. Sem dúvida
que irá honrar o NM como restrição à sua actividade científica. Se o
fizer, para todos os propósitos científicos irá eliminar do seu corpo de
dados as proposições que impliquem obviamente a existência de
Deus ou de outros seres sobrenaturais, tal como o que ela sabe ou
pensa que sabe por meio da fé ou da revelação. Mas então ela poderá
muito bem produzir teorias do género que temos vindo a apontar,
teorias incompatíveis com a religião teísta.
Uma área bastante diferente, mas com a mesma dialéctica: a
crítica bíblica histórica (CBH). A CBH é diferente do comentário bíblico
tradicional. O praticante deste último pressupõe que a Bíblia é a
palavra de Deus, e tenta pôr a nu o significado do que é ensinado em
várias partes da Bíblia. O praticante da CBH, por outro lado, põe
especificamente entre parêntesis a crença de que a Bíblia é revelação
divina, e tenciona ao invés estudá-la cientificamente. Assim, o falecido
Raymond Brown, um estudioso católico das escrituras muitíssimo
respeitado, crê que a CBH é “crítica bíblica científica” (Brown 1973, p.
6); dá origem a “resultados factuais” (p. 9); pretende que os seus
próprios contributos sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11); e os
praticantes da CBH investigam as escrituras com “exactidão científica”
(pp. 18-19); veja- se também Meier 1991, p. 6. Estudar a Bíblia
cientificamente, portanto, é estudá-la de um modo que obedeça às
restrições do NM. (Veja-se também Sanders 1985, p. 5; Levenson
1993, p. 109; e Lindars 1986, p. 91).
Tem havido, como seria de esperar, uma tensão considerável
entre a CBH, entendida deste modo, e os cristãos tradicionais,
remontando pelo menos a David Strauss, em 1835: “Não, se fôssemos
cândidos connosco mesmos, o que era história sagrada para o crente
cristão é, para a porção iluminada dos nossos contemporâneos,
apenas fábula.” Quanto a tensões contemporâneas, segundo Luke
Timothy Johnson:
“Os investigadores do Jesus histórico insistem que temos de encontrar o “Jesus real” nos factos da sua vida antes da sua morte. A ressurreição é vista, quando chega a ser tida em consideração, em termos de uma experiência visionária, ou como uma continuação de uma “emancipação” que começou antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa operativa é que não há qualquer “Jesus real” depois da sua morte.” (Johnson 1997, p. 144)
E, segundo Van Harvey, “No que respeita ao historiador bíblico, [...]
não há praticamente qualquer crença tradicional popular sobre Jesus
que não seja encarada com considerável cepticismo” (Harvey 1986, p.
193).
Uma característica absolutamente central da CBH é este esforço
de ser científica. Claro que podemos perguntar-nos se a CBH, ou
qualquer estudo histórico, é realmente ciência; os seus defensores
dizem que o é, mas terão razão? Dada a dificuldade do problema da
demarcação, contudo, não é provavelmente avisado transformar esta
pergunta numa objecção. (Além disso, ainda que os estudos históricos
deste tipo não sejam precisamente ciência, são certamente
muito parecidos à ciência.) E na medida em que a CBH exige a
conformidade ao NM, quem a pratica põe entre parêntesis ou
suspende ou põe de lado quaisquer perspectivas teológicas, ou o que
é conhecido por revelação.8Tal como acontece com a psicologia
evolucionista, portanto, quem trabalha na CBH pode de facto aceitar
uma ou outra religião teísta, mas no seu trabalho como praticante de
CBH, chegar a conclusões incompatíveis com a sua crença religiosa.
Até agora, portanto, temos aqui a mesma dialéctica que vimos na
psicologia evolucionista: teorias incompatíveis com a religião teísta
que resultam (pelo menos em parte) do NM.
Pelo menos nestas duas áreas, portanto, há um conflito entre as
teorias científicas e a crença religiosa. Num aspecto muitíssimo
importante, contudo, este conflito é superficial. Isto porque as teorias e
teses da psicologia evolucionista e a CBH não precisam de refutar,
nem sequer parcialmente,9 aqueles elementos da crença religiosa com
os quais são incompatíveis — ainda que o teísmo esteja obrigado a
levar a ciência muito a sério e ainda que se conceda que as teorias
em questão constituem boa ciência. E isto precisamente porque o NM
é encarado como uma restrição à actividade científica. Podemos ver
isto como se segue. Como já foi sugerido, a investigação científica é
sempre conduzida contra um pano de fundo de um corpo de dados,
um corpo de conhecimento ou crença de fundo. Uma parte importante
do NM, além disso, é que este corpo de dados não pode conter
proposições que impliquem obviamente a existência de seres
sobrenaturais, ou proposições que são aceites por meio da fé. Segue-
se que o corpo de dados de um partidário de uma religião teísta irá
conter o corpo científico de dados como uma parte própria; irá incluir
todas as proposições que encontramos no corpo científico de dados,
além de outros — talvez os que são específicos da crença cristã.
Suponha-se agora que uma dada teoria — a teoria do altruísmo de
Simon, ou a teoria da religião de Wilson, ou uma explicação
minimalista da vida e actividade de Jesus — é de facto ciência
apropriada, e que é de facto a resposta teórica mais plausível e
cientificamente mais satisfatória aos dados, dado o CCD, o corpo
científico de dados. Isto significa que do ponto de vista do CCD,
juntamente com os dados actuais, essa teoria é o melhor ou mais
plausível resultado. Mesmo assim, isso não dá automaticamente a um
crente algo que refuta aquelas suas crenças com as quais a teoria é
incompatível. Isto porque o CCD é apenas uma parte do seu corpo de
dados. E pode muito bem acontecer que uma proposição P seja a
resposta plausível, dada uma parte da minha base de dados
(juntamente com os dados actuais), que P seja incompatível com uma
das minhas crenças, e que P não me dê algo que refute essa crença.
Por exemplo, suponha-se que lhe digo que o vi ontem à tarde no
centro comercial. Então, com respeito a parte do seu corpo total de
dados — a parte que inclui o seu conhecimento de que eu lhe disse
que o vi lá, juntamente com o seu conhecimento de que eu tenho uma
visão decente e sou, de ordinário, confiável, etc. — a coisa certa a
pensar é que você esteve no centro comercial. Contudo, suponhamos,
você sabe perfeitamente que não esteve lá; lembra-se de ter estado
toda a tarde em casa, pensando sobre o naturalismo metodológico.
Aqui, a coisa certa a pensar da perspectiva de uma parte própria do
seu corpo de dados é que você esteve no centro comercial; mas isto
não lhe fornece algo que refute a sua crença de que não esteve lá.
Outro exemplo: podemos imaginar um grupo renegado de físicos
extravagantes que se propõem reconstruir a física, recusando-se a
usar crenças de memória, ou, se isso for demasiado fantasioso,
memórias com mais de um minuto. Talvez algo se possa fazer nesta
direcção, mas seria uma coisa pobre, insignificante, mutilada e fútil. E
agora suponha-se que a melhor teoria, do ponto de vista deste corpo
limitado de dados, é inconsistente com a relatividade geral. Deve isso
preocupar os físicos mais tradicionais que usam o que sabem por
meio da memória, assim como o que os físicos renegados usam?
Penso que não. Esta física mutilada dificilmente poderia pôr em
questão a física mais ampla, e o facto de, ao partir de uma parte
própria do corpo científico de dados, algo inconsistente com a teoria
da relatividade constituir a melhor teoria — esse facto dificilmente
daria aos físicos mais tradicionais algo que refutasse a teoria da
relatividade.
O mesmo ocorre no caso em discussão. O cristão tradicional
pensa que sabe pela féque Jesus era divino e que ressuscitou dos
mortos. Mas então não tem de ficar impressionado pelo facto de estas
proposições não serem especialmente objecto de prova com base no
corpo de dados a que a CBH se limita — i.e., um corpo de dados
restringido pelo NM e que portanto elimina qualquer conhecimento ou
crença que dependa da fé. As descobertas da CBH, se é que o são,
não têm de lhe dar algo que refute as suas crenças com as quais são
incompatíveis. O que está em causa não é que a CBH, a psicologia
evolucionista e outras teorias científicas não podem em princípio
fornecer algo que refute a crença cristã;10 o que está em causa é
apenas o aparecimento de teorias, nessas áreas, incompatíveis com a
crença cristã não produz automaticamente algo que a refute. Tudo
depende dos dados particulares aduzidos no caso em questão, e as
implicações desses dados dado o corpo completo de dados do crente.
No caso em questão, por exemplo, pode ser que, dado o CCD e o
corpo relevante de dados, é improvável que Jesus tenha renascido
dos mortos. Mas dado um corpo de dados que inclua não apenas o
CCD mas também a crença em Deus, juntamente com as crenças
especificamente cristãs de que Jesus é a segunda pessoa da
Trindade encarnada, e que o Novo Testamento é uma fonte de
informação fidedigna nestas questões — dadas estas coisas, a
proposição de que Jesus renasceu dos mortos pode não ser
improvável. Considerações semelhantes se poderiam fazer, é claro,
para outras religiões teístas, e com respeito a outras supostas
refutações científicas.
Uma pessoa poderia protestar que isto parece uma receita para a
irresponsabilidade intelectual, para nos agarrarmos a crenças face aos
dados. Não poderá um crente dizer sempre algo como isto, seja qual
for a refutação que se apresente? “Talvez B (a crença a refutar) seja
improvável com respeito a uma parte do que acredito,” poderá o
crente dizer, “mas certamente não é improvável com respeito à
totalidade do que acredito, totalidade essa que inclui, é claro, a
própria B.” É óbvio que isto não pode estar certo; se estivesse, tudo o
que hipoteticamente poderia refutar algo seria posto de lado deste
modo, e a refutação seria impossível. Mas a refutação não é
impossível; acontece por vezes que adquirimos algo que refuta uma
crença B, ao descobrir que B é improvável com respeito a um dado
subconjunto próprio do nosso corpo de dados. Segundo o livro de
Isaías (41:9), Deus afirma “fui buscar-te aos confins da Terra,
chamei-te dos cantos mais remotos. Eu disse-te: Tu é que és o
meu servo. Foi a ti que escolhi e não te rejeitarei.” Uma pessoa
poderia acreditar que R, a proposição de que a Terra é um sólido
rectangular, com cantos, na base deste texto; terá algo que refuta esta
crença quando for confrontada com os dados científicos — fotografias
da Terra vista do espaço, por exemplo — que a contrariam. Em
qualquer caso, terá algo que refuta R se o resto da sua estrutura
noética for como a nossa. O mesmo acontece com alguém que
sustente crenças pré-copernicianas com base em textos como “A
Terra permanece imóvel; não será deslocada” (Salmos 104:5). Por
que há refutadores em alguns casos, mas não noutros? O que faz a
diferença?
Eis uma sugestão. Considere-se uma crença religiosa B,
incompatível com um resultado de uma teoria científica
actual: B poderia ser, por exemplo, a crença de que a Madre Teresa
era perfeitamente racional ao comportar-se daquele modo altruísta.
Seja a teoria científica a explicação do altruísmo de Herbert Simon, e
seja CDC o corpo de dados do crente. A nossa questão é se A, a
crença de que a teoria de Simon é apropriadamente ciência (e que
implica a negação de B), refuta B. Acrescente-se A ao corpo de dados
de S; agora a questão correcta é, talvez, esta: é B epistemicamente
improvável com respeito à conjunção de A com CDC? Claro que a
própria B poderia ser inicialmente um membro do CDC, caso em que
não seria certamente improvável com respeito a ele. Se isso fosse
suficiente para A não refutar B, contudo, nenhum membro do corpo de
dados poderia alguma vez ser refutado por uma nova descoberta; e
isso não pode estar certo. Assim, apague-se B do CDC. Chame-se ao
resultado de apagar B do corpo de dados de S “CDC reduzido com
respeito a B” — “CDC-B”, abreviando.11 E agora a sugestão —
chamemos-lhe “o teste por redução da refutação” — é
que A refuta B apenas se B for apropriadamente improvável com
respeito à conjunção de A com CDC-B.
Suponha-se que aplicamos este teste à crença B de que a Madre
Teresa era racional ao comportar-se de modo altruísta, sendo A a
crença de que a teoria de Simon do altruísmo é boa ciência e é
incompatível com B; e suponhamos que S é um crente cristão. Para
aplicar o teste por redução temos de perguntar se B é improvável com
respeito à conjunção de A com CDC-B. A resposta, penso, é
que B não é improvável com respeito a essa conjunção. Pois CDC-B
inclui os dados empíricos, seja eles quais forem exactamente, usados
por Simon, mas também a proposição de que nós, seres humanos,
fomos criados por Deus e fomos criados à sua imagem, juntamente
com o resto das ideias principais da história cristã. Com respeito à
conjunção de A com esse corpo de proposições, não é provável que
se a Madre Teresa tivesse sido mais racional, mais esperta, teria
agido para aumentar a sua boa adaptação reprodutiva, em vez de
viver de modo altruísta. Logo, no proposto teste por redução, o facto
de que a teoria de Simon é boa ciência, e é mais provável do que
improvável com respeito ao corpo científico de dados — esse facto
não dá a S algo que refute o que ele pensa sobre a Madre Teresa.
Considere-se, por outro lado, a crença B* de que a Terra tem
cantos e arestas, e os dados fotográficos contra essa crença: aqui,
plausivelmente, o teste por redução tem como resultado que os
segundos refutam B*. (É verdade que um cristão poderia pensar que a
Bíblia é infalível, dado Deus ser o seu autor último; mas é claro que
isso deixa em aberto a questão de saber o que visa Deus ensinar-nos
na passagem em questão.) Assim, o teste por redução dá resultados
sensatos nestes dois casos. Contudo, não pode estar certo em geral
— mais exactamente, está certo em geral apenas aceitando um
pressuposto muito importante, que o crente provavelmente rejeitará.
Pois poderá acontecer, obviamente, que B tenha bastante aval em si
mesma, aval que não obtém dos outros membros do CDC ou, na
verdade, de quaisquer outras proposições. B pode serbásica com
respeito ao aval; B pode obter aval de uma fonte diferente de qualquer
fonte envolvida na teoria científica com a qual é incompatível. Se isso
acontecer, o facto de Bser improvável com respeito a CDC-B não
mostra que S tem algo que refuta B pelo facto de B ser improvável
com respeito a CDC-B juntamente com a A relevante.
Como exemplo ilustrativo, você está a ser julgado por um dado
crime; os dados contra si são fortes, e você é condenado. Contudo,
você lembra-se muito claramente que no momento em que o crime
ocorreu estava a passear sozinho no bosque. A sua crença de que
estava a caminhar no bosque não se baseia em argumentos ou
inferências de outras proposições. (Você não repara, e.g., que se
sente um pouco cansado e que os seus sapatos têm lama, e que está
um mapa da área no bolso do seu casaco, concluindo que a melhor
explicação destes fenómenos é que esteve a caminhar no bosque.)
Assim, considere-se o seu corpo de crenças, SCC, menos P, a
proposição de que não cometeu o crime e estava a caminhar no
bosque quando este foi cometido. Com respeito a SCC-P, P é
epistemicamente improvável; afinal, você tem os mesmos dados do
que o júri a favor de ¬P, e o júri está muito apropriadamente (ainda
que erradamente) convencido de que você cometeu o crime. Contudo,
você não tem aqui, certamente, algo que refuta a sua crença de que
está inocente. A razão, é claro, é que P é para si uma fonte de aval
independente do resto das suas crenças: você lembra-se disso. No
caso destes, ter ou não algo que refute a crença P em questão irá
depender, por um lado, da força do aval intrínseco que tem P, e, por
outro lado, da força dos dados contra P quanto a SCC-P. O aval
intrínseco será muitas vezes mais forte.
O mesmo se aplica a crenças religiosas, se estas de facto tiverem
aval intrínseco. Se Stem uma crença religiosa B e se B tiver aval do
modo básico, então mesmo que a probabilidade de B quanto a CDC-B
juntamente com a A relevante seja baixa, não se segue
que A refuta B para S. Talvez o teste por redução ofereça uma
condição necessária para que A refute B para S; é também suficiente
apenas se as crenças religiosas não tiverem aval ou estatuto
epistémico positivo de um modo básico, e apenas se não adquirem
aval ou estatuto epistémico positivo de uma fonte além das que
conferem esse estatuto às crenças científicas. É por isso, em parte,
que a questão mencionada na secção 2 é importante.
5. Naturalismo e ciência
Examinámos até agora o alegado conflito entre a crença religiosa e a
ciência, com respeito a várias áreas: evolução, acção divina no
mundo, a diferença entre a atitude científica e a religiosa, psicologia
evolucionista e CBH. Mas houve quem sugerisse um conflito entre a
ciência e a religião (ou entre a ciência e a quase-religião) de um
género totalmente diferente: entre o naturalismo e a ciência (Otte
2002; Plantinga 1993, 2002a; Rea 2002; Taylor 1963; há também
sugestões disto em Nietzsche 2003 e no próprio Darwin 1887).
Ora bem, o naturalismo é muito diversificado. Primeiro, há a
perspectiva de que a natureza é tudo o que há; não há seres
sobrenaturais. Claro que isto é um pouco fraco como explicação do
naturalismo; precisamos de saber o que é a natureza, e como
poderiam ser os alegados seres sobrenaturais. Talvez um modo de
proceder seja dizer que o naturalismo, concebido deste modo, é a
perspectiva de que não há uma pessoa como o Deus do teísmo, ou
algo como Deus (veja-se, por exemplo, Beilby 2002). Chame-se a isto
“naturalismo1.” Outra variedade de naturalismo, “naturalismo
científico,” como lhe poderíamos chamar, seria a tese de que não há
entidades além das que são sancionadas pela ciência actual (Kornblith
1994).12 Dado que a ciência actual não sanciona seres sobrenaturais, o
naturalismo científico implica o naturalismo1. Há também o que
poderíamos chamar “naturalismo epistemológico,” segundo o
qual, grosso modo, os métodos da ciência são os únicos métodos
epistémicos apropriados (Krikorian 1994). Com a ajuda de um par de
premissas razoavelmente óbvias, o naturalismo epistemológico implica
também o naturalismo1, e eu irei usar “naturalismo” para referir a
disjunção das três versões de naturalismo esboçadas. Os partidários
do naturalismo, concebido deste modo, seriam (por exemplo) Bertrand
Russell (1957), Daniel Dennett (1995), Richard Dawkins (1986), David
Armstrong (1978) e muitos outros de quem por vezes se diz que
subscrevem “a mundividência científica.”
O naturalismo não é, presumivelmente, uma religião. Num aspecto
muito importante, contudo, é parecido a uma religião: pode-se dizer
que desempenha a função de uma religião. Há o domínio de questões
profundamente humanas a que uma religião tipicamente responde
(veja-se acima, secção I): qual é a natureza fundamental do universo:
por exemplo, é a mente primordial, ou a matéria (não mental)? O que
há de mais real e básico na realidade, e que tipos de entidades exibe?
Qual é o lugar dos seres humanos no universo, e que relação têm com
o resto do mundo? Há perspectivas de uma vida depois da morte?
Existe pecado, ou algo a análogo ao pecado? Se sim, que
perspectivas existem de o combater ou ultrapassar? Onde temos de
atentar para melhorar a condição humana? Há realmente
um summum bonum, um bem mais elevado para os seres humanos, e
se sim, o que é? Como uma religião típica, o naturalismo dá um
conjunto de respostas a estas e outras questões semelhantes.
Podemos portanto dizer que o naturalismo desempenha a função
cognitiva de uma religião, e portanto é sensato concebê-lo como uma
quase-religião.
Acresce que muitos pensadores, remontando pelo menos a
Nietzsche (2003) e possivelmente a William Whewell (Curtis 1986),
fizeram notar uma implicação potencialmente preocupante da teoria
da evolução. A preocupação pode ser formulada como se segue.
Segundo o darwinismo ortodoxo, o processo da evolução é conduzido
principalmente por dois mecanismos: mutação genética aleatória e
selecção natural. O primeiro é a fonte principal de variabilidade
genética; em virtude da segunda, uma mutação que resulte num traço
transmissível geneticamente e que aumente a boa adaptação irá
provavelmente espalhar-se por essa população e ser preservada
como parte do genoma. São os comportamentos e traços que
aumentam a boa adaptação que são recompensados pela selecção
natural; o que é penalizado são traços e comportamentos que
dificultam a boa adaptação. Ao produzir as nossas faculdades
cognitivas, a selecção natural irá favorecer as faculdades e processos
cognitivos que resultem em comportamento adaptativo; não se importa
nem um pouco com a crença verdadeira (enquanto tal) nem com as
faculdades cognitivas que conduzem de modo fidedigno à crença
verdadeira. Como afirmou o psicólogo evolucionista David Sloan
Wilson, “a mente bem adaptada é em última análise um órgão de
sobrevivência e reprodução” (Wilson 2002, 228). Se as nossas mentes
servem para algo, não é a produção de crenças verdadeiras, mas
antes a produção de comportamento adaptativo: que a nossa espécie
tenha sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o nosso
comportamento é adaptativo; não garante, nem sequer torna provável,
que os nossos processos de produção de crenças sejam na sua maior
parte fidedignos, ou que as nossas crenças sejam na sua maior parte
verdadeiras. Isto porque o nosso comportamento poderia
perfeitamente ser adaptativo, mas as nossas crenças serem tão
frequentemente falsas como verdadeiras. O próprio Darwin se
preocupou aparentemente com esta questão:
“Comigo, levanta-se sempre a dúvida horrível de as convicções da mente humana, que foi desenvolvida a partir da mente dos animais inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente dignas de confiança. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se é que em tal mente há quaisquer convicções?” (Darwin 1887)
Podemos formular brevemente a dúvida de Darwin como se segue.
Seja R a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são
fidedignas, N a proposição de que o naturalismo é verdadeiro e E a
proposição de que nós e as nossas capacidades cognitivas surgimos
dos processos apontados pela teoria evolucionista contemporânea:
qual é a probabilidade condicional de R dado N&E? I.e., qual é o valor
de P(R | N&E)? Darwin receia que seja muito baixo.
Mas é claro que só a evolução natural que não seja guiada dá
origem a esta preocupação. Se a selecção natural for guiada e
orquestrada pelo Deus do teísmo, por exemplo, a preocupação
desaparece; Deus usará todo o processo, presumivelmente, para criar
criaturas do género que quer, criaturas à sua própria imagem,
criaturas com faculdades cognitivas fidedignas. Assim, é a evolução
que não é guiada, e as crenças metafísicas que implicam a evolução
que não é guiada, que dão origem a esta preocupação quanto à
fiabilidade das nossas faculdades cognitivas. Ora, o naturalismo
implica que a evolução, se ocorre, não é realmente guiada. Mas então,
segundo esta sugestão, é improvável que as nossas faculdades
cognitivas sejam fidedignas, dada a conjunção do naturalismo com a
proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas surgimos
por meio da selecção natural, peneirando a variação genética
aleatória. Sendo assim, quem crê nesta conjunção terá algo que refuta
a proposição de que as nossas faculdades são fidedignas — mas se
isso for verdadeiro, terá também algo que refuta qualquer crença
produzida pelas suas faculdades cognitivas — incluindo, é claro, a
conjunção do naturalismo com a evolução. Assim se vê que essa
conjunção é auto-refutante. Se o for, contudo, tal conjunção não pode
racionalmente ser aceite, caso em que há um conflito entre o
naturalismo e a evolução, e portanto entre o naturalismo e a ciência.
Podemos formular esquematicamente o argumento como se
segue:
1. P(R | N&E) é baixa.
2. Quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta R.
3. Quem tem algo que refuta R tem algo que refuta qualquer outra
crença que tenha, incluindo a própria N&E.
4. Logo, quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que
refuta N&E; logo, N&E não pode ser racionalmente aceite.
Claro que esta é uma versão concisa e meramente esquemática do
argumento; não há aqui espaço para as necessárias qualificações.
A defesa de 1 seria algo como o seguinte. Primeiro, para evitar a
influência do nosso pressuposto natural de que as nossas faculdades
cognitivas são fidedignas, pensemos não sobre nós, mas sobre
criaturas hipotéticas muito parecidas connosco, existindo talvez noutra
parte do universo; e suponha-se que N e E são verdadeiras com
respeito a elas. De seguida, note-se que o naturalismo implica
aparentemente o materialismo (quanto aos seres humanos); a ciência
actual não sustenta a existência de almas imateriais ou mentes ou
eus. Assim, considere-se que o naturalismo inclui o materialismo. O
que seria uma crença, deste ponto de vista? Presumivelmente, algo
como um acontecimento ou estrutura de longo prazo no sistema
nervoso — talvez um grupo estruturado de neurónios conectados e
relacionados de certos modos. Tal estrutura neuronal terá
propriedades neurofisiológicas (“propriedades NF”): propriedades que
especificam o número de neurónios envolvidos, o modo como estes
neurónios estão conectados entre si e com outras estruturas (como
músculos, glândulas, órgãos dos sentidos, outros acontecimentos
neuronais, etc.), a cadência e intensidade médios dos disparos
neuronais em várias partes deste acontecimento, e os modos como
estas cadências de disparos mudam ao longo do tempo e em resposta
aos dados de entrada de outras áreas. Se este acontecimento for
realmente uma crença, contudo, terá também conteúdo; será a crença
de que p, para uma dada proposição p — talvez a proposição de
que o naturalismo está na berra hoje em dia.Qual é a relação entre as propriedades NF, por um lado, e as
propriedades do conteúdo — propriedades como ter como conteúdo a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia —, por
outro? Talvez a posição mais popular aqui seja o “materialismo não
redutor” (MNR): as propriedades do conteúdo são distintas mas
sãosobrevenientes relativamente às propriedades NF.13 A
sobreveniência pode ser ou lógica, em termos latos, ou nómica. Neste
último caso, haveria leis psicofísicas relacionando as propriedades NF
com as propriedades do conteúdo: leis do género qualquer estrutura com tais e tais propriedades NF terão tal e tal conteúdo. Estas leis
serão presumivelmente contingentes (no sentido lógico lato ou no
sentido metafísico). No primeiro caso, haverá também tais leis, mas
serão necessárias e não contingentes.
Ora, tome-se qualquer crença B da parte de um membro dessa
hipotética população: qual é a probabilidade (epistémica) de
que B seja verdadeira, dado N&E e o materialismo não redutor — qual
é o valor de P(B | N&E&MNR)? O que sabemos é que B tem um certo
conteúdo (chamemos-lhe “C”), e (podemos admitir ou conceder)
ter B é adaptativo nas circunstâncias em que a criatura se encontra.
Qual é então a probabilidade de que C, o conteúdo de B,
seja verdadeiro? Bem, qual é a probabilidade de que a lei psicofísica
relevante L que liga as propriedades NF e as propriedades do
conteúdo produza uma proposição verdadeira como conteúdo neste
caso? Ter B é adaptativo, nas circunstâncias em que a criatura se
encontra; exibir as propriedades NF sobre as quais C sobrevém causa
comportamento adaptativo. Mas porquê pensar que o conteúdo
conectado às propriedades NF por L será verdadeiro nas
circunstâncias desta criatura? O que conta como adaptatividade são
as propriedades NF e o comportamento que estas causam; não
importa se o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. As propriedades
NF são de facto adaptativas; mas isso não fornece qualquer razão, até
agora, para pensar que o conteúdo sobreveniente é verdadeiro.
Ter B é adaptativo em virtude de causar comportamento adaptativo, e
não em virtude de ter um conteúdo verdadeiro. Claro que se o teísmo
for verdadeiro, então os seres humanos (ao contrário dessas
hipotéticas criaturas, para quem o naturalismo é verdadeiro) são feitas
à imagem divina, o que inclui a capacidade de conhecimento; assim,
Deus escolheria presumivelmente as leis psicofísicas de modo a que,
nas circunstâncias relevantes, a neurofisiologia produza conteúdo
verdadeiro. Mas nada disto é verdadeiro dado o naturalismo; supor
que as propriedades do conteúdo que são adaptativas conduzem
também, na sua maior parte, a conteúdo verdadeiro, seria um
optimismo totalmente injustificado.
Assim, qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? Bem, dado que a
verdade de B não faz diferença quanto à adaptatividade de B, esta
poderia efectivamente ser verdadeira, mas é igualmente provável que
seja falsa; teríamos de calcular que a probabilidade de que é
verdadeira é mais ou menos a mesma do que a probabilidade de que
é falsa. Mas isto significa que é improvável que o crente em questão
tenha faculdades cognitivas fidedignas, i.e., faculdades que produzem
uma preponderância suficiente de crenças verdadeiras em relação às
falsas. Por exemplo, sendo assim, se o crente em questão tiver mil
crenças independentes, cada uma delas tendo igual probabilidade de
ser falsa ou verdadeira, a probabilidade de, digamos, 3/4 delas serem
verdadeiras (e isto seria uma exigência modesta de fiabilidade) seria
muito baixa — menos de 10-58. Assim, P(B |N&E&MNR), aplicada a
estas criaturas, será baixa. Mas é claro que o mesmo se aplicaria a
nós, se o naturalismo fosse verdadeiro: P(B | N&E&MNR), aplicada a
nós, seria igualmente baixa.14
Este é o argumento para a primeira premissa. Segundo a
premissa 2, quem vê isto e também aceita N&E tem algo que refuta R,
uma razão para a abandonar, para deixar de crer nela. A defesa
oferecida desta premissa é por meio de uma analogia partindo de
casos claros. Suponha-se que acredito que há uma droga —
chamemos-lhe XX — que destrói a fiabilidade cognitiva; eu acredito
que 95% dos que ingerem XX perdem a fiabilidade cognitiva.
Suponha-se ainda que eu acredito agora que ingeri XX e que P(R |
ingeri XX) é baixa; tomadas conjuntamente, estas duas crenças dão-
me algo que refuta a minha crença inicial ou pressuposto de que as
minhas faculdades cognitivas são fidedignas. Além disso, não posso
apelar para qualquer das minhas outras crenças para mostrar ou
argumentar que as minhas faculdades cognitivas ainda são fidedignas;
qualquer dessas outras crenças está também agora sob suspeita ou
está comprometida, tal como R. Qualquer outra crença B é um produto
das minhas faculdades cognitivas: mas então, ao reconhecer isto, e
tendo algo que refuta R, tenho também algo que refuta B. Claro que
haverá muitos outros exemplos: chego ao mesmo resultado se
acreditar que sou um cérebro numa cuba e que P(R | sou um cérebro
numa cuba) é baixa; o mesmo se aplica à versão cartesiana clássica
da mesma ideia (nomeadamente, que fui criado por um ser que gosta
de me enganar) e também para cenários mais corriqueiros, por
exemplo, a crença de que enlouqueci (talvez porque tenha sido
contaminado com a doença das vacas loucas). Em todos estes casos,
tenho algo que refuta R.Ora, segundo a premissa 3, quem tem algo que refuta R, tem algo
que refuta qualquer crença que considere que é um produto das suas
faculdades cognitivas — que são, é claro, todas as suas crenças.
Essa pessoa tem portanto algo que refuta a própriaN&E; quem aceita N&E (e vê que P(R | N&E) é baixa) tem algo que refuta N&E, uma
razão para duvidar dela ou rejeitá-la ou para ser agnóstico com
respeito a ela. Nem poderia essa pessoa obter indícios independentes
a favor de R; o processo de o fazer iria é claropressupor que as suas
faculdades são fidedignas. Ela estaria a apoiar-se na precisão das
suas faculdades para acreditar que os alegados indícios estão de
facto presentes e que são de facto indícios a favor de R. Thomas Reid
(1785, 276) formulou este aspecto como se segue:
“Se a honestidade de um homem é posta em causa, seria ridículo basearmo-nos na sua própria palavra, seja ele honesto ou não. O mesmo absurdo há ao procurar provar, por qualquer tipo de raciocínio, provável ou demonstrativo, que o nosso raciocínio não é falacioso, dado que o que está em causa é o nosso raciocínio ser ou não digno de confiança.”
O argumento conclui que a conjunção de naturalismo com a teoria da
evolução não pode ser racionalmente aceite — em qualquer caso, por
alguém que seja posto ao corrente deste argumento e veja a conexão
entre N&E e R.
Como seria de esperar, este argumento tem sido controverso.
Várias objecções lhe foram levantadas (Beilby 1997; Ginet 1995, 403;
O'Connor 1994, 527; Ross 1997; Fitelson e Sober 1998; Robbins
1994; Fales 1996; Lehrer 1996; Nathan 1997; Levin 1997; Fodor
1998). Houve respostas a estas objecções (Plantinga 2002a; 2003),
respostas a estas respostas (Talbott, 2010), etc.; não há qualquer
consenso com respeito ao argumento. Se o argumento for correcto,
contudo, e N&E não puder ser racionalmente aceite, então há um
conflito entre o naturalismo e a evolução; não se pode racionalmente
aceitar ambos. Assim, há um conflito entre o naturalismo e uma das
bases principais da ciência contemporânea. Na medida em que o
naturalismo é uma quase-religião em virtude de desempenhar a
função cognitiva de uma religião, há uma espécie de conflito entre a
religião e a ciência —não entre a religião teísta e a ciência, mas entre
o naturalismo e a ciência.
Alvin PlantingaArtigo originalmente publicado em The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/sum2010/entries/religion-science/.
AgradecimentosPelos conselhos sábios e boas sugestões, agradeço a Brian Boeninger, Thad Botham, E.J. Coffman, Robin Collins, Tom Crisp, Chris Green, Jeff Green, Marcin Iwanicki, Nathan King, Dan McKaughan, Dolores Morris, Brian Pitts, Luke Potter e Del Ratzsch.
Notas
1. Mas o que dizer do empirista construtivo e do instrumentalista? Bem,
em qualquer caso visam fazer previsões verdadeiras, ou teorias que
visam fazer previsões verdadeiras, ainda que não teorias verdadeiras.
2. Distinguimos aqui entre a crença em Deus e a crença de que Deus
existe. A crença em Deusinclui a crença de que Deus existe e, além
disso, envolve confiar em Deus, fazer dos seus os nossos propósitos,
identificarmo-nos com ele e/ou com os seus propósitos, venerá-lo,
comprometermo-nos com ele, etc.
3. Há excepções. Você usa um computador para calcular o produto de
um par de números com seis algarismos; o computador devolve um
certo número n. O seu conhecimento de que o produto é de facto n —
que é, evidentemente, necessário — é a posteriori; depende do seu
conhecimento a posteriori de que o computador apresenta respostas
correctas. Denomino o mundo efectivo “α;” então, é uma verdade
necessária que (digamos) houve uma guerra civil em α, mas a única
maneira de você conhecer esta verdade necessária é a posteriori.
4. Houve quem afirmasse haver verdades contingentes de que temos
conhecimento a priori.Outros afirmam que isto é um erro; veja-se
Plantinga 1974, p. 8, n. 1.
5. “Se existisse uma explicação simples, seria antes em termos da
habitual autoridade societal implacável na supressão da opinião
minoritária, e, no caso de Galileu, com o aristotelismo, e não o
cristianismo, no lugar de autoridade.” (Drake 1980, v).
6. A sugestão não é que nenhuma teoria científica pode conter
elementos metafísicos; a sugestão é apenas que esta afirmação
particular é claramente metafísica, e também claramente um
acrescento: não faz parte da teoria evolucionista tal como esta é
actualmente entendida.
7. “Impliquem obviamente”: segundo a maior parte das crenças teístas
tradicionais, a existência de Deus é uma verdade necessária. Se o for,
contudo, todas as proposições a implicariam, de modo que a condição
em questão tem de ser formulada com maior circunspecção.
8. Devo sublinhar que a CBH é um projecto, e não um instrumento. Os
instrumentos usados pelos especialistas em crítica bíblica histórica —
conhecimento da língua, cultura e história relevante, crítica da
resposta do leitor, crítica narrativa, ideias das ciências sociais — são
também, é claro, instrumentos dos comentadores bíblicos tradicionais,
assim como de quem levanta as questões levantadas pelos
especialistas em crítica bíblica histórica, mas de uma perspectiva não
limitada pelo NM.
9. Algo que refuta uma crença B que eu tenha é outra crença D que
adquiro tal que, dada a minha série particular de crenças e a força
com que as mantenho, não posso racionalmente continuar a
aceitar B desde que aceite D; se D for algo que refuta parcialmente B,
então não posso continuar a aceitar (acreditar) B com a mesma força.
10.Suponha-se que se descobre uma série de cartas e as últimas
técnicas de datação as localizam na primeira parte do séc. I; nas
cartas mais antigas os apóstolos planeiam o embuste, e nas mais
recentes congratulam-se por ter tudo corrido muito bem... Veja-se van
Fraassen (1993), p. 322.
11.Claro que temos também de eliminar proposições que implicam B, e
talvez certas proposições probabilisticamente relacionadas com B. Em
geral, haverá mais de uma maneira de o fazer. Sem entrar em
pormenores, digamos (um pouco vagamente) que CDC-B é qualquer
subconjunto de CDC que não implica B e, à parte isso, é
maximamente semelhante a CDC.
12.Alternativamente, o naturalismo científico deve ser visto como a
injunção ou resolução de não tolerar quaisquer entidades que não
sejam sancionadas pela ciência contemporânea; see van Fraassen
(2002).
13.Ou, para acomodar o externismo quanto ao conteúdo (“o significado
não 'tá na cabeça”), relativamente às propriedades NF juntamente
com certas propriedades do meio ambiente. Esta qualificação estará
pressuposta mas não mencionada no que se segue.
14.Podemos argumentar de modo semelhante a favor da baixa
probabilidade de R dado N&E e o materialismo redutor, a ideia de que
as propriedades de conteúdo são apenas propriedades NF
(complexas); limitações de espaço não permitem apresentar aqui o
argumento.
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