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C.D.U: 301.185.12(81=96) Mundicarmo Maria Rocha Ferretti (1) RELIGIÃO "AFRO-BRASILEIRA, COMO RESPOSTA ÀS AFLIÇOES" RESUMO Relato de observação realizada em um terreiro de Umbanda de urna comunidade de Natal (RN) onde,ao lado do sistema afro, realizam-se rituais de origem ameríndia ligados a "Jurema". Além da descrição do terreiro, procura examinar suas relações com a Igreja Católica e com o sistema oficial de saúde, assim como analisar os m~ tivos que levaram as pessoas a procurar, como clientes, aquele centro e as formas ali existentes de atendimento às suas necessidades. Discute finalmente a posição da cura nos terreiros e questiona a eficácia da utilização de suas práticas p~los não iniciados. 1 INTRODUçAo Embora seja uma grosse~ ra simplificação reduzir os te~ reiros (Centros de religião afro- brasileira) a casas de "cura", atualmente as atenções de muitos cientistas convergem para eles, encarados como "centros de medi cina alternativa" (1). Em são Luís, na casa-de- santo mais prestigiada pelo seu tradicionalismo, a "Casa das Mi nas~ a cura talvez não ocupe lu gar maior do que aquele que lhe é reservado pelo catolicismo PQ pular. Tal como foi dito nos es tudos clissicos (2), na Casa das Minas o desempenho maior daquela função e encarado como "afasta mento da ortodoxia", ou como si nal de absorção de elementos cul turais ameríndios. A busca na religião de alívio para aflições, contudo, é bastante conhecida e, inegave..!. mente, um certo número de pessoas que procuram os terreiros enco~ tram-se atribuladas por probl~ mas de saúde, às vezes não reso..!. vidas pela medicina científica, quer por falta de recursos finan ceiros, quer por ineficicia dos (1) Mestre em Ciências Sociais - Antropologia. Professora Adjunto - Departamento de Psicologia - UFMA. Cad4 Pesq. são Luís, 4 (1) 87 - 97, jan./j un . 1988 87

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C.D.U: 301.185.12(81=96)

Mundicarmo Maria Rocha Ferretti (1)

RELIGIÃO "AFRO-BRASILEIRA, COMO RESPOSTA ÀS AFLIÇOES"

RESUMO

Relato de observação realizada em um terreiro de Umbanda de urna comunidadede Natal (RN) onde,ao lado do sistema afro, realizam-se rituais de origem ameríndialigados a "Jurema". Além da descrição do terreiro, procura examinar suas relaçõescom a Igreja Católica e com o sistema oficial de saúde, assim como analisar os m~tivos que levaram as pessoas a procurar, como clientes, aquele centro e as formasali existentes de atendimento às suas necessidades. Discute finalmente a posiçãoda cura nos terreiros e questiona a eficácia da utilização de suas práticas p~losnão iniciados.

1 INTRODUçAo

Embora seja uma grosse~ra simplificação reduzir os te~reiros (Centros de religião afro-brasileira) a casas de "cura",atualmente as atenções de muitoscientistas convergem para eles,encarados como "centros de medicina alternativa" (1).

Em são Luís, na casa-de-santo mais prestigiada pelo seutradicionalismo, a "Casa das Minas~ a cura talvez não ocupe lugar maior do que aquele que lheé reservado pelo catolicismo PQpular. Tal como foi dito nos es

tudos clissicos (2), na Casa dasMinas o desempenho maior daquelafunção e encarado como "afastamento da ortodoxia", ou como sinal de absorção de elementos culturais ameríndios.

A busca na religião dealívio para aflições, contudo, ébastante conhecida e, inegave..!.mente, um certo número de pessoasque procuram os terreiros enco~tram-se atribuladas por probl~mas de saúde, às vezes não reso..!.vidas pela medicina científica,quer por falta de recursos financeiros, quer por ineficicia dos

(1) Mestre em Ciências Sociais - Antropologia. Professora Adjunto - Departamentode Psicologia - UFMA.

Cad4 Pesq. são Luís, 4 (1) 87 - 97, jan ./jun . 1988 87

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tratamentos (3) e (4).

No segundo semestre de

1980, enquanto aluna de AntropQ

logia da Religião, no Mestrado

em Ciências Sociais da UFRN, rea

lizamos urna observação em um Cen

tro de Urnbanda de um bairro prQ

letário de Natal, procurando de

tectar as relações ali existen

tes entre religião e medicina.

O trabalho foi orientado por M~

deleine Recheport, então empe

nhada no levantamento de experi

ências terapêuticas realizadas

pelos diversos centros religiQ

sos existentes no mesmo bairro.

A pesquisa desenvolveu-

se durante quatro meses, envol

vendo sete observações de cerca

de três horas. Durante o traba

lho tivemos a oportunidade de as

sistir a um Candomblé, a uma se

çao de Jurema, a jogos de búzio

e a uma "panela de Iemanjá" rea

lizada em terreiro ligado ao Cen

tro. Fizemos também entrevistas

com a mãe-de-santo e entabulamos

conversa com membros, clientes

e freqlientadores da casa durante

nossas idas ao terreiro.

Neste trabalho tentamos,

em primeiro lugar, descrever de

forma resumida o terreiro, suas

relações com o catolicismo e com

o sistema oficial de saúde. Num

segundo momento, procuramos de

tectar os motivos que levaram as

pessoas a procurar, como clientes,

aquele Centro e as formas ali

existentes de atendimento às suas

necessidades. Procuramos, também,

a partir de depoimentos de fi

lhos-de-santo, discutir o valor

terapêutico do transe religioso,

tão apregoado atualmente no Bra

sil nos meios psiquiátricos nao

tradicionais.

2 o TERREIROLocalizado emMãe Luísa,

um dos bairros proletários de Na

tal, o terreiro observado ocupava

a maior parte da área da residên

cia da mãe-de-santo, ficando o

espaço religioso entre a sala e

a cozinha. A casa, situada na

principal rua do bairro, era de

alvenaria, coberta de telha e com

piso de cerâmica. Possuía agua

encanada, luz elétrica e ficava

bem próxima da parada de ônibus

e de várias pequenas casas de co

mércio onde se poderia comprar

vela,cachaça e outras coisas ne

cessárias aos rituais. Além de

terraço, duas salas, dois quartos,

banheiro, cozinha e quintal, h~

via ali um barracão e dOl'S qua!,

tos de santo, o do Orixá e o do

Jaguarema.

Apesar de ser denominado

"Centro Espírita Umbanda" e de se

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·declarar seguir nele a linhanagô, de origem af rí.cana , a chefedo terreiro, nossa principal informante, definia-se em termos religiosos como católica, devotado Padre Cícero e de Nossa Senhorados Impossíveis,invocação muitoconhecida no Rio Grande do Norte.

A instituição foi regi~trada na Federação de Umbanda deRecife em 1957 mas,segundo aquelafonte, já existia ali há váriosanos,pois,antes de se transferirpara Natal, residiu 40 anos naquela cidade, onde foi iniciadana religiáo afro-brasileira.

Embora não se ligJsse anenhuma das Federações de Natal,não estava isolada. Uma rede deoutros terreiros nat aLenses e decidades próximas se ligavam aela, algumas vezes recebendoorientação da mãe-de-santo.

Parece que no passadoteve mui tos membros mas, na epoc:da pesquisa, apesar de sua chefedeclarar a existência de 40 a 50membros, quase não se realizavamali cerimônias públicas e não sedispunha mais de tocadores, queeram substituídos por crianças,às vezes menores de 10 anos, oupor tocador cedido por terreiroamigo.

A líder do Centro erapessoa muito idosa, magra e de

saúde precária. Morava com trêsnetos de 8 a 13 anos que a auxiliavam nos "trabalhos" e nos rituais públicos, tocando tambor,atendendo as entidades que bal:.xavam,etc. Ocupava grande partedo seu tempo em jogo de búzio e"trabalhos" solicitados por cll:.entes, que pareciam muito numerosos. Sendo feita na linha deOrixá e de caboclo,aceitava tr~balhos tanto "para a direita como para a esquerda".

Embora tivesse j ust i f icado sua magreza afirmando que nãotinha auxiliar e que, quando e~tava com seus" guias ",não poderiacomer,mais tarde fomos informadosde que fora internada no sanat~rio com tuberculose avançada-doença também contraída pelo m~nos por duas de suas filhas-de-santo, como tivemos oportunidadede constatar pelos seus comentários após o transe religioso.

A clientela do terreiroera constituída,em 1980, por pe~soas do bairro e por "gente quetem carro", categoria esta geral:.mente de nível sócio-econõmicomais alto e constituída muitasvezes por pessoas "de fora" (deoutras cidades). Pelo aspecto dacasa dava para se concluir queno passado sua clientela forabem mais rica ou numerosa. Falandode sua situação na época da pe~

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qui.sa , explicou a chefe do terr e í.ro . "O santo e que manda a

pessoa" (cliente) , "Tudo que tem

aqui foi dado por eles", "A ge~te não pode e botar uma coisanuma pessoa para ela ter que virtirar ... "

Em duas festas que paEticipamos,pudemos constatar quea maior parte das pessoas quedançavam ali e que freqlientavamo Centro nos dias de festa erampessoas ligadas à mãe -de-santopor laços consangliíneos (mãe,irmã, sobrinha, neta, etc.), emsua maioria mulheres e residentesno mesmobairro.

Embora na entrada da casa existisse umcartaz proibindoa entrada de crianças,elas eramtraz idas pelas mães nas noi tes emque havia ritual e duas delas, de

cerca de 8 anos,já recebiam sa~to. A participação de criançasnas atividades do terreiro p~recia ser desencoraj ada pela mãe-de-santo, por considerar as obri.gações de um filho-de-santo muito sérias para serem assumidasna infãncia.

Coexistiam no terreiroobservado dois sistemas religi~sos, um de origem afro (linhanagõ) e outro de origem ameríndia(linha de Jurema), ambos influenciados pelo espiritismo e pelocatolicismo. A .penetração deste

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se fazia sentir tanto pela pr~sença dos santos como pela freqliência com que se recorria aorações católicas nos rituais.Embora houvesse ali cerimôniassó para Orixás e só para jurem~dos (e houvesse quartos separadospara as entidades das duas linhas), parecia haver influênciamútua entre os dois sistemas,inclusive fomos informados daexistência ali de "toque" paracaboclos.

Havia também interpen~tração entre os dois sistemas.Assim,o jogo de búzio (de origemafro) era quem normalmente indicava a necessidade de se fazerum trabalho e este, algumas vezes,deveria ser feito na Jurema.

Pelo depoimento da chefeda casa, o pessoal do terreiro,embora se considerasse católicoe costumasse iniciar seus rituaiscomorações e invocações oriundasdaquela religião, era objeto dediscriminação pelos representa~tes do clero, ligando-se àquelaigreja principalmente enquantoromeiro do Juazeiro do Norte, devoto do Padre Cícero.

Conscientes do pr ecoric eL

to do clero em relação às religiões afro-brasileiras, os membros daquele terreiro nao par~ciam nem inclinados a abandonara religião dos Orixás, nem emp~

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nhados em lutar pela sua aceitação

por outros segmentos da socieda

de. Como expressou nossa infor

mante: "Acima dos padres está

Deus, que é nosso advogado e q~e

sabe que não há mal nenhum em se

matar um pinto em sacrifício,

quando todo mundo vive comendo g~

linha ... "

As relações com o sistema

oficial de saúde pareciam então

menos cheias de conflito do que

o foram no passado. Segundo a

mãe-de-santo, já se conseguia en

trar num hospi tal para fazer "tra

balho" e tirar de lá pessoas que

nao tinham "doença de médico", a

fim de tratá-Ias em casa pela

"seita".

Na época da pesquisa, mui

tos clientes do terreiro estavam

sendo submetidos ao mesmo tempo

a tratamento médico e espiritual

e, se muitos nao procuravam os

dois, era mais por falta de re

cursos ou por acredi tar que o seu

caso era só espiritual, do que por

julgar as duas esferas incompati

veis.

Conforme nos explicou a

mãe-de-santo, para eles há males

diagnosticados pelo jogo de búzio,

os quais fogem totalmente a com

petência do médico e que só podem

ser resolvidos no terreiro. Ad

mi tem, também, a situação inver

sa, embora que nos casos meneio

Cad. Pesq. são Luís, 4 (1)

nados nunca se tenha referido a

encaminhamento de clientes a

serviços médicos antes de terem

feito "obrigação" no terreiro.

3 ATENDIMENTO AOS CLIENTES

Pelo que pudemos perc~

ber tanto pela obrigação como

pelos depoimentos colhidos du

rante a pesquisa, os motivos

que levavam as pessoas a se a

proximarem da casa como clientes

eram bastante variados. Enqua~

to urnas procuravam o terreiro

devido a problemas ae saúde,o~

tras eram traz idas por problemas

financeiros, sentimentais, ou

por desentendimentos dentro da

família, trabalho ou vizinhança,

muitas vezes relacionados 'com

loucura,alcoolismo e criminali

dade.

Grande parte daquelas

pessoas estavam se sentindo

"passadas para trás" ou ameaç~

das por terceiros - traídas p~

10 marido, marcadas pelo chefe

ou pelo professor, rebaixadas

no emprego ou alvo de inveja de

viz inhos e companheiros - e seus

problemas eram interpretados

ali como "coisa feita".

Segundo explicação da

chefe do terreiro,há gente que

vive pensando só em prejudicar

os outros. Muitos dos que estão

presos ou hospi talizados pr~

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cisam de um trabalho para desfazer

malefícios, pois "os guias não são

maus mas sao como crianças, ofer~

cendo comida e sabendo falar com

eles se consegue que façam tudo o

que se quer ... "

Existia ainda atribula

çoes que eram tidas como próprias

dos filhos de certos santos dota

dos ou não de mediunidade. "Os de

Xangõ sao dados a perturbações

mentais, os de Abaluaiê (São Se

bastião) a doenças de pele e a to

da sorte de dificuldade pois o

santo está amarrado. Já os de

Iansã,mesmo que vivam enfrentando

dificuldades devido a relação d~

ia com os "oguns", sempre conse

guem vencer,pois sua protetora é

forte e quando invocada pode de

morar, mas nunca falhar".

No período pré-eleitoral

era comum a casa ser procurada

também por políticos à cata de v~

tos ou de proteção do sobrenatural.

Conforme a mesma informante,

aqueles sempre prometiam grandes

ajudas mas nunca voltavam após as

eleições ou nunca se lembravam de

que estiveram lá, quando procur~

dos por eles.

Fomos também informados

de que alguns freqllentadores de

terreiro tinham propósitos não d~

clarados de abrir uma casa de Um

banda, sem passar pela devida ini

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c í acâo , Emrelação àqueles, e sc l.a

receu a mesma fonte: "Não adianta

olhar, pois podem aprender alguma

coisa mas, como não sabem o que

se faz antes, se jogarem o jogo

e cego e se pedirem alguma coisa

ao santo ele não atende ..• "

Os problemas apr e sent.a

dos pelos clientes eram ali clas

sificados como sendo coisa para

Orixá,para o Caboclo ou para os

da esquerda.

Os Orixás, vistos mais

como protetores dos homens, ti

nham urna função preventiva, em

bora pudessem ser chamados para

resolver problemas que não t í ve s

sem sido provocados por magia e

não exigissem soluções imediatas.

Os trabalhos realizados

por Orixás eram sempre "para a

direita". Em geral, através de

oferendas o devoto procurava

obter maior proteção ou a sus

pensão de um castigo recebido.

Por intermédio do jogo de búzio

o cliente era informado ares

peito do que deveria oferecer a

divindade para pôr um fim em

suas aflições. Feita a "obrig~

ção", passava a aguardar os resu.!.

tados que, embora nunca fossem

imediatos, eram certos, pois "o

santo em hipótese alguma aceitava

uma oferta maior de outra pessoa

interessada em sua ruína".

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Na linha de Jurema traba l.hava=se tanto para a "direita~sob o comando do caboclo Tup!nambâ , como para a "esquerda",sob as ordens de zé Pilintra ede Exu, seu "portador", de modoque tudo poderia ser ali solicitado.

Nos trabalhos para a "e~querda" os juremeiros ou mestresda Jurema agiam através de Exu,embora no terreiro se afirmasseque este também trabalhava paraa direita. Exu era chamado pri~cipalmente para resolver probl~mas decorrentes de magia negra(coisas feitas), ou tidos comoprovocados pelos Exus, como lo~cura, alcoolismo, infidelidadeconjugal, crime, etc. Eram também chamados para resolver problemas urgentes, como a aprovaçãoem concurso, questões amorosas,etc., cuja solução poderia aca~retar sérios prejuízos a outraspessoas. Contudo, para poder f~zer um trabalho para a "esquerda"era preciso obter o consentime~to de Deus,caso contrário o feitiço poderia cair sobre o feiticeiro.

Naquela casa de Umbandaavaliava-se a eficácia dos "trabalhos" at.ravésdo jogo de búzioe pela rapidez com que a entidade presenteada receba a oferenda.Assim,quando a cachaça oferecida

a Exu "desaparecia" logo se p~deria ter certeza de que fora doseu agrado e que se poderia contar com ele.

Quando o problema era p~ra Orixá,após o conhecimento docaso, consultava-se o santo,através do jogo,para se saber oque estava querendo receber paralibertar aquela pessoa da atribulação pela qual estava passa~do. Normalmente os casos maisgraves exigiam oferendas que r~presentavam para o cliente gra~des sacrifícios financeiros.

A comida oferecida aosanto não poderia ser consumidapor ninguém, pois "tinha dono",e deveria permanecer no quartodo santo por três dias, quandoera então depositada no pé de umaarvore ou jogada nas águas, emlugar que nao corresse risco deser pisada.

Segundo a chefe do terreiro, antes de se come çar a "trabalhar",é preciso pagar as obrigações com o santo, caso contr~rio, não se consegue nada comele e está se arriscando a receber severos castigos, uma vez que"o santo não pode ser enganado".

Para que o trabalho outratamento possa dar certo, acr~ditava-se que o cliente precisavacumprir fielmente as recomenda

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cõe s recebidas, "tal como se faz

quando se procura ummédico". S~

gundo nossa informante, não ad i an

tava alguém oferecer um pinto p~

ra Exu e ficar bebendo pela rua.

Quem está em tratamento tem que

ficar em casa após o trabalho e

vol tar ao terreiro quando for de

terminado, caso contrário, o re

sul tado obtido sera semelhante

ao que se consegue indo ao me

dico e não tomando os remédios.

Os que desaparecem do terreiro

logo que sentem uma " melhora

zinha" sempre têm de que se quei:.

xar mais tarde.

Alguns tratamentos exi

giam que o cliente permanecesse

no terreiro por vários dias, co

mo ocorrera com uma filha de

Abaluaiê que chegara ali com o

corpo cheio de feridas. Como o

tratamento exigia que se esfre

gasse em seu corpo sangue de galo

e grãos de milho, foi preciso sua

permanência junto a mãe-de-santo

para que esta pudesse fazer o r~

médio. Outras vezes, mesmo que o

cliente pudesse fazê-Io em casa,

preferia que fosse realizado lá

mesmo ou por acreditar que ali

teria maior eficácia ou por nao

poder revelar a seus familiares

que procurara umterreiro para o

tratam~nto.

No terreiro observado,

. embora o trabalho fosse feito me

94

diante pagamento,a dona da casa

afirmava que muitas vezes não r~

cebia nada em troca por ele pois

a pessoa que precisava dele nem

sempre tinha com que pagar. Se

gundo ainda a mesma fonte,o san

to também ajudava sem receber

nada em troca. Quando alguém of~

recia comida ao santo, a comida

servia também para outras pe~

soas; por isso costumava dirigir

seu pensamento para prisões e

hospitais sempre que fazia alguma

"obrigação" .

Pelo que pudemos const~

tal, embora algumas pessoas em

tratamento tivessem que perm~

neoe r no terreiro por vários dias,

os clientes não prec:isavam apa

recer lá com muita freqtiência.

Além de acreditar que a comida

garantia por muito tempo os cui

dados do Orixá, aquela senhora

tinha plena consciência das di

ficuldades enfrentadas por eles

para chegar até ali.

As pessoas em tratamento

deveriam, no entanto, ir ao te~

reiro por ocasião dos toques. F~

lar com a mãe-de-santo quando ~

Ia estava com seus guias poderia

ser de grande valor para a cura.

Embora freqtientemente os

filhos-de-santo se refiram a pr~

blemas de saúde enfrentados antes

de ter começado a "dar passagem"

ou nos períodos em que, por re

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beldia, tentarem se afastar de

suas obrigações, dançar e recebersanto nunca nos foram apontadospor eles como uma estratégia terapêutica.

Indagando também a duasdançantes de outra casa existenteno mesmobairro (então submetidasa tratamento psiquiátrico em insti tuição da rede estadual de saude), se sua participação em atividades religiosas trazia paraelas algum efeito terapêutico,recebemos como resposta: "As vezes sim, às vezes não", sem queisso parecesse gerar-lhe qual:quer desapontamento.

Tudo indica que, paraaquele grupo, "trabalho", tratamento e iniciação eram categoriasdiferentes, embora pudessem serencontradas juntas em algum casoconcreto.

o valor terapêutico dotranse tem sido, contudo, acerit.uado nos meios científicos. Existeatualmente tanto no Brasil comoem outros países, experiênciasde utilização do êxtase religi~so no tratamento de "doenças ne!.vasas", realizadas em consultórios e clínicas psiquiátricas,por pessoas não iniciadas nas religiões afro-brasileiras. O resul tado desse trabalho deveráser, inclusive,analisado este ano

em Congresso Internacional a serrealizado no Rio de Janeiro.

4 CONCLusAo

Umterreiro não é um mundo à parte ou uma instituiçãoisolada do resto da sociedade .Além de seus menbros serem pe~soas integradas a outras instituições, através de clientes efreqllentadores estabelecem lig~ção com muitos outros segmentosda sociedade.

Pel~s caracteristicas apresentadas pode-se perceber queo Centro de Gmbanda (com que entramas em contato em Natal, noano de 1980), ligava-se par t í.cu Lar

mente às camadas subalternas eà cultura :legra. Não obstante,era procurado por poli ticos e porpessoas de classe média e integrava em seu sistema religiosomuitos elementos do catolicismo,espiritismo Kardecista e de religiões indígenas.

Naconcepção de seus membros, aquele sistema cul tural nao

se mostrava incompatível com o~tros existentes em nossa sociedade, dai se dizerem "católico-umbandistas ", apesar do catolici~mo se apresentar comoa única r~ligião verdadeira e do clero tentar proibir, muitas vezes, osfiéis de participarem de ativid~

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des de outras religiões. Assim,

podiam ir à missa e dançar tambor,

em homenagem ao santo de sua d~

voção, consultar médico e jogar

búzio quando enfrentavam pr~

blemas de saúde.

Apesar de termos nos a

proximado do terreiro por inter

médio de pessoas ligadas ao si~

tema oficial de saúde (Ln t e r e a

sadas no acompanhamento de casos

de pessoas atendidas por médicos

e por instituições religiosas ao

mesmo tempo), e de direcionarmos

nossa atenção naquela pesquisa

para a relação entre religião e

saúde, o terreiro não pareceu aos

nossos olhos como um centro de

saúde popular.

Um terreiro e, antes de

mais nada, uma instituição reli

giosa e não um sistema cultural

completo e auto-suficiente, e!:0.

bora possa ter em alguns momen

tos a função de educar crianças I

curar enfermidades, recrear a co

munidade, etc.

Muitas pessoas que pr~

curam o catolicismo também o fa

zem movidas pelo desejo de liber

tação de males físicos e psiqui

cos, às vezes na esperança de

obter um milagre. Não obstante

o volume de promessas e ex-votos,

aquela religião nunca é confun

dida com medicina popular. A

pouca sistematização dos conheci

mentos transmitidos oralmente e

em contato direto com o pai ou

mãe-de-santo,no processo iniciá

tico,contribuem para que se pense

que naquelas religiões inexiste

um corpo de doutrinas desenvol

vido e uma visão de mundo parti

cular.

Os dados de nossa obser

vação no terreiro de Natal nao

fornecem nenhuma base para a a

firmação de que eram as atribu

lações no plano da saúde o que

rnais arrastava as pessoas até

aquela instituição e que a medi.

cina era a sua principal função.

Por outro lado, a análise

de casos de pessoas atormentadas

por problemas de saúde e atendi

das por aquele centro permitiu-

nos compreender que:

1. o tratamento ali realizado era

subordinado ao culto dos

Orixás e ao s i.s t.erna de crenças

a eles relacionado;

2. dificilmente aquele tratamen

to podia ser realizado e se

mostrar eficaz sem que a pe~

soa tivesse fé e conhecesse

o ~istema cultural que torna

lógico e conseql1ente tudo o

que é ali utilizado;

3. acreditava-se que o "jogo de

búzio" e os "trabalhos" quando

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realizados por pessoas nao investidas de autoridade religiosa e consideradas dotadasde força mística não possuíama mesma eficácia ("o jogo ecego", "o santo não atende opedido") .

Diante de tudo isto, c~loca-se para nós duas questões:Até que ponto o conhecimento ea manipulação das "práticas terapêuticas" dos terreiros, porparte de médicos, psicólogos ee psiquiatras garantirá a estesos mesmos resultados que têm sido obtidos pelos pais e mães-de-santo,que deles se utilizam den

.tro de um contexto religioso ede um determinado universo Slm

.'.bólico.E, até que ponto as exper í êric La s de utilização de taispráticas tem trazido benefíciospara a camada social de onde seoriginou e tem contribuído parao reconhecimento da cultura p~pular e do saber não erudito.

~ preciso que tais esp~riências não se transformem emmero chamariz de clientes ávidospor novidades e erotismos e quenão se constituam em mais umaforma de expropriação das camadassubalternas de nossa sociedade.

5 REFERtNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. AKSTEIN, David. A função das

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4. RECHEPORT, Madeleine. "Recursos numa comunidade nordestina" (roteiro de filme).

ENDEREÇO DO AUTOR

MUNDICARMO MARIA ROCHA FERRETTIDepartamento de PsicologiaCentro de Ciências SociaisUniversidade Federal do MaranhãoCampus Universitário do Bacanga65.000 - SÃO Lufs-MA.

Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 87 - 97, ján./jun. 1988 97