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  • 8/14/2019 Relendo clssicos

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    Relendo clssicos:

    Gilberto Freyre e Srgio Buarque

    preciso voltar a gostar do Brasil

    Muitos motivos se somaram, ao longo da nossa histria, para dificultar a tarefa de decifrar,mesmo imperfeitamente, o enigma brasileiro. J independentes, continuamos a ser umanimal muito estranho no zoolgico das naes: sociedade recente, produto da expansoeuropia, concebida desde o incio para servir ao mercado mundial, organizada em torno deum escravismo prolongado e tardio, nica monarquia em um continente republicano,assentada em uma extensa base territorial situada nos trpicos, com um povo em processode formao, sem um passado profundo onde pudesse ancorar sua identidade. Que futuroestaria reservado para uma nao assim?

    Durante muito tempo, as tentativas feitas para compreender esse enigma e constituiruma teoria do Brasil foram, em larga medida, infrutferas. No sabamos fazer outra coisaseno copiar saberes da Europa, onde predominavam os determinismos geogrficos (acivilizao uma conquista dos pases frios, pois a vitria das sociedades contra as

    dificuldades impostas pelo ambiente) e racial (a civilizao expressa o potencial de algunssubgrupos humanos mais aptos) que irremediavelmente nos condenavam. Enquanto oBrasil se olhou no espelho europeu s pde construir uma imagem negativa e pessimista desi mesmo, ao constatar sua bvia condio no-europia.

    Houve muitos esforos meritrios para superar esse impasse. Porm, s na dcadade 1930, depois de mais de cem anos de vida independente, comeamos a puxarconsistentemente o fio da nossa prpria meada. Devemos ao conservador Gilberto Freyre,em 1934, com Casa-grande e Senzala, uma revolucionria releitura do Brasil, visto a partirdo complexo do acar e luz da moderna antropologia cultural, disciplina que entoapenas engatinhava. Abandonando os enfoques da geografia e da raa, Freyre revirou tudode ponta-cabea, realizando um tremendo resgate do papel civilizatrio de negros e ndiosdentro da formao social brasileira. Dos portugueses, elogiou a miscibilidade, a

    plasticidade e a mobilidade, caractersticas que os distinguiam dos colonizadores de origemanglo-sax.

    A colonizao do Brasil, ele diz, no foi obra do Estado ou das demais instituiesformais, todas aqui muito fracas. Foi obra da famlia patriarcal, em torno da qual seconstituiu um modo de vida completo e especfico. O latifndio monocultor e o regimeescravista de produzir afastavam, separavam, machucavam, mas a famlia extensa, cheiade agregados; a poligamia num contexto de escassez de mulheres brancas e a presena deconsidervel escravaria domstica constituam espaos de intercmbio, nos quais negros enegras, ndios e ndias especialmente, negras e ndias , muito mais adaptados aostrpicos, colonizaram o colonizador, ensinando-o a viver aqui. Mulatos, cafuzos emamelucos se multiplicaram, criando fissuras na dualidade radical que opunha senhores eescravos.

    Nada escapa ao abrangente olhar investigativo do antroplogo: comidas, lendas,roupas, cores, odores, festas, canes, arquitetura, sexualidade, supersties, costumes,ferramentas e tcnicas, palavras e expresses de linguagem. Cartas de bisavs saem develhos bas. Escabrosos relatrios da Inquisio so expostos com fina ironia por essebisbilhoteiro que estava interessado, antes de tudo, em desvelar a singularidade daexperincia brasileira. Ela no se encontrava na poltica nem na economia, muito menosnos feitos dos grandes homens. Encontrava-se na cultura, obra coletiva de geraesannimas. Uma cultura de sntese, que afrouxou e diluiu a tenso entre os cdigos morais eo mundo-da-vida, tenso constitutiva das sociedades de tradio judaico-crist. Nossaalegria, diz Freyre, a devemos a ndios e negros nunca completamente moralizados pelocristianismo do colonizador. Um cristianismo, alis, que tambm precisou misturar-se.

    Devemos a Srgio Buarque, apenas dois anos depois, com Razes do Brasil, uminstigante ensaio clssico de nascena, nas palavras de Antnio Cndido que tentavacompreender como uma sociedade rural, de razes ibricas, experimentaria o inevitvel

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    trnsito para a modernidade urbana e americana do sculo 20. Ao contrrio dopernambucano Gilberto Freyre, o paulista Srgio Buarque no sentia nostalgia pelo Brasilagrrio que estava se desfazendo, mas tampouco acreditava na eficcia das viasautoritrias, em voga na dcada de 1930, que prometiam acelerar a modernizao pelo alto.Observa o tempo secular da histria. Considera a modernizao um processo. Tambmbusca a singularidade do processo brasileiro, mas com olhar sociolgico: somos umasociedade transplantada, mas nacional, com caractersticas prprias. A dimenso privada eafetiva da vida sempre se sobreps para o bem e para o mal impessoalidadeburocrtica, no raro descambando para o passionalismo e a impulsividade tpicos dohomem cordial, num quadro geral de ausncia de direitos formais.

    Nossa histria, diz Srgio Buarque, girou em torno do complexo ibrico. Mas oxito da colonizao portuguesa no decorreu de um empreendimento metdico e racional,no emanou de uma vontade construtora e enrgica; buscou a riqueza que custa ousadia,no a riqueza que custa trabalho. A tica da aventura prevaleceu sobre a tica do trabalho. uma herana atrasada, em via de superao, mas foi a base da nacionalidade, constituiuas razes do Brasil. No se pode nem se deve, simplesmente, recus-la e neg-la, massim transform-la.

    Precisamos ousar inaugurar, de forma indita, o que nunca se fez nessas latitudes eis uma frase cheia de significados: devamos encontrar o caminho para superar o nossoatraso e, ao mesmo tempo, afirmar a nossa identidade, potencializando as nossas virtudes.Teria de ser, necessariamente, um caminho cheio de especificidades, como so cheios deespecificidades, quando autnticos, os caminhos de todos os povos. Tremendo desafio,numa sociedade, ele diz, em que a inteligncia sempre foi um ornamento, um beletrismovido por importar as ltimas modas, incapaz de produzir conhecimento e impulsionarqualquer mudana real.

    Mesmo assim, Srgio Buarque otimista. Anuncia que a nossa revoluo est emmarcha, com a dissoluo do complexo ibrico de base rural e a emergncia de um novoator decisivo, as massas urbanas. Crescentemente numerosas, libertadas da tutela dossenhores locais, elas no mais seriam demandantes de favores, mas de direitos. No lugar

    da comunidade domstica, patriarcal e privada, seramos enfim levados a fundar acomunidade poltica, de modo a transformar, ao nosso modo, o homem cordial em cidado.O esforo desses pensadores deixou pontos de partida muito valiosos, mesmo que

    tenham descrito um pas que, em parte, deixou de existir. O Brasil de Gilberto Freyre giravaem torno da famlia extensa da casa-grande, um espao integrador dentro da monumentaldesigualdade; o de Srgio Buarque apenas iniciava a aventura de uma urbanizao queprometia associar-se a modernidade e cidadania.

    Vale a pena l-los. Alm de vasta cultura e honradez intelectual,os pensadores dagerao de Gilberto Freyre e de Srgio Buarque, mesmo alinhando-se a correntes tericase polticas diferentes, mesmo propondo interpretaes diversas, tinham uma coisafundamental em comum: gostavam do Brasil. Desejavam do fundo da alma que o pasdesse certo e a isso dedicaram suas vidas e seus melhores esforos. Tal sentimento

    transparece em cada linha que escreveram, em cada gesto que fizeram, em cada palavraque disseram. Havia generosidade neles.

    Foi o sentimento que perdemos nos ltimos 25 anos. Evidentemente,manifestamente, cinicamente, quase explicitamente, os formuladores e divulgadores donovo discurso hegemnico, que ainda prevalece amplamente, no gostam do Brasil.Gostam de business. O que estamos ouvindo deles, todo o tempo, que o Brasil, comosociedade, nao e projeto, no tem sentido nenhum. Atrapalha. A esperana-Brasil deulugar ao risco-Brasil. Reencontr-la no como marketing, mas como projeto o nossomaior desafio.

    Csar Benjamin autor deA Opo Brasileira (Contraponto, 1998, dcima edio) e BomCombate (Contraponto, 2004).

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