relidade física

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Cad. Brás. Ens. Fís., v. 19, n.2: p. 191-207, ago. 2002 191 UMA ABORDAGEM SOBRE A IRRACIONALIDADE DA REALIDADE NO PROBLEMA DA OBSERVAÇÃO +* Hélio Silva Campos Instituto de Física UFBA Salvador - BA Resumo Analisamos o conceito da realidade imbuído no problema da observação, enfatizando o aspecto ontológico, inerente a todos os fenômenos da Natureza. Mostramos que esta questão sempre intrigou os estudiosos da física quântica com as tentativas de incluir a participação do observador no processo de avaliação dos dados experimentais para, assim, obter uma descrição mais abrangente da realidade. Neste trabalho, seguimos a idéia de Pauli na busca de uma visão unificada da realidade, destacando que as ocorrências de eventos individuais possuem uma característica de irracionalidade, semelhante àquela atribuída aos denominados arquétipos da psicologia junguiana. Consideramos que a adoção de entes de natureza abstrata, não racional, nos formalismos da Mecânica Quântica, como é o caso da função de onda, corrobora a proposição de que é possível, através de um paralelo psicofísico, levar em conta a influência do observador na descrição da realidade física. Palavras-chave: Problema da observação, realidade física, aspectos racional e irracional. Abstract + An approach on the irrationality of reality in the problem of observation * Recebido: outubro de 2001. Aceito: junho de 2002.

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  • Cad. Brs. Ens. Fs., v. 19, n.2: p. 191-207, ago. 2002 191

    UMA ABORDAGEM SOBRE A IRRACIONALIDADE DA REALIDADE NO PROBLEMA DA OBSERVAO+*

    Hlio Silva Campos Instituto de Fsica UFBA Salvador - BA

    Resumo

    Analisamos o conceito da realidade imbudo no problema da observao, enfatizando o aspecto ontolgico, inerente a todos os fenmenos da Natureza. Mostramos que esta questo sempre intrigou os estudiosos da fsica quntica com as tentativas de incluir a participao do observador no processo de avaliao dos dados experimentais para, assim, obter uma descrio mais abrangente da realidade. Neste trabalho, seguimos a idia de Pauli na busca de uma viso unificada da realidade, destacando que as ocorrncias de eventos individuais possuem uma caracterstica de irracionalidade, semelhante quela atribuda aos denominados arqutipos da psicologia junguiana. Consideramos que a adoo de entes de natureza abstrata, no racional, nos formalismos da Mecnica Quntica, como o caso da funo de onda, corrobora a proposio de que possvel, atravs de um paralelo psicofsico, levar em conta a influncia do observador na descrio da realidade fsica.

    Palavras-chave: Problema da observao, realidade fsica, aspectos racional e irracional.

    Abstract

    + An approach on the irrationality of reality in the problem of observation

    * Recebido: outubro de 2001. Aceito: junho de 2002.

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    We have analyzed the reality concept embebed into the problem of observation, emphasising the ontological aspect, inherent to all natural phenomena. This question is shown to have always intrigued quantum physics researches in their attempts to include the observer participa-tion in the evaluation process of experimental data and, thereby, to ob-tain a broader description of the reality. Here, we follow the Paulis ideia in seeking a unified vision of reality, highlighting how the occurrence of individual events possesses an irrational character similar to that one attributed to the denominated archetypes of Jungian psychology. The adoption of an abstract, non-rational, nature entity in the quantum mechanics laws, as in the case of the wave function, is considered to support the suggestion that it is possible, through a psy-chophysical parallel, to take into account the influence of the observer into the physical reality description.

    Keywords: Problem of observation, physical reality, rational and ir-rational aspects.

    I. Introduo

    O ser humano possui uma incontrolvel dinmica que sempre o estimula a compreender o mundo em que vive. Em culturas mais antigas, como dos povos africanos e indgenas, nota-se uma viso de mundo na qual a realidade objetiva, consolidada pelas reaes conscientes, est integrada a um aspecto subjacente, no percebido. Esse misterioso lado da realidade freqentemente valorizado nos mitos e histrias, bem como nas representaes e imagens onricas que surgem na conscincia humana. Para esses povos, uma mesma imagem pode significar uma unificao desses aspectos, sem, contudo, constituir-se em um paradoxo perturbador. Por isso, acreditam na existncia de uma conexo sutil entre o que entendemos como mundo exterior e o mundo inconsciente, que parece ser a origem de tudo o que transmitido como sabedoria para o ser humano.

    Essa viso conjugada de mundo tambm revelada nos estudos sobre o trabalho dos alquimistas (Jung 1991), com a idia de que plantaram uma semente para ento assimilar os frutos de suas experincias. Durante a realizao dos processos de transformao da prima materia, os alquimistas, invocavam a ajuda espiritual e, como que orientados por um guia interior, puderam ampliar seus conhecimentos sobre os fenmenos da Natureza, essenciais na formulao da Cincia Moderna. Deve ser ressaltado que, embora a atual concepo cientfica no incorpore o aspecto anmico considerado pela Alquimia, ele est presente na mente do observador quando interpreta os resultados. Historicamente, Gustav Theodore Fechner, em 1860, e Wilhem W. Wundt, em 1902 e 1903, foram os primeiros a sugerir uma relao entre o contedo

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    psiquicamente homogneo e uma equivalente multiplicidade fsica, ao propor uma anlise experimental enaltecendo os fenmenos psquicos, em vez de trat-los apenas sob o ngulo filosfico. Entretanto, foi William James que, em 1902, fez uma associao mais prxima entre um aspecto (camada) da psique, no diretamente perceptvel e situada margem da conscincia, e a noo de campo fsico, revelando assim a indeterminao do contedo psquico que fica no inconsciente. Gerald Holton, em seu livro Thematic origins of scientific thought, (Harvard University, 1988), mostra como as idias de James influenciaram Niels Bohr.

    Esse aspecto subliminar da psique humana foi investigado por Freud (1976), denominando de subconsciente tudo aquilo que foi reprimido e/ou considerado inaceitvel pela conscincia. Em seu modelo, o subconsciente tem o papel de mediador, atuando como uma conexo entre o mundo externo e a conscincia, tal que um impulso externo determina um processo inconsciente e este expresso na forma de contedos conscientes. Para Jung (2000), esse aspecto da psique possui uma estrutura mais complexa contendo, ainda, elementos coletivos arcaicos que nunca foram conscientes. Em sua abordagem, a conscincia e o inconsciente formam uma nica entidade psquica. De qualquer forma, podemos dizer que na psicologia moderna, a compreenso da realidade tem origem em um processo que se inicia no inconsciente, antes que os contedos da conscincia possam ser racionalmente formulados. Logo, a realizao consciente de uma informao nova (ou seja, o material psquico tornado consciente), pode ser interpretada, admitindo-se que existe uma correspondncia de imagens internas pr-estabelecidas na psique humana com objetos externos e seus comportamentos.

    Por muito tempo, a interpretao dos fenmenos naturais foi realizada sob a tica do conhecimento auferido da realidade que se apresenta no mundo externo, macroscpico. O advento da Fsica Quntica veio resgatar a concepo da realidade como uma entidade de natureza complexa, indicando a necessidade de uma nova linguagem matemtica para descrev-la. J no inicio do seu desenvolvimento, quando se procurava consolidar uma interpretao para os fenmenos do mundo atmico, deparou-se com a questo fundamental, ou seja, explicar exatamente o que essa teoria poderia revelar sobre a derradeira realidade , a realidade plena. Sabemos que uma teoria ganha sustentabilidade a partir dos conceitos elaborados baseados em equaes matemticas e regras associadas aos dados experimentais. Dessa forma, a teoria quntica baseia-se em resultados obtidos, pressupondo-se que existe, alm do sistema observado (objeto), o sistema observador (sujeito). Primordialmente, apesar das indicaes sobre a existncia de um aspecto sutil da realidade percebido na distino entre o objeto e o sujeito, a viso cientfica baseia-se na concepo filosfica do positivismo/cientismo e na convico de que apenas os fatos tm valores, com a sua capacidade de previso e de compreenso dos fenmenos naturais.

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    Ultimamente, tem crescido o nmero de estudiosos que se dedicam a encontrar uma maneira de incluir o aspecto psquico no processo de avaliao dos resultados experimentais. Agregando-nos a esse propsito, enfatizamos nesta abordagem o elemento subjetivo da realidade, adotando, entre as vrias interpretaes para os fenmenos qunticos, a perspectiva filosfica do principio da complementaridade de Bohr e, em especial, a considerao de Wolfgang Pauli, que advoga o envolvimento de um elemento de irracionalidade em tais fenmenos.

    II. O aspecto sutil da realidade

    Desde os primrdios da Mecnica Quntica, havia a idia de que a realidade possua um aspecto indefinido, cuja excluso dos formalismos, de acordo com Pauli, foi o tributo pago pelo tratamento matemtico para que a Mecnica Quntica pudesse ser considerada uma generalizao da Fsica Clssica, livre de contradies. Essa condio percebida na afirmao de Bohr:

    A necessidade de discriminar, em cada arranjo experimental, entre aquelas partes do sistema fsico considerado, que so tratados como instrumentos de medidas e aqueles que constituem os objetos sob investigao, sem dvida, formam uma distino fundamental entre as descries clssica e quntico-mecnica dos fenmenos fsicos . (Bohr, 1983)

    Isso explica porque as propriedades subjetivas (psquicas) do observador foram descartadas, na descrio fsica da natureza, pela Mecnica Quntica, configurando-se, assim, um abismo existente entre o objeto ou sistema observado e a observao realizada na mente do observador. Mais incisivo, Pauli atribui uma suprema importncia a essa questo: ... a apreenso de um contedo da conscincia tambm uma observao, a questo mais geral da separabilidade do sujeito e o objeto, a qual nos tira do estreito reino da Fsica e nos coloca no grande reino dos fenmenos da vida (Pauli, 1994). Certamente que ambas citaes externam as indefinies comungadas por esses pioneiros enquanto formulavam a interpretao dos fenmenos.

    Independente dos formalismos tericos e das vises filosficas propostos, inegvel a impossibilidade de elaborar uma anlise mais precisa do que realmente ocorre no mundo quntico, a partir do nosso mundo clssico. Landau & Lifshitz situam com clareza essa relao de interdependncia entre tais mundos: A Mecnica Quntica ocupa um lugar no usual entre as teorias fsicas: contm a Fsica Clssica como um caso limite e ainda precisa desse limite para a sua prpria formulao

    (Landau & Lifshitz, 1974); ou seja, para que o mundo clssico tenha um sentido para ns, ele deve ser externo teoria quntica e, ainda, estar includo nessa teoria. Como o mesmo objeto

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    desempenha um papel dual, no fica clara a existncia de uma diviso entre os mundos microscpico quntico e macroscpico clssico e, desse modo, no possvel extrair da teoria quntica as verdadeiras previses do que realmente ocorre em um evento. Essa dificuldade, contudo, superada com o tratamento matemtico adotado para essa sistemtica e contnua interao, entre o sujeito e o objeto, usando-se o conceito de probabilidade para um conjunto de medidas. Na verdade, para o observador, os resultados obtidos denotam uma realidade objetiva, governada por leis da probabilidade.

    De todo o modo, queiramos ou no, uma observao sempre traz uma caracterstica no causal, indicando que as rpidas e imprevisveis mudanas, verificadas nos sistemas qunticos associados s ocorrncias de eventos individuais, no so expressas no formalismo matemtico. Dizemos, ento, que existe um hiato entre o estado prprio do sistema, aquele ontolgico, e o estado da realidade observada, o seu aspecto percebido, epistemolgico. Essa perspectiva de investigao pode justificar a idia de que esse espao preenchido pela atuao do mundo psquico, ao qual atribui-se uma funo primordial sobre a concepo de derradeira natureza da realidade e, ainda, constitui-se a fonte da compreenso da realidade percebida pelo observador.

    III. Do significado da medida/observao

    Como j abordamos, o simples ato de realizar uma medida em um evento fsico, ou observar um fenmeno da Natureza, constitui a maior questo do conhecimento humano e no, propriamente, da Fsica. Uma observao fsica sempre uma interao entre o objeto do mundo externo e a conscincia do observador. Por exemplo, digamos que os sinais que chegam do mundo externo disparam um processo em nossa psique inconsciente e, somente quando nos tornamos conscientes de algo, podemos considerar que realizamos uma observao. Colocando em uma forma mais explcita:

    Toda a informao que as leis fsicas proporcionam consiste de probabilidade de conexes entre as impresses subjacentes que um sistema ocasiona sobre um outro ao, repetidamente, interagirem...,. Logo, no possvel apreender a realidade 'plena' porque ela envolve, tambm, o nosso inconsciente e, desse modo, o problema da medida ou da observao na teoria quntica est intrinsecamente associado ao problema mente-matria. Afinal, o que realmente ns observamos? . (Wigner, 1967)

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    As abordagens para o problema da observao propem descrever o que ocorre na interao entre o sistema de medida e o sistema quntico observado. Ora, sabemos que os sistemas microscpicos se comportam de uma maneira qualitativamente diferente, embora no se conhea a maneira com que eles interagem com os dispositivos de medidas. Sob a tica do princpio da complementaridade de Bohr, formamos uma idia de realidade fsica, na qual nem os fenmenos nem os instrumentos de medidas so tratados como uma realidade objetiva e independente, pois

    Existe um elemento arbitrrio implcito no conceito de observao... (Bohr, 1983). Mesmo admitindo que toda a observao pudesse ser naturalmente reduzida s percepes sensoriais, Bohr considerou, por outro lado, que no possvel obter uma resposta satisfatria baseando apenas em uma interpretao do aspecto racional da realidade. Quer dizer, o conceito de observao envolve um aspecto que transcende nossa construo lgica: a existncia de uma indeterminao inerente Natureza, algo como uma entidade que une o sistema observador e o sistema observado em sua totalidade. Bohr enfatiza: Esta questo crucia... implica na impossibilidade de qualquer separao abrupta entre o comportamento de objetos atmicos e a interao com os instrumentos de medida, que servem para definir as condies sob as quais aparecem os fenmenos (Schilpp, 1949). Para garantir a objetividade da interpretao cientfica, Bohr excluiu, em suas consideraes, no s os aspectos psquicos, subjacentes s impresses causadas na conscincia, mas tambm qualquer objeto macroscpico, como parte do sistema observado, pois teria de associar uma funo de onda ao elemento introduzido. Devemos lembrar que em um experimento, a objetividade precede uma descrio exata do mtodo a ser usado e, dessa forma, a escolha do mtodo experimental pressupe aes psquicas.

    Os esforos para superar essa intrnseca descontinuidade da Natureza levaram idia da existncia de um limiar, algo como uma diviso arbitrria entre esses sistemas, uma abstrao que representa uma tentativa de compreender, classicamente, a relao entre os sistemas, sem considerar o aspecto no quantificado pela teoria. Essa diviso fundamental para que o observador assimile, na sua conscincia, o conhecimento da realidade observada. Se atribuirmos a essa diviso o significado de uma ponte, entre os mundos microscpico e macroscpico, a mesma no pode ser pensada apenas por meio de uma formulao essencialmente lgica, visto que, nesse nvel de conexo, no h como analisar os conceitos de medida de espao, tempo, causalidade, determinismo, etc., ou seja, no h condies para discutir se tal diviso existe ou no. Um aspecto semelhante percebido na viso pragmtica de Bell (1997), na qual a ambigidade, advinda do posicionamento dessa diviso , seria equivalente ao ato de decidir como o mundo pode ser dividido em sistema quntico e o restante clssico .

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    IV. Sobre o papel da funo de onda

    Do ponto de vista conciliatrio, o princpio da complementaridade de Bohr trouxe um alento para a compreenso do significado de uma observao. Realizar uma medida em determinado lugar significa que passamos a ter um novo fenmeno com as condies iniciais alteradas, ocasionando, em toda parte, um novo conjunto de possibilidades, a partir do novo campo gerado. Essa idia contribui para remover a ambigidade, contida no parmetro medido ao tempo que refora a concepo de uma totalidade , para uma unio inexorvel entre o objeto observado e o aparato de

    medida. No entanto, a afirmao de Bohr que a funo de onda no representa a

    realidade fsica, mas o nosso conhecimento da mesma

    que varia bruscamente quando observamos algo

    sempre gerou polmica com respeito ao processo de obteno de uma medida. Talvez reconhecendo que objetos atmicos no so objetos no mesmo sentido da realidade convencional, o prprio Bohr dizia que no deveramos enfatizar o significado da realidade, mas sim esclarecer os conceitos, pois

    ... no possvel sustentar a idia da existncia de uma ntida separao entre o objeto e o sujeito, considerando que o observador tambm pertence ao nosso contedo mental (Bohr, 1985), chegando at mesmo a sugerir que a unidade de nossa conscincia seria anlogo ao postulado quntico da fsica atmica.

    Enquanto o propsito de Bohr foi o de elaborar uma anlise rigorosa e conceitual da medida quntica, o modelo matemtico de Von Neumann (1955), alm de tratar quanticamente o dispositivo macroscpico de medidas, associa a esse uma funo de onda (ou funo de estado), como forma de preencher o abismo entre o sujeito/sistema observador e o objeto/sistema observado. Segundo ele, no h razo de natureza matemtica para que a teoria quntica no considere a participao do dispositivo de medida, haja vista que este composto de partculas qunticas. Como a funo de onda descreve o estado quntico de cada partcula, ou seja, a combinao de todas as possibilidades de uma medida, ento, a realidade fsica percebida , na verdade, a descrio de seu estado quntico. Em seu modelo, a funo de onda possui um significado ontolgico, isto , representa o estado quntico e, ao mesmo tempo, provm a descrio mais completa possvel da denominada realidade quntica. Ora, a funo de onda, matematicamente concebida no espao tridimensional, uma imagem da funo de onda correspondente a todos os estados qunticos possveis, entrelaados em um imaginado espao 3-N dimensional. Na prtica, contudo, sabemos que essa funo especifica apenas a distribuio das probabilidades associada a uma partcula quntica, como uma linguagem apropriada para descrever o contexto do conhecimento obtido em uma observao. Essa considerao, que teve o propsito de evitar entraves conceituais, causou um certo impacto com a idia de que a funo de onda colapsa

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    quando interage com a conscincia do observador, para quem uma medida teria significado de uma superposio de todos os seus estados.

    A singularidade formada, ou seja, o conhecimento real de uma medida, definiria as caractersticas de um evento tal que a Natureza escolhe o momento de tempo e o local de sua ocorrncia. Isso sugere a ocorrncia de um evento indescritvel no limiar dessa diviso de mundos sujeito/objeto, algo que Von Neumann tratou como um estgio final: essencial e inteiramente correto que a medida ou o processo relacionado percepo subjetiva seja uma nova entidade relativa ao meio fsico e no redutvel a esse meio . Ele demonstrou que, se um sistema quntico est presente em algum auto-estado de um dispositivo de medida, o produto desse auto-estado e o vetor de estado do dispositivo de medida deve evoluir no tempo de uma maneira consistente com as equaes de movimento da Mecnica Quntica e com as probabilidades das medidas esperadas.

    O modelo quntico de David Bohm (1999), aborda a interdependncia entre esses mundos, introduzindo os conceitos relacionando aes de envolvimento e desdobramento , como fundamentalmente autoconsistentes: Na conscincia, como na

    fsica quntica, a ordem explcita emerge da ordem implicada como um domnio relativamente estvel, autodeterminado e, essencialmente, retorna ordem implcita

    uma concepo que cria uma espcie de um holomovimento com a idia de uma totalidade contendo essas ordens e que est alm delas. Nessa cosmologia, a ordem

    implicada do universo situa-se fora do tempo presente a cada instante, isso porque, para ela, o espao e o tempo no so mais grandeza dominantes, mas sim, que tal funo passa a ser exercida por um conjunto de conexes bsicas, totalmente diferentes. Em seu modelo, Bohm definiu um potencial quntico como o meio pelo qual so transmitidas as influncias sobre as diferentes partes de um sistema quntico, ou seja, o potencial quntico interconecta cada regio do espao em um todo inseparvel. Essa considerao guarda alguma semelhana com a interpretao de Bohr, isto , as conexes usualmente denominadas de no locais , entre partes separadas de um sistema quntico, so determinadas pela funo de onda do sistema inteiro.

    A Eugene P. Wigner deve-se a idia de que existe uma conexo entre o mundo do observador e o objeto investigado, convicto de que a conscincia (ou a mente) desempenha uma funo de natureza fsica mais direta: a entrada de uma impresso em nossa conscincia que altera a funo de onda, pois ela modifica a nossa estimativa das probabilidades para as diferentes impresses que esperamos receber no futuro

    (Wigner, 1967). Uma percepo que corrobora a interpretao de que a derradeira realidade , a realidade plena, no inteiramente descrita em uma

    observao. Por sua vez, com uma suposio matemtica semelhante de Wigner, o modelo GRW (1986) tambm admite um termo no linear nas equaes de Schroedinger, associando-o s diminutas localizaes, de caractersticas espontneas e aleatrias, da funo de onda no espao de configurao. O pressuposto o de que tais

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    eventos, ocorrendo a frequncias extremamente altas, podem ser tratados como mini-colapsos da funo de onda. Independente do seu mrito, nota-se que esse modelo no descreve, precisamente, a natureza da conexo entre os sistemas sujeito e objeto.

    Em todas as mencionadas tentativas para uma interpretao ampliada da teoria quntica, reconhece-se que a percepo subjetiva reporta vida intelectual interna psquica do observador, a qual, por sua prpria natureza, no observvel. A experincia apenas comprova uma afirmao desse tipo: um observador faz uma determinada observao (subjetiva) e nunca compreende algo como o fato de uma quantidade fsica ter um determinado valor. Em outras palavras, a percepo subjetiva do fenmeno projeta-se na mente racional como uma imagem de algo extra-observao . Se pensarmos do ponto de vista da interpretao de Copenhague, essa viso atribuiu a responsabilidade do colapso capacidade do Ego abstrato

    a

    conscincia

    do observador, o que evidencia a importncia do seu papel na percepo de um fenmeno fsico. Dessa forma, mesmo a conscincia sendo um fenmeno natural que no possui uma expresso matemtica, no pode ser mantida fora das construes daquilo que queremos entender como realidade. Afinal, a conscincia o meio com o qual entendemos o mundo, inclusive o nosso papel nele.

    V. O problema da observao como um problema psicofsico

    Como notamos, o propsito de incluir a participao do observador no processo de avaliao de um fenmeno natural leva, naturalmente, ao estudo dessa caracterstica irracional da realidade observada. Embora existam teorias psicolgicas mais divulgadas, adotamos, como Pauli, a elaborada por Carl G. Jung, cuja formulao possui certas caractersticas afins quelas do mundo atmico. Por exemplo, alm de tratar os processos psquicos como processos energticos, Jung admite uma complementaridade entre os contedos conscientes e aqueles inconscientes, induzindo um paralelo entre os imprevisveis fenmenos do mundo quntico e os inacessveis contedos que emanam do inconsciente (coletivo), ambos de natureza no causal.

    Pauli, acreditando na existncia de uma natureza subliminar quela percebida, viu na caracterstica acausal dos fenmenos psquicos, ditos sincronsticos, postulados por Jung, uma evidncia que pode ser associada idia do colapso , induzida nas leis qunticas: a descrio do que realmente acontece em um evento quntico. Do mesmo modo que ocorre na medio de um sistema quntico, no qual os resultados de uma observao modificam a funo de onda do sistema, tambm na psicologia junguiana, o ato de investigar os contedos do inconsciente, inevitavelmente o transforma durante o processo. Quando uma nova informao apreendida, a conscincia se expande provocando alteraes no inconsciente, ao qual est ntima e indissoluvelmente ligada. E como afirma o prprio Jung:

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    A percepo originria de um objeto provm no s parcialmente do comportamento objetivo das coisas, mas em sua maior parte de fatores intrapsquicos aos quais tem relao com as coisas apenas mediante a projeo (Jung, 2000).

    Contudo, tratando a conscincia como o meio pelo qual nos relacionamos diretamente com o mundo externo, alguns aspectos podem ser quantificados atravs de smbolos que habitam as nossas mentes.

    Em sua investigao, Pauli almejava encontrar elementos que pudessem associar o instrumento de medida com o objeto em anlise e incorporar a participao do observador no processo de medida. Como resultado, ele sugeriu uma analogia entre o processo interno da percepo sensorial na mente do observador (ou seja, todo o contedo psquico novo que aparece na conscincia) e a observao em Fsica, desde que os instrumentos de medida possam ser considerados extenses tcnicas dos rgos sensoriais do observador. Do ponto de vista da percepo sensorial, o novo contedo da conscincia fica incorporado como uma parte constituinte do elemento que percebe, o observador. Segundo ele, no podemos desprezar a atividade psquica do observador, pois o observador pode escolher livremente o mtodo de observao e ainda interpretar os resultados

    (Pauli, 1994). Dessa forma, a observao de um fenmeno fsico resultaria da interao entre os campos psquico e fsico, que seria expresso atravs das distribuies de probabilidades para determinadas manifestaes fsicas de padres do inconsciente, reconhecidas pela conscincia. A mesma idia explicitada por Wigner: A reduo da funo de estado no ocorre quando os detectores reagem a uma situao (por exemplo: determinados sinais so registrados em uma fita magntica), mas sim quando o resultado foi interpretado pelo observador consciente dele (Wigner, 1967). Trata-se, portanto, de idias que se contrapem aos princpios que regem o processo de fragmentao da cincia na compreenso da Natureza pois, ao elaborarmos conscientemente uma descrio racional, teremos, ainda, um elemento irracional criativo inerente ao processo de evoluo. Enfim, so declaraes sui generis no contexto cientfico, as quais, certamente, instigam uma avaliao envolvendo outras disciplinas.

    O trabalho de Mansfield & Spiegelmann (1996) refora a idia da conjuno de fenmenos fsicos e psquicos, admitindo que os campos qunticos, desprovidos de parmetros espaciais e temporais, mas dotados de probabilidades para as ocorrncias acausais, compartilham de algumas caractersticas semelhantes quelas dos arqutipos da teoria psicologia junguiana. Os arqutipos so conceituados como representaes de padres de apreenso de contedos psquicos, (ou formas de pensamento inconsciente ), cujas ocorrncias so de natureza no causal, isto ,

    acausal (Jung, 2000). Seriam os verdadeiros entes ou sistemas energticos da psique, os quais descrevem os processos do inconsciente (coletivo), aqueles potencialmente

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    conscientes e dotados de certas habilidades instintivas que guiam o funcionamento da psique, tanto os processos de formao dos estmulos que chegam do mundo exterior, como os processos que constroem o pensamento consciente. Ao seu propsito, Pauli descreveu os arqutipos como uma ponte entre as nossas percepes sensoriais e as idias (conceitos). Em termos prticos, inferimos que, assim como reconhecemos ou medimos alguma propriedade de um evento quntico, a sua realidade epistemolgica, os arqutipos configurados na conscincia seriam as imagens correspondentes quelas primordiais que existem no inconsciente e, portanto, no so produtos da conscincia. Logo, as medidas ou experincias de eventos qunticos ou psquicos do-se, preliminar e inconscientemente, no mbito de um dos aspectos da realidade, isto , aquele de natureza acausal que indica a existncia de uma realidade plena. Uma vez que o nosso conhecimento do que real resulta das imagens inconscientes e das sensaes que so formadas em nossa psique, ento, a realidade em si, o seu aspecto ontolgico, no nos acessvel.

    Por outro lado, quando Jung (1994) afirmou que os arqutipos representam a probabilidade psquica , queria dizer, tambm, que os arqutipos podem ser tratados como estruturas energticas complexas da psique que se manifestam probabilisticamente, e no causalmente. Isso significa que as estimativas de probabilidade, enquanto so um meio de obter informaes sobre os eventos, tambm indicam a intrnseca indeterminncia que existe em um pressuposto nvel fundamental da Natureza. Para o observador, e sendo a natureza do sistema verdadeiramente ontolgica, essas estimativas proporcionam o mximo de informao possvel que podemos apreender em uma medio. Devido a essa inseparabilidade psquica entre esses eventos, preciso adicionar interpretao dos fenmenos naturais, uma anlise simblica para entender o significado de uma observao usando a caracterstica arquetpica, cuja natureza, predominantemente qualitativa, se expressa pela sua habilidade para organizar imagens e idias. Nesse esprito, assim como a funo de onda, os arqutipos so, tambm, entes inobservveis, pois se constituem produtos energticos da psique inconsciente, ou forma e energia , como Jung tambm os denominava. Dessa forma, nem a funo de onda nem os arqutipos existem sob a tica de uma realidade puramente racional. Logo, o paralelismo psicofsico, aqui induzido, retoma a discusso sobre a diviso entre o observador e o sistema observado. A impossibilidade de auferir essa diviso arbitrria, leva-nos a pensar que esse pressuposto nvel fundamental seria o lugar da conjuno dos mundos fsico e psquico, onde no haveria diferenas entre o observador e o sistema, algo como um estado psicofsico , no qual apenas a psique inconsciente pudesse perceber a totalidade de um fenmeno.

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    VI. O conceito de irracionalidade de Pauli

    Alm da sua inestimvel contribuio para a formulao da Mecnica Quntica, Pauli deixou um legado que marcou o seu propsito de compreender a harmonia e a simetria nas leis da Natureza. Sendo profundamente racionalista em seu trabalho cientfico, tambm acreditava na existncia de uma conexo entre as duas atitudes fundamentais sempre presentes na alma humana, uma dependendo da outra: de um lado, a racional-criativa, que busca compreender; de outro, existe a mstica-irracional, que procura resgatar a experincia da unicidade. A sua mente inquieta o estimulou a perceber que existe um caminho, uma abertura em toda a dialtica sustentada nos debates, aparentemente contraditrios. Nesse sentido, ao reconhecer a psique humana como a fonte geradora da compreenso dos fenmenos da Natureza, Pauli resgatou uma antiga viso de mundo da Alquimia, que admite a existncia de conexes entre os fenmenos externos, reais, conscientes, e aqueles do mundo psquico, espiritual.

    O seu ponto de partida foi uma anlise da controvrsia sobre a viso de mundo da antiga tradio alqumica, expressa atravs de figuras simblicas e defendida por Robert Fludd, que pressentia o mundo de mistrios , ameaado pela aliana entre a induo emprica e o pensamento matemtico, lgico, comungado por Kepler (Pauli, 1994). Enquanto Fludd acreditava em uma unidade da experincia interna do observador com o processo externo na Natureza, Kepler, buscando novas maneiras de expresso, achava que a verdadeira caracterstica da Natureza deveria ser reconhecida atravs de uma avaliao precisa do fenmeno. Esse propsito de vincular o aspecto qualitativo e o quantitativo de uma observao ou medida, a caracterstica essencial tanto nas experincias da fsica quntica como naquelas da psicologia moderna.

    Uma vez convencido da idia de que o inconsciente era muito mais til em formular teorias do que os fsicos imaginavam, Pauli destacou o seu papel no processo de observao como base do conhecimento emprico, concluindo que a derradeira realidade , a realidade plena, dotada tanto do aspecto racional como do irracional. Para ele, esses aspectos aparentemente contraditrios da realidade so, de fato, compatveis e no conflitantes, ao contrrio da adoo de uma perspectiva predominantemente racional. Esse sentimento de Pauli parece ter sido tambm de Bohr, que sempre repetia: Ao buscar a harmonia da vida, nunca devemos esquecer que, no grande drama da existncia, ns prprios somos atores e espectadores (Bohr, 1995), como que imbudo da idia da complementaridade, para a qual, o observador escondido (caso clssico) obrigado a tornar-se um agente atuante sobre o sistema observado. Entretanto, Pauli tratou a complementaridade, como a caracterstica mais importante da realidade quntica, uma nova espcie de sntese exemplificada, por exemplo, pelo par de opostos partcula/onda. Do lado da psicologia, Jung reforou esse pressuposto ao afirmar:

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    Assim como podemos aferir uma conjuno de pares de opostos psquicos, a conscincia e o inconsciente, deve existir uma conjuno entre as ocorrncias fsicas e psquicas em uma unidade profunda, comum, com um significado correspondente ao do Unus Mundus da Alquimia (Jung 1995).

    Por conseguinte, os fenmenos fsicos e psquicos (ditos irracionais, isto , no racionais) podem ser compreendidos como uma expresso de uma realidade indescritvel, ou seja, a realidade plena, considerada transcendente, inatingvel pelos atuais mtodos cientficos.

    Quando contextualizamos a realidade fsica sob essa perspectiva, admitimos que as probabilidades de ocorrncias dos eventos do mundo atmico so descritas com a ajuda da funo de onda, qual se atribui o papel de representar a superposio dos estados, entes no observveis, dotados de uma regularidade estatstica. Uma vez que a funo de onda matematicamente designada por uma grandeza complexa , para se obter a soluo (ou solues) das equaes de movimento da Mecnica Quntica preciso admitir a sua conjugada complexa *, que estaria associada ao aspecto irracional da realidade. Alm disso, a nossa compreenso (racional) do evento carece da existncia de ondas materiais , uma figura simblica introduzida para representar a natureza holstica da Mecnica Quntica. Ora, sabemos que essas ondas materiais so entidades de natureza matemtica, no local e imprevisvel, que s existem em nossa conscincia. Isso quer dizer que a funo de onda associada a uma determinada onda dessa natureza possui um significado puramente terico e, desse modo, possvel estabelecer previses sobre o estado final do sistema. Logo, a funo de onda a representao simblica que preenche a atribuda descontinuidade entre o fenmeno em si e aquele registrado em nossa mente. Partindo do pressuposto de que as leis naturais no so absolutas, mas sim probabilsticas, a ocorrncia de um evento individual implica em uma escolha entre as diferentes possibilidades permitidas pela lei probabilstica que abrange esta caracterstica dos processos elementares. A impossibilidade de descrever, detalhadamente, os eventos individuais, denota que esses eventos tm a liberdade de escolher , probabilisticamente, qualquer um dos estados qunticos. Uma vez que essas livres escolhas no possuem vnculos com qualquer lei racional, so consideradas

    como expresses de uma nova propriedade da realidade, a irracionalidade. Essa idia de Pauli reflete a sua antiga crena de que:

    A indivisibilidade dos processos qunticos elementares (a 'finitude' do quantum de ao) encontra sua expresso em uma indeterminncia da interao entre o instrumento de observao

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    (sujeito) e o sistema observado (objeto), que no pode ser descartada atravs de correes determinveis (Pauli, 1994).

    Deve-se ressaltar que, nesse caso, a palavra irracionalidade significa o reconhecimento, a deficincia da previsibilidade clssica, e no o abandono da considerao lgica, racional. Em termos prticos, seguindo a interpretao de Copenhague, essa livre escolha seria exemplificada pela reduo da funo de onda , sendo aqui compreendida como uma expresso tpica da existncia da irracionalidade da realidade. Quer dizer, a conscincia racional no capaz de explicar tudo o que realmente existe.

    O pressuposto de um princpio psicofsico que emana dessa situao revela a impossibilidade de obter uma descrio completa da realidade, visto que ela induz a existncia de um aspecto que transcende a uma anlise de contedo puramente racional. Acreditamos que essa foi motivao que levou Pauli e Jung a enfatizarem a caracterstica dual dos arqutipos, pertencentes tanto ao material quanto ao psquico , cujos mundos seriam os entes complementares de um mundo unificado .

    Desse modo, semelhante concepo alqumica do Unus Mundus, na qual os arqutipos seriam os elementos abstratos bsicos, ou seja, so irracionais por natureza, essa realidade psicofsica consistiria de potencialidades unificadas para a manifestao. Em outras palavras, a observao de um evento quntico realmente existe quando se torna consciente, ou seja, assimilada pelo observador. Pode-se dizer, ento, que uma observao no pertence a uma realidade simblica, mas trata-se de uma realizao de uma potencialidade pertencente realidade (Laurikanen, 1997). Nesse sentido, vlido lembrar que, algumas vezes, as leis da Fsica envolvem espcies de simetrias absolutas ou internas, as quais, no podendo ser visualizadas, so expressas por espaos simblicos abstratos para serem compreendidas. Exemplificando, o espao do spin isotrpico , que tem propriedades matemticas bem definidas mas no tem qualquer relao com o espao normal, e, ainda, o uso de operadores conjugados, complementares, e.g., [x, px], os quais no so quantidades mensurveis, mas entes matemticos que descrevem, simbolicamente, o que no pode ser visualizado. Conclumos ento que o nico ponto de vista aceitvel admite que todos os aspectos da realidade, o fsico e o psquico, o objetivo e o subjetivo, o qualitativo e o quantitativo, so compatveis e podem ser simultaneamente conjugados.

    VII. Consideraes finais

    O propsito de ampliar a descrio da realidade fsica levou Pauli idia de combinar, como um fato natural, os paradoxos ontolgicos da Fsica Atmica com os da Psicologia Junguiana, admitindo que a Fsica baseada nas observaes, e essas, por sua vez, so fenmenos psquicos. Com uma perspectiva filosfica da interpretao de

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    Copenhague, enfatizamos que o conceito de realidade independente, como adotado na Fsica, contm elementos irracionais. Quer dizer, visto pelas leis naturais, ela parcialmente racional, mas tambm dotada de elementos irracionais, os quais so expressos pela concepo de liberdade ou escolha , que caracteriza os eventos individuais. Pauli considerava esse aspecto como a lio mais importante da Mecnica Quntica. Por outro lado, na psicologia junguiana, os contedos da conscincia so tratados como conscientes e inconscientes ao mesmo tempo, ou seja, conscientes em um aspecto e inconsciente no outro, sem existir uma ntida diviso entre eles. A conjuno dessas vises cientficas fundamenta a idia de que a racionalidade e a irracionalidade, juntas, formam uma expresso da complementaridade da realidade, tal que a adoo da idia da causalidade estatstica nos formalismos envolve ambos os aspectos da realidade. Procurando dar um carter mais prtico para esse quadro, Laurikainen (1997) considera, por exemplo, que essa causalidade estatstica representa a melhor forma de exprimir a nova concepo das leis naturais, porquanto no possvel obter uma descrio detalhada dos eventos individuais. No entanto, Pauli sugeriu o conceito mais geral da causalidade

    uma causalidade probabilstica

    como

    sendo a caracterstica da teoria atmica, visto que a noo de probabilidade tipifica as ocorrncias dos fenmenos naturais. bem provvel que ele tenha adotado esse caminho, reconhecendo que a realidade plena, a agora denominada realidade psicofsica, inatingvel por meio de uma descrio essencialmente racional.

    Finalmente, acreditamos que, refletindo sobre a incomensurvel riqueza de conhecimento da Natureza, despertada pela teoria quntica, Pauli deixou o desafio para que nos envolvamos totalmente na realidade em que vivemos: A Fsica e a Psicologia devem ser compreendidas como cincias complementares, as quais, juntas, so capazes de descrever as caractersticas essenciais da realidade (Pauli, 1994).

    VIII. Referncias Bibliogrficas

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    Agradecimentos O autor agradece aos professores Edvaldo Nogueira Jr. e Olival Freire

    Jr., que fizeram uma leitura crtica da verso preliminar deste trabalho, e aos dois rbitros, annimos, pelas construtivas sugestes apresentadas.