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RELATÓRIO TÉCNICO CIENTÍFICO SOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DE CANGUME MUNICÍPIO DE ITAÓCA SP SETEMBRO DE 2003

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RELATÓRIO TÉCNICO CIENTÍFICO SOBRE

OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE

QUILOMBO DE CANGUME

MUNICÍPIO DE ITAÓCA – SP

SETEMBRO DE 2003

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RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE O CANGUME

José Maurício Arruti

Maio de 2003

ÍNDICE

Introdução .......................................................................4

Capítulo 1: O quilombo conceitual .......................................................................71.1. Improviso e impasse .......................................................................81.2. Usos históricos .....................................................................121.2.1. Resistência Cultural .....................................................................141.2.2. Resistência política .....................................................................151.2.3. Resistência negra .....................................................................171.3. "Ressemantização" .....................................................................201.3.1. Pedra e plástico .....................................................................201.3.2. "Uso comum" .....................................................................241.3.3. Etnicidade .....................................................................281.3.4. Auto-atribuição .....................................................................311.4. Proposição legislativa e reação governamental .................................................331.4.1. A evolução de um debate .....................................................................331.4.2. O quilombo interrompido .....................................................................351.4.3. Avanços e recuos .....................................................................371.5. Considerações finais .....................................................................39

Capítulo 2: Escravidão, isolamento e pobreza .....................................................442.1. Percurso histórico de Apiaí .....................................................................462.1.1. Escravidão .....................................................................472.1.2. Amazônia paulista .....................................................................512.2. Estrutura Social de Itaóca .....................................................................572.2.1. Emancipação municipal .....................................................................572.2.2. Situação da População .....................................................................582.2.3. Situação da Produção .....................................................................63

Capítulo 3: Representações do Cangume .............................................................713.1. Função de alteridade .....................................................................713.1.1. Um sertão de bugres .....................................................................723.1.2. Cura, caridade e política .....................................................................753.2. Tentativas de enquadramento .....................................................................803.2.1. O modelo e as ausências .....................................................................803.2.2. A África na língua? .....................................................................823.3. O quilombo consensual .....................................................................85

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Capítulo 4: As formas de ocupação histórica e a expropriação territorial .......904.1. "Antes": o uso comum e os limites territoriais ..................................................914.1.1. Formas tradicionais de acesso à terra: os três círculos ...................................914.1.2. A "roçança de caminho": limites e autoridades ..............................................954.1.3. A "medição": notas entre o macro o micro...................................................1024.2. O patrimônio em 1966: um instantâneo da ocupação histórica.......................1084.2.1. As posses ...................................................................1094.2.2. Os posseiros ...................................................................1184.2.3. A despossessão ...................................................................1254.3. Considerações finais: gênese do mercado de terras.........................................129

Capítulo 5: O Cangume hoje ...................................................................1415.1. Paisagem ...................................................................1415.2. População ...................................................................1465.3. Terra, trabalho e migração ...................................................................152Anexo2: Lista de moradores ...................................................................156Anexo2: Quadro genealógico resumido do Cangume............................................157Anexo3: Quadros estatísticos ...................................................................158Nota técnica ...................................................................158Tabelas estatísticas ...................................................................159Anexo4: Caderno de fotos ...................................................................162

Capítulo 6: Conclusão ...................................................................168Anexo: Sobre a definição da demanda territorial ...................................................173

Bibliografia ...................................................................175Teórica ...................................................................175Sobre o artigo 68 (ADCT) ...................................................................175Sobre o Vale do Ribeira e/ou o Cangume...............................................................177

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Introdução

“Cangume” é o nome de um bairro rural do município de Itaóca, Vale do Ribeira,

quase na fronteira do estado de São Paulo como o Paraná. Hoje, a comunidade que deu

origem ao bairro e mantém o seu nome é formada por 37 famílias negras, que somam cerca

de 150 moradores permanentes. Descendem de três troncos principais: os Monteiro, os

Gonçalves e os Maciel de Pontes, que se misturaram em uma intrincada rede de parentesco

por meio do constante casamento entre primos. Todos, sem exceção, são kardecistas e

freqüentam, de uma a quatro vezes por semana, o Centro Espírita Fé em Deus, fundado pela

comunidade ainda na década de 1930. O centro tem um longo histórico de serviços de cura

prestados a pessoas dos bairros e municípios vizinhos, tendo se tornado uma referência.

Sua população vive sobre uma terra comum, o “patrimônio do Cangume”, de apenas

37 ha, onde mantém minúsculas hortas cercadas e alguma criação solta, de porcos e cabras.

Em função das pouquíssimas terras, os moradores do Cangume trabalham como diaristas

para os fazendeiros vizinhos, recebendo remuneração que chega a ser até 50% menor que a

dos trabalhadores dos outros bairros. Essa é a manifestação mais concreta da discriminação

que recai sobre o grupo, apesar do destaque que ele vem alcançando com o reconhecimento

informal dos poderes municipais, de sua condição de remanescentes de quilombos.

Até a década de 1960, o Cangume tinha o dobro do tamanho atual, com cerca de 70

famílias e pouco mais de 1.300 ha. Eram lavradores principalmente de milho, feijão, arroz e

mandioca, possuindo pequenas criações de porcos, cabras e galinhas. Produziam artesanato

de cipó, palha, taboa, taquara e barro, produzindo praticamente tudo de que necessitavam e

recorrendo ao parco mercado regional para a compra de pouquíssimos gêneros, tais como o

sal. O gado e o dinheiro eram praticamente inexistentes no bairro.

O avanço econômico sobre o Vale do Ribeira, iniciado na década de 1940 com base

na extração de minério, levou à abertura de estradas e, conseqüentemente, à uma rápida

valorização das terras da região. Os primeiros fazendeiros de gado chegam ao bairro em

meados da década de 50, começando a alterar o padrão local de pequenos apossamentos

familiares. Na década seguinte, uma grande Ação Discriminatória levou à regularização

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fundiária de vários municípios, inclusive Apiahi, a que Itaóca ainda era subordinado,

atingindo o Cangume.

Assim, em 1968, as posses dos moradores do Cangume, que eram trabalhadas de

forma coletiva, com base na solidariedade entre famílias extensas que se revezavam sobre

terras de uso comum, foram fragmentadas em cerca de 80 glebas individuais. Esse fato,

reproduzido por toda a região, deu origem a um feroz mercado de terras, do qual a

população local, alheia à lógica de mercado e, em especial, à do mercado de terras, não

tinha condições de avaliar as implicações. De forma apenas aparentemente paradoxal, a

regularização das terras do Cangume foi o maior instrumento de sua expropriação

territorial. Em um curtíssimo período de anos, todas as glebas individuais, por necessidade

de sobrevivência dos moradores ou por forte pressão dos próprios fazendeiros já instalados,

criadores de gado vindos de Minas Gerais e do Paraná, foram vendidas. Restaram apenas

duas glebas familiares e uma que, por decisão dos próprios moradores, foi titulada (ainda

que não registrada em cartório) “em comum”, conhecida como “patrimônio do Cangume” e

responsável pela manutenção da comunidade como tal.

A perda de todas as terras em um período tão curto de anos levou a uma forte

migração do Cangume. Muitas famílias deslocaram-se para o município de Tatuí,

município da região administrativa de Sorocaba, em busca do trabalho nas plantações de

tomate. Lá foi formada uma extensão do bairro original, com um número semelhante de

famílias, que ainda buscam perpetuar seus laços de solidariedade pela reprodução dos laços

de vizinhança e pela manutenção da sua religiosidade kardecista. A existência desse núcleo

avançado tornou-se fundamental para a manutenção da comunidade do Cangume, por servir

de válvula de escape para a pressão demográfica do grupo e para as aspirações dos mais

jovens, sem que com isso haja uma definitiva dispersão social.

Finalmente, no final da década de 1990, o contato com outras comunidades do Vale

do Ribeira já mobilizadas em torno da luta contra as barragens planejadas para a região e

pelo seu reconhecimento como comunidades remanescentes de quilombos, despertou no

grupo a sugestão de que fossem passíveis do mesmo reconhecimento. Reforçava essa

sugestão o fato de existir um largo senso comum no município de Itaóca sobre o fato do

grupo ser, de fato, remanescente de um antigo quilombo, que teria tido origem na fuga das

minas de ouro de Apiaí. De fato, pouco depois da emancipação de Itaóca como município,

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a administração empossada em 1997 passou a dedicar uma atenção especial ao grupo, por

meio de projetos que já o descrevem como remanescentes de quilombos. Isto, somado às

visitas de representantes da comunidade de Ivaporunduva, acompanhados de agentes da

pastoral católica, potencializaram as famílias do Cangume no desejo de reaverem as terras

do bairro, que eles consideram lhes terem sido tomadas de forma imprópria, na totalidade

das vezes compradas por valores irrisórios.

As primeiras demandas do grupo formam apresentadas aos funcionários do ITESP

em 1999, tendo de esperar até o início do ano de 2002 para que uma equipe do

departamento de Arrecadação e Projetos visitasse o bairro, dando início ao processo

administrativo de reconhecimento oficial. Nesse meio tempo o grupo organizou sua

primeira Associação de Moradores e iniciou o processo de discussões internas em torno da

memória sobre suas origens e sobre os limites do território a ser reivindicado.

Este trabalho constitui o Relatório Técnico-Científico que tem por objetivo

apresentar as condicionantes sociais e históricas que permitem reconhecer à comunidade do

Cangume, o direito instituído pelo artigo constitucional 68 do ADCT (CF/1988),

respondendo às exigências estabelecidas pelo Grupo de Trabalho (decreto estadual de no.

40.723/96) que definiu os conceitos, diretrizes e medidas aptas a garantir a plena

aplicabilidade daquele dispositivo constitucional em território paulista. Ele começou a ser

preparado em fins do ano de 2002, com uma primeira visita ao grupo e foi completado por

meio de outras duas visitas realizadas no início de 2003, somando um total aproximado de

30 dias de trabalho de campo.

O relatório divide-se em cinco capítulos assim dispostos. No primeiro,

apresentamos uma leitura histórica e sociológica do artigo 68 (ADCT), com o objetivo de

apreender os sentidos impostos por este dispositivo constitucional e as reinterpretações a

que ele foi submetido, destacando algumas considerações que creio serem úteis à leitura da

situação empírica do Cangume.

No segundo capítulo, apresentamos um amplo quadro de caracterização da região e

do município em que o Cangume encontra-se inserido, lançando mão da bibliografia e das

fontes imediatamente disponíveis e apenas subsidiariamente investindo em levantamento de

fontes históricas primárias e dados estatísticos brutos. Com isso, recuperamos em traços

gerais o percurso da escravidão na região de Apiaí, assim como os seus sucessivos ciclos de

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incremento e depressão econômica e social, para ao final traçar um perfil sócio-econômico

de Itaóca, município recém-emancipado daquele, de forma a apresentar a moldura no

interior da qual a análise do Cangume, apresentada nos capítulos seguintes, deve ser lida.

Finalmente no capítulo terceiro, iniciamos a análise do Cangume por meio das

representações criadas em torno do bairro e das funções sociais a que tais representações

estão associadas. Partimos de uma série de fragmentos, tais como conversas, observações

de rua, entrevistas, pequenos estudos e matérias de jornal para montar o mosaico que, aos

poucos, foi se alterando do estigma relativo aos “negros bugres” até conformar um

consenso em torno da caracterização do Cangume como uma comunidade quilombola, que

desempenha importante papel na política da municipalidade. Trata-se de uma análise

sucinta e parcial do processo de identificação do grupo.

No quarto e mais extenso capítulo, trabalhamos por meio do cruzamento entre

fontes documentais, levantamentos de história oral e análise etnográfica, para reconstituir o

território da comunidade. Tivemos por foco, de um lado, os mecanismos históricos e

sociológicos de definição do território social do grupo, enquanto, de outro, buscamos

compreender a natureza e operação dos mecanismos de sua expropriação. Com isso foi

possível apresentar algumas hipóteses tanto sobre a forma de gestão tradicional do espaço

social, ambiental e produtivo que caracterizava o grupo até aproximadamente 1966, quanto

sobre o processo mais amplo que atingiu outras comunidades do Vale do Ribeira, de

expropriação das terras de uso comum por meio da aplicação de uma lógica mercantil e

individualista de relação com a terra, não tanto pela corrupção ou deturpação da lei, mas

por sua simples aplicação. Essa reconstituição e análise são fundamentais para compreender

o quadro social hoje encontrado no grupo.

Por fim, o quinto e último capítulo apresenta uma caracterização do grupo hoje,

pautada na descrição de sua paisagem, de suas características sócio-econômicas,

condicionantes territoriais e lista de moradores, para então apresentar as demandas que o

grupo quer ver respondidas com o seu reconhecimento oficial como remanescente de

quilombo.

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Capítulo 1

O quilombo conceitualPara uma sociologia do artigo 68 do ADCT1

Da parte do Estado, o “reconhecimento” de um grupo como indígena ou como

quilombola - ato de nomeação oficial que fixa uma identidade política, administrativa e

legal - ainda que reivindique ser apenas um ato de consagração de uma realidade - material

ou discurssiva - é também um ato de criação, na medida em que vem instituir, junto a uma

série mais extensa e complexa de atos e enunciações, um novo sujeito social. Mas, como

condição de realização prática daquela recontextualização, tal “reconhecimento” é também

uma ameaça permanente a ela, ao instituir um novo sistema de identificação modelizante,

pronto a recapturar e englobar aquelas subversões classificatórias.

A produção de novos sujeitos políticos etnicamente diferenciados pelo termo

“quilombola” tem início depois da ampla tomada de conhecimento dos novos direitos

instituídos pelo artigo 68 (Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios / Constituição

de 1988), que reconhece (“é reconhecida”) aos “remanescentes das comunidades de

quilombo”, a “propriedade definitiva” das terras “que estejam ocupando”, assim como a

obrigação do Estado em “emitir-lhes os títulos respectivos”.

Esse novo artigo constitucional implica em uma inovação no plano do direito

fundiário, mas também, no plano do imaginário social, da historiografia, dos estudos

antropológicos e sociológicos sobre populações camponesas e no plano das políticas locais,

estaduais e federais que envolvem tais populações. Ato de reconhecimento jurídico, o

artigo 68 é, também e simultaneamente, um ato de criação social, em vários planos. Mas o

mais desconcertante do ponto de vista político e interessante do ponto de vista sociológico é

que toda essa produtividade não resulta de uma ação consciente, de um projeto, mas antes é

1 Parte significativa deste item foi extraída dos primeiro e terceiro itens do capítulo 1 de minha tese de doutorado (Arruti, 2002), acrescida de uma atualização sobre o debate legal.

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o efeito da inesperada captura da lei pelo movimento social, que a transformou em

ferramenta afiada na abertura de novos caminhos para a luta social, ao contrário do que sua

formulação inicial pretendia.

1.1. Improviso e impasse

É fundamental, em primeiro lugar, compreender que os formuladores da lei não

dispunham de elementos suficientes para prever tais efeitos criadores da lei. A “intenção do

legislador”, fantasmagoria recorrentemente citada nos textos de hermenêutica jurídica,

dificilmente pode ser reivindicada como chave de compreensão dessa nova realidade. Ao

tentarmos dar conteúdo sociológico a essa suposta “intenção” no caso do “artigo 68”,

encontramos pressupostos obscuros e confusos, um conhecimento muito limitado da

realidade que nele se faria representar e uma discussão que, em momento algum apontou

para o futuro, mas sempre para o passado. A questão fundamental é, portanto, perceber

como o quilombo histórico foi metaforizado para ganhar funções políticas no presente e

como tal conversão simbólica teve como produto, uma construção jurídica que permite

pensar projetos de futuro.

A categoria “remanescente de quilombo” foi criada pelo mesmo ato que a instituiu

como sujeito de direitos (fundiários e, de forma mais geral, “culturais”) e, nesse ato, o

objeto da lei não é anterior à ela ou, de um outro ângulo, nele o direito cria o seu próprio

sujeito. O “artigo 68” não apenas reconheceu o direito que as “comunidades remanescentes

de quilombos” têm às terras que ocupam, como criou tal categoria política e sociológica,

por meio da reunião de dois termos aparentemente evidentes.

Segundo um constituinte integrante da Comissão de Índios, Negros e Minorias2, o

artigo 68 dos ADCT teria sido incorporado à Carta “no apagar das luzes”, em uma

formulação “amputada” e mesmo assim apenas em função de intensas negociações políticas

levadas por representantes do movimento negro do Rio de Janeiro. Um assessor daquela

mesma Comissão3 afirma ainda que o artigo teria sido algo improvisado, sem uma proposta

2 O antropólogo e deputado federal José Carlos Sabóia, citado por Salustiano da Silva (1991: 60).3 Entrevista com Olympio Serra, ex-diretor do Parque Indígena do Xingú, ex-funcionário do Instituto do Patrimônio Cultural (onde foi responsável pelos primeiros projetos de tombamento de “monumentos negros”), ex-coordenador da ONG Mata Virgem, ex-presidente Conselho Geral do Memorial Zumbi, ex-funcionário da FCP, durante a gestão de Joel Rufino. Salvador, março de

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clara original ou maiores discussões posteriores, ainda que seja evidente a sua inspiração

histórica e arqueológica e o desconhecimento do “problema social” implicado no tema. 4

Segundo um representante do Fórum Estadual de Comunidades Negras de São

Paulo, a militância negra à época tinha de fato mais dúvidas que certezas com relação ao

artigo e o seu texto final teria sido resultado de um esgotamento do tempo e das referências

de que o movimento dispunha para o debate, mais do que de qualquer consenso. A decisão

teria passado principalmente pela avaliação de que seria necessário lançar mão do

“momento propício”, mesmo que não se soubesse ao certo o que se estava fazendo aprovar.

Tanto o desconhecimento sobre a realidade fundiária de tais comunidades por parte dos

constituintes, quanto o contexto de comemoração do Centenário da Abolição (“nós

vinculamos que quem votasse contra o artigo 68 poderia levar a pecha de racista”5),

formaram o caldo ideológico que permitiu o surgimento do artigo 68. Só uma coisa parecia

estar fora de discussão, segundo o deputado Luiz Alberto (PT/BA), coordenador nacional

do MNU. Que o "artigo 68" deveria ter um sentido de reparação dos prejuízos trazidos pelo

processo de escravidão e por uma abolição que não foi acompanhada de nenhuma forma de

compensação, como o acesso à terra6.

De fato, segundo os registros do “Diário da Constituinte”7, a proposta de artigo teria

sido matéria de uma discussão pobre. A formulação inicial do Deputado Caó era a seguinte:

Acrescente, onde couber, no Título X (Disposições Transitórias), o seguinte artigo: Art. Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes de quilombos, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas

2000.4 Isso de certa forma é confirmado no depoimento de um militante do movimento negro do Maranhão, segundo o qual assessores da deputada Benedita da Silva teriam entrado em contato com o Centro de Cultura Negra para recolher propostas, “mas foi uma coisa muito de repente [e] eu mesmo não tinha nenhuma discussão preparada para isso”. Entrevista com Ivo Fonseca, componente da Articulação Nacional de Remanescentes de Quilombos e representante da Articulação Estadual de Remanescentes de Quilombos do Maranhão. Militante e pesquisador de primeira hora do PVN. Belo Horizonte, novembro de 2000.5 Participação de Flávio Jorge no seminário “Direitos Territoriais...”, transcrito em Leitão (org.),1999: 28. De agora em diante simplificado para “em Leitão, 1999”6 Luiz Alberto em Leitão, 1999:29.7 Dados retirados da compilação, realizada por Dimas Salustiano da Silva, das propostas de emendas e dos pareceres sobre elas, registrados no “Diário da Constituinte” (Silva, 1997).

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essas terras bem como documentos referentes à história dos quilombos no Brasil. (transcrito em Silva, 1997:14-15)

O termo inicialmente proposto, de “comunidades negras remanescentes de

quilombos” manteve-se em duas das três “emendas modificativas”, que não manifestavam

qualquer dúvida de compreensão sobre o sentido da expressão proposta, ainda que, no

momento de aprovação do "artigo 68", sua alteração para “remanescentes das comunidades

dos quilombos”, fosse estabelecida sem que sua razão tenha sido explicitada.

A emenda do Deputado Aluízio Campos (PMDB/PB) tinha a seguinte formulação:

“Fica reconhecida a posse legítima das terras ocupadas, durante mais de dez anos

ininterruptos...”, enquanto a emenda do Deputado José Richa (PMDB/PR) dizia: “Fica

declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas...”. Entre elas há uma importante

diferença jurídica acerca do que se reconhecia, a “posse” ou a “propriedade” das terras. A

primeira formulação aproximava o estatuto do domínio dos remanescentes de quilombos

sobre suas terras tando ao dos indígenas, ao lhes garantir o reconhecimento apenas da

posse, quanto de uma espécie de usucapião especial, ao associá-la à um tempo mínimo de

ocupação8. Mas era a “emenda modificativa” proposta pelo Deputado Eliel Rodrigues

(PMDB/PA) que, de fato, divergia frontalmente no conteúdo e no espírito da proposição

inicial. Ela propunha:

Suprima-se do texto do referido artigo, a sua primeira parte, e dê-se nova redação ao restante do texto citado, dispositivo, de modo que o mesmo assim se expresse: Artigo 25- Ficam tombadas as terras das comunidades negras remanescentes dos antigos quilombos, bem como todos os documentos referentes à sua história no Brasil. (transcrito em Silva,1997:16)

Nessa proposta ficam claras duas divergências, uma relativa à conceituação das

comunidades que seriam objeto do artigo e outra, relativa ao objeto do reconhecimento.

Com relação à primeira, ele agregava o qualificativo de “antigos” ao termo quilombos, para

reforçar a necessidade do vínculo histórico, já apontado pela noção de “remanescentes”,

8 Ainda que não possamos desenvolver aqui essa discussão, vale assinalar que tal interpretação, de fato, se manteve no interior do campo jurídico, apesar da formulação não ter permanecido. As atuais discussões travadas principalmente entre representantes do Minitério Público Federal ainda tendem a aproximar o “artigo 68” de um usucapião especial quando o que está em debate é a tese de que as propriedades insidentes em suas terras não são passíveis de desapropriação.

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antecipando-se à possibilidade de reinterpretações do termo, que já eram visíveis na

mobilização camponesa de seu estado de origem (Marin, 1995). Com relação à segunda, ele

limita o reconhecimento aos direitos culturais, propondo com que as terras sejam

simplesmente tombadas, excluindo com isso o reconhecimento da legitimidade das posses

daquelas comunidades e sua titulação pelo Estado. Tanto que, mais tarde, no ano de 1993,

esse mesmo deputado seria responsável pela proposição de uma emenda à proposta de

revisão constitucional que simplesmente suprimia o "artigo 68" (Almeida, 1995:215).

Uma nesga do debate suscitado pela posição desse deputado pode ser recuperada

por meio do parecer da Comissão de Sistematização, segundo a qual

Alega o Parlamentar que a emissão dos títulos de propriedade pelo Estado criará ‘verdadeiros guetos’ e a prática do ‘apartheid’ no Brasil. A despeito da preocupação do Constituinte quanto à possibilidade de segregação social e desigualdade dos direitos civis, a nossa posição não enxerga esses males, porém apenas objetiva legitimar uma situação de fato e de direito, isto é, a posse e o domínio das comunidades negras sobre as áreas nas quais vivem, realizam a sua história por mais de um século, continuadamente, apesar dos atentados e crimes de toda ordem praticados contra suas culturas, liberdades e direitos (aqui o objetivo da titulação). Os guetos são fenômenos sociológicos, antropológicos [...] e não obras de escrituras públicas que apenas oficializam o domínio pleno, justo e continuado de um povo exilado de sua própria pátria, pela violência e injustiça. (transcrito em Silva, 1997:16)

Superado esse obstáculo, no entanto, vale notar que a proposta inicial do Deputado

Caó, seria desmembrada, fazendo com que a parte relativa ao tombamento dos documentos

relativo à história dos quilombos coubesse no corpo permanente da Constituição (capítulo

relativo à cultura), mas a parte relativa à questão fundiária fosse exilada no corpo dito

“transitório”. Uma evidência de que a temática da população negra e a cultura não gozam

apenas de uma “afinidade eletiva”, mas de que o campo da cultura era, até então, o próprio

limite permitido ao reconhecimento público e político dessa temática. E não seria o texto do

"artigo 68" que mudaria isso, mas a sua captura por parte do movimento social.

Assim, a procura de uma compreensão das razões e sentidos da lei nas supostas

intenções e/ou correlações de força que teriam configurado o texto da lei - primeiro impulso

da análise - mostra-se bastante limitado. Às supostas intensionalidades do legislador é

preciso agregar a análise do amálgama de referências formado pelas sucessivas conversões

simbólicas a que o termo quilombo estava sendo submetido ao longo das reformulações

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ideológicas e políticas que alimentaram os anos de 1970 e 1980. Ainda que aqueles que

participaram diretamente da formulação e aprovação do “artigo 68” não tivessem qualquer

certeza sobre o conceito que criavam, ele estava diretamente referido às conversões

simbólicas do termo, que passaremos a descrever a seguir.

1.2. Usos históricos

Para uma compreensão do uso que foi feito da idéia de “quilombo” na elaboração da

Carta Constituinte (esse “momento propício” de que falava um testemunho apresentado há

pouco) é preciso reconstituir as formas mais amplas em que se davam o seu emprego.

Como se vê pelo Catálogo Centenário da Abolição (ACEC / CIEC / Núcleo da Cor / UFRJ,

1989)9, que cobriu os eventos do ano de 1988 dedicados ao tema da abolição, da escravidão

e da situação do negro na sociedade brasileira em geral , é notável a ausência naquele ano,

de qualquer referência a discussões ou eventos relativos aos agrupamentos ou comunidades

negras rurais, remanescentes de quilombos ou semelhantes.

Houve, é verdade, uma presença significativa de eventos que evocavam

especificamente o quilombo de Palmares e o líder guerreiro Zumbi, mas as suas imagens

serviram mais como evocações sobretudo metafóricas, palavras de força, emblemas de luta,

títulos de efeito, do que como referências históricas ou presentes concretas. Apesar disso e

do número de eventos catalogados no 20 de novembro (162) ser várias vezes menor que no

13 de maio (666), grande parte dos eventos de maio eram de protesto contra o significado

da data oficial, fazendo com que a imagem do quilombo exercesse uma importante função

nesse momento que, hoje parece claro, era um momento de transição.

Como chama a atenção Hasembalg (1992), o tom dos discursos sobre a abolição e

sobre o negro no Brasil sofreu durante esse ano um forte deslocamento, que fez com que o

ufanismo da democracia racial e a exaltação dos vultos nacionais abolicionistas ficassem

presos “às paredes das câmaras municipais e academias estaduais de letras” (:140). Fora

9 O catálogo é resultado de um trabalho sistemático de levantamento e acompanhameno dos “eventos” relativos ao Centenário, no ano de 1988. Como a coordenadora da pesquisa explica, “evento foi tudo que se produziu para ‘criticar’, ‘repensar’, çomemorar’ou ‘negar’o Centenário da Abolição” (Maggie, 1989:7-8). Realizado por uma equipe multidiciplinar, ainda que tenha se concentrado nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, alcançou abrangência nacional, resultando em 1.702 registros.

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delas, começando por um espetáculo de massas como o carnaval do Rio de Janeiro, quem

ganhava espaço era justamente a rebeldia contra a escravidão e a dúvida sobre a realidade

da abolição. O fim do período autoritário teria aberto a sociedade para os debates que

haviam ficado abafados por mais de duas décadas, permitindo que vários movimentos

sociais, entre eles o movimento negro, trouxessem à pauta política conflitos até então

suprimidos (Hasembalg, 1992:142) ou simplesmente inviabilizados pelo exílio de alguns de

seus maiores militantes. Ainda que a “afinidade eletiva” entre o movimento negro e o

Estado continuasse se dando no plano da cultura (:143) e, no limite, da folclorização da

cultura, duas novas questões afirmaram-se na pauta do movimento desde então. Primeiro, a

liberdade não foi consentida e sim conquistada e, segundo, a abolição não alterou a situação

de fato da população negra no Brasil, que permaneceu excluída dos mais elementares

direitos do cidadão. Assim, a dicotomia entre o treze de maio e o vinte de novembro serviu

como o grande meio de expressão dessa mudança de discurso e de postura do movimento

social e, por meio dessa dicotomia, o Quilombo de Palmares e seu líder heróico Zumbi,

ganharam um papel eminente nessa conversão simbólica.

Na verdade trata-se mesmo de uma conversão simbólica do próprio quilombo como

metáfora. Ainda que nunca tenha tido a força e disseminação que passa a ter depois dos

anos 70, o quilombo sempre foi um tema que instigou o imaginário político. A sua primeira

definição se dá no corpo das legislações colonial e imperial, de uma forma explicitamente

indefinida, que buscava abarcar sob um mesmo intrumento repressivo, o maior número de

situações, bastando para a sua caracterização, a reunião de cinco (colonial) ou três

(imperial) escravos fugidos, formassem eles ranchos permanentes (colonial) ou não

(imperial) (Almeida, 1996). Sua generalização pela geografia e história do país - Oliveira

Viana elencou-o como um dos três grandes inimigos da ordem pública, ao lado dos índios

selvagens e dos grandes potentados rurais (Viana, 1973: 167) - combinada ao franco

desconhecimento objetivo sobre sua realidade histórica, fez dele esse tipo de evento pronto

a reapropriações mitologizantes que, desde pelo menos o início do século XX, serviram

para pensar duas questões recorrentes. Questões cujas implicações simbólicas tenderam a

obscurecer as outras que lhes eram vizinhas mas talvez mais estritamente historiográficas,

entre as quais as relativas às condições que estimulavam a fuga e a constituição de

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quilombos, as táticas de defesa e repressão aos quilombos, sua demografia e economia e

suas relações com a sociedade envolvente.

1.2.1. Resistência Cultural

A primeira dessas questões fala da resistência cultural, tendo como tema central a

persistência ou produção de uma cultura negra no Brasil. Nesse caso, pergunta-se em que

medida os quilombos são ou buscam ser reproduções do modo de vida africano, ou em que

medida eles constituem criações mais ou menos originais e propriamente americanas. Em

que medida sua organização social e suas estruturas de poder reproduzem aquelas dos

Estados africanos, operando como um meio de resistência cultural. O tema está em pauta

desde 1905, quando Nina Rodrigues, pela primeira vez, caracterizou Palmares como uma

forma de persistência da África no Brasil, um retorno à “barbárie africana” (Rodrigues,

1977: 93).

Mais tarde essa mesma idéia de persistência da cultura africana perderia seu tom

pejorativo para ser caracterizada por Artur Ramos como um fenômeno “contra-

aculturativo” que surgia como reação à desagregação cultural que o africano sofreu sob o

regime de escravidão (Ramos, 1942: 137). Nesse caso, os trabalhos voltados ao tema

oscilam entre a interpretação histórica e o recurso aos temas e conceitos da antropologia.

Isso fica ainda mais claro no livro de Édson Carneiro, publicado no Brasil em 1947 e de

grande influência sobre os trabalhos posteriores sobre o tema. Nele, Carneiro explicita que,

Os quilombos, deste modo, foram - para usar a expressão agora corrente na etnologia - um fenômeno contra-aculturativo, de rebeldia contra os padrões de vida impostos pela sociedade oficial e de restauração dos valores antigos (Carneiro, 1988: 14, grifos no original)

Dessa forma os poucos trabalhos sobre quilombos continuariam correndo sobre o

leito culturalista, acompanhando a tendência dominante nas etnografias sobre cultos

religiosos afro-brasileiros que, desde Nina Rodrigues até as décadas de 1950 e 1960,

haviam criado uma pauta dominante: a busca obcecada de uma “compreensão do mundo

africano entre nós” (Peixoto, 2000: 123-125). Mediando criticamente essa pauta e os

aportes recentes da sociologia de Melville Herskovits, também Roger Bastide trabalharia

com os quilombos ou cimarrones em termos de resistência cultural, ainda que essa

resistência não significasse predominantemente uma “volta” ou uma “reconstituição” e sim

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uma continuidade com a África, já que ele caracteriza tais populações como

prioritariamente constituídas de escravos recém-chegados da África. (Bastide, 1967)

1.2.2. Resistência política

A segunda grande questão recorrente aos trabalhos sobre quilombos é relativa à

resistência política e busca identificar as formas pelas quais as classes populares se

comportaram frente à ordem dominante. Nela, o foco está nas relações de poder que o

quilombo se presta a representar. Nesse caso, podemos identificar ao menos três momentos

e grupos de intérpretes que se apropriam dos quilombos como metáfora política. Neles a

referência à África é substituída pela referência ao Estado ou às estruturas de dominação de

classes e os quilombos e, em especial Palmares - único que despertou interesse constante -

servem para pensar, em primeiro lugar, as aspirações populares. No limite, eles seriam uma

forma verdadeiramente revolucionária, jacobina ou socialista dependendo do pendor do

intérprete. Se a questão relativa à resistência cultural, ao traduzir-se em termos de

fenômeno contra-aculturativo e de africanismo encontrava uma genealogia acadêmica,

sendo mais tarde apropriada pelo movimento social negro, o tema dos quilombos como

metáfora da resistência política nasce do próprio protesto político, ganhando espaço

acadêmico na medida em que este também se reveste de crítica política.

A edição brasileira do livro de Édson Carneiro sobre o Quilombo dos Palmares10

traz uma dedicatória a Astrogildo Pereira, que teria sido o primeiro a propor uma

interpretação classista da luta de Palmares, nas páginas do jornal do Partido Comunista, em

1929. (Oliveira, 1988). Mas a apropriação simbólica que o próprio Carneiro faz de

Palmares como símbolo político não se manifesta expressamente em sua interpretação.

Como vimos, ela continua informada pelo debate sobre a “compreensão do mundo africano

entre nós”. Essa conversão da metáfora em interpretação histórica, como anunciada pelo

líder comunista, se realizaria nas interpretações de fins dos anos 50, vindo associadas, como

lembram Reis e Gomes (1996:12) à ascensão dos movimentos de esquerda e à difusão do

10 “Intelectual firmemente engajado na luta contra o Estado Novo” (Oliveira, 1988), que associava o tema do quilombo de Palmares à capacidade de luta do povo pela liberdade, Carneiro não consegue publicar seu livro no Brasil assim que o finaliza, em 1944. Considerado um tema inoportuno à época, o livro só seria editado no México em 1946 e no Brasil em 1947, depois do fim da era Varguista, por iniciativa de Caio Prado Junior, na Brasiliense (idem).

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arcabouço marxista na historiografia e ciências sociais brasileiras. Surgem então os

trabalhos de Clóvis Moura e Décio Freitas, entre outros, nos quais os quilombos e revoltas

escravas passam a figurar como assunto de destaque. Assim, ao mesmo tempo em que se

consolidava um tipo de interpretação sociológica da história do negro no Brasil, que tinha

por motor a crítica à ideologia da democracia racial, tais trabalhos enfatizavam o aspecto

ativo da população escrava, por meio do qual os quilombos passam a estar associados

definitivamente ao tema da resistência política.

Segundo essa perspectiva as abordagens anteriores pecaram por atribuir aos

escravos aquilombados apenas o objetivo de preservar a sua herança africana, sem

referência a sua luta contra a escravidão como sistema econômico e social. “Em outras

palavras, não perceberam o conteúdo político e revolucionário das revoltas escravas”.

(Freitas,1990:12) Ou, como diz Darcy Ribeiro no texto de orelha do livro de Décio Freitas,

Palmares seria um exemplo desse desafio que a história brasileira apresentou às classes

oprimidas, de desencadear a revolução socialista que, apesar de necessária, fracassou por

ser prematura. Nessa leitura, que acompanha de perto a análise marxista sobre as

“formações sociais pré-capitalistas”, os escravos constituíam um estamento e aqueles que,

no interior deste, eram empregados diretamente nas atividades produtivas, formavam uma

“classe de escravos proletários”. Mas apesar de formarem uma classe, nunca conseguiram

produzir uma consciência de classe, sofrendo da “impotência revolucionária” produzida

pela coesão e solidez internas da própria formação social escravista, desprovida de

contradições internas. (Freitas, 1990:186-210)

Da mesma forma, nas análises de Clóvis Moura (1972), o que ganha destaque são as

táticas de luta e fuga utilizadas, várias vezes associadas ao modelo das “guerras-de-

guerrilha”, como na literatura contemporânea sobre as revoluções e sublevações socialistas

na América Latina e Central. Em função dessa estrita referência marxista (e mesmo

leninista) a que o tema dos quilombos era submetido, os debates algumas vezes ficaram por

conta de determinar qual seria a “forma superior de luta contra a escravidão”. As chamadas

“formas passivas”: a má qualidade de seu trabalho (“verdadeira guerra de guerrilha”), o

suicídio (“forma patética e complexa”), o justiçamento do senhor (explicação do

“paternalismo”)e a fuga do escravo (forma “endêmica”). Ou a “forma ativa”: a insurreição

(“tentativa das classes dominadas de levantarem-se a fim de destruir a Ordem dominante e

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construir uma nova, momento superior da revolução social do proletariado no

capitalismo”). (Maestri,1984:9-19) Análises e debates que, apesar de terem trazido

importantes contribuições factuais, acabavam por enquadrar seus dados em uma camisa de

força interpretativa que já não dizia tanto sobre os fenômenos históricos em si mesmos

quanto sobre os usos políticos que se lhes desejava atribuir.

1.2.3. Resistência negra

Finalmente, um terceiro uso dado ao quilombo pode ser identificado ao chegarmos

no final da década de 1970 e início de 80, quando ele é novamente reapropriado pelo

movimento negro - agora organizado sob outros moldes e referências - como ícone da

“resistência negra”, ainda que preservando em parte seu “comunismo” e seu papel

“revolucionário”.

As primeiras referências a esse uso político dos quilombos, que se dá pela

redescoberta de Palmares como evento histórico representativo da “raça negra”, são

registradas em 1971, quando da criação do Grupo Palmares por um pequeno grupo de

militantes de Porto Alegre (RS). Inspirado no texto de Édson Carneiro, o grupo propôs o

dia 20 de novembro como data alternativa ao treze de maio oficial e a partir daí passou a

provocar eventos anuais, além de publicar o jornal Tição e propor a reforma dos livros

didáticos no que concernia à história do negro e em especial a do Quilombo de Palmares.

(Silveira, 1997) Assim, nos anos seguintes a 1971, a data começou a ser lembrada pela

imprensa estadual e a seguir nacional, até que em 1978 o Movimento Negro Unificado

Contra a Discriminação Racial (mais tarde abreviado para MNU) propôs que a data

marcasse o Dia Nacional da Consciência Negra. A proposta foi apresentada no mesmo ano

de fundação do MNU, durante o seu primeiro congresso com representatividade nacional,

realizado na Bahia sob forte repressão policial.11 A fundação do MNU formalizava a

entrada em cena de uma nova geração de militantes negros, formados ao longo dos anos 70,

sob a influência predominante do movimento negro americano e dos primeiros Congressos

de Cultura Negra das Américas, motivados pela denúncia da violência oficial contra a

11 Os congressistas eram acusados de racismo pelo governo bahiano, com base na Lei Afonso Arinos e por isso tiveram que transferir o evento de dois lugares sucessivos até conseguirem espaço no Instituto Brasil-Alemanha (Nascimento, 1981)

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população negra (Nascimento, 1981) e assumindo como símbolo Zumbi dos Palmares, que

a partir desse momento tornaria-se uma referência constante ao movimento.

Em “O Quilombismo”, livro publicado em 1980, Abdias do Nascimento buscou dar

a forma de uma tese “histórico-humanista” ao sentimento e à experiência quilombola:

movimento social de resistência física e cultural da população negra que se estruturou não

só na forma dos grupos fugidos para o interior das matas na época da escravidão, mas

também, em um sentido bastante ampliado, na forma de todo e qualquer grupo tolerado

pela ordem dominante em função de suas declaradas finalidades religiosas, recreativas,

beneficentes, esportivas etc.

Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. (Nascimento, 1980: 263).

A partir daí, Abdias propôs que o “quilombismo” fosse adotado como um projeto de

“revolução não violenta” dos negros brasileiros, que teria por objetivo a criação de uma

sociedade (o “Estado Nacional Quilombista”) marcada pela recuperação do

“comunitarismo da tradição africana”, aí incluída a articulação dos diversos níveis de vida

com vistas a assegurar a realização completa do ser humano e a propriedade coletiva de

todos os meios de produção. Esse era o conteúdo simbólico que deveria ser atribuído aos

quilombos enquanto palavra de ordem do “verdadeiro movimento revolucionário negro”

que, apesar de ser anti-imperialista, articulado ao pan-africanismo e sustentado na radical

solidariedade de todos os povos, não poderia se contentar com a adoção de slogans “vindos

de fora”. Coerente com essas formulações, assim que retorna ao país definitivamente e

funda o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (IPEAFRO) na PUC-SP, a

primeira pesquisa que Abdias formula para o IPEAFRO é relativa aos Quilombos

Contemporâneos.

No ano seguinte, no 20 de novembro de 1981, celebrou-se no Recife a primeira

missa no Brasil, e possivelmente em todo o mundo católico, em que altos representantes da

Igreja, diante de uma multidão de cerca de oito mil pessoas, se penitenciaram e pediram

perdão pelo posicionamento histórico da Igreja diante dos negros, da África e, em especial,

dos negros aquilombados, reconhecidos como os maiores inimigos da empresa cristã

durante séculos. Foi a Missa dos Quilombos, que se tornou um marco no revisionismo

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histórico da Igreja no Brasil e que propôs uma reapropriação simbólica das lutas e da vida

do negro contemporâneo, de forma a tomá-las como dado cultural que deveria ser inserido

na reflexão dos agentes eclesiais engajados socialmente, até então refratários à questão

racial.

Na mesma linha de reapropriação do simbolismo quilombola, o foco da Missa dos

Quilombos não era apenas a memória histórica, mas sobretudo um estilo de vida presente,

que se fazia resistente e deveria ser reconhecido como tal para que pudesse se transformar

em uma “luta cultural” consciente de si mesma: “Quilombo no Brasil é atualidade, não

passado” (Hoornaert, 1982: 12).

No mesmo período, no plano do Estado, ainda acompanhando a citada “afinidade

eletiva” entre o tema do negro e o da cultura, começou-se a gestar no interior da Fundação

Pró-Memória a discussão em torno dos chamados Monumentos Negros. No bojo de uma

discussão mais larga que tinha por motivação a renovação da noção de patrimônio, a

Fundação Pró-Memória encaminhou os trabalhos que iriam resultar tanto no tombamento

do Terreiro de Candomblé da Casa Branca (Salvador, BA), primeiro a ser considerado

patrimônio histórico e cultural nacional, quanto nas discussões relativas ao tombamento da

Serra da Barriga (União dos Palmares - AL) como sítio histórico.

Provocada pela CAPES a definir um estatuto para a Serra da Barriga, a Fundação

convocou um seminário na Universidade de Alagoas com a participação de representantes

do movimento negro para uma ampla consulta. Desse seminário resultou a idéia de criação

de um memorial em homenagem a Zumbi e a criação da organização não-governamental

Conselho Geral do Memorial Zumbi, composta por representantes da CAPES, da Fundação

Pró-Memória, da Universidade e do movimento negro. O Conselho funcionaria

efetivamente até 1988, como uma forma de articulação de parte da militância em torno da

proposta de criação do Memorial e da introdução de Zumbi no livro dos heróis nacionais,

promovendo eventos cívicos em União dos Palmares, além de uma peregrinação anual no

dia 20 de novembro à Serra da Barriga. Ele se desarticularia justamente depois da criação

da Fundação Cultural Palmares, em 1988, que passou a responder pelo Memorial e

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absorveu parte da diretoria do Conselho, como Carlos Moura e Joel Rufino, que seriam

nomeados sucessivamente como presidentes da FCP nos anos seguintes.12

É interessante perceber como, no interior mesmo dessa reapropriação do quilombo

pelo movimento negro dos anos 70 e 80, existem duas leituras que, apesar de não serem em

si mesmas contraditórias (alguns atores pautavam suas ações simultaneamente por ambas),

são distintas e abrem espaço, como veremos, para futuras contradições. De um lado, a

contemporanidade do quilombo: Abdias fala de “quilombismo” e de “quilombos

contemporâneos”, assim como o faz a seguir a Igreja católica. De outro, a historicidade dos

quilombos: uma associação entre representantes do movimento negro e instituições de

pesquisa e preservação do Estado consagram o quilombo como patrimônio histórico e

cultural brasileiro. As comemorações pelo centenário da abolição permitiram que a

simbologia dos quilombos - tornada grande reserva mitológica para a construção de uma

identidade positiva do negro brasileiro (Hasembalg, 1992:144) - pudesse ser projetada

definitivamente no plano nacional e oficial - inicialmente sem fazer maiores distinções

entre sua contemporanidade ou sua historicidade - na forma de um artigo constitucional.

1.3. “Ressemantização”

Depois de aprovado o artigo, ainda é esse amalgama de referências que estará

orientando as primeiras iniciativas no sentido de efetiva-lo, até que uma realidade conflitiva

e quase sempre contraditória a tais significados imponha uma nova e ampla revisão do

termo.

1.3.1. Pedra e plástico

No início dos anos 90 um pesquisador da FCP informava à grande imprensa que o

órgão tinha uma proposta de definição para quilombo que serviria de base a qualquer

trabalho futuro de levantamento do seu número e situação atual. Segundo essa definição

“quilombos são os sítios historicamente ocupados por negros que tenham resíduos

arqueológicos de sua presença, inclusive as áreas ocupadas ainda hoje por seus

descendentes, com conteúdos etnográficos e culturais” (Revista Isto É, 20/06/90: 34)

12 Entrevista com Olympio Serra, citada.

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De fato, as primeiras iniciativas da FCP em responder às demandas que surgiam

pela aplicação do artigo constitucional se deram por meio da constituição de uma

Subcomissão de Estudos e Pesquisas (formada por técnicos da FCP e do Instituto Brasileiro

de Patrimônio Cultural - IBPC) e por uma Comissão Interministerial, que tinha a tarefa de

“identificar, inventariar e propor o tombamento daqueles sítios e populações que descendem da cultura Afro-brasileira, que deverão, após o laudo antropológico, ser reconhecidos como remanescentes de quilombos através da FCP, tão logo se regularize o Art. 68”13.

Na leitura oficial, a noção historicizante, arqueológica e voltada para a noção de

patrimônio histórico ganhava uma franca predominância sobre aquela presentista, que

falava em termos de “quilombos contemporâneos”.14 Assim, algumas comunidades

chegaram a ser visitadas por técnicos do IBPC, principalmente arqueólogos e arquitetos,

mas rapidamente ficou claro o confronto que se formava entre a noção tomada em seu

aspecto de patrimônio histórico e as demandas apresentadas pelos grupos atuais15.

Em 1994, no seminário “Conceito de Quilombo”, realizado pela mesma FCP, seria

apresentada uma visão absolutamente distinta da questão. Nele, o tema deixaria de ser

pensado como assunto exclusivo dos técnicos dos órgãos oficiais, para tornar-se matéria de

debate acadêmico. Nesse seminário Glória Moura - citada como outra responsável pela

formulação e implantação do “artigo 68” - lançaria mão da noção de “quilombos

contemporâneos” para caracterizar as comunidades a que se refere o “artigo 68”, como

comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos [que] vivem da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado ancestral. Esse vínculo com o passado foi reificado, foi escolhido pelos habitantes como forma de manter a identidade. (Moura, 1994)

13 Ofício do diretor de Estudos, Pesquisas e Projetos ao Subprocurador Geral da República (OF.074/94/DEPP/FCP/MinC, 22.06.94).14 Vale lembrar que a própria FCP havia sido criada no bojo da mobilização pelo tombamento da Serra da Barriga, situada no interior do Ministério da Cultura.15 Na verdade, o recurso a esse viés interpretativo seria usado mais tarde por alguns confrontantes diretos com os interesses das comunidades mobilizadas pela aplicação do “artigo 68”. Um exemplo disso foi o laudo coordenado pelo arqueólogo Carlos Magno Guimarães, sobre a Comunidade de Porto dos Corí (Leme do Prado - MG) por encomenda da CEMIG, interessada em deslocar aquela população para a construção de uma hidrelétrica.

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Uma identidade que não deveria ser definida como racial, mas como étnica, já que

ela seria independente da cor de pele e da origem africana. Essa definição era reproduzida

quase literalmente na fala do novo presidente da FCP, Joel Rufino (que também

participava, junto com o ex-presidente Carlos Moura, da coordenação do Conselho Geral

Memorial Zumbi), durante o mesmo seminário, produzindo o efeito de se atribuir a essa

atualização e ampliação do termo um caráter “oficial”.

Em um texto posterior a Glória Moura desenvolveria essa idéia ao apresentar parte

dos resultados de uma pesquisa relativa às raízes culturais negras, realizada para o

Programa do Centenário da Abolição, cujo objetivo era gerar material didático escolar16.

Nela, os “quilombos - comunidades negras rurais” se aproximariam das “comunas

tradicionais, onde todos se conheciam e se ajudavam, onde os meios de produção eram

socializados e os contatos eram primários” (Moura, 1997:136). Nessas comunidades os

problemas seriam sempre resolvidos em discussões coletivas, a produção seria dividida de

acordo com o tamanho de cada família e os problemas seriam entregues aos santos

padroeiros para serem resolvidos.

Tal descrição, fortemente idealizada, convive, no entanto, sem uma aparente

solução de continuidade, com a adoção de uma definição pragmática e quase utilitária da

identidade: a “aparente conservação da cultura de origem dá um status de legitimidade na

consecução do projeto de sobrevida” e os “traços culturais exaltam a etnicidade” com vistas

a “adequar passado ao presente” (Moura, 1997:143).

Pouco mais de um mês depois, o GT sobre Comunidades Negras Rurais da

Associação Brasileira de Antropologia (ABA, 1994) enunciaria uma interpretação

“científica”, que se tornaria dominante, para essa ampliação da noção de “remanescentes de

quilombos”. Reunido no Rio de Janeiro, o GT propôs a “ressemantização” do termo

quilombo, a partir dos novos significados que lhe eram atribuídos pela literatura

especializada (apenas Clóvis Moura, Décio Freitas e Abdias do Nascimento eram citados

expressamente) e pelas entidades da sociedade civil que trabalhavam junto aos “segmentos

negros em diferentes contextos e regiões do Brasil”.

16 Glória Moura no seminário “Comunidades Quilombolas e Preservação Cultural” (Revista Palmares, no. 5, 2000: 120)

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Em meio a uma série de negativas (não se referem a resíduos, não são isolados, não

têm sempre origem em movimentos de rebeldia, não se definem pelo número de membros,

não fazem uma apropriação individual da terra...) essa “ressemantização” definia os

remanescentes de quilombos como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na

manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”,

cuja identidade se define por “uma referência histórica comum, construída a partir de

vivências e valores partilhados”.

Nesse sentido, eles constituiriam “grupos étnicos”, isto é, “um tipo organizacional

que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou

exclusão” segundo a definição de Fredrick Barth (1969), mas cuja territorialidade seria

substancialmente caracterizada pelo “uso comum”, pela “sazonalidade das atividades

agrícolas, extrativistas e outras” e por uma ocupação do espaço que teria “por base [os]

laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade”.

(ABA, 1994)

Entre a posição do técnico da FCP e de Moura, Rufino e da ABA, isto é, entre uma

concepção eminentemente patrimonialista e outra que, sem abdicar da tal “afinidade

eletiva” com a cultura, a converte de reminiscência histórica em afirmação étnica, houve

um percurso conflituoso, no qual o quilombo foi submetido a uma série de reapropriações

simbólicas, inclusive no plano acadêmico. Mas a “recaptura” científica do quilombo não

seria sustentada como um simples golpe de interpretação. Ela ganhava o estatuto de uma

“ressemantização” porque recuperava e reinterpretava uma série de estudos antropológicos

que vinham sendo realizados desde fins dos anos de 1970 sobre “comunidades negras

incrustadas” (Pereira, 1981:66) e sobre comunidades indígenas camponesas, em maior ou

menor medida representados naquela reunião da ABA.

A retomada desses trabalhos, a partir da comemorações do centenário da abolição

(Almeida, 1998), no entanto não é linear, na medida em que o “referencial teórico-

metodológico mais ou menos comum” a eles - o conceito de “bairro rural” popularizado no

Brasil pelos trabalhos de Antônio Cândido e Maria Isaura Pereira de Queiroz - teve de ser

substituído pelas noções de etnia e etnicidade. Segundo Borges Pereira, a categoria que

começava a ser proposta, entre o final dos anos de 1970 e início dos de 1980, de

“comunidades negras incrustadas”, servia para evitar as noções de “isolados negros” e de

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“quilombos”, consideradas inadequadas, ainda que se trabalhasse justamente com a

“hipótese de que as comunidades em estudos seriam resíduos de antigos quilombos, que se

preservaram graças a seu isolamento histórico”. (Pereira,1981:66-67)

Devemos somar a essa retomada, a multiplicação de pesquisas e publicações

históricas motivadas por uma ampla revisão dos trabalhos relativos à resistência escrava e

aos quilombos históricos. Ainda que neles as temáticas anteriores continuassem presentes,

o foco dos debates parece ter se deslocado definitivamente do “modelo Palmares” -

marcado como vimos, pela idéia-força de “contra-aculturação” e reprodução do “mundo

africano entre nós”, “luta de classes”, “isolamento e autonomia” - para a descrição de uma

ampla variedade de situações concretas, historicamente documentadas. Segundo Reis e

Gomes (1996:13), tais estudos se renovaram na medida em que, além de investirem sobre

conjuntos documentais inéditos (que vão dos manuscritos às fontes orais), adotaram uma

tendência recente nos estudos sobre a escravidão, que incorpora ao estudo histórico uma

abordagem antropológica dos aspectos simbólicos e rituais do social.

Havia, portanto, um campo de interlocuções se desenhando no momento de

realização do seminário da FCP e do GT da ABA e que prepararia as discussões do ano

seguinte, marcado pelas comemorações do tricentenário da memória de Zumbi dos

Palmares. Ainda seria analiticamente útil reconstituir esse campo, mas não será tanto o

detalhamento dessas trocas, quanto a identificação da matriz que entre elas e a partir delas

se tornou dominante, que nos interesserá aqui.

1.3.2. “Uso comum”

O núcleo da “ressemantização” que marca a argumentação acadêmica terá por base,

no entanto, um outro campo de referências, que orientará a retomada dos trabalhos

referidos acima. Esse campo é representado pela análise de Alfredo Wagner Berno de

Almeida sobre as “terras de uso comum”, fruto do seu trabalho de assessoria ao movimento

camponês e aos sindicatos de trabalhadores rurais do Maranhão e Pará, ao longo da década

de 1980 e ao Projeto Vida de Negro (PVN) entre 1988 e 1991.

Uma das primeiras pesquisas sistemáticas sobre comunidades negras rurais começa

no Maranhão em 1988, tendo por referência básica o texto “Terras de preto, terras de santo,

terras de índio: uso comum e conflito” (Almeida,1989) que lança mão de trabalhos do fim

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dos anos 1970 e início dos anos 80. Nesse texto, as “terras de uso comum” são

caracterizadas como:

situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um dos seus membros. Tal controle se dá através de normas específicas instituídas para além do código legal vigente e acatadas, de maneira consensual, [pelos] vários grupos familiares, que compõem uma unidade social.

Nesses casos, são os

Laços solidários e de ajuda mútua [que] informam um conjunto de regras firmadas sobre uma base física considerada comum, essencial e inalienável. (Almeida,1989:163)

As terras de uso comum teriam permanecido um longo tempo sem qualquer análise

suficiente até aquele momento por serem consideradas pelo Estado e pela academia como

“formas atrasadas, inexoravelmente condenadas ao desaparecimento, ou meros vestígios do

passado, puramente medievais, que continuam a recair sobre os camponeses”, formas

“residuais ou ‘sobrevivências’ de um modo de produção desaparecido” (Almeida,

1989:166). Apesar da força dessas representações, marcadas por forte viés evolucionista,

tais formas de territorialidade teriam permanecido e se convertido em objeto de luta e

mobilização política e, por isso, de investigação. Assim, também de forma análoga ao que

ocorreu com os chamados remanescentes indígenas, a sua politização reverteria a a

“tendência tida como ascensional de estabelecimento de domínios privados com valores

monetários fixados” (1989:172).

Essa territorialidade, marcada pelo uso comum, é submetida a uma série de

variações locais que ganham denominações específicas, segundo as diferentes formas de

auto-representação e auto-nominação dos segmentos camponeses, tais como Terras de

Santo, Terras de Índios, Terras de Parentes, Terras de Irmandade, Terras de Herança e,

finalmente, Terras de Preto. Estas últimas compreenderiam “aqueles domínios doados,

entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, por famílias de escravos”.

(Almeida, 1989:174) Tais domínios teriam origens muito diferentes, como nas concessões

feitas pelo Estado em retribuição à prestação de serviços guerreiros; nas situações em que

os descendentes diretos de grandes proprietários, sem o seu antigo poder de coerção,

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permitiram a permanência das famílias de antigos escravos (e as formas e regras de uso

comum) por meio de aforamentos de valor simbólico, como forma de não abrir mão do seu

direito de propriedade formal sobre elas; e nos

domínios ou extensões correspondentes a antigos quilombos e áreas de alforriados nas cercanias de antigos núcleos de mineração, que permaneceram em isolamento relativo, mantendo regras de uma concepção de direito que orientavam uma apropriação comum dos recursos (Almeida, 1989:174-5)

Mais tarde, em uma reedição desse texto, ainda que não apresentasse nenhuma

argumentação fundamentando a associação entre a categoria jurídica remanescentes de

quilombos e a categoria sociológica “terras de preto”, Almeida (1995) dava a notícia de

duas importantes iniciativas políticas nessa direção: o Seminário da FCP de 1994 e o IV

Encontro das Comunidades Negras Rurais, promovido no início de 1995 pelo PVN. Pela

primeira vez, o tema desse encontro era justamente “Quilombos e Terras de Preto no

Maranhão”. Isso permitia que se reivindicasse um amplo alargamento do sentido literal do

artigo constitucional que buscava sustento em uma nova reapropriação eminentemente

político-simbólica do quilombo.

Em um texto seguinte essa argumentação seria desenvolvida em uma outra direção,

menos metafórica e mais histórica: como uma recaptura do caráter repressivo que sempre

marcou os termos quilombo e mocambo. Tal caráter teria adestrado os camponeses das

terras de preto a negar tal vinculação - que fatalmente deslegitimaria suas posses - e adotar

as autodenominações que remetem às modalidades de “uso comum” (Terras de Índio, de

Santo, de Preto etc.). Assim, a ressemantização do quilombo começa pelo seu avesso, como

uma ressemantização daquelas autodenominações relativas às diferentes modalidades de

uso comum, que passam a ser vistas como narrativas míticas, legitimadoras dos grupos e de

suas territorialidades que, de qualquer forma, foram criados pelo sistema colonialista e

escravocrata. Por isso, a assunção do rótulo quilombo, hoje, estaria relacionada não ao que

o grupo de fato foi no passado, mas à sua capacidade de mobilização para negar um

estigma e reivindicar cidadania.

Existe, pois, uma atualidade dos quilombos deslocada do seu campo de significação original, isto é, da matriz colonial. Quilombo se mescla com conflito direto, com confronto, com emergência de identidade [...]. O quilombo como possibilidade de ser, constitui numa forma mais que

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simbólica de negar o sistema escravocrata. [...] A reivindicação pública do estigma ‘somos quilombolas’ funciona como uma alavanca para institucionalizar o grupo produzido pelos efeitos de uma legislaçãocolonialista e escravocrata. (Almeida, 1996:17 - negritos no original)

Desde então, “remanescentes de quilombos” e “terras de preto” passam a estar

inevitavelmente associados por meio de uma outra genealogia, que vincula a “intenção do

legislador” à militância camponesa pelo reconhecimento de formas “especiais” de uso da

terra, até então desconsideradas pelos instrumentos de cadastro e intervenção do Estado.

Seu ponto de origem, portanto, remeteria a meados dos anos de 1980, período do “processo

de redemocratização” e, um de seus corolários, à retomada das discussões sobre uma

reforma agrária ampla e democrática.17

O Maranhão e depois o Pará ocupam um lugar excepcional nessa outra genealogia,

não só em função dos números levantados18, mas também por serem os estados em que a

organização dos agrupamentos auto-denominados “comunidades negras rurais” começou

mais cedo e teve maiores repercussões em termos organizativos. No Pará, a primeira

articulação dessas comunidades se dá em 1985, por meio dos Encontros de Raízes Negras,

ainda que uma reapropriação dessa forma de articulação em função do “artigo 68” só se dê

em 1997. No Maranhão, a organização de informações e dos próprios grupos rurais teve

início em 1986, quando os militantes do Centro de Cultura Negra (CCN) começaram a

visitar agrupamentos negros do interior do estado, para articular o I Encontro das

Comunidades Negras Rurais do Maranhão, já visando às discussões relativas à redação da

nova Carta Constitucional Federal.

O excepcional avanço do movimento social negro rural quilombola desses estados e

a sua influência sobre o conjunto nacional, com a organização da Articulação de

Remanescentes de Quilombos, também sediada no Maranhão, contribuiu para que a

17 Esse foi um período de vigoroso avanço dos movimentos camponês, indígena e de categorias de trabalhadores até então sub-representados, como os “atingidos por barragens”, os seringueiros e garimpeiros. Frente a essa mobilização e à renovação de seus quadros políticos, o Ministério da Reforma Agrária e os órgãos fundiários a ele ligados foram obrigados a reconhecer a existência desse tipo de posse, que não se encaixava nas categorias censitárias ou cadastrais até então utilizadas pelos órgãos governamentais. Batizadas como “ocupações especiais”, elas incluíam as “terras de preto”. (Almeida, 1996, 1998, 1999 e 2000).18 401 comunidades negras rurais em 62 municípios do Maranhão e 253 em 31 municípios do Pará.

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interpretação e os argumentos produzidos para dar conta das situações alí existentes,

alcance uma projeção e um domínio semelhantes.

1.3.3. Etnicidade

Então, é difícil encontrarmos uma comunidade que diga ‘eu sou quilombola’. Só quando há autoconhecimento, autodiscussão com o movimento negro, quando há um trabalho de base - aí sim você vai encontrar. Mas numa comunidade que nunca foi visitada, que seja pouco acessível ou pouco conhecida, jamais vai dizer que lá é um quilombo.[...] Eu digo que sou quilombola porque é resultado de um trabalho do movimento negro, com pesquisas e documentos. Conseguimos documentos desde 1792 e eles explicam para agente que naquela época existiam quilombos naquelas localidades. Vimos, então, que ali existiu um quilombo, porque eu não acredito que naquela época todos nós fossemos do fazendeiro, alguém era revolucionário e a minha família era revolucionária porque eu sou revolucionário, então por isso eu sou um quilombola. 19

O argumento antropológico que defende a ressemantização do termo quilombo para

afirmar sua contemporanidade entre os “remanescentes”, recorre à afirmação de uma

identidade coletiva definida pela “referência histórica comum, construída a partir de

vivências e valores partilhados” (ABA, 1994). A referência teórica fundamental dessa

definição, expressamente citada naquele documento, é o conceito de “grupos étnicos”, que

delimita os grupos “remanescentes de quilombos” como “um tipo organizacional que

confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou

exclusão”, segundo a definição de Fredrick Barth (1969).

Esse conceito viria de encontro justamente à necessidade de romper com o “ato

dissimulado de imposição” de um significado para quilombo que reproduziria acriticamente

ou a legislação repressiva dos século XVIII (Almeida, 1996) ou as idealizações e

substancializações de um movimento negro ainda profundamente referido ao modelo

palmarino. No lugar disso, propôe-se que se reconhecessem as “novas dimensões do

significado atual de quilombos”, que “tem como ponto de partida, situações sociais

específicas e coetâneas, caracterizadas sobretudo por instrumentos político-organizativos,

19 Ivo Fonseca no “Seminário Técnico de Mapeamento...” da FCP (Revista Palmares, 2000: 77-8).

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cuja finalidade precípua é a garantia da terra e a afirmação de uma identidade própria”

(Almeida, 1996:11). Isto é, as “autoevidências intrínsecas à ideologia escravocrata e aos

preceitos jurídicos dela emanados” (Almeida, 1996:15) devem ser substituídas pelas

autoevidências emananadas da ideologia contemporânea dos movimentos sociais

(camponeses) que tem nesse tipo de evento histórico e na “reivindicação pública do

estigma” relacionado a ele, uma “forma mais que simbólica de negar o sistema

escravocrata” (:17). Assim, o “artigo 68” teria “como ponto de partida a autodefinição e as

práticas dos próprios interessados ou daqueles que potencialmente podem ser contemplados

pela ampliação da lei reparadora dos danos históricos” (:17).

A etnicidade não marcaria nem o reconhecimento de semelhanças previamente

dadas, inscritas naturalmente nos corpos e nos costumes e cuja explicação estaria no

passado, nem responderia a recortes tão genéricos como os de cor, nem remeteria a grupos

tão bem delineados quanto os “isolados negros”. A sua análise não deveria recair sobre a

cultura, mas sobre os mecanismos de criação e/ou manutenção de uma forma

organizacional que prescreve padrões unificados de interação e que regula quem faz e quem

não faz parte do grupo, que regula as relações entre aqueles que fazem parte e entre estes e

aqueles que não fazem. Segundo essa interpretação antropológica, a etnicidade e os

próprios remanescentes de quilombos deveriam ser pensados a partir de uma atitude

positiva e propositiva, por meio da qual seriam produzidas demandas e um projeto

comum20, ou seja, cuja vinculação e razão de ser estria no futuro e não no passado.

Voltando ao ponto fundamental destacado por Weber (1991), o sociologicamente

relevante no uso da categoria etnicidade seria sua remissão ao movimento de um

determinado agregado no sentido da constituição de uma unidade política. As "fronteiras" e

os mecanismos de criar e manter tais fronteiras, isto é, os limites que emergem da

diferenciação estrutural de grupos em interação, do seu modo de construir oposições e

classificar pessoas, é o que passa a ser social, simbólica e analiticamente relevante

(Barth,1969) .

No lugar de uma definição que corresponde a uma enumeração de itens

substantivos, estabelecidos de um ponto de vista externo (no caso histórico e arqueológico),

20 Falar desta unidade de ação não deveria implicar no desconhecimento de todo o processo de disputas internas e faccionalismos que a própria instituição do grupo político normalmente acarreta.

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o conceito de grupo étnico impõe uma definição de reamnescentes de quilombos calcada

em critérios subjetivos e contextuais, marcados pela idéia de contrastividade, por meio da

qual um grupo se percebe e se define sempre pela oposição (no caso, o conflito fundiário) a

um outro. O conceito de grupo étnico surge, então, associado à idéia de uma afirmação de

identidade (quilombola) que é sintetizada pela noção de autoatribuição, como ocorre no

caso indígena21.

Sob a perspectiva da etnicidade, o abandono de um naturalismo (raça) ou de um

historicismo (os quilombos históricos), não deveria levar à adoção de um culturalismo.

Como explica Banton (1977), a substituição da raça pela etnicidade aponta para uma

mudança nos valores socialmente atribuídos à raça e etnia, na medida em que o uso da

primeira aponta para a existência de critérios substantivos (como a cor ou a descendência) e

reflete tendências negativas de dissolução e exclusão (os estudos sobre o racismo seriam

sempre sobre a natureza e o poder das maiorias), enquanto a segunda, além de apontar para

critérios organizativos, reflete as tendências positivas de identificação e inclusão (os

estudos étnicos iluminando o poder que pode ser mobilizado pelas minorias).

Na passagem do racial ao étnico, os signos de distinção teriam seus sinais invertidos

para assumirem um sentido de solidariedade e identificação. Dessa forma, um grupo até

então distinto por características ditas raciais, tornar-se-ia um grupo étnico a partir do

momento em que, aceitando a distinção que lhe é imposta pela maioria, passa a utilizar-se

politicamente dela na formação de agrupamentos autônomos ou com interesses e

reivindicações comuns. Esse uso da noção de etnicidade é, portanto, inseparável da de

etnogênese.

Daí que a adoção desse marco teórico tenha levado a uma releitura e a um

reenquadramento dos trabalhos sobre grupos rurais negros do início dos anos 1980, nos

quais, segundo Maria de Lourdes Bandeira (1988), predominava uma ênfase nas "formas

culturais" que marcariam as especificidades "objetivas" dos grupos étnicos, associadas à

21 Para que essa analogia se justifique, basta lembrar que o marco teórico da etnicidade já havia sido plenamente adotado no Brasil desde os trabalhos de Cardoso de Oliveira (1976 [1971]) e Carneiro da Cunha (1986 [1979]), da mesma forma que a sua redução à fórmula da autoatribuição étnica se consolidaria, a partir daí, em torno à militância contra a imposição, por parte do órgão indigenista oficial, de critérios externos e substantivos (no caso, a aparência, os itens culturais e mesmo o exame de sangue), que ameaçavam suprimir os direitos de grupos indígenas.

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"persistência de traços culturais originários da África" (:21). Tal ênfase estava relacionada à

proposição de uma releitura da história e destino das populações negras rurais, lançando

mão, para isso, de um repertório de questões próprias aos estudos sobre religiões afro-

brasileiras, conforme configuradas desde o início do século, mas também do movimento

negro do pós-70, tão influenciado por esses africanismos.

A ressemantização do quilombo implica o abandono não só do sentido que lhe é

atribuído pela legislação colonial, como da simbologia que lhe foi historicamente atribuída,

seja pela academia, seja pelo movimento negro dos grandes centros. Já não é uma

afirmação do “mundo africano entre nós”, nem o efeito ou instrumento de uma contra-

aculturação (fenômeno amplo que fala da relação entre cultura africana e cultura européia

na América), nem mesmo expressão do fenômeno geral da luta de classes ou a afirmação de

um projeto de nova sociedade (socialista segundo Nascimento, 1981), mas o produto de

conflitos fundiários bastante localizados e datados, ligados à decadência das plantations das

regiões de colonização antiga22.

1.3.4. Auto-atribuição

É necessária, porém, uma última observação sobre a ressemantização. A sua função

política, para além da função teórica, levou a uma simplificação do conceito de etnicidade,

que acabou por reduzi-lo e, em última instância, por substituí-lo pela idéia de auto-

atribuição. Na verdade, em muitos casos, temos uma verdadeira ressemantização do

conceito de etnicidade. Isso porque a autoatribuição desloca o foco da análise, que para

Barth era a “fronteira” - produzida por uma série de processos sociais objetivos - para um

tipo de sentimento, de compreensão e de representação de si; enfim, para uma propriedade

subjetiva dos indivíduos projetada no grupo.

Vale lembrar que, para Barth, o grupo étnico é definido por suas fronteiras e não

pelo conteúdo cultural - poderíamos também dizer simbólico - reivindicado, produzido e

adaptado pelo próprio grupo para preencher essas fronteiras. E tais fronteiras, em especial

em situações de contato intenso, implicam uma estrutura de interação, um conjunto

sistemático de regras que regulam os encontros sociais interétnicos e que precisa ser

22 Na verdade, seria necessário acrescentar que, para Almeida, ele também seria a tradução (simbolização) atual de um processo de desafricanização dessas populações negras rurais.

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descrito. Para Barth, a autoadscrição étnica não é uma explicação, mas justamente aquilo

que precisa ser explicado.

Estamos então, como já havia alertado Eunice Durham sobre outro contexto,

“fazendo operar os conceitos de tal modo que, evitando o tratamento direto da problemática

social e política que neles está contida, preservamos uma alusão a essa problemática que,

afinal de contas, é essencial para a compreensão da realidade brasileira” (Durham,1986:32).

A noção de autoatribuição usada nessas etnografias operacionais (porque realizadas a

partir de uma “definição operacional” do seu objeto) faz apenas alusão à etnicidade

(segundo o paradigma dos “grupos étnicos e suas fronteiras”), já que ela é, no máximo, um

dos efeitos do processo de formação das fronteiras étnicas. A autoidentificação, no “sentido

operacional de quilombo”, está muito mais próxima ao uso feito por Banton do conceito de

etnicidade, como fruto de uma conversão política e simbólica de valores sociais pela

inversão dos sentidos relativos à raça ou qualquer outra categorização estigmatizante, que

servem de móvel à ação política.

O ponto fundamental não está, porém, na dúvida sobre a legitimidade da auto-

atribuição, mas na sua generalização, ao ponto de transforma-la em regra ou item

necessário da lista de identificação. O que significa contrariar a motivação básica do

conceito de etnicidade, que era o de descartar tais listas. Insistir nisso pode significar uma

contradição interna ao trabalho antropológico, assim como uma fragilização das demandas

dos grupos em demanda. Na pior das hipóteses, pode também significar que, diante do

trabalho prático, da pressão política e da inconsistência analítica, o antropólogo se veja

induzido à adaptações excessivas dos dados etnográficos ou à própria militância política,

por meio da qual o próprio antropólogo desejará produzir (ou auxiliar a produção) dessa

auto-atribuição.

Nos atendo estritamente à observação dos casos concretos, podemos afirmar que o

peso que o argumento da auto-atribuição terá na argumentação pelo reconhecimento oficial

será inversamente proporcional ao peso que se puder atribuir aos outros itens daquelas

listas de critérios que tem orientado a descrição de tais comunidades. Ou será diretamente

proporcional à adesão que a militância quilombola ou para-quilombola terá conseguido

produzir, por meio de uma pedagogia dos encontros e dos contatos e empréstimos

realizados via redes sociais (de parentesco, vizinhança, trabalho ou religiosa) sobre o grupo

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em questão. Assim, o peso da auto-atribuição será grande no caso das comunidades já

mobilizadas e pequeno no caso das que não estão nem mobilizadas.

Por isso, a epígrafe utilizada na abertura desse item não serve como qualquer

espécie de denúncia, mas como a manifestação mais lúcida acerca da riqueza e

complexidade do processo de identificação que o conceito (ou quase conceito)

antropológico de “autoatribuição” faz apenas por reduzir. Naquele trecho de depoimento

destacam-se a interessantíssima idéia de “autodiscussão”, que está diretamente relacionada

a um “trabalho de base”; a relação entre essa autodiscussão e a instituição de uma memória,

baseada no trabalho de pesquisa histórico-documental e não independentemente ou apesar

dele; e, finalmente, a relação de projeção complexa entre presente e passado que mescla em

uma mesma sentença a hipótese ao imperativo do dever ser.

1.4. Proposição legislativa e reação governamental

Diante dessas questões mais amplas, a evolução do debate legislativo e jurídico veio

agregar novos problemas que, para que nosso esboço de uma sociologia do artigo 68

(ADCT) seja suficiente, é necessário contemplar. A seguir faremos uma rápida resenha do

debate mais recente que foi motivado pelas tentativas de regulamentação do citado artigo,

para apreendermos os nós que hoje ameaçam atar os caminhos abertos até o momento.

1.4.1. A evolução de um debate

Dois Projetos de Lei, apresentados simultaneamente, em 1995, pela então senadora

Benedita da Silva (PT-RJ) e pelo então deputado estadual Alcides Modesto (PT-BA),

abririam os debates em torno da regulamentação do artigo constitucional. Desde 1992, com

as primeiras tentativas do Ministério Público em aplicar o “artigo 68” à situação da

comunidade de Rio das Rãs (BA), ficara claro que a interpretação sobre a auto-

aplicabilidade do citado dispositivo constitucional, que dispensaria uma legislação

complementar, encontrava pouco eco entre os operadores da justiça menos abertos à noção

de direitos coletivos e menos sensíveis às causas sociais. A partir daquelas duas propostas,

passou-se a discutir o melhor formato para tal regulamentação do direito de propriedade das

comunidades remanescentes dos quilombos e do procedimento da sua titulação. Discutido

entre deputados, senadores e, excepcionalmente, entre estes e o movimento negro

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organizado das cidades e do campo, o Ministério Público Federal e organizações da

sociedade civil, foi sendo criado um outro lento e difícil consenso. O debate foi difícil e

extenso principalmente porque deveria ter como produto um texto que representasse não só

as posições daqueles interlocutores, mas também, minimamente, a enorme variedade de

situações sociais que marcam as atuais comunidades negras rurais atualmente apontadas

como passíveis de reconhecimento oficial como remanescentes de quilombos, que vão do

Pará ao Rio Grande do Sul e podem chegar ao número de três mil, segundo estimativas da

Articulação Nacional de Remanescentes de Quilombos.

No ano de 2000, quando os debates já apontavam para uma definição consensual do

texto de regulamentação do artigo constitucional, o Governo Federal tomou a dianteira,

emitindo uma Medida Provisória que regulamentava administrativamente o processo de

identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos.

Desconhecendo todo o debate em curso, o texto da Medida Provisória revelava as intenções

do governo com relação ao tema e à mobilização social gerada em torno dele. A Medida

Provisória estabelecia ao menos três limitações importantes na aplicação do “artigo 68”.

Primeira, elegia a FCP como a única responsável pelo tema, colocando em risco processos

já iniciados por outras agências governamentais, como o INCRA. Segunda, estabelecia um

prazo máximo para o encaminhamento das demandas (outubro de 2001) depois do que elas

dependeriam de votação de lei especial. Terceira, restringia os critérios de reconhecimento

de que falávamos acima, estabelecendo que a comunidade remanescente de quilombos deve

estar ocupando suas terras pelo menos desde 13 de maio de 1888, data da abolição da

escravidão, até a data de promulgação da Constituição de 1988.

Até meados do ano 2000, a atuação da FCP havia se restringido ao “reconhecimento

oficial” dessas comunidades, por meio das Portarias que aprovavam os laudos

antropológicos e os memoriais descritivos de suas respectivas áreas. De sua parte, o

INCRA havia iniciado processos de regularização dos domínios tradicionais e criado um

programa especial dedicado ao desenvolvimento de projetos agrícolas e extrativistas em

algumas dessas comunidades no Norte e no Nordeste, independentemente de tal

reconhecimento. Assim, apesar das atuações desses órgãos serem, a princípio,

complementares, a lógica da concorrência institucional e a tentativa do governo em

controlar o processo de expansão da temática, que já apontava para o surgimento de um

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novo movimento social rural de luta pela terra de grande fôlego, levou à confirmação da

tendência em definir o tema como monopólio da FCP (FCP - órgão do Ministério da

Cultura responsável pelo tema). Todas essas restrições foram publicamente consideradas

inconstitucionais, do ponto de vista técnico, pelo Ministério Público Federal, por limitarem

a aplicação de um artigo constitucional que não estabelecia qualquer limite cronológico

nem tão pouco determinava que existisse coincidência entre a ocupação originária e a atual.

Além disso, o terceiro ponto contrariava todo o avanço conceitual estabelecido pela

sociedade civil sobre o tema.

Apesar disso, e como a Medida Provisória só pudesse ser transformada em lei sob o

custo de um grande desgaste público do próprio governo, já envolvido nas disputas por

outras matérias legislativas, em setembro de 2001, quando o Projeto de Lei já estava quase

aprovado no Senado, o Governo Federal emitiu um decreto (no. 3.912, de 10.09.2001) que,

finalmente, fixava uma regulamentação administrativa para o processo de identificação e

reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos. Novamente,

desconhecendo não só o debate em curso, mas também as manifestações da sociedade civil

organizada que se fizeram sentir de imediato – na consulta protocolar anterior à sua

publicação – o decreto confirmou a interpretação restritiva da matéria, recuando em relação

às posturas e ações anteriores da própria FCP.

1.4.2. O quilombo interrompido

Simultaneamente, um parecer da Casa Civil (no. 1490/01, do mesmo dia do decreto)

teve a função de apresentar a interpretação e justificação oficial e formalista da postura

governamental, apontando, de fato, para uma meticulosa estratégia de esvaziamento do

artigo constitucional, centrada em dois pontos fundamentais. Primeiro: na interpretação da

Casa Civil sobre o decreto, só podem ser oficialmente reconhecidas como beneficiárias do

direito constitucional, as comunidades que comprovarem estar na “posse pacífica exercida

sempre com a intenção de dono” de suas terras ao longo dos cem anos entre 1888 e 1988.

Segundo: em decorrência dessa exigência, considera-se que as terras de remanescentes de

quilombos não podem ser desapropriadas. Ao exigirem uma história de cem anos de “posse

pacífica”, o juridicismo formalista dessa interpretação – quase ficcional – supõe que as

terras de quilombos, por definição, são terras sem qualquer outro pretendente legal.

Bastaria, então, para sua regularização, o título emitido pelo Governo Federal. Mas, das

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quase três mil comunidades apontadas e mais de trinta já oficialmente reconhecidas como

remanescentes de quilombos, menos de dez conseguiram validar seus títulos dessa forma.

Caso essa interpretação fosse fruto da simples ignorância, seria necessário lembrar

àqueles pareceristas que o fim da escravidão não resultou no fim da violência racial, nem

dos processos de expropriação fundiária e, muito menos, da resistência a eles. Por isso, uma

comunidade negra, que não tem o título das terras que ocupa, sempre foi um alvo

privilegiado da grilagem, que conformou o atual perfil fundiário do país. Como teriam estas

comunidades – que não possuem nem mesmo os parcos recursos institucionais e legais que,

desde 1910, atenuam a violência da história indígena – percorrido cem anos sem sofrerem

os questionamentos e deslocamentos impostos por fazendeiros, multinacionais e

especuladores imobiliários? Além disso, nos poucos casos em que isso ocorreu, o “artigo

68” não seria necessário: o direito de usucapião garante direito igual em decurso de tempo

muito menor.

Essa interpretação não tem, porém, nenhuma inocência. Esse formalismo traveste

um pragmatismo duro, que instrumentaliza a decisão política de “não gastar um centavo”

desapropriando terras para a regularização de tais comunidades – como declarou

publicamente a presidência anterior da FCP. Dessa forma, a interpretação sobre a

impossibilidade de desapropriação tem a intenção de proteger a União contra as ações de

responsabilidade que começam a ser movidas contra ela, pelo não cumprimento de suas

obrigações constitucionais. Acrescente-se a isso que, tal interpretação teve o efeito colateral

de engessar as iniciativas que vinham sendo encaminhadas por alguns institutos de terra

estaduais e pelo próprio INCRA, que passaram a estar sob o risco de serem citados por

improbidade administrativa.

Finalmente, no início do ano de 2002, o Projeto de Lei que vinha sendo discutido

desde 1995, acabava de cumprir o seu périplo pelos trâmites internos à Câmara dos

Deputados e ao Senado, chegando à sua forma final, produto do consenso possível entre um

grande grupo de interlocutores, entre os quais a FCP, representante do governo na matéria,

nunca se fez presente. Assim, o Projeto de Lei avançava em ao menos três planos

fundamentais do debate acumulado pela sociedade civil ao longo dos últimos 10 anos.

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1.4.3. Avanços e recuos

Ele avançava nas definições, ao reconhecer o direito de auto-reconhecimento dos

grupos, formalizando a possibilidade do artigo contemplar as “terras de preto” e as

“comunidades negras rurais” em geral, como de fato já vinha ocorrendo na prática da

própria FCP. Da mesma forma, ele reconhecia o direito desses grupos sobre territórios de

ocupação tradicional e não apenas sobre “terras ocupadas”. Com isso, eram contemplados

os espaços que fazem parte de seus usos, costumes e tradições, que possuem os recursos

ambientais necessários à sua manutenção e às reminiscências históricas que permitam

perpetuar sua memória.

Avançava nos procedimentos administrativos, ao garantir o direito das comunidades

indicarem representantes para participarem do processo de reconhecimento e regularização

fundiária, ao prever a possibilidade de desapropriações nos casos em que os territórios

quilombolas incidam sobre áreas que possuam títulos de propriedade de não-quilombolas e,

finalmente, ao ampliar a possibilidade da titulação se efetuar ou em nome de entidade

representativa da comunidade ou em regime de condomínio.

Em terceiro lugar, avançava na definição da relação do Estado com a questão.

Primeiro, ao ampliar aos órgãos da administração estadual e a outros órgãos da esfera

federal, incluindo o Ministério Público, a possibilidade de abrir processo oficial e de emitir

declaração de reconhecimento daquelas comunidades. Segundo, ao comprometer os

diversos órgão afins à questão com a preservação da memória e do meio ambiente

necessários à continuidade cultural dos grupos. Terceiro, ao prever as condições necessárias

ao cumprimento dessa obrigação, garantindo a possibilidade de orçamento especial, linhas

de crédito e convênios entre os diferentes órgãos do Estado responsáveis pela preservação

cultural e ambiental e pelo desenvolvimento de infra-estrutura necessária ao

desenvolvimento das comunidades.

No dia 13 de maio, dia das comemorações oficias pela abolição da escravidão, um

despacho presidencial vetou o Projeto de Lei na íntegra, restituindo a precedência do

decreto de 2001 sobre a matéria. O veto, baseado em pareceres do Ministério da Justiça e

do Ministério da Cultura, repetiu e ampliou os argumentos do parecer da Casa Civil,

consolidando uma interpretação oficial sobre o destino do “artigo 68”, que representa um

risco de esvaziamento, assim como uma ameaça às mínimas conquistas acumuladas. Ele

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reafirma a necessidade das datas (1888 e 1988), da posse pacífica e continuada e nega os

avanços propostos no texto do Projeto de Lei, abrindo espaço para riscos muito reais,

quando temos em mente as situações em que o conflito de interesses envolve confrontantes

mais bem aparelhados e bem informados, como as empresas e os grandes proprietários.

Mas dois desses recuos precisam ser comentados mais detidamente.

Primeiro, o veto presidencial assume a posição verdadeiramente reacionária, do

ponto de vista jurídico mais amplo, de considerar que o direito estabelecido na Constituição

diz respeito aos indivíduos “remanescentes das comunidades de quilombos” e não das

próprias “comunidades”, isto é, não se trata de um direito coletivo. O formalismo dessa

posição, justificada por uma leitura literal do texto (antiquada sob todos os aspectos), só

encontra correspondência no ponto de vista dos agressores daquelas comunidades, senhores

de escravos e capitães do mato, cujo interesse estava na reapropriação da “peças” que

restassem como esbulho de seus assaltos aos quilombos. A razão fundamental desse

formalismo, no entanto, novamente é pragmática: sustentar a opção política de impedir a

atuação do Ministério Público Federal junto à temática, justamente porque esse é o órgão

que, dentro do Estado e falando sua própria linguagem, tem sido o mais independente e

aberto ao diálogo com a sociedade civil organizada, justamente porque tem o papel de

defesa dos interesses coletivos, numa época em que o Governo do Estado é totalmente

estranho a eles.

Apesar da enorme importância de cada uma das posições assumidas pelo governo,

que e se sustentam ora em um individualismo jurídico radical, ora na tese do monopólio

federal sobre a questão, ora no fetichismo das datas ou mesmo na tese implícita de que o

artigo 68 seria apenas uma variante mais trabalhosa e difícil do conhecido usucapião, de

fato, nenhuma dessas questões fez fortuna diante do debate público, com exceção de uma.

Todas foram consideradas simples artifícios para o recuo nas posições conquistas, menos

aquela que coloca o problema da possibilidade ou não da desapropriação da terra

quilombola. Solução prática para os custos que o governo não está disposto a assumir, a

tese da impossibilidade de desapropriação encontrou respaldo na leitura jurídica do prróprio

Ministério Público por ser, na sua formulação técnica ou conceitual, uma posição

considerada progressista.

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A tese da impossibilidade de desapropriação sustenta-se em uma tese anterior, da

auto-aplicabilidade do dispositivo constitucional. Isto é, ao reconhecer as terras como de

remanescentes de quilombos, o Estado reconhece a existência de um direito que antecede

qualquer outro direito historicamente instituído sobre as terras em questão. Isto porque o

artigo 68 (ADCT) se atribui uma “eficácia declaratória” (trata-se de um reconhecimento) e

não uma “eficácia constitutiva”. Juridicamente, quando se trata de uma eficácia

constitutiva, o direito em causa é constituído pela lei e, por isso, só passa a ter eficácia após

a sua publicação oficial. Mas quando se trata de uma eficácia declaratória, o direito é

considerado pré-existindo à própria lei, que apenas reconhece a sua existência de fato e

anterior. Percebe-se, então, porque se tem considerado que esta seja uma interpretação

progressista, já que, assim, o direito dos quilombos é aproximado ao direito “originário”

das populações indígenas, fazendo com que essa constante analogia entre as duas temáticas

retorne ao centro dos debates. Com isso, teoricamente, o processo de regularização

daquelas comunidades estaria livre dos entraves estabelecidos por condicionantes extra-

legais, como a disponibilidade de verbas para as desapropriações.

O fato é que, no entanto, a realidade se comporta mal diante da teoria. O que, de

fato, se encontra na realidade é a incapacidade do Estado em fazer valer essa tese, quando

se trata de oponentes capazes de se impor territorialmente. O que é verdade tanto para

pequenos fazendeiros quanto para, obviamente, grandes empresas. Cria-se, portanto, um

impasse fundamental: o Estado se atribui a capacidade de declarar direitos, mas não tem os

meios de fazer com que eles se realizem.

1.5. Considerações finais

O veto presidencial significou uma reação ao fato de estarmos assistindo à

conversão daquilo que as elites brasileiras gostariam que fosse apenas um efeito simbólico

da Constituição, em motor de um verdadeiro movimento social, novo, de largo fôlego e

repercussões ainda imprevistas. A passagem da questão do âmbito de uma política cultural

– concebida de forma tradicional, patrimonial e muito próxima da noção de folclore – para

o âmbito de um movimento calcado no discurso étnico e em uma política fundiária veio

romper com a forma pela qual o Estado brasileiro até então concebeu o tratamento dado à

população negra – a “afinidade eletiva” com a cultura. Mas as progressivas e graves

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restrições impostas ao campo de aplicação do “artigo 68” não são apenas a tentativa de

romper a conexão entre dois temas – fundiário e racial – de tão difícil enfrentamento pelas

classes econômica e politicamente dominantes. Elas têm em vista especificamente estancar

a expansão de uma nova concepção do direito à terra e o crescimento desse campo de novos

atores políticos que, muitas vezes, tem saído da sombra absoluta – desconhecidos que eram,

até pouco tempo, pela academia e pela política – para um campo de visibilidade regional,

nacional e internacional.

Mas, se o movimento social das comunidades negras rurais corre o risco de perder a

leitura mais progressista do “artigo 68”, ele não pode ser desfeito por decreto. A sua

realidade ultrapassou os limites do instrumento legal que motivou sua organização e

crescimento e se autonomizou com relação a ele. Isso, hoje, é um dado da realidade que,

por sua vez, impõe respostas novas por parte do Estado. Para a surpresa de todos, uma

realidade nova pôde ser “produzida” pela captura lei pelo movimento social e, por isso, não

pode ser simplesmente eliminada pela imposição de uma outra lei (ou decreto).

O processo de identificação de comunidades como remanescentes de quilombos

implica em transformações e negociações tanto nas relações com aqueles que as rodeiam

quanto nas suas relações internas. Muitas vezes é no bojo desse processo que surgem

disputas faccionais e criam-se lideranças políticas formalizadas, onde antes só existiam

diferenças familiares e lideranças morais. Alteram-se também os significados atribuídos às

festas e rituais e as diferenças que podiam até então distingui-los da população local na

forma de estigmas, passam a ganhar positividade. Algumas vezes é nesse processo que os

termos "negro" ou "preto", muitas vezes recusados até pouco tempo antes, passam a ser

adotados.

Essas mudanças na auto-percepção estão associadas também à mudança na forma

como passam a ser percebidos pelos outros, como o movimento negro ou os movimentos

sociais em geral. Daí em diante não representam mais aqueles que estão presos às relações

arcaicas de produção e reprodução social, que na sua ignorância são incapazes de uma

militância efetiva pela causa negra. Invertendo essa imagem, tornam-se símbolo de uma

identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e resistência negra.

Assim, apesar das exigências do termo, os "remanescentes" não são sobras de

antigos quilombos, presas aos fatos do passado por uma continuidade evidente e

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prontamente resgatada na "memória coletiva" do grupo, prontos para serem identificados

como tais. Independente de "como de fato foi" no passado, os laços dessas comunidades

com grupos do passado precisam ser produzidos hoje, através da seleção e recriação de

elementos da memória, de traços culturais que sirvam como os "sinais externos"

reconhecidos pelos mediadores e pelo órgão que têm a autoridade de nomeá-los ou

reconhece-los. Enfim, o processo de identificação e reconhecimento oficial, apesar do que

esses termos sugerem, não implicam o simples registro ou coleção de realidades dadas e

prontas, mas um amplo processo de produção:

A Produção de limites e fronteiras entre quem é e quem não é da comunidade,

assim como até onde seus domínios territoriais vão, já foram no passado ou deveriam ir, no

futuro. Esses limites sociais, na maioria das vezes muito porosos, passam a ganhar rigidez e

novos critérios de distinção, genealogias e parentescos horizontais passam a ser

recuperados como formas de comprovação da inclusão ou não de indivíduos na

coletividade etc. Da mesma forma, exige-se a transformação do espaço social demarcado

por circuitos de trocas e peregrinações, por atividades sazonais, por usos simbólicos e

rituais, em uma figura sólida, delimitada por uma linha seca, pontuada de marcos concretos

e calculada em metros e hectares.

A Produção de uma memória para o grupo, construída a partir da inevitável

dispersão das memórias familiares, dos laços genealógicos, das imagens de si e dos

exemplos de outros agrupamentos. Os fragmentos dispersos mudam de status, assim como

mudam de status os velhos guardadores da memória, que passam a desempenhar um papel

novo e de importância sem precedentes na vida do grupo. De outro lado, essa memória

emerge junto com a reflexão a que são incitados a produzir sobre si mesmos e que é está

relacionada tanto a técnicas e estruturas mnemônicas, quanto a mecanismos internos de

definição identitária e cultural (semantização de ritos, festas, costumes). Além desses

mecanismos internos, tal reflexão sobre si aciona também um exercício permanente de

conexão entre situações e significados pontuais e definições gerais ou eruditas, de corte

político, histórico e jurídico. Assim, por sua vez, a produção dessas memórias leva tanto a

adaptações do grupo, quanto a adaptações das definições legais e sua interpretação.

A Produção de novas redes de relações, já que tais agrupamentos precisam

percorrer um circuito de argumentações e provas, trocas e aprendizados que acaba por

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significar a extensão de suas antigas lutas por outros campos de batalha, outros

vocabulários, outras estratégias e alianças. Isso significa assumirem-se enquanto sujeitos

políticos de um tipo novo, imperfeitamente sobreposto aos recortes classificatórios até

então disponíveis. Não são mais apenas camponeses, nem são apenas negros, sendo

necessário instituírem-se enquanto categoria específica, sem perder seus vínculos com as

outras lutas.

A Produção de novos sujeitos políticos, na medida em que passam a ocupar uma

posição nova frente aos cenários locais e regionais, surgindo como interlocutores dos

órgãos oficiais e alterando suas formas de intervenção, como é o caso da posse coletiva da

terra. Devido à visibilidade que passam a ter e ao sentimento de unidade social e cultural

que passam a experimentar, podem mesmo influir no jogo eleitoral, negociando

coletivamente seus votos ou mesmo lançando seus próprios candidatos. O número de

vereadores eleitos nas últimas eleições (2000) tendo a identidade quilombola como a ou

uma das suas bandeiras dá uma medida do seu crescimento como força política local.

Durante o II Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas no Brasil

pôde-se apurar os nomes de 14 vereadores: dois em São Paulo, um em Goiás, quatro no

Maranhão, três na Bahia, dois em Pernambuco, um no Piauí e outro do Rio Grande do

Norte.

A Produção de uma ampla revisão histórica e sociológica, na medida em que tal

realidade emergente parece negar ou subverter interpretações sobre o destino da população

escrava pós-escravidão ou sobre o destino da população camponesa no Brasil. Tais

interpretações sempre estiveram marcadas pela idéia de uma progressiva homogeneização,

por uma caracterização do comportamento da população rural como “pré-político”, pela

dicotomia entre tradicional e moderno etc. Da mesma forma, essa revisão destaca como

objeto de reflexão sistemática e não mais esporádica, um recorte até então praticamente

invisível nos estudos sobre a população rural de um lado e sobre a população negra do

outro: ela impõe aos estudos sobre campesinato a questão da cor, ao mesmo tempo que

impõe aos estudos sobre relações raciais a realidade rural, a formação social camponesa.

A Produção e ampliação da hermenêutica jurídica, na medida em que, como vimos,

a reapropriação de uma brecha legal pelo movimento social pode retornar sobre o universo

da lei, forçando-o reconhecer suas próprias limitações e introduzindo neles elementos e

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fontes de direito até então desconsideradas pelo ordenamento jurídico dominante.

Alargando a trilha que já havia sido aberta pelos direitos indígenas, os direitos quilombolas

têm levado ao reconhecimento da necessidade de ampliação e aprofundamento do diálogo

entre juristas e cientistas sociais voltados ao trabalho de decodificação e validação desses

variados ordenamentos jurídicos subordinados.

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Capítulo 2

Escravidão, isolamento e pobrezaContexto histórico, geográfico e social de Itaóca

Itaóca (Latitude: 24,64o; Longitude 48,84278o; Altitude: 155 mt), um dos distritos

mais pobres e isolados de Apiaí, emancipou-se política e administrativamente em 1993.

Como município, Itaóca passou a fazer parte da região administrativa de Sorocaba e da

região de governo de Itapeva, mas em função tanto de sua situação ecológica, quanto de sua

situação social, integra-se ao conjunto denominado Alto Vale do Ribeira1. Ainda que não

esteja tão marcado pelo ritmo histórico do próprio rio Ribeira, que define a relativa unidade

de suas comunidades, Apiaí partilha de algumas das características de formação dessas

outras localidades. Em especial a origem vinculada à exploração do ouro e da mão-de-obra

escrava, assim como o declínio econômico e social decorrente do esgotamento das fontes

auríferas, que o levou a uma economia quase sempre voltada às necessidades do mercado

local.

O Vale do Ribeira ficou fora dos principais ciclos históricos de desenvolvimento

(café, cana-de-açúcar, industrialização, etc) e hoje é a região com menor densidade

demográfica (18,9 habitantes por km²) e menor urbanização da do Estado de São Paulo. A

publicação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH - 2000) dos municípios paulistas

apontou a região do Vale do Ribeira como a menos desenvolvida e, dentro desta região,

situa-se entre os últimos classificados segundo aquele índice:

1 O Vale do Ribeira está dividido, do ponto de vista político e administrativo da seguinte forma: o litoral sul e baixada fazem parte da região administrativa e de governo de Registro, o Alto Vale faz parte da região de governo de Itapeva e administrativa de Sorocaba (Mota Jr., 2002)

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Municípios do Vale do Ribeira segundo seu IDH – 1996Município IDH Posição

no ValePosição no Estado de SP

Registro 0,8358 1o. 177Jacupiranga 0,7392 2o. 410São Lourenço da Serra

0,7237 3o. 457

Iguape 0,7225 4º. 460Juquiá 0,7187 5o. 472Apiaí 0,7055 6.º 500Sete Barras 07009 7.º 509Juquitiba 0,6987 8o. 513Pariquera-Açú 0,6950 9o. 527Cajati 0,6838 10o. 554Miracatu 0,6820 11o. 559Tapiraí 0,6810 12o. 563Ilha Comprida 0,6790 13o. 565Cananéia 0,6758 14º. 568Eldorado 0,6674 15º. 577Itariri 0,6437 16o. 598Itaoca 0,6403 17o. 601Pedro de Toledo 0,6385 18o. 603Ribeira 0,6337 19o. 604Iporanga 0,5913 20o. 617Itapirapuã Paulista

0,5769 21o. 621

Barra do Chapéu 0,5692 22o. 622Barra do Turvo 0,5476 23o. 623Fonte: Codivar/2000, apud Mota Jr., 2002

Itaóca faz parte do grupo dos primeiros núcleos de povoamento do Alto Vale do

Ribeira, que incluem além de Apiaí, Ivaporunduva, Xiririca, Iporanga e Paranapanema, e

que surgiram com a disseminação da descoberta de ouro para além de Iguape. A partir do

século XVII as incursões rumo ao interior tornaram-se mais freqüentes, levando à formação

de diversas localidades cuja principal atividade era a extração de ouro (Krug, 1939:563,

apud Oliveira Jr., Stucchi, Chagas e Brasileiro, 2000: 62), mas nas quais também se

desenvolveu a agricultura de subsistência, dada a distância que as separava das linhas de

comércio estabelecidas. O período mais expressivo da mineração de lavagem na região

durou quase duzentos anos, tendo se encerrado em 1763, com o fechamento da Casa de

Fundição de Iguape. Mesmo assim, algumas localidades, como em Iporanga e Apiaí,

continuaram as explorações até meados do século XIX, quando se esgotaram as últimas

aluviões.

Ainda que a maior concentração da população escrava tenha se dado em Iguape, ela

acompanhou o avanço da exploração do ouro Ribeira acima. Desde o século XVII,

portanto, acompanhando o ritmo irregular da exploração das fontes auríferas, houve

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entradas de trabalhadores negros escravos em direção ao Alto Vale do Ribeira, principais

responsáveis pela formação da população da região. Enquanto a mineração preponderou

como atividade econômica, a agricultura lhe foi apenas e somente subsidiária, voltada para

a subsistência da população local. Mas, na medida em que a mineração foi declinando, a

atividade agrícola também foi adquirindo maior estabilidade. Isso significou a possibilidade

de algumas dessas localidades converterem seus capitais em uma nova economia agrícola,

como foi o caso de Xiririca que, depois de 1809, passou a ser exportadora de arroz para os

portos de Santos, Rio de Janeiro e Paranaguá. Mas em outros casos, como o de Apiaí,

significou apenas a possibilidade de fixação de uma população tendencialmente flutuante,

cujo impulso inicial seria abandonar o local depois de esgotada a mineração.

Nesse capítulo apresentaremos algumas características do desenvolvimento de

Apiaí, para só então nos concentrarmos nas informações mais recentes sobre a situação

sócio-econômica de Itaóca. Iniciaremos com uma revisão do pouco material disponível

sobre a escravidão em Apiaí nos séculos XVII e XIX. A seguir, passaremos à uma rápida

visão geral das transformações a que o Vale do Ribeira foi submetido ao longo da primeira

metade do século XX e que nos parece importante para compreender o contexto municipal.

Em seguida buscaremos situar em que medida tais transformações atingiram (ou não) Apiaí

e mais especificamente Itaóca ao longo da primeira metade do século XX. Só então, na

segunda parte deste capítulo, contemplarmos os dados relativos a Itaóca, de forma a

esboçarmos um painel da situação social e produtiva do município hoje.

2.1. Percurso histórico de Apiaí

A história da ocupação do Vale do Ribeira de Iguape se confunde com a história da formação das comunidades negras que participaram dos grandes ciclos econômicos de maneira marginal, porém articulada com os ocupantes brancos da região. A presença autônoma ou relativamente autônoma das comunidades negras na região durante período escravagista brasileiro permitiu configuração de territorialidades tradicionalmente constituídas, que se redefiniram ao longo do tempo, consolidando-se como os inúmeros bairros rurais habitados predominantemente por negros vo vale do rio Ribeira de Iguape (Oliveira Jr., Stucchi, Chagas e Brasileiro, 2000: 65)

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2.1.1. Escravidão

Durante todo o século XVII, a administração portuguesa manteve interesse na

região que cobria as localidades de Iguape, Cananéia, Nossa Senhora da Conceição,

Paranaguá e Curitiba, ainda que, mais tarde, a descoberta das Minas Gerais tenha

redirecionado para aquela região o principal dos esforços tanto da administração portuguesa

quanto dos exploradores paulistas.

O povoamento de Apiaí está, aparentemente, relacionado ao deslocamento de

mineradores do arraial de Nossa Senhora da Conceição de Paranapanema, no início dos

anos de 1730, quando estes começavam a declinar sua produção. Em 1737, porém, a

exploração em Apiaí também já dava as primeiras mostras de diminuição da produtividade,

levando a ao esvaziamento populacional que marcaria as três décadas seguintes daquela

localidade: em 1765 havia apenas 123 pessoas livres no povoado. Essa tendência é

revertida no segundo surto minerador, de 1770, decorrente da descoberta de ouro no Morro

do Ouro. Esse novo período de crescimento, que permitiria a sua elevação à condição de

vila em 1771, perduraria até meados da década de 1780, quando a exploração do Morro do

Ouro atingiria o seu auge, resultando em forte impacto demográfico: em 1776 a vila passou

a contar com uma população de 434 pessoas e em 1784 estas já atingiam o número de 819

(incremento anual de 8,3%), a maior parte delas escravos2.

Depois de meados dos anos de 1780, o crescimento populacional seria fortemente

reduzido, chegando à quase estagnação no seu número total, além de apresentar uma

inversão na sua composição interna, com o predomínio, pela primeira vez, de pessoas livres

sobre pessoas escravas. Os levantamentos indicam que parte dos escravistas mineradores

teriam saído da região com os seus plantéis, mas também é possível que outro tanto dessa

inversão se deva à libertação de escravos, seja pela fuga, pela compra de alforrias, comum

nas situações de trabalho nas minas, ou pelo simples efeito da decadência econômica dos

empreendimentos.

De qualquer forma, o que parece ocorrer com essa inversão e com a mudança de

estrutura dos domicílios ao longo desse período, é a criação de condições para que a vila

2 Todas as informações sobre a evolução demográfica de Apiaí e sua estrutura familiar escrava, que estaremos resenhando na primeira parte deste item (2.1.1), foram retiradas de Valentin (2001) e Motta e Valentin (2002).

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deixasse de ser um simples pouso de aventureiros em busca de riqueza, desprovidos de

família e dispostos ao nomadismo em busca do ouro, para se tornar local de fixação de

exploradores mais permanentes. O vínculo conjugal, a exploração agrícola, que aos poucos,

com o declínio dos rendimentos trazidos pelo garimpo, deixa de ser apenas uma fonte

imediata de alimentos para tornar-se geradora de excedente, vão criando vínculos com a

terra.

Assim, se em 1732, 64% dos domicílios de Apiaí eram singulares, ou seja,

compostos de pessoas solteiras (53% por homens e 11% por mulheres) e apenas 34% eram

simples, ou seja, composta por casais (2% tinham outra estrutura que não a familiar); em

1798 essa relação realizava uma inversão perfeita: 32% dos domicílios eram singulares e

64% eram simples. Os domicílios singulares eram tipicamente ocupados por mineradores

escravistas, ainda que entre os domicílios simples e dotados de outra estrutura também

fossem escravistas. A mesma idéia é expressa se tivermos em conta a proporção de casais

com filhos sobre os casais sem filho no seio dessa população, como vemos do quadro

abaixo:

Apiaí - composição familiar segundo a presença de proleAnos 1732 1784 1798Casais com filhos 26% 60% 50%Casais sem filhos 60% 14% 24%Dados retirados de Valentin, 2001

A evolução desses números mmostra que o peso da estrutura familiar na ocupação

de Apiaí vai se consolidando e criando uma camada de exploradores permanentes, que será

fundamental na constituição social da vila depois do esgotamento do último surto

minerador. Mas o que nos interessa especialmente aqui é o peso que a população negra

assumiu nesse processo de ocupação. Acompanhando a tendência geral descrita acima, a

razão de masculinidade (RM = número de homens para cem mulheres) dos escravos

também viverá uma franca queda entre os primeiros e últimos anos abordados aqui. Se em

1732 a razão de masculinidade escrava era de 408,5 homens para cada 100 mulheres, em

1776, ele seria de 137,4. Com o novo surto minerador do início dos anos 70 essa razão

volta a ficar desfavorável com a entrada de novos plantéis de trabalhadores escravos quase

exclusivamente masculinos, para novamente recuar no período de decadência dos

garimpos: em 1784 a razão de masculinidade sobe a 248,1 para voltar a 145,6 em 1798.

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Os momentos de equilíbrio da razão de masculinidade entre os escravos apontam

para a criação de condições cada vez mais favoráveis à constituição de casais permanentes

no interior dessa população. Como aponta o estudo de Valentin (2001), essa idéia seria

corroborada pela manutenção, ao longo desse período, da idade média dessa população. A

resistência ao envelhecimento da idade média, que permanece em torno dos 22 ou 23 anos

entre 1784 e 1798, aponta para a presença mais ou menos constante de crianças, isto é, para

o nascimento de novos escravos. Em 1784 as crianças até 14 anos representavam 28,5% da

população escrava, enquanto em 1798 elas eram 34,1%.

Aqueles senhores de escravos que optaram ou não tiveram condições de abandonar

a vila com a decadência das minas de ouro, parecem terem permitido, em suas

propriedades, a criação de condições favoráveis à constituição de casais escravos, levando a

uma especialização social e econômica de suas propriedades, que passou a ligar sua riqueza

ao crescimento de seus plantéis de escravos. As pesquisas de Motta e Valentin (2002),

apontam que, em 1809 e 1816, os escravos com vínculos familiares representavam

respectivamente 41% e 45,5% da população cativa, sendo de 3,3 a média de filhos para as

famílias assim formadas. Foi possível demonstrar, além disso, a longevidade dessas

famílias, capazes de resistir até mesmo à partilha de bens de seus proprietários entre os

numerosos herdeiros:

Tais famílias, até onde nos foi possível rastreá-las, formaram-se ao longo do último quarto do século XVIII e primeiro do XIX. Vale dizer, formaram-se e puderam sedimentar-se na etapa de decadência econômica que se seguiu ao segundo surto mineratório ocorrido em Apiaí. (Motta e Valentin, 2002: 22)

Mas, se essas análises nos apontam para a importância a família escrava

desempenhou na formação do município, caberia reconhecer também que a grande

proporção de escravos com relação a livres também se manifestou importante em espaços

muito menos regulados que o dos plantéis de cativos e até mesmo em oposição a eles. Suas

condições geográficas já haviam permitido que o Vale do Ribeira funcionasse como zona

de refúgio para os índios perseguidos pelo bandeirantismo escravista3 e isso voltaria a se

3 “[A] região do rio Pardo, protegida pela presença de uma cadeia de serras e pelo grande número de

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repetir no caso dos negros fugidos das minas de Apiaí. Desde o final do século XVIII, as

autoridades manifestavam preocupação com a aplicação da chamada “Lei da Policia” à

localidade, como forma de evitar que o lugar se tornasse “couto de desertores e fugidos”

(Anexo 7, documento 1).

Em 1776, por exemplo, as autoridades locais já estavam envolvidas com um tal

pardo José de Oliveira, cuja casa, na “estrada de Apiahy”, “cheia de frestas para por elas

atirar a quem o for prender, e auxiliando naquela altura a escravos fugidos”, servia como

um verdadeiro quilombo. Informava-se que:

mandando um grande número de pessoas a buscar os seus escravos se não acharam nos ranchos; e por terem ido a casa do mesmo José de Oliveira se não ousaram irem lá buscá-los, em esperá-los nos ranchos pelos verem protegidos. (Anexo 7, documento 2)

Assim, de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha recomendava “procurem

todos os meios e estratagemas” para que se pudesse aprisionar tal criminoso e “atalhar esta

rebeldia e insolência pelas péssimas conseqüências que ameaça o exemplo de semelhante

escândalo”. As providências então recomendadas apontam tanto para o temor despertado

por aquele grupo aquilombado quanto para a precariedade e dispersão dos recursos de que

se dispunha para combate-lo:

[O]rdeno a todos os Capitães mores, oficiais auxiliares e Justiças, a quem esta for apresentada especialmente as Justiças das vilas da Faxina, Apiahy e a cada um em particular convoquem, e convoque a homens de valor, e desembaraço, o por cabo deles aos Cap. do Mato Domingos de Oliveira Leitão de Itapetininga e Anselmo Monteiro de Paranapanema, e para seus soldados Lourenço Antunes Antonio e José da Fonseca, José Cubas, Manoel da Sylva da Faxina, e todos os mais que forem e parecerem necessários e com eles mandem os ditos cabos a prenderem ao dito José de Oliveira a quem me trarão em ferros; outrossim prenderão os referidos pretos que entregarão aos seus senhores (idem)

perigosas cachoeiras, torna difícil o acesso de colonizadores e aventureiros que se estabeleceram como mineradores ao longo do rio Ribeira; a região do rio do Turvo abrigou indígenas em fuga, oriundos de Cananéia e Ilha do Cardoso, que chegavam pelo rio das Minas, atravessando o sertão do Faxinal” (Oliveira Jr., Stucchi, Chagas e Brasileiro, 2000: 61)

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É possível que tal pardo e seus comparsas tenham finalmente sucumbido a tal

investida, mas a situação era favorável a que outras ameaças semelhantes continuassem

surgindo naquela vila, como se depreende das providências que passaram a ser tomadas e

que apontam para a necessidade de se constituir, em fins do século XVIII, em Apiaí, uma

força permanente, especialmente dedicada a esse tipo de tarefa:

Constando-me que a ocorrência de negros que indispensavelmente se vão ajuntando nessa Vila e seu termo por conta do trabalho do Morro em que se tira ouro, faz com que muitos fujam deste e se refugiem pelos matos, dando uma indizível perda a seus senhores e que para se coibir, se carece de capitães de mato que possam capturar a todos os refugiados, e fugidos para prontamente serem entregues aos ditos seus senhores: Ordeno a Vmces que logo que receberem esta nomeiem os capitães do mato que lhes parecerem bastantes para terem em respeito aos escravos e no caso destes fugirem, serem presos pelos dados capitães do mato a quem se pagará por conta dos respectivos senhores o que lhes está determinado pelo seu regimento. São Paulo, 1 de fevereiro de 1782. Martim Lopes Lobo de Saldanha (Anexo 7, documento 5)

Ainda que não disponhamos de estudos sobre tais fugas como os que já são

disponíveis sobre as famílias escravas, a soma desses indícios permitem desenhar um painel

das possibilidades abertas à população negra ao longo dos século XVII e XIX. Há uma

sólida presença de grupos escravos, dentro e fora das senzalas, que explicam a existência de

comunidades com a do Cangume desde tempos tão recuados que torna-se de difícil registro

para a memória coletiva recuperar, tanto mais quanto esta dependa exclusivamente da

transmissão oral.

2.1.2. Amazônia paulista

Não pudemos localizar trabalhos ou fontes imediatamente disponíveis sobre Apiaí

para o restante doséculo XIX, mas isso também parece refletir, em parte, o isolamento

social em que Apiahy submergiu com o fim da mineração do ouro. Esse isolamento pode

ser medido pelo espanto do vigário que realizou a “Primeira visita Pastoral à diocese de

Apiahy”, em 1910, por considera-la tardia, tendo em conta ser esta paróquia “uma das mais

antigas da diocese”. No registro que faz da visita no livro de tombo da paróquia, o pároco

descreve como as irmandades religiosas e as capelas estavam em completa desordem,

apontando a falta de livros de registro das doações de esmolas, assim como de qualquer

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forma de administração da confissão e da santa comunhão, entre outras irregularidades

(23.04.1910. LTPA: f. 77v-78v). Uma outra visita pastoral, na qual o visitador percorreu as

várias capelas da paróquia, realizando missas e ministrando os sacramentos, ajuda a ter uma

visão da composição demográfica da paróquia, ao contabilizar os sacramentos ministrados:

Capela de Itaóca: 170 crismas, 198 comunhões e 2 casamentos legitimados, tendo o padre se hospedado à casa do Tnte. João Alves de Miranda; Capela de Iporanga e Capoeiras: 127 crismas e 108 comunhões.Capela de Barra: 120 comunhões, 159 crismas e 2 casamentos legitimados, tendo o padre se hospedado à casa do Tnte. Laurindo Alves de Miranda.Capela de Morro Agudo: 200 crismas, 160 comunhões e 2 casamentos legitimados.Capela de Palmeiras: 159 crismas e 180 comunhões, tendo o padre se hospedado à casa do Cap. Damaso José de Oliveira.(05.11.1914. LTPA: f. 83v-85v)

Tal estagnação econômica e isolamento social só seriam atenuados com o início da

mineração de chumbo no Morro do Ouro. Iniciada por volta dos anos de 1920, ela levaria à

melhoria das trilhas que levavam até Iporanga, mas o transporte continuaria sendo realizado

por meio das “tropas”. As minas estavam isoladas no sertão e o minério não era beneficiado

no Brasil, sendo necessário manda-lo para a Espanha, onde era fundido e beneficiado.

Assim, as tropas levaram os minérios até Iporanga, descendo o rio em canoas até Iguape,

onde permanecia armazenado até formar quantidade suficiente para ser exportado. Mas o

isolamento da região tornava a exploração das suas minas quase inviável economicamente.

Nos idos de 1920/1940, eram poucas as rodovias em nossa região e as que existiam, além de mal conservadas e quase sem condições de trânsito, ofereciam nenhuma segurança, razão pela qual poucos veículos por aqui se arriscava; além do mais aquelas péssimas estradas à época das chuvas ficavam totalmente intransitáveis [...] Logo, a circulação de riqueza teria mesmo que depender da tração animal, tanto puxando carroças e carroções como transportando cargas nas costas, sobre cangalhas, por montes e vales, vencendo enormes distâncias sob sol causticante, frio intenso e chuvas intermitentes.[...]As [cargas] que se destinavam a cidades e bairros vizinhos não servidos por rodagens, como Iporanga, Itaóca, Barra, Morro Agudo, teriam que ser

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levadas, como se dizia, ‘em lombo de burro’; então entrava em ação a nossa tropa que, além de fazer o frete, trazia destes lugares distantes os gêneros aqui não encontrados (Santos, 1995: 14 e 19).

Este quadro só seria alterado em 1940, com a construção pelo governo do estado, da

Usina de chumbo e Prata de Apiaí, destinada a processar o minério das minas de Furnas e

Lageado na serra de Iporanga; do Morro do Ouro em Apiaí; e de Panelas, no atual

município de Adrianópolis (Mancebo, 2001: 152-3). Assim, se nas décadas de 1930 e 40,

como aponta Gricoli Iokoi (1995), a “expansão para o oeste” do governo Vargas atingiu o

Vale do Ribeira com o incentivo à colonização, que resultou em concentração fundiária e

na introdução da bananicultura, o motor desse avanço, no caso de Apiaí, foi novamente a

mineração, agora de chumbo e prata. O efeito principal dessa expansão também em Apiaí

foi a concentração fundiária, ali que baseada na pecuária extensiva, que acompanhou esse

terceiro surto minerador.

Esse novo momento de progresso levou à abertura da estrada ligando o município a

Iporanga e, em conseqüência dela, a um impulso do negócio imobiliário na cidade, que leva

ao aterramento de brejos, à construção de hotéis e indústrias: uma fábrica de banha (depois

transformada em beneficiadora de palmito), um alambique de aguardente, uma fábrica de

refrigerantes, uma torrefação (e empacotamento) de café e até mesmo um jornal (O Apiahy)

e um cinema (Cine Apiaí) são criados (Mancebo, 2001: 85-6 e 119).

O jornal O Apiahy4 tinha como uma de suas maiores preocupações, chamar a

atenção para a situação de isolamento do município e de alguns de seus distritos. Em uma

de suas primeiras matérias, ele reclamava que diversas zonas do município, capazes de uma

abundante produção agrícola, estavam sendo prejudicadas pela precariedade dos

transportes, destacando entre elas a “zona de Itaóca [que] é a que possue terras mais férteis,

muito apropriadas para a lavoura de cana, arroz e algodão e, a despeito disso tudo, é a zona

mais desprovida de estradas” (O Apiahy, 01.07.1939). No número seguinte, o jornal insistia

4 A coleção completa desse tablóide semanal conta com 56 números, que cobrem apenas os anos de 1939 e 1940. Depois dele não houve outro periódico dedicado ao município até o ano de 1985. Sua ocorrência justamente nesses anos, assim como o destaque dado aos editais e decisões judiciais da Ação Discriminatória, sugere que ele tenha existido e se extinguido em função dessa própria Ação. Agradeço ao sr. Oswaldo Mancebo (que resgatou do lixo a única coleção disponível do jornal) a oportunidade de tê-lo consultado.

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nesse ponto, acrescentando que “as zonas mais isoladas deste município são: os distritos de

paz de Itaóca e Barra do Chapéu” (O Apiahy, 09.077.1939).

Talvez a ferramenta mais potente desse processo de expansão sobre o Vale do

Ribeira tenha sido a Ação Discriminatória iniciada nessa mesma época e que atingiu

praticamente todo o Vale, dividindo-o em 115 perímetros. A chegada da Ação à Apiaí,

recortando-o em 39 perímetros, foi anunciada pelo citado jornal em 29 de outubro de 1939,

com a convocação dos interessados, citados nominalmente, a apresentarem seus títulos.

Este anúncio, acompanhado da construção de estradas, da abertura de indústrias e do

incremento social da cidade de Apiaí, traria para a região novas expectativas, para as quais

o governo de estado contribuiu diretamente. Em outubro de 1939 o secretário de agricultura

de São Paulo faria a primeira visita oficial de um representante do governo estadual ao

município5, anunciando que o Vale do Ribeira e Apiaí, em especial, eram as prioridades do

governo Ademar de Barros, acrescentando que

As riquezas minerais do Vale do Ribeira são de tal ordem que o desenvolvimento da agricultura e da pecuária serão apenas uma conseqüência normal da exploração intensiva de suas jazidas (O Apiahy, 29.10.139)

Por coincidência, esse mesmo número do jornal também anunciava o edital para a

discriminação das terras do 46o perímetro, onde se localiza o bairro do Cangume. Nesse

contexto, a discriminação das terras significava a abertura de mais um mercado e uma fonte

de recursos na região, significava o anúncio da abertura do mercado de terras, que varreria

todo o município de Apiaí nos anos seguintes, com o início da migração de fazendeiros

vindos principalmente de Minas Gerais, e que alteraria profundamente sua estrutura social.

Não acidentalmente, os prefeitos das administrações que se seguiram no município seriam

quase todos ligados de uma forma ou de outra a esse mercado de terras, como Oficial de

5 O próprio Ademar de Barros visitaria o município no ano seguinte, em um evento preparado com grande antecedência e pompa, que mobilizou a todos e que é retratado detalhadamente naquele que, curiosamente, seria o último número daquele jornal, como se estivesse se despedindo com a apresentação da tarefa cumprida (O Apiahy, 09.06.1940)

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Registro de Imóveis, Guarde de Terras da Procuradoria de patrimônio Imobiliário ou como

grandes compradores de terras6.

Assim, em meados dos anos de 1940, encerrava-se um longo período econômico,

iniciado com o declínio definitivo da mineração e dominado pela agricultura

(principalmente milho, seguido do feijão, da cana para a rapadura e aguardente) e pelo

criatório de pequeno porte (especialmente de porcos, grande força econômica do

município). A partir de então, a monocultura de tomate passaria a dominar a economia do

município, em mãos de empresários japoneses, que se estenderam de Apiaí a Araçatiba.

No entanto, a economia municipal parece fadada a uma lógica de surtos econômicos

seguidos de depressões profundas, que levam Apiaí a seguidos estados de estagnação

social. Assim, na década de 50, com as mudanças de política do Governo Federal, o Vale

seria submetido a uma outra lógica de políticas públicas7, que levaram à elaboração de

diversos planos de ação concentrados no Médio-Ribeira (Iguape, Cananéia, Itariri, Pedro

Toledo, Miracatu, Juquiá, Jacupiranga, Iporanga, Registro, Sete Barras,Eldorado Paulista e

Parirquera-Açu). Esse privilégio sustentava-se na avaliação de que a região norte do Vale já

estava suficientemente próxima do município de São Paulo e a região sul, a que aqui nos

referimos como Alto Vale, já havia sido quase totalmente desmatada pelas madeireiras

provenientes do Paraná. A conseqüência dessa mudança de política especificamente sobre

Apiaí foi desastrosa. O momento crucial desta mudança se deu no final da década de 1950,

com a inauguração da rodovia BR116, que deslocou para o eixo Registro-Barra do Turvo o

transporte que antes passava pela estrada que cruza Apiaí:

Desativado doravante o trânsito, estropiados os comerciantes, só recursos próprios seriam salvação aos remanescentes. Produtos naturais, poucos, esporádicos, freqüentariam sua pista semi-abandonada. Cargas de calcita,

6 Cf. as notas biográficas dispersas em Mancebo (2001)7 Estas políticas acompanhavam a tentativa mais geral de expansão do capital industrial do governo Jucelino Kubitschek e é interessante registrar o seu diagnóstico, resultante dos prrimeiros estudos sobre a região: (a) a permanência de formas arcaicas de uso do solo; (b) a existência de imensas propriedades não regularizadas, cujos proprietários assumiam prerrogativas estatais, como a de tributação do uso do solo e das vias públicas, entre outras; (c) a falta de vias de transporte, que dificultava aos pequenos produtores oferecerem seus produtos no mercado, colocando-os na dependência de intermediários, que lhes restringiam os ganhos e possibilidades de desenvolvimento (Iokoi, 1995).

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chumbo, carvão, lenha, madeiras não preenchiam o vácuo deixado pelo grande movimento. Fecharam-se postos de gasolina, bares, restaurantes hotéis. O desânimo é geral, irreversível para alguns... (Mancebo, 2001: 181)

Além da demora própria aos trâmites de uma Ação Discriminatória, esse estado de

coisas fez com que os efeitos desse mercado de terra fossem atenuados a partir no final dos

anos 50, para só voltar a se fazer sentir no final dos anos 60, quando a economia municipal

voltaria a se recuperar com base em um novo período minerador, agora com a exploração

do calcário. Assim, o mercado de terras só se implantaria plenamente depois de 1965 e

1968, com a finalização dos trabalhos de demarcação das glebas individuais em que os

perímetros antes definidos seriam fragmentados. Isso era bem adequado à nova política

federal para a região, inaugurada com os governos militares do final dos anos 60 e início

dos anos 70, quando a região passou a ser vista com problemática também do ponto de

vista da Segurança Nacional8. Por ser repleta de matas, sem núcleos de desenvolvimento

permanente e escassamente povoada, com alto índice de mortalidade infantil e baixíssima

renda per capta (167 dólares, quando a do estado era de 450 dólares), a região foi apontada,

no documento Desenvolvimento Integrado no Vale do Ribeira (1968) do governo paulista

de Abreu Sodré, como uma espécie de “Amazônia dentro de São Paulo”.

Com base nisso e no projeto militar de formação de uma classe média rural de perfil

empresarial (que deveria integrar posseiros e trabalhadores rurais no circuito da produção

capitalista e abrir novas áreas para o mercado de terras), foram retomados os objetivos de

criação e ampliação da infraestrutura do Vale, capaz de atrair o capital industrial, por meio

da extensão de rodovias, ferrovias e da rede elétrica. A partir de 1970, foi iniciado um

programa de obras de contenção de enchentes e de construção de uma rede viária (estradas

vicinais e pontes a partir do tronco da BR 116) para a escoação da produção, de forma a

atrair o capital privado para a região, apoiados por incentivos fiscais. No plano da

agricultura, as propostas continuavam centradas nas culturas da banana e do chá. No plano

8 Em um primeiro momento, a ação dos governos militares para o Vale do ribeira foi marcada pelas operações militares: Operação Perdigueiro (1967), Operação ACISO (1968) e Operação de combate à guerrilha da Vanguarda Popular Revolucionária que, sob o comando de Lamarca, havia instalado um campo de treinamento no km 510 da BR 116, distrito de Capelinha de Jacupiranga em 1970 (Iokoi, 1995).

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da indústria extrativista, o projeto incentivava a entrada de mineradoras, indústrias

químicas, produção de material para a construção civil e industrias de celulose.

Um dos efeitos disso sobre o plano local foi a criação de uma fábrica de cimento e a

abertura, em 1973, de uma linha ferroviária ligando Itapeva a Apiaí, basicamente para

atender a fábrica localizada na cidade de Apiaí9. A fábrica de cimento sozinha, no entanto,

nnão seria capaz de alterar o quadro de estagnação municipal, por mover uma parcela muito

pequena da economia, praticamente restrita aos salários de seus empregados, não tendo

maiores efeitos sobre o comércio e produção do município. Apiaí, na maior parte de seus

distrito, como Itaóca, seguiria em diante ancorada em uma economia pecuária extensiva.

2.2. Estrutura Social de Itaóca

2.2.1. Emancipação municipal

Itaoca faz parte dos 16 novos municípios criados entre 1990 a 1995 na região de

Sorocaba. Situa-se, portanto, na região que teve o 2.º maior surto de novos municípios,

respondendo ao incentivo do estado de São Paulo à fragmentação de seus municípios, sob o

argumento dela ser um incentivo ao desenvolvimento econômico e à afirmação da

democracia.10 Os três distritos de Apiaí, principal município do Alto Vale do Ribeira,

entraram com projetos emancipacionistas na Assembléia Legislativa: Araçaíba, Barra do

Chapéu e Itaoca. Em 19 de maio de 1991 foram realizadas as consultas plebiscitárias e, em

Itaoca e Barra do Chapéu a proposta de emancipação foi aprovada.

Segundo Mota Jr (2002), a emancipação de Itaoca nunca foi matéria de discussão

entre seus habitantes e sua proposta teria partido do governo municipal de Apiaí. O prefeito

à época teria reunido algumas pessoas de confiança (principalmente vereadores e lideranças

locais) para articularem comissões de divulgação da idéia. Além disso, parece ter sido

fundamental até mesmo para o surgimento desse interesse por parte do grupo no poder em 9 Cerca de três anos mais tarde, passou a sair desse ramal um outro ramal que seguia para Pinhalzinho, na divisa São Paulo-Paraná. O trecho entre Itapeva e esse ponto, Entroncamento, passou então a receber todos os cargueiros que se dirigiam ao sul do Brasil, pois ali era a nova linha que encurtava a distância ferroviária até Ponta Grossa, no Paraná. Entre o final de 1997 e 2001 o ramal foi aberto ao trânsito de passageiros que partiam de Sorocaba com destino a Apiaí, hoje extinto.10 Mota Jr. (2002) faz uma detalhada revisão do debate político que permitiu a aprovação da lei complementar n.º 651/90, que levaria a tal fragmentação.

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Apiaí, o fato deste município pertencer a mesma região administrativa de Sorocaba, já que

os deputados ligados a essa região tiveram um forte papel no processo de emancipação dos

municípios, propondo e encaminhando suas demandas diante da Assembléia Legislativa de

São Paulo.

Um forte pecuarista de Itaóca (presidente da Câmara Municipal de Apiaí em 1991 e

um dos responsáveis pela eleição do prefeito em 1988) tornou-se um desses articuladores e

a comissão pró-emancipação, presidida por ele, transformar-se-ia no vitorioso grupo

político das eleições municipais em 1992.

A partir de 19 de maio de 1992, Itaoca entrou em uma acirrada disputa política. Montaram-se partidos e coligações. Iniciaram-se brigas, conflitos, assassinatos, perseguições e uma agitação jamais vista no antigo distrito. (Mota Jr., 2002)

Isso faria com que, às vésperas das eleições de 2000, a disputa política causasse três

homicídios, dois deles após comícios e churrascadas promovidos pelos candidatos às

eleições municipais. A tensão levaria a que candidatos que disputavam a prefeitura de

Itaóca fechassem um acordo suspendendo comícios, carreatas, bailes promocionais,

rodeios, desfiles e outros eventos públicos relacionados com a campanha política, além de

fecharem os dois comitês eleitorais:

Assustada com a escalada da violência, a juíza eleitoral da Comarca, Danielle Martins Cardoso, chamou os dois candidatos para uma reunião no Fórum de Apiaí. Na presença de testemunhas, ambos assinaram um termo segundo o qual "os candidatos, pensando no bem estar e na segurança da população, firmam o compromisso de encerrar as atividades de campanha eleitoral". A proibição atinge qualquer evento público que envolva aglomeração de eleitores. Os showmícios que estavam agendados já foram cancelados. A disputa pelos votos dos 2.972 eleitores prossegue, agora, em silêncio. (Jornal da Tarde: Terça-feira, 19 de setembro de 2000).

2.2.2. Situação da População

Desmembrado do município de Apiaí em 1993, Itaóca tem 204 km2 de superfície e

9.430 ha ocupados por estabelecimentos agro-pecuários. Segundo dados do IBGE relativos

ao ano de 1996, sua população é constituída de 3.403 pessoas (52% de homens e 48% de

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mulheres), pouco mais de 74% delas localizadas na área rural do município. O município

não conta com hospitais e, em 1996 possuía apenas 2 unidades ambulatoriais.

Os dados mais atualizados de que dispomos para a população do município são

fornecidos pelo Sistema de Informação de Atenção Básica do DATASUS, alimentado pela

Secretaria Municipal de Saúde. O Sistema estima a existência de um total de 933 famílias,

sendo que apenas 863 destas estão cadastradas pela Secretaria, somando 3.358 pessoas

(1.742 homens para 1.616 mulheres).

Com relação à escolaridade, o Sistema informa que 73, 48% das crianças entre 4 e

14 anos estão na escola, enquanto 81,99% das pessoas acima de 15 anos são consideradas

alfabetizadas. Com relação às condições de moradia e saneamento dessas famílias, registra-

se que cerca de 70% das casas são feitas de tijolo ou adobe, 7% de taipa e pouco mais de

21% de madeira. Aproximadamente 72% da população do município têm água servida pela

rede pública, contra 26% servida de poços ou nascente, mas quase 70% dessas residências

não dá qualquer tratamento a essa água, contra menos de 10% que dá tratamento por

cloração. O destino das fezes e do lixo é de uma precariedade ainda mais acentuada: quase

metade do esgoto doméstico (48% das casas) e cerca de 28% do lixo doméstico são

despejados a céu aberto.

Com relação especificamente à fração rural do município, os dados disponíveis são

os fornecidos pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo

(Projeto Levantamento das Unidades de Produção Agrícola - LUPA11), que apresentaremos

a seguir, atualizando-os sempre que possível, por meio de informações colhidas na

Secretaria Municipal de Agricultura. O citado levantamento identifica, para os anos de

1995 e 1996, 321 estabelecimentos ou Unidades de Produção Agrícola (UPAs). Uma

divisão ideal das terras agrícolas do município entre as suas unidades de produção deveria,

portanto, estar próxima de à média de 44,5 ha por unidade de produção. No entanto, apenas

23,36% das UPAs estão em uma faixa de tamanho (de 20 a 50 ha) próxima a esta média,

ficando mais da metade das UPAs abaixo dela e apenas 23% acima.

Itaoca sempre possuiu uma baixa densidade demográfica e não existem registros de

que o local tenha superado o número de 5.000 habitantes em qualquer momento de sua

11 Note-se que os dados do LUPA divergem dos apresentados pelo IBGE no que se refere à extensão da área rural do município de Itaóca, apresentando o valor de 14.330 ha.

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história (Mota Jr, 2002). A sua economia sempre dependeu exclusivamente da pequena

agricultura, inicialmente associada à mineração. Até os anos de 1960 o distrito possuía uma

economia baseada na coivara para o plantio de milho, mandioca, arroz e feijão. Este último

parece ter sido o único produto a ter alcançado alguma importância comercial. No final dos

anos 60, em função da abertura do mercado de terras na região chegaram à região

especuladores imobiliários e, no seu rastro, migrantes do sul de Minas Gerais, Paraná e

Vale do Paraíba, que introduziram a pecuária extensiva de baixa produtividade, mas que

rapidamente tornou-se a principal atividade econômica local.

Disso resulta que 54% das terras agricultáveis do município estão concentradas em

mãos de apenas 11,5% dos proprietários, com propriedades que variam de 130 a 511 ha,

enquanto mais de 50% dos proprietários concentram-se em pouco mais de 1.500 ha, em

domínios que variam de 0,48 ha 14 ha.

Itaóca - Estrutura fundiária: Dimensões das Unidades de Produção AgrícolaITEM N° DE

UPASPERCENTUAL MÉDIA

(ha)TOTAL

(ha)PERCENTUAL

UPAs entre 0 e 1 ha 6 1,87 0,48 2,90 0,02UPAs entre 1 e 2 ha 3 0,93 1,20 3,60 0,03UPAs entre 2 e 5 ha 41 12,77 3,97 162,80 1,14UPAs entre 5 e 10 ha 57 17,76 7,68 437,60 3,05UPAs entre 10 e 20 ha 65 20,25 14,12 918,10 6,41UPAs entre 20 e 50 ha 75 23,36 33,25 2.494,10 17,40UPAs entre 50 e 100 ha 37 11,53 69,54 2.572,80 17,95UPAs entre 100 e 200 ha 18 5,61 129,77 2.335,90 16,30UPAs entre 200 e 500 ha 18 5,61 271,73 4.891,20 34,13UPAs entre 500 e 1.000 ha 1 0,31 511,20 511,20 3,57Total 321 100,00 - 14330,2 100,00Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)

A ampliação das pastagens, associada ao esgotamento de outras explorações tem

levado a um forte êxodo rural e mesmo municipal. O censo de 2000 aponta um recuo da

população do município, com relação a 1996 de mais de 2%. Um exemplo disso é o do

bairro Pavão, vizinho ao Cangume. O fechamento, há cerca de 10 anos, da serraria que

funcionava no bairro implicou no fim da única atividade que ainda era capaz de oferecer

trabalho para uma população que perdeu quase totalmente o acesso à terra. As terras deste

bairro, que já foi o mais próspero e povoado da região nordeste do município, hoje estão

divididas entre três ou quatro criadores, restando além de suas propriedades, apenas uma

área eleita pelo governo do estado como de preservação ambiental.

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Itaóca - Estrutura Fundiária: Condição da posse

Unidades locaisNúmero absoluto de pessoas ocupadas

Com 1 a 4 pessoas ocupadas 21Com 5 a 29 pessoas ocupadas 0Com 30 a 49 pessoas ocupadas 79Com 50 a 99 pessoas ocupadas 98Com 100 ou mais pessoas ocupadas 0Fonte: IBGE, Cadastro Central de Empresas 1996

O nível de emprego é extremamente baixo. Pouco mais de metade das UPAs

empregam trabalhadores permanentes e em número bastante reduzido, com uma média

menor que a de 4 trabalhadores por UPA. O trabalho temporário é ainda menos

representativo, dada a redução das culturas agrícolas e, conseqüentemente, dos períodos de

plantio e colheita. Como estes cultivos estão concentrados quase sempre nas pequenas

propriedades e voltados para uma economia principalmente de subsistência, o trabalho

nesses casos é sempre familiar, combinado com trabalho temporário remunerado de forma

não-monetária, em geral pelo que se chama de “troca-de-dias” entre os pequenos

proprietários ou posseiros. Aqueles poucos que encontram colocação temporária nas

fazendas maiores, “vendem o dia” a valores ínfimos e pouco padronizados que, entre o fim

do ano de 2002 e o início de 2003 passaram dos R$ 3,00 ou R$ 6,00 (segundo o trabalhador

ou o empregador) para os R$ 5,00 ou R$ 8,00. Falaremos destas variações na remuneração

mais adiante.

Itaóca - Estrutura Fundiária: Condição da posseITEM N° DE UPAS PERCENTUAL Proprietário residente na própria UPA 188 58,57Número de UPAs com arrendatários 10 3,12Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)

Itaóca - Condições de TrabalhoITEM N° DE

UPASMÉDIA MÁXIMO TOTAL PERCENTUAL

Trabalhadores familiares 281 3,08 12 866 87,53Trabalhadores permanentes 191 3,25 20 620 59,50Trabalhadores temporários 22 NI NI NI 6,85Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)OBS: 1) Os dados foram agregados de duas tabelas diferentes do LUPA e, por isso, alguns dados da última linha não foram informados (NI); 2) As colunas Mínimo, Média e Máximo referem-se às quantidades trabalhadores registrados nas UPAs; 2) A coluna Percentual refere-se ao número de UPAs por linha com relação ao total de LUPAs do município (321). Novamente a soma é maior que 100% em função das UPAs utilizarem mais de um tipo de trabalhador.

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Segundo dados do IBGE para o ano de 1996, existiam em Itaóca apenas um

estabelecimento pré-escolar (60 matrículas para três docentes) e um de ensino médio (163

matrículas para 10 docentes), localizados na sede do município, e de cinco

estabelecimentos de ensino fundamental (846 matrículas para 47 docentes), distribuídos

entre a sede do município e os seus bairros rurais. Com isso, segundo o censo de 2000,

Itaoca apresenta 17,5% da população com mais de 10 anos não alfabetizada, uma das mais

elevadas taxas de analfabetismo do Estado de São Paulo. O nível de instrução e a

capacidade de organização dos habitantes rurais do município estão diretamente ligados a

estas condições de infra-estrutura e estagnação produtiva

Itaóca – Educação: Percentual de pessoas que freqüentam escola, por faixas etáriasPessoas entre: (%)4 a 6 anos de idade 40,597 a 9 anos de idade 93,7810 a 14 anos de idade 91,0315 a 19 anos de idade 51,5720 a 24 anos de idade 10,53Fonte: IBGE, Contagem da População 1996

Itaóca - Educação: Instrução dos proprietáriosITEM N° DE UPAS PERCENTUAL Proprietário sem instrução ou com instrução incompleta 201 62,62Proprietário com antigo primário completo 70 21,81Proprietário com 1° grau (ou antigo ginasial) completo 29 9,03Proprietário com 2° grau (ou antigo colegial) completo 19 5,92Proprietário com curso superior completo 2 0,62Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996).

Todas essas condições reunidas fazem com que o município encontre-se muito mal

posicionado no “ranking da exclusão social”. Segundo o Atlas da Exclusão Social no Brasil

(2003), Itaóca encontra-se no 3.168o lugar de um total de 5.507 municípios brasileiros. Seu

índice de exclusão social é de 0,405, numa grade que vai de 0 a 1 e na qual são

considerados como de “extrema exclusão social” os municípios com índices entre 0 e 0,4.

Ao lado dos outros municípios do Vale do Ribeira, Itaóca faz parte de um verdadeiro

corredor de exclusão social no interior o estado de são Paulo, onde se concentram os únicos

quatro municípios com índices de exclusão extrema do estado.

Os índices que mais contribuem para essa má posição de Itaóca são os da

desigualdade social (0,023), do emprego formal (0,085), da pobreza (0,312) e da

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escolaridade (0,369), estando em uma posição apenas relativamente melhor o índice de

alfabetização (0,773). Note-se, porém, que a diferença entre os índices de alfabetização e de

escolaridade apontam para a distância que separa o letramento funcional (por meio do

adquiri-se apenas a habilidade necessária para assinar – ou desenhar – o próprio nome) e

uma escolarização de fato, com a permanência de um número de anos suficiente na escola.

Segundo o Atlas, apesar dessa posição quase extrema, o índice de violência do município

alcança uma posição ótima (1,0).

2.2.3. Situação da Produção

A concentração fundiária está diretamente ligada à expansão da pecuária extensiva

no município, que teve início nos anos de 1960. Ainda segundo os dados oficiais do LUPA,

entre 1995 e 1996, as pastagens cobriam mais de 60% da área total do município, deixando

pouco menos de 3% delas para algum tipo de cultivo agrícola, sendo que, dentre estes, a

quase totalidade de culturas eram anuais.

Itaóca - Estrutura agro-pecuária: usos da terraITEM UNIDADE N° DE

UPASPERCEN

TUAL MÍNIMO MÉDIA1 MÁXIMO TOTAL PERCEN

TUAL Área total Ha 321 100 0,10 44,64 511,20 14.330,2

0100

Área com cultura perene Ha 3 0,93 0,10 1,23 2,40 3,70 0,03Área com cultura semi-perene Ha 5 1,56 1,00 4,12 6,40 20,60 0,14Área com cultura anual Ha 119 37,07 0,60 3,33 16,80 395,90 2,76Área com pastagem Ha 239 74,45 1,20 36,50 360,00 8.723,20 60,87Área de reflorestamento Ha 4 1,25 0,50 34,43 130,00 137,70 0,96Área de vegetação natural Ha 190 59,19 1,00 9,96 211,60 1.892,20 13,20Área inaproveitada Ha 4 1,25 0,20 9,20 30,00 36,80 0,26Área inaproveitável Ha 90 28,04 1,20 6,08 72,00 547,40 3,82Área complementar Ha 294 91,59 0,10 8,75 223,20 2.572,70 17,95Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)OBS: Os percentuais relativos ao número de UPAs para cada tipo de uso é maior que 100% porque uma mesma UPA pode ter terras destinadas a mais de um uso.

Desde 1996, porém, esse monopólio das pastagens sobre o território municipal tem

se ampliado. Segundo informações colhidas junto à secretaria de agricultura no início do

ano de 2003, estima-se que as pastagens já correspondam a cerca de 80% das terras

municipais. Essa ampliação das pastagens, no entanto, não correspondeu a uma ampliação

do rebanho bovino. Se tivermos em conta os números do serviço de vacinação da prefeitura

contra febre aftosa, o rebanho do município de manteve constante desde 1996, com uma

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tendência à redução, já que dados posteriores ao ano de 2000 registram 5.550 de bovinos

vacinados, contra a contagem de 6.215 para o ano de 1996.

Itaóca - Estrutura agro-pecuária: Produção animalITEM UNIDADE N° DE

UPASPERCENTUAL MÍNIMO MÉDIA MÁXIMO TOTAL

Bovino cabeça 120 37,38 2 51,79 580 6.215Asinino e muar cabeça 21 6,54 1 2,29 7 48Avicultura de corte cabeças/ano 225 70,09 6 24,34 80 5.476Avicultura para ovos cabeça 2 0,62 15 15,00 15 30Caprinocultura cabeça 1 0,31 3 3,00 3 3Eqüinocultura cabeça 126 39,25 1 4,03 50 508Suinocultura cabeça 52 16,20 2 8,33 50 433Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)OBS: 1) Os percentuais relativos ao número de UPAs para cada tipo de uso é maior que 100% porque uma mesma UPA pode ter terras destinadas a mais de um uso; 2) Foram descartados os itens de recenseamento que figuravam com valor zero, contando entre eles o item “Outras explorações animais”.

Assistimos, portanto, à continuidade de um processo de concentração fundiária que

se opera pelo mesmo mecanismo de substituição da agricultura e da criação de pequeno

porte (cabras e porcos), típica da economia camponesa, por uma pecuária cada vez mais

extensiva. Segundo as mesmas fontes aproximativas, o criatório de pequeno porte, que já

era bastante reduzido em 1995-1996, está desaparecendo dos campos. A avicultura de corte

parece surgir como única alternativa comercial para pequenos proprietários e posseiros,

mesmo assim em muito pequena escala, pouco se diferenciando – nos casos em que se

organizam granjas visando uma produção comercial – dos criatórios de quintal.

A cultura socialmente mais relevante, ainda que de pequena relevância econômica

para o conjunto do município, continua sendo a do feijão, que ocupa 114 (35,5%) das

UPAs, com dimensão média de apenas 1,88 ha. Principalmente este, mas também o arroz e

o algodão já estiveram na pauta de exportação de Itaóca para municípios vizinhos, em

especial para Apiaí, antes dos anos de 1960. Atualmente, o milho, a mandioca e o arroz são

culturas quase exclusivamente de subsistência, enquanto os outros gêneros arrolados na

tabela abaixo são de produção especializada de umas poucas UPAs, mesmo assim, sem

maior expressão econômica. Recentemente, uma política de incentivos municipais à

diversificação produtiva dos bairros rurais começou a esboçar uma reversão deste quadro,

mas seus resultados ainda não são mensuráveis.

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Itaóca - Estrutura agro-pecuária: Produção agrícola CULTURA N° DE

UPASUNIDADE MÍNIMO MÉDIA MÁXIMO TOTAL

Braquiária 131 ha 1,20 33,28 244,00 4.359,30Feijão 114 ha 0,60 1,88 12,10 213,90Milho 99 ha 1,00 1,71 12,00 169,20Eucalipto 4 ha 0,50 34,43 130,00 137,70Mandioca 4 ha 1,00 3,35 6,40 13,40Arroz 5 ha 1,00 2,56 4,80 12,80Cana-de-açúcar 2 ha 2,40 3,60 4,80 7,20Banana 2 ha 1,20 1,80 2,40 3,60Pimentão 1 ha 1,20 1,20 1,20 1,20Tomate 1 ha 1,20 1,20 1,20 1,20Laranja 1 ha 0,10 0,10 0,10 0,10Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)

No que se refere às tendências mais recentes da pecuária municipal, além da grande

concentração de terras a que ela tem servido, no seu interior mesmo vem se operando uma

outra concentração. Se, até o ano de 1995 e 1996 existia um privilégio do rebanho leiteiro

sobre o rebanho de corte, equilibrado pela grande parcela de rebanho de uso misto,

recentemente esta tendência começou a se inverter.

Itaóca - Estrutura agro-pecuária: Rebanho bovino Bovinos de: Corte Uso misto Leite TotalNúmeros absolutos 356 4.433 1.426 6.215Percentuais (%) 5,73 71,33 22,94 100,00Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)

Informações da Secretaria Municipal de Agricultura apontam para uma tendência de

substituição do gado Girolando (leiteiro) pelo Nelore (de corte), senão por aquisição direta,

pelo cruzamento do touro Nelore com o rebanho de vacas Girolando, de forma a ir

alterando a composição racial do rebanho em médio prazo, gerando gado de corte que ainda

produz leite, mas de menor produtividade.

Essa alteração está diretamente associada à falência, por volta do ano de 2000, da

CLAC, cooperativa leiteira do município paranaense de Adrianópolis, responsável pela

comercialização de todo o leite produzido pelo município até então. Poucos produtores

beneficiam o leite na sua própria propriedade, com a produção de queijos ou doces. Quando

isso ocorre, os produtos são comercializados no próprio município, diretamente aos

consumidores finais, de casa em casa ou por meio dos dois pequenos comércios localizados

na sede do município.

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Outro reflexo direto da concentração fundiária, dessa baixa produtividade e dessa

quase total ausência de beneficiamento agro-industrial é a estagnação da infra-estrutura

física do município e dos meios de produção disponíveis, assim como a indiferença aos

programas de crédito rural, do que resulta um quadro de ausência de qualquer investimento

significativo no aumento de produtividade.

Itaóca - Estrutura agro-pecuária: Técnicas e melhorias empregadas ITEM N° DE UPAS PERCENTUAL análise de solo 0 0,00 adubação orgânica/verde, quando necessário 1 0,31 Práticas de conservação de solo, quando necessário 2 0,62 sementes melhoradas 14 4,36 inseminação artificial 0 0,00 confinamento de bovinos 1 0,31 Pastejo intensivo 19 5,92 mineralização 18 5,61 vermifugação 25 7,79Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)

Note-se que, no que diz respeito à infra-estrutura física, apenas 33,33% das

residências rurais do município tinham acesso a energia elétrica até o ano de 1996. Todas

situadas na região oeste do município, por ser a mais povoada. Foi apenas a partir 1997 que

a eletrificação rural atingiu também a região leste, onde se situa o bairro do Cangume. Com

relação a outros itens de infra-estrutura, não se trata apenas de estagnação, mas também de

recuo, já que diversos bairros do município possuíam certos itens que, ao longo dos anos de

1970 e 1980 deixaram de existir, em função da exclusividade da pecuária extensiva, como

as rodas d’água, barracões e ensiladeiras, casas de farinha e moendas de cana.

Itaóca - Infra-estrutura ruralITEM N° DE

UPASMÍNIMO MÁXIMO TOTAL

Caminhão, camioneta ou utilitário 17 1 3 21Carregadeira de cana 1 1 1 1Conjunto irrigação convencional 1 1 1 1Desintegrador, picador, triturador 19 1 2 20Ensiladeira 6 1 1 6Misturador de ração 1 1 1 1Ordenhadeira mecânica 1 1 1 1Resfriador de leite, tanque expansão 4 1 1 4Subsolador 1 1 1 1Trator de pneus 5 1 1 5Almoxarifado/oficina 1 1 1 1Barracão para granja/avicultura 1 1 1 1

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Barracão/galpão/garagem 10 1 2 12Casa de moradia habitada 266 1 6 358Casa de moradia (total) 263 1 6 359Curral/mangueira 89 1 3 96Depósito/tulha 15 1 4 22Engenho 2 1 1 2Estábulo 4 1 1 4Fábrica de ração 1 1 1 1Fábrica de farinha 1 1 1 1Igreja/capela 2 1 1 2Roda d’água 1 1 1 1Energia elétrica para uso residencial (gerada ou adquirida)

107 - - 107

Energia elétrica para uso agrícola (gerada ou adquirida)

18 - - 18

Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996)OBS: Mínimo e Máximo referem-se às quantidades em que o Item aparece nas UPAs.

Os dados sobre cooperativismo e organização coletiva do levantamento de 1995 e

1996 estão defasados, nesse sentido, para pior. Se o número de produtores inseridos em

algum tipo de organização sócio-produtiva já era muito pequeno então, a situação agravou-

se com o fim da cooperativa leiteira (CLAC), em 2000. As tentativas de organização dos

produtores de leite do município, que contaram com o incentivo da prefeitura desde 1997,

não avançaram nem mesmo depois do fim da CLAC.

Itaóca - Organizações coletivas de produçãoITEM N° DE UPAS PERCENTUAL Produtor faz parte de cooperativa de produtores 10 3,12Produtor faz parte de associação de produtores 5 1,56Produtor faz parte de sindicato de produtores 14 4,36Fonte: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Projeto LUPA (1995-1996).

Alguns sinais de mudança surgiram recentemente, quando os incentivos municipais

passaram a direcionar-se também aos pequenos proprietários e posseiros, voltados para

culturas de subsistência ou de pequenos excedentes. A municipalização da Casa da

Agricultura depois de 1997 permitiu que Itaóca passasse a contar com técnicos próprios e

cedidos pelo estado de São Paulo, o que tem incrementado as iniciativas de associação e

capacitação técnica. Da mesma forma, programas sociais de âmbito estadual e federal,

como o Município Saudável (USP) e o Comunidade Ativa, têm favorecido a formação de

iniciativas e associações de apoio, mas estas ainda estão em estágio de organização e

planejamento.

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Para isso, desde o ano de 2001, o serviço de assistência técnica municipal tem

promovido encontros entre pequenos produtores e fomentado a idéia de que os diferentes

bairros rurais deveriam desenvolver diferentes vocações produtivas, sob a organização de

Associações de Moradores ou Cooperativas de Pequenos Produtores de um mesmo gênero

agro-industrial. Desde então, foram plenamente constituídas duas organizações nos bairros

de Fazenda e Caraça. Outras três organizações, nos bairros do Pavão, Gurutubinha e

Cangume já foram organizadas mas ainda precisam ser regularizadas, assim como

definirem suas “vocações” específicas.

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ANEXO: “Documentos Interessantes / Cartas e Portarias”ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Documento 1

“PARA O CAP. MOR DE APIAHY”

(V. 74, p. 179 - 180)

Pela carta de Vmce. de 13 do mês passado vejo, que não apareceu nessa vila Agostinho Maciel, filho de Pedro Roiz e não se saber dele procede de se não observar até agora nesta capitania a Lei da Policia, e de se não averiguar nas vilas se as pessoas, que entravam nelas iam despachadas ou fugidas, Vmce. daqui por diante faça nessa vila praticar a dita averiguança para se evitarem coutos de desertores, e fugidos. [...] 1775. Martim Lopes Lobo de Saldanha.

Documento 2

“PARA SE PRENDER A JOZÉ DE OLIVEIRA PARDO, FORTIFICADO NAS CAMPINAS ESTRADA DE APIAHY”

(V. 84, p. 91-92)

Porquanto chega a minha notícia, que um José de Oliveira Pardo, que diz ser desertor e criminoso, se tem fortificado na Campinas, Estrada do Apiahy, tendo a sua casa cheia de frestas para por elas atirar a quem o for prender, e auxiliando naquela altura a escravos fugidos, como já praticou no tempo do meu antecessor com um escravo de Manoel Antonio de Araújo que alcançando despacho contra o mesmo José de Oliveira, não pode ter efeito pelo terror, que tem incutido; e como proximamente tem praticado com três escravos, e ma cria do Doutor Antonio Caetano Alz. de Castro, que mandando um grande número de pessoas a buscar os seus escravos se não acharam nos ranchos; e por terem ido a casa do mesmo José de Oliveira se não ousaram irem lá buscá-los, em esperá-los nos ranchos pelos verem protegidos, e auxiliados dele, e se deve atalhar esta rebeldia e insolência pelas péssimas conseqüências que ameaça o exemplo de semelhante escândalo: ordeno a todos os Capitães mores, oficiais auxiliares e Justiças, a quem esta for apresentada especialmente as Justiças das vilas da Faxina, Apiahy e a cada um em particular convoquem, e convoque a homens de valor, e desembaraço, o por cabo deles aos Cap. do Mato Domingos de Oliveira Leitão de Itapetininga e Anselmo Monteiro de Paranapanema, e para seus soldados Lourenço Antunes Antonio e José da Fonseca, José Cubas, Manoel da Sylva da Faxina, e todos os mais que forem e parecerem necessários e com eles mandem os ditos cabos a prenderem ao dito José de Oliveira a quem me trarão em ferros; outrossim prenderão os referidos pretos que entregarão aos seus senhores e ordeno que no caso de resistir lhes o dito José de Oliveira procurem todos os meios e estratagemas de o prenderem com segurança, e sem perigo de parte a parte, bem advertindo que na última extremidade da resistência, e de se não querer entregar, lhes atiraram para o dito fim pela parte que menos perigosa for, de forma que em todo o caso se segure, prenda, e se me remeta cuja importante diligência dou a todos por muito recomendada. S. Paulo, 12 de julho de 1776. Martim Lopes Lobo de Saldanha.

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Documento 3

“PARA A CÂMARA DA VILA DE APIAHY”

(V. 83, p. 107)

Tenho presente a carta de Vmces. de 3 de março antecedente com a petição do Tenente Joaquim Pupo Ferreira em que se deu o despacho que pedia, e ordenava a Vmces. me dessem a causa de proceder-me contra ele: se eu não tivesse certeza do orgulhoso gênio de João Vieira de Sá; e que este tem seduzido a um dos atuais Juizes José de Almeida e Souza, que se acha servindo contra as Ordens Régias pelo modo de vida, que exercita, talvez me seriam atendíveis as razões que Vmces. me expõem o que não tem lugar segundo os motivos que levo ditos. Pelo que Ordeno a Vmces. que sem perda de tempo façam entregar ao dito Tenente Joaquim Pupo Ferreira o crédito de 12 oitavas de ouro, que lhe obrigaram a passar para as custas, que a fantasia de Vmces. lhe fizeram intentado havê-las por este modo contra a disposição do meu referido despacho; pena de que não o executando assim o Juiz José de Almeida e Souza virá ele pessoalmente dar-me a razão e porque tendo companheiro está ele atualmente servindo a dita vara.Devo dizer a Vmces. que o Tronco que se conserva no Arraial de Iporanga não é cárcere privativo mas sim uma prisão determinada pelos Senhores Generais meus predecessores, e confirmada por mim para castigar aos escravos forros e levantados, que embriagados se devem castigar, para obviar as funestas conseqüências que se podem seguir. S. Paulo, 22 de maio de 1781. Martim Lopes Lobo de Saldanha.

Documento 4

“PARA JOÃO PEREIRA MAGALHÃES - EM APIAHY”

(V. 83, p. 71)

Em conseqüência do que Vmces. me representa na sua carta de 20 de janeiro, nesta ocasião expeço Ordem à Câmara dessa Vila para nomear os Capitães de Mato que lhe parecerem suficientes para ter os escravos em respeito e capturarem os que fugirem pagando-se aos ditos capitães por conta dos respectivos senhores o que lhe está determinado pelo regimento dos mesmos. São Paulo, 1 de fevereiro de 1782.

Documento 5

“PARA A CÂMARA DA VILA DE APIAHY”

(V. 83, p. 71)

Constando-me que a ocorrência de negros que indispensavelmente se vão ajuntando nessa Vila e seu termo por conta do trabalho do Morro em que se tira ouro, faz com que muitos fujam deste e se refugiem pelos matos, dando uma indizível perda a seus senhores eque para se coibir, se carece de capitães de mato que possam capturar a todos os refugiados, e fugidos para prontamente serem entregues aos ditos seus senhores: Ordeno a Vmces que logo que receberem esta nomeiem os capitães do mato que lhes parecerem bastantes para terem em respeito aos escravos e no caso destes fugirem, serem presos pelos dados capitães do mato a quem se pagará por conta dos respectivos senhores o que lhes está determinado pelo seu regimento. São Paulo 1 de fevereiro de 1782. Martim Lopes Lobo de Saldanha.

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Capítulo 3

Representações do Cangume

Manifestações e ressignificação da fronteira

Cangume é um nome, uma população, um local, uma história, uma imagem. Todos

extremamente marcados para a população do seu entorno e para os poderes públicos do seu

município. Uma marca que desenha uma fronteira de grande eficácia simbólica e prática

pela qual será interessante iniciar nossa descrição. Proponho, portanto, nos aproximarmos

do Cangume por meio dos outros. Num primeiro momento, não partir dele, mas chegar até

ele por meio dos olhares que lhe são dirigidos e do lugar que lhe é atribuído, para que a

marca que o distingue e aponta fique clara, revelando seu significado social.

Para isso, será necessário admitirmos tomar, inicialmente, como matéria válida da

etnografia uma série impressionista de situações e depoimentos muito díspares, recolhidos

quase aleatoriamente, mas que, apesar disso, constroem uma imagem e um lugar sólidos.

Um lugar que mantém o Cangume e sua população afastados, distantes, imprecisos,

exercendo uma espécie de função de alteridade, fundamental para que a população de

Itaóca possa lançar mão deles de forma produtiva, seja do ponto de vista econômico,

político ou mesmo religioso.

3.1. Função de alteridade

Em uma de minhas visitas à cidade de Itaóca pude assistir à mais espontânea e

explícita referência ao bairro por parte de alguns jovens moradores da cidade. Enquanto

um grupo de rapazes passava pela rua, uma jovem, sentada à porta de sua casa, provocava-

os debochadamente, perguntando se eles não iam se divertir naquela noite e se eles não iam

comprar “uma boa cachaça lá no Cangume”. Mais tarde, intrigado com a referência à

“cachaça do Cangume” – já que por lá não se produz cachaça – me foi explicado ser

comum entre aqueles jovens usar o Cangume como referência de piadas. Nas entediantes

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noites em que não têm qualquer diversão que lhes ocupe, por exemplo, brincam dizendo

que vão a “um baile lá no Cangume”.

Ainda que o significado da brincadeira não seja evidente e imediato para os que

chegam de fora, a construção das frases citadas, apoiadas na expressão “lá no”, chama

atenção para o sentido de distância que sustenta a graça que nos escapa. A ironia que

produz a piada funda-se na imagem do Cangume como o “outro” por excelência no

contexto do município de Itaóca. Não importa tanto o conteúdo das frases que fazem

referência ao Cangume, importa o fato dele ser sempre o lugar (social e simbólico) a que se

faz referência como o “lá no”, isto é, o distante, um símbolo da alteridade. Assim, também,

a expressão “cangumeiro” assume para a população do município um significado amplo e

impreciso, mas ao qual poderíamos nos aproximar agregando algumas expressões como

capiau, bugre, místico, pobre, bêbado e, fundamentalmente, negro. Um cangumeiro é, em

primeiro lugar, um negro, mas ao qual acrescenta-se alguma qualidade (ou desqualificação)

próxima à de “errado”, “torto” ou “primitivo”. Está aí a graça: redescobrir

permanentemente um lugar-objeto que agregue e concentre – ou seja, simbolize – os

estigmas dos quais se quer se livrar.

3.1.1. Um sertão de bugres

A força dessa função de alteridade, imputada ao Cangume, se manifesta no fato dela

resistir até mesmo à convivência com seus moradores ou, pelo contrário, no fato de tal

convivência servir para seu reforço ou, ainda, no fato de se poder tirar alguma vantagem

simbólica da convivência com tal símbolo de alteridade. Isso fica evidente na pequena

narrativa autobiográfica de uma ex-professora do Cangume, a d. Dirce. Ela foi, no início

dos anos 60, a primeira professora regular designada pela prefeitura de Apiaí para o bairro.

Ainda que ela fosse uma “professora leiga” e tenha sido precedida por outros e outras

professoras e professores leigos, que ministraram as primeiras letras aos seus moradores,

para a própria d. Dirce ela não apenas inaugurou a primeira escola do bairro, como foi uma

das primeiras pessoas a fazer contato com os pretos do Cangume. Foi aquela que teria

introduzido as primeiras noções de cultura entre uma população de verdadeiros bugres, que

mal falavam a sua língua, segundo ela mesma conta.

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D. Dirce conta essa história1 dentro de uma outra história, que começa no dia em

que, em 1988, de zeladora da escola, ela foi absorvida como professora do município de

Apiaí. Relata que nessa ocasião houve certa confusão em torno da sua nomeação para a

vaga, porque algumas jovens haviam sido melhor classificadas no concurso promovido pela

prefeitura. Para arrefecer os ânimos e justificar sua precedência, a diretora da escola pediu

que d. Dirce contasse a sua história às professoras da escola, que a viam com desconfiança.

Assim, como Sherazade, sua narrativa inicial leva à outra narrativa, que nos leva ao

Cangume:

Um belo dia, estavam todas lá na sala e eu peguei e falei assim: Escuta vocês colegas – porque agora vocês são minhas colegas, porque eu sou professora agora, agora eu sou de verdade. Mas eu já fui professora no coração das crianças, no coração dos pais das crianças desse bairro que eu vou citar pra vocês. A primeira escola, a primeira experiência que eu tive em minha vida, foi em 1964, na escola do Cangume, que era um sertão. Eu... Eu abri essa escola lá, com o maior sacrifício da minha vida.[...]O diretor naquele tempo, o sr. Sérgio, ele deu essa escola pra mim e perguntou pra mim, ‘D. Dirce, a sra tem coragem de enfrentar o sertão?’ Eu falei ‘é sertão?’. ‘É sertão sim. Um sertão em que nunca ouviram nem falar em escola até hoje. Inclusive a sra. vai encontrar lá muitas barreiras. Porque a sra. é leiga, mas ninguém nem precisa saber que a sra é leiga, porque a sra pra nós é uma professora e pra eles vai ser também. Porque, se perguntar, pra essa turma de professoras que estão aí, se elas querem enfrentar essa barreira, eu tenho certeza que elas não vão enfrentar. E a sra, por ser uma guerreira, vai.’ Ainda ele falou pra mim: ‘ A sra vai encontrar não só criança analfabeta, a sra vai encontrar adultos, velhos, que nunca soube o que é pegar num lápis. A bem da verdade, a sra vai encontrar bugres. A sra tem coragem?’. Eu precisava trabalhar, precisava ajudar o meu marido, eu tinha filhos pequenos, mas eu ia enfrentar sim. Mas o sr. Sérgio disse: ‘Só que a sra tem que se preparar. A sra tem que ter roupa própria pra entrar no sertão; a sra tem que andar a cavalo; sozinha a sra não pode ir, tem que ir acompanhada de uma pessoa da cidade de Itaóca – porque lá é um sertão e eu sei que nem estrada tem; e outra coisa, a sra vai ter que usar uma arma, um revolver, qualquer coisa. Mesmo que a sra não tenha coragem de dar tiro, a sra tem que ir com esse revolver, porque a sra vai enfrentar pessoas que agente nunca viu na vida e agente não sabe qual vai ser a reação deles quando a sra chegar lá. Então, eles vendo a sra igual uma valentona, de revolver na cintura, de bota, a sra entra lá e vê o que a sra consegue fazer’. Quinze dias depois eu estava preparadinha para ir. (D. Dirce)

1 Agradeço a generosidade do pesquisador Oswaldo Mancebo, que me cedeu a gravação desta entrevista.

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Um relato que se aproxima do estilo heróico dos relatos sobre as investidas

rondonianas sobre os sertões selvagens, em busca dos chamados “índios isolados”, na longa

marcha para o oeste das décadas anteriores. Aqui o método de contato, porém, não é o da

sedução pelos presentes, mas o da coação pela aparência, transformando em estratégia o

que está na origem do próprio temor que dá o sentido heróico da jornada, isto é, as

representações sobre o desconhecido. Na encomenda da jornada à jovem professora leiga

não há como saber se a população de que se fala é indígena ou negra, apenas que era

primitiva e, por isso, de reações desconhecidas. Aliás, não parece haver qualquer

descontinuidade necessária entre as idéias de “bugre” e negro neste contexto, como se vê a

seguir:

Então eu desci aquela serra a cavalo [...] e quando eu fui chegando no bairro, de longe assim, que lá é um descidão, um buracão, eu vi aquelas casinhas, igual aquelas casinhas de índio mesmo, tudo de sapé. Parecia um vilarejo de índio mesmo. A primeira pessoa que eu vi foi um negrão, um pretão mesmo, daqueles de amedrontar agente, sabe. Eu falei, ‘ai ai ai, onde é que eu vim parar?’ [...]Depois que eu cheguei lá, levou 45 dias pra mim conseguir a matrícula das crianças, porque eles corriam. Logo que eles me viam, eles corriam. Eu batia palmas numa casa assim, e apontava uma mulherzinha na janela, depois o homem apontava também e eu chamava, ‘o sr faz favor de vim aqui’ e ele vinha, cabreirão comigo, e a mulher vinha atrás (...) com aquele linguajar que se for pra imitar eu nem sei, linguajar de bugre mesmo, bem caipirado. Eu dizia ‘eu vim aqui abrir uma escola, o senhor já ouviu falar em escola? É onde coloca as crianças pra aprender a ler e a escrever, pra ter educação.’ Eles diziam: ‘mas nesse bairro aqui? Aqui não tem nem lugar pra professora ficar’. ‘Eu fico em qualquer lugar, o cantinho que o sr me der aí no rancho, um colchãozinho, uma esteira que o sr me der eu fico, porque eu vim para trabalhar.’ Foram 45 dias comendo o quê? Feijão com farinha e de vez em quando uma abóbora. Eu falei ao chefe do povo pra ele ajeitar um lugar pra mim poder dar aulas pras crianças. Criança nada, que já era quase tudo adulto, com 15 ou 17 anos. Em 45 dias assim, eu consegui matricular 42 crianças.[...]Aí eu vim pra Itaóca, arrumei uns caixotes de tomate, coisas assim, arranjei uma pessoa pra levar pra mim, e fiz as carteiras, dentro de uma salinha no centro espírita. Uma coisinha do tamainho dessa sala aqui. Quando chovia eu punha as crianças lá dentro, quando era tempo bom eu punha as crianças pra dar aulas no terreiro. E eu me comunicava com o delegado de ensino aqui sempre por intermédio de um fazendeiro que estava sempre com eles lá. Eu mandava bilhetes pra Itaóca e eles me mandavam de lá, contando como estavam as coisas, o que eu estava fazendo. Ficava sem comunicação com o Isaías [seu marido] e sem nada.

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Depois de um ano, de uma turma de 42 crianças, eu consegui fazer uma promissão de 17 crianças. Pra mim foi uma vitória. (D. Dirce)

Ainda que o entrevistador estivesse interessado em informações sobre o passado do

Cangume, d. Dirce não podia furtar-se de fazer com que o relato fosse sobre o tanto de

heróico que havia em sua jornada de um ano ao sertão entre os bugres. Daí que a maior

parte de sua narrativa não seja sobre o que ela viu e enfrentou, mas sobre as expectativas

criadas em torno do que ela veria e enfrentaria. Daí, também, que boa parte do relato se dê

de forma indireta, pela boca do sr. Sérgio, personagem que anuncia a jornada, seus riscos e

recompensas. Daí, finalmente, que a narrativa sobre o Cangume tivesse que surgir como

uma narrativa no interior de outra narrativa, na qual novamente a imagem do Cangume,

mais que o próprio Cangume, foi capaz de emocionar suas detratoras (como Sherazade foi

capaz de encantar o tirano), justificando seu privilégio diante das jovens professoras que a

recriminavam:

E quando eu contei essa história pras professoras,eu olhava pra cara delas assim e via algumas chorando. Por isso tudo que passou na minha vida, isso tudo que eu passei no Cangume, que deve até ter um histórico meu lá, que quando eu não estiver mais aqui talvez vão lembrar de mim, quem sabe alguém vai lembrar de mim, do tempo que eu estava lá no Cangume e foi o maior sofrimento da minha vida. (D. Dirce)

Infelizmente, porém, não há memória clara e distinta de d. Dirce entre os moradores

do Cangume que têm idade para terem sido seus alunos. Ela é apenas um nome de uma

longa lista de professores que chegavam e saiam do Cangume a cada ano. Antes de seu

nome há outros, até mais importantes, como o dos primeiros professores voluntários que

ministraram aulas para os adultos, vinculados ao Centro Espírita. Depois do seu nome

também há outros mais relevantes, como o de um ex-professor que atualmente ocupa uma

secretaria municipal tão estratégica para o grupo quanto o grupo o é para ela.

3.1.2. Cura, caridade e política

É significativo que outros exemplos dessa função de alteridade se manifestem ainda

no contexto escolar – espaço dedicado à transmissão da cultura, à passagem do iletrado ao

letrado, do mundo infantil (primitivo) ao adulto (civilizado). A escola municipal de Itaóca

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tem uma longa, ainda que fragmentada, história de interesse pelo bairro do Cangume.

Depoimentos de alguns ex-alunos apontam que pelo menos desde o final da década de

1980, uma de suas professoras organizava campanhas de doação de alimentos e agasalhos

entre seus alunos para serem doados especificamente ao Cangume, sem incluir outros

possíveis bairros carentes. Sob o pretexto de entregarem as doações, aquela professora

chegou realizar algumas visitas de alunos ao bairro, como parte de suas atividades

didáticas. Segundo esses ex-alunos, o interesse da professora passava pela gravidade da

pobreza do bairro e pelo fato de “todo mundo sempre dizer que ali era um quilombo”.

Há entre aquela primeira narrativa, de d. Dirce, e esses depoimentos mais recentes

uma significativa passagem do épico ao filantrópico, do selvagem ao miserável e do bugre

ao quilombola, sem fazer com que o interesse e a curiosidade pelo bairro se desvinculassem

da atribuição de uma primitividade fundamental aos cangumeiros. Mas essa passagem

revela também como essa função de alteridade é prenhe de ambigüidades. Ela exclui ao

mesmo tempo em que reserva o Cangume como objeto do exercício de práticas simbólicas

que se distribuem pelos planos político, religioso, econômico e cultural. E, no centro dessas

práticas, está a idéia de “caridade”, tornada uma dimensão importante e, com certeza, a

mais visível, da relação entre cangumeiros e agentes externos.

Para caracterizar essa relação devemos recuar nossa narrativa às primeiras décadas

desse século, no momento de entrada da doutrina espírita no bairro. Em meados da década

de 1920, durante a tradicional festa da Santa Cruz, realizada nos primeiros dias de maio por

um festeiro da própria comunidade, seus moradores foram surpreendidos por uma situação

de transe coletivo, no qual várias das senhoras e senhores mais velhos pareciam tomados

por espíritos, caindo inconscientes ou gritando e chorando simultaneamente. Sem saberem

lidar com a situação, os moradores foram buscar ajuda no bairro vizinho, o bairro dos

Boavas, onde morava um médium conhecido por seu dom para a despossessão. De fato, o

médium conseguiu fazer com que as pessoas saíssem do transe, e o evento marcou tão

profundamente a comunidade, que resultou em uma conversão, também coletiva, ao

kardecismo.

Se a própria presença daquele médium pode ser lida como um ato de caridade, ela

teve ainda outros desdobramentos que aprofundariam essa relação. Pessoas ligadas ao

espiritismo no Boavas e em Itaóca passaram a freqüentar o bairro a fim de realizarem

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sessões espíritas periódicas, ao mesmo tempo em que começavam a alfabetizar os adultos.

Pouco tempo depois, essas mesmas pessoas começaram a organizar grandes mutirões para

os quais doaram de sementes de algodão (que não era cultivado no bairro) e trabalharam

juntos, assim como ajudaram a promover festas e leilões, como forma de reunirem os

recursos que seriam revertidos na construção da cede do Centro Espírita Fé Em Deus,

primeiro e único do bairro. Toda essa atividade se realizava sob o mesmo signo da

caridade, iniciada com o evento da despossessão.

A importância de recuar as ações de caridade até esse período está em como ele nos

ajudar a compreender o fundo doutrinário que, para os cangumeiros, sustenta esse papel de

mediação simbólica desempenhado pela noção de caridade. Para a doutrina kardecista a

caridade está no cerne da moral recomendada e praticada por Jesus Cristo e é a chave da

evolução e do progresso espiritual. Mais que um valor, a caridade torna-se um mandamento

capaz de mobilizar recursos pessoais e financeiros. A expressão de Kardeque “fora da

caridade não há salvação” é a síntese dessa doutrina, assim como o diferencial com relação

à doutrina e prática católicas mais tradicionais (Giumbelli, 1995). No kardecismo a

trajetória evolutiva da salvação eterna está referida a um “outro”, personificado

preferencialmente no pobre, necessitado ou desvalido:

“É em função dessa alteridade e dessa diferença que a caridade [...] toma sentido, razão e imperatividade [...]. Os pobres nesse sentido, são o objeto da caridade enquanto símbolo privilegiado de uma humanidade imperfeita” (idem: 10).

O desenvolvimento do espiritismo no bairro permitirá que a caridade sirva de

permanente mediador simbólico com os “de fora”. E isso funciona em um duplo sentido, já

que também inclui os serviços que o Cangume passará a prestar aos “outros”. O Cangume

se tornará, em pouco tempo, uma referência religiosa na região, recebendo pessoas com

graves problemas de saúde para serem submetidas a tratamentos espirituais que podiam ser

tópicos ou implicar em períodos de longos internamentos no próprio bairro, sempre

totalmente gratuitos. Assim, a caridade, como mediador simbólico das relações travadas

entre os moradores do bairro e os de fora, permanecerá construindo ambíguas relações de

troca e alteridade que se prolongarão pelas décadas seguintes, mudando porém, de

intensidade e de caráter a partir do final dos anos 80.

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Como fizemos referência no capítulo anterior deste relatório, a década de 1980

viveu a “descoberta” das comunidades ou bairros negros rurais, assim como a da sua

importância política e científica2. Nas palavras de João Batista Borges Pereira, diretamente

envolvido nessas descobertas, elas alimentavam a “efervescência intelectual ligada à

construção de toda uma ideologia de auto-afirmação racial nucleada na idéia de quilombo”

(Pereira, 1983). Assim, depois da “descoberta” do Cafundó em 1978, foi organizada uma

primeira expedição ao Vale do Ribeira, especificamente à região de Iporanga, em busca de

novas comunidades que “conservassem também vestígios de línguas ‘exóticas’” (Vogt e

Fry, 1996: 211). Apesar da frustração dessa primeira iniciativa, nessa mesma época

começavam a ser realizadas as primeiras pesquisas acadêmicas sobre as comunidades do

Vale do Ribeira, mantendo aceso, numa influência recíproca com a imprensa, o interesse

pelo tema3. É nesse contexto que surge a primeira menção ao Cangume, visitado pela

primeira vez por interesses acadêmicos em 1987 (Careno, 1997: 13-14).

Tudo isso começou a jogar uma nova luz sobre aquele bairro rural de negros,

fazendo com que até mesmo as visitas de caridade ganhassem uma nova dimensão. Os

moradores do Cangume lembram que nesse período uma sra., residente em Itapetininga,

passou a visitar o bairro, organizando pelo menos uma vez, uma grande doação de

alimentos e roupas para a comunidade. Esse momento está vivo na memória de alguns

justamente porque foi nele que a relação entre caridade e política ficou mais explícita. Essa

sra. teria pedido diretamente ao sr. Francisco e d. Jandira, que sempre a hospedavam, que

preparassem a comunidade para a chegada de um caminhão de doações, mas exigia que

eles não permitissem que, no dia marcado para a chegada do caminhão, se organizasse

qualquer comício ou manifestação política no bairro, já que era época de eleições

municipais. Nas palavras desse casal de informantes, ela não queria que a caridade se

misturasse com a política. Apesar disso, porém, a notícia sobre a doação se espalhou e, no

2 Vogt e Fry (1996), ao reconstituírem o trajeto de sua pesquisa no Cafundó (Salto do Pirapora –SP) nos oferecem um vivo retrato dessa “descoberta”, assim como uma fina reflexão sobre suas implicações políticas e acadêmicas.3 Duas observações: (a) é uma coincidência curiosa que nessa expedição os pesquisadores também fossem orientados em sua busca por uma professora de escola municipal; (b) os autores coincidem em apontar a importância da imprensa nessas “descobertas” acadêmicas: Jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, e O Estado de São Paulo, em 19 de março de 1978 (Vogt e Fry, 1996) e Folha de São Paulo, 13 de abril de 1986 (Careno, 1997).

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dia previsto, o Cangume estava repleto de políticos e cabos-eleitorais. A confusão foi

grande, com os cabos-eleitorais se interpondo entre o caminhão e os moradores e, à revelia

da autora da caridade, organizando a distribuição das roupas e alimentos. Segundo sr.

Francisco e d. Jandira, essa sra, teria ficado tão decepcionada que nunca mais retornou ao

bairro4.

Não parece casual, portanto, que tenha sido em 1993, ano da emancipação do

município de Itaóca, que o Cangume, pela primeira vez, tenha ganhado espaço na imprensa

estadual: uma reportagem, que ocupou duas páginas inteiras da edição de domingo

(07.02.1993) do Correio Popular de Campinas e que trazia o cabeçalho geral, “Vila de

Negros”. Nela eram estampados dois títulos principais: “Cangume vive rotina do século

passado” e “TV a bateria liga ‘aldeia’ ao mundo moderno”. A grande ênfase da reportagem

estava no isolamento do bairro e nas suas formas arcaicas. Em um primeiro “olho”, a

reportagem informava: “Isolados no sul do Estado, 122 pessoas se sustentam na roça e

preservam costumes”, enquanto outro “olho” adiantava uma explicação: “Os fundadores da

vila eram escravos fugitivos. Por isso, falavam pouco sobre suas origens aos descendentes”.

A matéria descreve os hábitos alimentares de seus moradores, seu nível de renda, o

artesanato produzido, os casamentos entre primos e algumas das expressões que, citando

informações da professora Mary F. Careno, apontariam para africanismos de linguagem.

Mas a ênfase que dominava e justificava a própria reportagem estava no isolamento do

bairro. Ele era medido pela distância em quilômetros de estradas de asfalto e de terra entre

Campinas e Itaóca (337 km) e depois entre Itaóca e Cangume (11 km), citando o péssimo

estado da estrada, que se tornava intransitável em épocas de chuva. Mas também pela

ignorância dos seus moradores com relação aos temas ou expressões dominantes na mídia

daquele momento, pelo medo que alguns de seus moradores teriam dos estranhos ou

mesmo por uma espécie de suspensão do calendário – “o tempo parado há mais de um

século no Cangume” – cuja referência fundamental seria o ciclo agrícola. Enfim, uma

4 Outros exemplos confirmam a importância e freqüência de tais visitas de caridade. Quase todos os finais de ano um grupo de funcionários da empresa Camargo Correia, instalada no município vizinho, visita o Cangume para entregar doações de natal. Por outro lado, a rede de contatos aberta com as migrações de cangumeiros para o município de Tatuí abriu novos fluxos de caridade. Um casal conhecido dessa rede passou vários anos visitando o bairro trazendo “um caminhão” de cestas básicas para todos os moradores. Ainda que já tenham encerrado essas visitas, sempre que uma família do Cangume lhes visita em Tatuí, sai munida de uma cesta básica.

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descrição que faz com que o leitor se veja defrontado com uma realidade outra, distante no

tempo e no espaço, primitiva.

Apesar da recorrência de imagens, que fazem com que o texto da reportagem de

1993 se aproxime tanto do relato de d. Dirce sobre o bairro, de trinta anos antes, ele surgia

em um contexto muito distinto. A emancipação do município de Itaóca, economicamente

inexpressivo e carente de outros atrativos – como, por exemplo, o eco-turismo, de que

dispõem os municípios vizinhos, localizados no interior do PETAR – deu, de uma forma

imprevista, nova visibilidade ao Cangume. Foi assim que um jovem ex-professor do bairro,

tendo se destacado na promoção de campanhas de caridade dirigidas ao grupo – em

especial uma, destinada à coleta de casacos e cobertores durante um rigoroso inverno –

acabou por ser convidado a integrar o governo municipal, como Secretário de Ação Social.

Com isso, o Cangume se tornaria a prioridade das políticas de assistência social do

município, ainda que, diante da precariedade das condições de vida do bairro e da escassez

de recursos do município, isso não tenha significado uma alteração tão substantiva sobre as

condições de vida dos cangumeiros, das quais falaremos nos capítulos seguintes.

Bastaria adiantar apenas o depoimento do atual Secretário de Educação sobre a

situação do grupo antes e depois da criação dessas políticas específicas. Segundo ele, antes

de 1997, quando o atual grupo assumiu o poder municipal, praticamente não existia estrada

ligando Itaóca ao Cangume. Foi só então que a atual escola de alvenaria da comunidade foi

construída e um transporte diário entre o bairro rural e a cidade foi estabelecido para

atender os alunos que estivessem entrando no segundo ciclo do ensino fundamental. Esse

ainda é o único transporte que serve ao bairro, não funcionando, portanto, nos finais de

semana e feriados. Até 1997, explica, a comunidade estava praticamente isolada. O que faz

do isolamento um tema recorrentemente posto em pauta, marca que adere ao Cangume e

preserva sua função de alteridade ao longo do tempo.

3.2. Tentativas de enquadramento

3.2.1. O modelo e as ausências

Foi justamente a citada experiência escolar que levou um dos ex-alunos da escola

municipal de Itaóca a propor a primeira pesquisa acadêmica que teve especificamente o

Cangume como objeto de interesse. O sucinto relatório final da pesquisa desenvolvida por

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um grupo de alunos de graduação em ciências sociais da Unesp, intitulado “Cangume:

raízes e história. Um estudo de uma comunidade negra rural no Alto Vale do Ribeira (1997-

1998)”5 destaca algumas das características do bairro, recorrentes nos poucos textos

disponíveis: a apropriação coletiva da terra, ainda que com a produção individualizada; a

agricultura rudimentar e de subsistência, que marca uma pobreza generalizada; o

predomínio da endogamia, ao se fazer referência ao privilégio dado ao casamento entre

primos; o passado de invasão das terras da comunidade por fazendeiros vizinhos; e a

conversão de todo o grupo à religião kardecista desde os anos de 1920.

O maior destaque do relatório, porém, era uma série de faltas que caracterizariam o

grupo e, de certa forma, poderiam descaracteriza-lo como remanescentes de quilombos.

Essas faltas tinham por referencia um determinado modelo de como deveria ser e se

organizar uma comunidade negra rural e, em especial, uma comunidade remanescente de

quilombos, ao qual o Cangume frustrava. Faremos uma referência muito rápida a elas, por

apontarem para uma espécie de senso comum acadêmico criado em torno da temática.

A primeira delas era a falta de “uma trama mítica que desse condições dela

estruturar um território comum a partir de um parente comum, ou seja, um mesmo ‘pai

fundador’ que edificasse uma solidariedade e uma identidade coletivas” (f. 5).

A segunda falta era relativa às “práticas de cura, de prevenção às doenças e as de

cuidar de partos como poderia se acreditar, posto que estamos diante de uma comunidade

afro-brasileira remanescente de quilombo estabelecida longe da cidade de Itaóca” (f. 8).

Finalmente, talvez a mais importante falta se manifestava no “silêncio em relação

aos supostos ‘resíduos culturais’ da África. Eles não lembram nada, ou melhor,

desconhecem os assuntos vinculados a esse ‘continente pai’”, assim como “não têm em sua

origem comunitária e, mesmo mítica, qualquer vínculo com a escravidão, posto que

nasceram livres” (f. 8-9). Descobria-se que no Cangume, como já havia sido descoberto por

Renato Queiroz, quinze anos antes, para Ivaporunduva, não havia

vestígios aparentes de traços de cultura africana [...] a não ser aqueles que, juntamente com os de origem indígena e portuguesa [...] integram o que se

5 Agradeço a Vidal Dias da Mota Júnior a indicação desse trabalho desenvolvido pelos bolsistas de graduação da Faculdade de Ciências Sociais da Unesp, Alessandra M. Ferreira, Ana P. F. da Silva, Kátia Bacic e Rodrigo F. Costa, sob orientação do prof. Dagoberto José Fonseca.

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convencionou chamar de ‘cultura caipira’ [...] Os negros eram, assim, caipiras. (Queiroz, 1983: 24)

E não “africanos” – poderíamos completar a frase.

Tais faltas colocavam em risco, segundo o relatório de 1998, a caracterização do

Cangume como remanescente de quilombo. Como informam seus autores, os moradores do

Cangume haviam começado a trabalhar com essa hipótese muito recentemente, em 1996,

depois que o prefeito do município os convidara a participar de uma reunião de

comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, realizada na cidade de Eldorado. Até então,

informara-lhes uma das lideranças, as famílias do bairro não sabiam estar relacionadas na

lista do ITESP de comunidades a serem identificadas como tais.

Mas, apesar do temor dos jovens alunos, com o Cangume começava a acontecer

algo semelhante ao que ocorrera com os “caipiras negros” de Ivaporunduva, que,

ameaçados pelo mesmo diagnóstico, não só foram os primeiros a serem oficialmente

reconhecidos pelo estado de São Paulo como remanescente de quilombos, como passaram a

servir de modelo para os que vieram a seguir. Segundo a avaliação de uma das alunas

envolvidas naquela pesquisa sobre os fatos que se seguiram, a própria existência do

trabalho pôde ter tido alguma influência sobre a visibilidade do grupo como remanescente

de quilombos. Um artigo publicado por ela no jornal “Apiaí Diz”, teria alertado as

lideranças quilombolas que se reuniram em Registro, no ano de 2001 e ajudado na

convocação do Cangume, integrando-o, definitivamente, à rede de comunidades do Vale do

Ribeira que buscam a regularização de suas posses por meio da aplicação do artigo 68

(ADCT).

3.2.2. A África na língua?

Era bem ignorante assim, tudo. Inclusive tem até uma passagem muito engraçada. A palavra ‘já’, nenhum dos alunos conseguia falar. Quando eu pus na lousa ‘já, jé, ji, jô, ju’, era só ‘djá, djé, djó, dju’. Isso foi até terminar o ano. Eu não consegui arrancar nenhum ‘já’ de nenhum deles. Nem do pai, nem da mãe. A palavra ‘já’ pra eles não saía, não sei. Por exemplo, não era ‘pintei’, era ‘pintchei’. (d. Dirce)

Ainda que não tenha sido abordado na análise de Mary F. Careno sobre a linguagem

falada em comunidades negras rurais do Vale do Ribeira (finalizada em 1992), o Cangume

foi citado entre aquelas comunidades nas quais se deveria investigar a hipótese da

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existência de “resquícios de uma antiga língua africana, utilizada pelos primeiros negros

que habitaram a região”, com o objetivo “urgente [de] resgatar a cultura africana que ainda

subjaz nessas localidades”. (Careno, 1997: 13-14) O ponto de partida da pesquisa era o

quadro atual de “profundas diferenças entre o português popular do Brasil e o português

padrão”, no qual são encontrados traços típicos de línguas crioulas. Sempre relacionado

com uma história de contato lingüístico entre diferentes povos, “o crioulo surge em

comunidades bilíngües ou multilíngües e, quase sempre em ilhas ou em regiões isoladas,

critério conhecido como insularidade”. (Careno, 1997: 62)

Assim, mais uma vez, o tema do isolamento retorna, caracterizando o Vale do

Ribeira como a região ideal para o surgimento de um crioulo que teria por base uma língua

geral corrente entre os escravos – o quimbundo. Os resultados da pesquisa, porém, não

confirmaram essa hipótese. Careno admite que o que “permanece [na região é] a estrutura

do falar caipira” (idem: 64), mas sugere que a aparente baixa freqüência de termos

africanos seria explicada não pela desimportância dos africanismos, mas por sua

profundidade e extensão. O número de empréstimos lexicais do banto ao português falado

no Brasil seria tão expressivo e ele estaria tão integrado ao sistema lingüístico que formaria

derivados portugueses a partir de uma mesma raiz banto. Isso lhe permite reformular a

hipótese para propor que

Essa estrutura primeira, com abundância de termos africanos, ainda nos tempos atuais é encontrada em algumas localidades brasileiras, cujos habitantes são essencialmente negros. Estudos revelam que essa língua é um remanescente do quimbundo e é falada somente em ocasiões especiais. Exemplos dela foram descobertos em algumas comunidades rurais. (Careno, 1997: 64)

É desse referencial que parte a pesquisa que Margarida M. T. Petter iniciou no

Cangume, na qual procura “traços fonéticos específicos” na fala dos mais velhos, que

revelem a existência de “africanismos”. Segundo esta autora, entre as quatro formas de

criação de “brasileirismos”, está o contato com outras línguas e, por meio desses contatos, a

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constituição de linguagens de mediação, linguagens mestiças ou crioulas, que no Brasil são

conhecidas como “tupinismos” e “africanismos”6.

A pesquisa de Petter ainda não produziu conclusões sobre o Cangume, mas parece

apontar a existência de diferenças com relação à coleta realizada por Careno nas outras

comunidades estudadas no Vale do Ribeira. No Cangume Petter encontrou “africadas

palatais” que ainda não haviam sido registradas na região e que aproximam o falar do

Cangume àquele registrado nas zonas caipiras do Mato Grosso, Cuiabá e litoral do Paraná,

tais como “catchorro”, “petche” e “rantcho”, como já havia registrado o depoimento de d.

Dirce. Petter aponta, porém, que tais ocorrências de “africadas” só foram plenamente

observadas na fala dos mais velhos, assumindo uma forma transitiva nos informantes

adultos entre 40 e 60 anos e desaparecendo entre os mais novos, o que aponta para uma

rápida mudança lingüística. Depois de todo o esforço de d. Dirce, finalmente, a África que

ela não tinha condições de identificar na língua daqueles negros bugres e que lhe parecia

pura falta de cultura, se esvai com o tempo num ritmo acelerado.

Mesmo assim, o interesse da pesquisa lingüística recente faz com que o Cangume

surja entre as outras comunidades negras rurais do Vale do Ribeira como local estratégico,

dado seu insulamento, para o objetivo de se resgatar a África que nos resta na língua, já que

neste bairro nós encontraríamos traços que já não são encontrados nas outras comunidades

do Vale. Cresce, portanto, o interesse sobre o bairro, na medida em que os sinais de estigma

são invertidos, neste caso, justamente pela conversão daquilo que era a marca da falta de

cultura, em cultura em si mesmo.

6 “Africanismo é o termo ou expressão de uso coloquial resultante do contato do português com uma língua africana, ocorrido na África, em Portugal ou no Brasil, sendo nesse caso parte integrante dos brasileirismos” (Petter, s/d). Mesmo que o português europeu tenha, antes do descobrimento do Brasil, incorporado algumas palavras africanas – alerta Petter – a pouca informação a respeito dos itens lexicais introduzidos nesse português arcaico, anterior ao tráfico de escravos para o Brasil, não permitem fazer uma distinção precisa entre os africanismos introduzidos via Portugal e aqueles vindos diretamente da África para o Brasil. Tendo isso em conta, seria possível desconsiderar o debate em torno da eventual possibilidade de certos termos não serem exatamente brasileirismos (já que estão também presentes em Portugal) para afirmarmos que os africanismos, devem ser considerados em sua generalidade, como uma das bases dos atuais brasileirismos. Ainda que alguns estudos, apoiados em documentos, propõem excluir do inventário dos brasileirismos os africanismos que chegaram ao português do Brasil por meio do português de Portugal, o uso e a percepção desse uso pelo “falante/ouvinte brasileiro” reaproximariam os dois conceitos do ponto de vista do seu emprego: a linguagem familiar, coloquial e, às vezes, vulgar.

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3.3. O quilombo consensual

Com havíamos feito referência com relação ao depoimento de ex-alunos da escola

municipal de Itaóca, o interesse da professora que, em finais dos anos 80, organizava visitas

pedagógico-humanitárias ao Cangume passava não só pela gravidade de sua pobreza, mas

também pelo fato de “todo mundo sempre dizer que ali era um quilombo”. Por um feliz

incidente, pude assistir a uma fita de vídeo que trazia trechos de uma feira de ciências do

segundo grau da escola municipal de Itaóca, realizada cerca de dez anos depois daquelas

primeiras campanhas filantrópicas, em 1998. Um dos trabalhos registrados nela era

dedicado justamente ao bairro do Cangume. No mural relativo ao tema, em meio a diversas

fotos antigas, objetos artesanais coletados no bairro e antigas peças de ferro, era possível ler

o seguinte texto:

“Pinheiro AltoBairro popularmente conhecido como Cangume, situa-se a 8 km de Itaóca e é o mais distante da cidade. Considerado como bairro subdesenvolvido, é habitado por pessoas da raça negra que há anos refugiaram-se para aquela localidade, formando, assim, um quilombo.”

Ainda que não possamos precisar com base em que fonte ou em que momento

preciso essa idéia ganhou corpo, está claro que nesse momento, de fins dos anos 90, já se

havia consolidado no município um senso comum acerca da origem quilombola daquele

bairro de negros isolados, primitivos e extremamente pobres, que ajudava a explicar ou

justificar sua alteridade. A atribuição de uma origem quilombola ao Cangume não se

prende, porém, nem ao âmbito escolar, nem ao município de Itaóca. Em um trabalho

recente sobre a história de Apiaí (Mancebo, 2001), o autor, depois de fazer referência ao

papel desempenhado nessa fundação pela mineração aurífera, fala sobre os “tipos

humanos” que contribuíram para a formação daquela população, citando sucessivamente os

“faiscadores”, os “índios” e, finalmente os “negros”. Sobre esses últimos afirma:

As fugas aos poucos desarvoraram os senhores e o garimpo. Espalhados se escondem os negros pelo mais denso da mata, e apesar disso não se tem notícia de refúgios fortificados, mas a dispersão favoreceu formarem sítios como os do Cangume, do Calaboço, Sumidor, e mesmo do Quilombo entre a vila e Pinheiros, não se conhecendo deste último a verdadeira origem; senão também por

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suposições, nem mesmo sobre a existência de líder revolucionário mas sim de alguns apegados às crendices e ao misticismo próprio dos seus ancestrais (Mancebo, 2001: 21)

Mais adiante, o autor arrisca uma hipótese histórica sobre a origem do Cangume:

A comunidade negra rural que prevaleceu é a do Cangume, situada nas imediações de Itaóca. A suposta relação entre as fugas e a sua existência firma-se pela dedução de fatos que se ligam entre si, que sugerem. Supostamente, relaciona-se pela dedução de fatos afins e às fugas do garimpo. Não Há documento que comprove, porém tudo é possível diante de certas evidências. Primeiro, o acesso quase impraticável ao lugar, na ocasião, o que pode sugerir esconderijos, levando em conta o difícil acesso a morro de altitude elevada. Segundo, e mais interessante, o que se pode chamar de posto avançado de vigia: Antes da vila de Cangume existe o sítio denominado Henrique, nome cuja história, nenhum morador consegue atualmente explicar. Ora, folhando-se a história, depara-se com relatos sobre fortalezas de quilombos vigiadas por milícias negras, as quais se chamavam Henriques, uma espécie de guarda real, em homenagem ao herói que em 1648 comandou a luta pela restauração de Pernambuco, o negro Henrique Dias. Um quilombo com vigias permanentes, esta teria sido a origem do Cangume. (Mancebo, 2001:167)

Ainda que busque lançar mão dos poucos documentos disponíveis (que esse mesmo

historiador local, convertido em uma espécie de arqueólogo do lixo, resgata entre um e

outro incêndio, um e outro descarte administrativo que, displicentemente, vão dando fim à

documentação histórica do município), nosso interesse no seu trabalho está no fato dele

pautar-se, na maior parte das vezes, na coleta e transcrição de fragmentos da memória da

elite local e de personagens populares conhecidos. É com base nisso que ele se permite

afirmar, mesmo que sem apoio documental, uma relação entre os povoados de negros

citados (entre eles o Cangume) e as fugas de escravos que “desarvoraram os senhores e o

garimpo” e povoaram as matas em torno da vila. Essa é uma dedução que parece lógica

para a sociedade local por vários motivos, talvez menos imaginativos que as “evidências”

apontadas por Mancebo, mas igualmente indiciais. Primeiro pelo contraste entre os

cangumeiros e os moradores dos bairros vizinhos, todos de cor de pele muito mais clara.

Segundo em função do desconhecimento sobre a origem precisa do bairro, também em

contraste como os bairros vizinhos, todos formados por pessoas ou vindas diretamente de

Portugal, ou migradas de Minas Gerais e Paraná. Terceiro em função do “isolamento”

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(permanentemente refundado) que marca a comunidade. E, finalmente, pelo partilhamento

de um senso comum histórico que reconhece a prática da fuga de escravos das minas de

Morro do Ouro para as matas do antigo município de Apiaí.

Esse senso comum tornou-se tão sólido que, mais recentemente, veio a penetrar na

própria administração pública, não apenas como um projeto de reconhecimento oficial do

grupo, que inspira alguns secretários municipais, mas como a certeza de que o grupo já

teria sido oficialmente reconhecido, segundo outros secretários, menos envolvidos naquele

projeto. Em uma das rápidas conversas que tive com funcionários da prefeitura, um desses

secretários surpreendeu-se quando eu contei sobre os objetivos do trabalho que estava

realizando, destinado ao reconhecimento oficial do grupo como comunidade remanescente

de quilombos. O secretário retrucou, com absoluta segurança, que o grupo já era

oficialmente reconhecido e, diante de minha resistência em aceitar o fato, ele passou a

procurar a cópia do Diário Oficial que pensava ter guardado com o ato de reconhecimento

do governador Mário Covas. Ainda que, ao procurar em seus arquivos, não tenha

encontrado tal publicação, isso não o demoveu da idéia.

Um dos motivos dessa certeza está no retorno favorável que a política social do

município tem encontrado ao enfatizar as ações no Cangume, classificando-o, para todos os

efeitos, como remanescente de quilombo. Foi assim que, em 2000, o projeto de construção

de casas populares da prefeitura, intitulado “Habitação para a Comunidade remanescente do

quilombo do Cangume” concorreu e foi premiado no concurso "Melhores Práticas e

Programas de Liderança Local" da Conferência das Nações Unidas para Assentamentos

Humanos7. No texto de apresentação do projeto a prefeitura informava que

o bairro do Cangume abriga uma comunidade predominantemente negra, que recentemente habitava em casas de pau-a-pique e barro, cobertas de sapê, a maioria sem unidades sanitárias, saneamento básico ou energia elétrica. [...] Além disso, a Prática se destaca por promover a integração social da população

7 O Programa das Nações Unidas, em parceria com a Caixa Econômica Federal e com o Instituto Brasileiro de Administração Municipal concedeu no dia 23.02.2000 o prêmio "Caixa Melhores Práticas" a dez programas habitacionais, de infra-estrutura e geração de emprego e renda, selecionados entre 114 de todo o país, representantes de 18 estados, com envolvimento direto de 42 Escritórios de Negócios da Caixa.

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remanescente de "um Quilombo do século XVIII", contando com a participação da comunidade em todas as suas etapas.8

É nesse contexto que a comunidade assiste a fronteira simbólica tão firmemente

mantida pela sociedade envolvente mudar seu significado. De repente, nos últimos anos,

sua língua, seu isolamento e a ambigüidade das relações mantidas com base na caridade

passam a ser vistas sob um ponto de vista favorável. Há uma conversão simbólica da

função de alteridade que aos poucos e ainda de forma pouco clara vai sendo apreendida

pelos moradores do bairro.

É ilustrativo o relato que sobre isso faz d. Jandira. Ela conta do desconforto de sua

filha ao ler na matéria do jornal de Campinas a rotulação do Cangume como uma “vila de

negros”. A indignação de sua filha, uma jovem que saiu do Cangume para estudar e

trabalhar em Tatuí, conquistando um emprego fixo, uma casa de alvenaria, uma linguagem

“correta”, enfim, livrando-se dos signos atribuídos aos cangumeiros, parecia a d. Jandira (e

a nós) perfeitamente compreensível. Mas a experiência recente e cotidiana dos moradores

já começava a estabelecer uma outra relação com aquele rótulo, fruto da conversão

simbólica dos estigmas atribuídos ao bairro. Assim, conta d. Jandira, ela mesma fez sua

filha perceber como esse rótulo era (melhor seria dizer “tornara-se”) “verdadeiro” – na

medida em que deixava de ser uma simples acusação para tornar-se uma forma de

identificação se não positiva, ao menos respeitável.

Assistimos, assim, a um claro processo de inversão dos signos de distinção que os

faz assumirem um sentido de solidariedade e identificação no lugar do antigo estigma. De

uma forma ou de outra, o que parece confirmada é a fronteira que emerge da diferenciação

estrutural do Cangume e da sociedade envolvente, traduzida em uma determinada forma de

construir oposições e classificar pessoas. Ainda que estejamos falando também de

sentimentos, de modos de compreensão e de representação de si, cremos ter ficado claro

como a “fronteira” que distingue tão claramente os cangumeiros, é produzida por uma série

de processos sociais e estruturas de interação, um conjunto de regras que regulam os

encontros sociais.

8 Extraído de “Programa Melhores Práticas da ONU no Brasil - As 10 premiadas pela Caixa Econômica Federal”. Revista World Watch. Em: http://www.wwiuma.org.br/form1.php3

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A importância disso, seria útil insistir uma última vez, está no fato de uma

identificação social ser, ela própria, uma relação entre aquele que identifica e aquele que é

identificado. É comum a dificuldade de compreensão sobre o processo de produção das

identidades sociais produzida pela propensão realista que consiste em querer que o objeto

(no caso o grupo social) identificado seja primeiro objeto, em si mesmo, para só depois ser

identificado. No entanto, o grupo identificado é grupo quando e porque assim é

identificado; o ser identificado é aquilo que o constitui como grupo. O ato de pensa-lo,

representa-lo de determinada forma, ou seja, de identifica-lo, é ao mesmo tempo o ato de

objetificá-lo, de concebe-lo como grupo e dar-lhe a qualidade de grupo. Da mesma forma

(em um pólo oposto complementar), não há um grupo que depois se percebe como grupo,

mas o grupo só é porque e quanto e quando se pensa a si mesmo como grupo.

Assim, ainda que os habitantes do Cangume não tenham referências claras sobre um

passado quilombola, não se encaixem em modelos etnológicos e não tragam na língua os

claros fragmentos de uma África, não há dúvidas de que eles sejam um grupo social distinto

da comunidade do entorno, quando mais não seja, pelo simples fato das fronteiras que

separam estes daqueles estarem sempre sendo reafirmadas, ainda que seus conteúdos

possam variar. Também está claro que a alteridade, assim permanente reafirmada,

encontrou, por parte da própria sociedade envolvente, uma chave explicativa na idéia de

quilombo, adequada às marcas diacríticas destacadas por essa mesma sociedade.

Finalmente, ainda que tenham resistido ou se feito indiferentes a essa identificação como

quilombolas durante tanto tempo, com a elegância dos que ignoram os xingamentos

públicos, os moradores do Cangume hoje se sentem mais confortáveis em aceitar o rótulo,

buscando em sua própria memória de grupo os fragmentos que lhes permitam dar coerência

interna a essa designação, tornando-a auto-designação.

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Capítulo 4

Uso comum e mercado de terras

As formas de ocupação histórica e a

expropriação territorial

Este capítulo do relatório destina-se à análise da ocupação territorial do Cangume

em uma perspectiva processual. Para isso buscaremos reconstituir o perfil histórico do

território coletivo, apresentando o processo de desterritorialização que o atingiu e ao

conjunto de seus moradores entre o fim dos anos de 1960 e início dos 80. Esse painel, que

busca a análise social da ocupação do espaço ao longo do tempo é fundamental para a

compreensão da demanda territorial do grupo.

Há um evento histórico de grande importância que situa o corte cronológico

manifesto nas narrativas dos moradores do bairro, quando estes distinguem entre um

“antes” e um “depois” na história não só de sua ocupação territorial, mas também de sua

própria organização social e produtiva. Este evento, que se desenrola entre os anos de 1966

e 1968, consiste na etapa de conclusão da Ação Discriminatória do 46o. perímetro de

Apiahy (processo 33606 da Procuradoria do Patrimônio da União – PPI). Iniciada em 1939

com o edital de convocação dos interessados, em 1966 ocorreria a etapa administrativa de

“legitimação das posses”, conhecida na região como “a medição” das terras e, no ano de

1968, a entrega dos títulos de propriedade das “glebas” demarcadas. Se nesse ano

encerrava-se o processo administrativo, nele também se iniciava um outro processo,

histórico: a abertura de um mercado de terras na região, que levou à especulação fundiária e

à expropriação dos antigos moradores do Cangume.

Neste capítulo, a reconstituição deste evento e do ordenamento territorial do

Cangume no momento anterior a ele se sustentará basicamente em três tipos de fontes. O

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primeiro tem origem nos relatórios técnicos da PPI de 1939 e de 19661, que levantou um

conjunto apreciável de informações sobre as posses dos antigos moradores. Em especial no

relatório de 1966, onde é indicado o nome de cada posseiro e informações sobre sua posse:

se era comum com outros posseiros, os locais de origem e residência dos moradores, o

tempo das posses, sua forma de aquisição, sua cobertura vegetal, a presença de criações e

de benfeitorias (um sumário destas informações está organizado na forma de tabelas

apresentadas em anexo). O segundo tipo de fonte é formado por relatos orais dos moradores

mais velhos do bairro, fundamentais para que consigamos reconstituir as significações

sociológicas de certas informações levantadas na primeira fonte. Estas fontes são

complementadas ainda por alguma documentação histórica esparsa.

4.1. “Antes”: o uso comum e os limites territoriais

Comecemos pela reconstituição do território no momento anterior à instalação de

um mercado de terras no local.

4.1.1. Formas tradicionais de acesso à terra: os três círculos

Segundo os moradores mais velhos, as terras do Cangume eram “abertas”, isto é,

não eram divididas por cercas, nem por qualquer outra forma de fracionamento e

individualização das terras ocupadas pelo conjunto de moradores do bairro. Seus

moradores dispunham delas segundo suas necessidades e possibilidades de trabalho, o que

podia fazer com que uma mesma família lançasse mão de trechos de extensões ou mesmo

de localizações diferentes e que mudavam de um ano para o outro. A posse coincidia com a

“roça”, isto é, com a extensão sobre a qual cada família investia um trabalho concreto,

arando, plantando e colhendo e, por isso, ela variava de acordo com o número de filhos, a

proporção entre adultos e crianças, as condições de saúde, enfim, as condições de trabalho

de cada unidade familiar. O apossamento, sempre familiar, não fixava, portanto, uma

1 O relatório de 1966 não tem indicação de autor ou data, sendo sua data inferida dos outros documentos que o acompanham no processo da PPI. Hoje estes documentos encontram-se sob a guarda do ITESP (escritório Capão Bonito), distribuídos em três caixas, sem catalogação.

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relação abstrata de propriedade (formal ou informal), correspondendo quase estritamente à

relação concreta investida pela capacidade de trabalho.

Apesar dessa relação entre trabalhador ou família de trabalhadores e terra ser

estritamente concreta, ela não se realizava em um vazio social. Mediando tal relação exista

um conjunto de relações sociais que dava unidade ao bairro do Cangume e impunham

normas e regras à relação de apossamento. Aquelas condições e necessidades familiares

eram mediadas, portanto, por regras coletivas de acesso à terra, tão informais quanto

consensuais.

Era comum que as famílias dispusessem de mais de um trecho de terras dentro do

bairro, aos quais eram atribuídos funções e padrões de ocupação diferenciados. Quase todos

os moradores mais velhos (entre 60 e 80 anos) lembram que seus pais possuíam mais de

uma posse e que tais posses ficavam relativamente distantes uma das outras, tanto as de

uma mesma família quanto as de famílias vizinhas. Neste ponto encontramos uma primeira

regra informal de acesso à terra de interesse para nossa descrição. O espaço deixado entre

os apossamentos correspondia à previsão de crescimento familiar, que ampliando o número

de braços ampliava também a capacidade de trabalho e, decorrente disto, a capacidade de

ampliação das roças. O crescimento familiar desejado e previsto impunha, portanto, um

acordo tácito sobre as distâncias médias que deveriam ser mantidas entre as posses

familiares, de forma que a liberdade de escolha pela melhor localização das roças era

limitada por esse cálculo, que também variava de acordo com a qualidade do terreno.

Era comum também que, crescendo os filhos e estes constituindo novas famílias,

estas novas unidades produtivas priorizassem a ocupação de terras vizinhas às terras da

família do pai. Aqui observamos, portanto, uma segunda regra tácita. Com ela estabelecia-

se tanto a oportunidade quanto a expectativa de que os espaços de crescimento disponíveis

para as diferentes unidades familiares servissem para a manutenção dessa unidades, mesmo

depois de sua aparente fragmentação em novas unidades. O casamento de um filho

significava tanto uma redução na capacidade produtiva da unidade familiar do pai, quanto

uma ampliação da capacidade produtiva do conjunto familiar como um todo, que ia sendo

constituído com os sucessivos casamentos dos filhos. Não estava vedada, no entanto, a

possibilidade dessas novas unidades familiares procurarem novos trechos de terra para

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apossamento produtivo, como forma de atenuar a escassez do espaço em torno das unidades

familiares principais, ou de ampliar a variedade de nichos disponíveis à economia familiar.

Essas duas regras tácitas ajudam a entender a distinção que se estabelecia entre três

diferentes regiões ou círculos concêntricos que organizavam o território do bairro: a região

destinada predominantemente à moradia, aos cultivos frágeis (como legumes e verduras) e

aos pequenos criatórios; uma segunda região, destinada às roças temporárias de

subsistência e comercialização, como o feijão, milho, mandioca e arroz, localizada em um

segundo círculo, em torno do primeiro; e a terceira região, também dedicada às roças de

subsistência, mas bem mais distante da região dedicada às moradias, localizada no que,

ainda hoje, os moradores se referem como “sertão”.

Àquela primeira região, os moradores denominavam e continuam denominando de

“patrimônio do Cangume”. 2 Ela ainda contava com cerca de 37 ha. cercados por “vedos”

ou por cercas rústicas de bambu ou feixes de madeira, que formam paliçadas bem fechadas,

que tinham a função de impedir a passagem das criações pequenas (galinhas, porcos e

cabras) do círculo do “patrimônio” para a região das roças.

No caso do Cangume chamava-se “vedo” apenas o tipo de cercamento das terras

que recorria à forma de uma vala de aproximadamente de 2 metros de boca por dois metros

de fundo, alternativo às cercas e de mais fácil manutenção, quando o terreno o favorecia.

Apesar da população do Cangume distinguir o “vedo” das “cercas”, o direito costumeiro da

região, observado em vários povoados vizinhos ao Cangume e na própria sede do

município de Apiaí, aplicava esta denominação a toda forma de cercamento de terras ditas

“comuns” (Luz, 1993) 3, isto é, “onde cada um edificava sua casa e mantinha suas criações

de pequeno e grande porte”. Como explica Calazans Luz:

Todas as lavouras, como as de milho, feijão, arroz, mandioca eram feitas fora do ‘vedo’. Durante todo o período do plantio até a colheita a porteira do ‘vedo’ era mantida fechada. Depois da colheita a porteira era aberta e então as criações eram

2 Isso é confirmado no relatório técnico de legitimação de posse de 1966, quando este descreve a gleba 115, de uso comum a 17 posseiros e a única a receber um nome no texto.3 Calazans Luz (1928), natural de Apiahy, formou-se em advocacia em 1954 e administrou o Cartório de 1o. Ofício (responsável também pelo Registro de Imóveis) até 1967, quando ingressou na magistratura paulista. Depois de aposentar-se, em 1981, fundou a Associação Cultural, Cívica e Histórica de Apiaí e passou a publicar diversos textos curtos sobre a história do município, boa parte dos quais foi reunida em livro em 1993.

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soltas e livremente pastavam pelas soqueiras ou tigüeras resultantes das plantações. (Luz, 1993: 117)

Uma diferença importante, no entanto, no caso do Cangume, é a de que no interior

da terra comum, conhecida como “patrimônio”, mantinham-se exclusivamente criações de

pequeno porte, característica de uma economia de subsistência, própria do campesinato

pobre. Outra característica do Cangume, a que aquele autor não faz referência no caso dos

outros povoados, era a de que no interior da terra comum, cercada pelo vedo, os seus

moradores mantinham minúsculos cercados, conhecidos como “quintais”, ao lado das casas

de moradia, destinados ao cultivo de verduras e hortaliças. Se o trabalho na roça era

predominantemente dos homens, a manutenção dos quintais e das criações pequenas era de

responsabilidade das mulheres. Assim, o patrimônio caracterizava-se como uma terra de

uso comum, cercada e mantida por meio do trabalho coletivo, onde se concentravam as

casas de moradia, os pequenos criatórios soltos, e os quintais, circunscrevendo um espaço

doméstico e de trabalho predominantemente feminino.

A segunda região, das roças mais próximas ao patrimônio, era objeto do trabalho

coletivo interfamiliar, organizado sob o sistema de mutirão ou de simples troca de dias. A

vizinhança entre as roças e os constantes laços de parentesco entre as unidades produtivas

tornavam essa forma de colaboração muito comum, ainda que o cuidado com tais roças, o

patrocínio do mutirão e o produto delas fosse prerrogativa de cada unidade familiar-

produtiva em separado. Nesse caso, tratava-se de um espaço misto, em que todos os

componentes da família contribuíam com alguma forma de trabalho, inclusive as crianças,

em seu processo de socialização com as técnicas agrícolas.

Isso se alterava no caso das posses localizadas no chamado sertão. Sua exploração

freqüentemente implicava no trabalho de derrubada de trechos de matas ou capoeiras

velhas, em percorrer distâncias maiores e, também, em apossamentos mais extensos, que

não eram contíguos como na região mais próxima ao “patrimônio”. Para cultiva-los era

necessário um maior investimento pessoal, que não estava imediatamente associado à

solidariedade familiar, como nos trechos mais próximos às terras de moradia. O sertão era

um espaço mais masculino, mais individual, de maior risco e também de uma colaboração

menos mediada pelos laços de parentesco direto.

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Assim, é possível descrever o ordenamento territorial do Cangume, de forma

bastante esquemática e abstrata, como três círculos concêntricos que, partindo do núcleo

doméstico, de domínio feminino (o “patrimônio”), passa pelo espaço da família extensa e

da colaboração intra-familiar, para chegar até o espaço mais fortemente masculino e

individualizado, mais próximo das divisas da terra comum, limites da identidade comunal.

4.1.2. A “roçança de caminho”: limites e autoridades

Passaremos agora justamente à reconstituição dessas “divisas” e da forma de

delimitação de uma identidade comum em torno do bairro do Cangume.

Para seus habitantes, o território do Cangume não é definido pelo desenho de linhas

secas de fronteira, capazes de separar um bairro do outro com a nitidez de um recorte

administrativo representável em mapa. O território do bairro era delimitado por meio do

que os moradores do Cangume chamam de “roçança dos caminhos”, isto é, do trabalho de

avivamento das estradas que comunicam esses bairros. No caso do Cangume, quatro

estradas, que partindo do centro do povoado, seguem em quatro direções, vagamente

orientados pelos pontos cardeais. Uma delas segue para o sul, em direção à sede do

município de Itaóca, passando pelo bairro vizinho do Henrique; outra segue na direção

oposta, para norte, levando a Iporanga, depois de passar pela área de capoeira fechada que

separa o Cangume do bairro da Serrinha, porta de entrada do PETAR. Perpendicular a este

eixo, uma terceira estrada indo para o bairro do Pavão, ao leste do Cangume e, na direção

oposta, para oeste, outra estrada vai para a região conhecida como Companhia, através da

qual se chega à cidade de Apiaí.

Assim, recorrendo à memória do grupo, é possível recuperar, de forma esquemática,

o desenho formado por meio desses caminhos roçados, assim como o nome dado às

diferentes regiões pelas quais as divisas do bairro passavam e o nome dos posseiros

localizados próximos a tais divisas. Em uma reunião coletiva, de que participaram

praticamente todos os homens do bairro (algumas mulheres assistiram caladas aos debates

travados então, sem se pronunciarem) pudemos traçar sobre grandes folhas de papel um

esquema gráfico que aos poucos e em meio a algum debate, foi se consolidando com a

anuência de todos e que buscamos reproduzir abaixo:

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OBS: Os nomes das localidades estão no desenho e os nomes dos posseiros, representados pelos números, estão na lista abaixo. As linhas cinzas irregulares representam os córregos que cortam o bairro. As linhas em cruz representam os caminhos roçados que levam aos bairros vizinhos (em negrito), o círculo menor localiza o “patrimônio” do Cangume, enquanto o círculo maior os limites do bairro. Essa representação é representativa da situação territorial do Cangume no início dos anos de 1960.

Posseiros:1) Geraldo Nicolau Pereira;2) Adriano Dias Monteiro;3) Paulo Almeida;4) Francisco Dias Monteiro;5) José Alvez;6) Ludgério Dias Monteiro;7) Damiano Dias Monteiro;8) Antônio Gonçalves;9) Olimpio Dias Monteiro;10) Damiano Dias Monteiro e família;11) Antônio Gonçalves;12) Dito Cordeiro;13) José Gonçalves Pontes;14) Antônio Gonçalves;15) Olimpio Dias Monteiro;16) Ricardo Dias dos Santos.

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A “roçança dos caminhos”, isto é, a limpeza das estradas que levam do núcleo do

povoado até os limites do bairro com os bairros vizinhos, feita de forma coletiva,

delimitava, em si mesma, uma expressão absolutamente fundamental da organização social

do grupo. Cada bairro organizava uma “tropa” com todos os homens das famílias de

moradores para a capina das estadas que levam de um povoado a outro. O trabalho de um

bairro terminava onde ele se encontrava com o trecho que estava sob a responsabilidade da

tropa do bairro vizinho. A estes locais chamava-se “divisas”. Cada tropa partindo do centro

de seu povoado encontrava-se com outra tropa na divisa, idealmente localizada a meio

caminho da distância que separava os povoados.

Assim, os bairros firmavam e confirmavam seus limites periodicamente não por

meio dos cuidados com uma linha divisora, mas pelos cuidados com um caminho de

comunicação entre eles. O domínio era delimitado pela abertura de comunicação entre os

territórios e não por seu isolamento. Mas era justamente o trabalho coletivo, que imprimia

sobre o espaço a marca de um domínio. A coletividade que não investisse tal trabalho sobre

o espaço punha em risco a definição e a manutenção do próprio domínio sobre ele.

Por isso, a organização deste trabalho coletivo era de grande importância, recaindo

sobre personagens de reconhecida autoridade local. Esse era outro tópico do direito

costumeiro da região de que fala Calazans Luz (1993). Ele nos informa que todo “comum”

tinha um “administrador” e que este era

eleito pelos comunheiros para uma gestão por tempo indeterminado, ou seja, até que a maioria deliberasse destituí-lo. Não havia disposição escrita para aquela eleição, nem regulamento redigido sobre as obrigações, deveres ou direitos dos comunheiros e do administrador (Luz, 1993: 118)

Mais tarde, fixando ao mesmo tempo em que alterando esse direito costumeiro, cuja

origem é a própria dinâmica local das vizinhanças, surge o código de postura municipais,

que passa a impor regras às coletividades, recortadas então como quarteirões rurais. A

“roçança” emerge nesse contexto como um exemplo privilegiado das negociações que,

então, se estabelecem entre um direito costumeiro e as novas regras de origem estatal. Com

o Código de Posturas municipais de Apiaí, de 1899, a “roçança” passou a ser organizada

pela nova figura, criada também pelo código, do “inspetor de quarteirão”. Tendo de

responder frente à municipalidade por obrigações que eram impostas aos bairros, o

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inspetor, por outro lado, passava a ser instituído de uma outra autoridade diante dos

moradores do bairro, agora de natureza estatal.

Ao longo de seus mais de 150 artigos, os inspetores de quarteirão são citados uma

dúzia de vezes, distribuídas entre os capítulos relativos à atividade agrícola, à manutenção

das estradas e caminhos, à regulação e taxação do comércio, indústria e profissões e às

“disposições diversas”.

No capítulo VII, relativo às “Estradas e Caminhos”, lê-se que:

Art. 65 – As estradas geraes e de saebramento serão feitas ou conservadas pelos proprietários dos terrenos por onde passarem, cuja factura será annualmente nos meses de março e abril.Fica a cargo dos Inspetores de Quarteirões darem parte, immediatamente ao fiscal dos infractores, que serão multados na quantia de 15$000 réis cada um, além de serem obrigados a fazer o serviço, no prazo que lhes for concedido pelo fiscal e multados no duplo findo o dito prazo.Art. 69 – Todo aquele que derrubar árvores e deixa-las sobre o leito dos caminhos viáveis será multado em 10$000, e obrigado a desfazer o obstáculo, logo que para isso for intimado pelo Inspetor de Quarteirão ou por ordem do fiscal ou qualquer autoridade deste município.

Além dessa incumbência, que consolidou em lei um costume e é fundamental para

compreendermos a lógica que organizou e fixou os limites do Cangume, os inspetores de

quarteirão assumiam outras. Eram eles que tinham a atribuição e responsabilidade de

observarem o cumprimento, por parte dos donos das roça e dos criatórios de animais, das

regras de convívio entre essas atividades (cap. VI, art. 60, # único). Também era a eles que

qualquer pessoa que pretendesse “mascatear” no bairro deveria se apresentar, para

comprovar o pagamento das devidas taxas públicas (Cap. VIII, art. 90). Eles tinham ainda a

obrigação de exercer “a maior vigilância a fim de que em seus quarteirões não se

commerciem sem licença” (Cap. XII, art. 110) e de “auxiliarem o fiscal, em matérias que se

prendam à estas posturas”, cabendo àqueles que se recusarem a isso, uma multa, aplicada

pelo fiscal, no valor de 30$000 réis (Cap. XII, art. 111). Para darem conta dessas

obrigações, os inspetores estavam, finalmente, obrigados ainda a apresentarem-se à vila,

todo mês de fevereiro, sob as ordens dos fiscais (cap. XI, art. 108, # 8o.).

Apesar da extensão de suas obrigações e dos riscos em que ela implicava, já que o

desempenho de suas funções tornava-se uma obrigação cujo descumprimento também era

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passível de penalidade, os inspetores de quarteirão não constavam, sob qualquer estatuto,

do quadro de funcionários do município, nem recebiam deste qualquer auxílio ou

retribuição para o exercício das obrigações públicas em que eram investidos. Sobre isso

cabem algumas observações.

Primeira: a retribuição que o cargo trazia consigo parece ter sido o reconhecimento

público e oficial da autoridade individual que o sujeito, investido então no cargo de inspetor

de quarteirão, exercia sobre determinado conjunto social. Os depoimentos (de moradores

do Cangume e bairros vizinhos, mas também de antigos funcionários municipais) relatam

que a forma de recrutamento desses inspetores, que não é descrita ou prevista do Código de

Posturas, respondia ao reconhecimento, pelas autoridades municipais, da autoridade que

determinados indivíduos já exerciam sobre determinado recorte social local. Ou seja, a

escolha dos inspetores era feita entre os homens que eram reconhecidos pela coletividade

como autoridade legítima, fosse ela fundada no poder econômico ou na ascendência moral.

Por tratar-se, na maior parte da extensão municipal, de população muito pobre e

relativamente homogênea do ponto de vista econômico, era sobre aquele segundo critério

que a escolha recaía. Os homens mais velhos, os patriarcas de famílias numerosas, aqueles

que possuíam algum nível de instrução, os que exerciam papeis de orientação religiosa ou

organização lúdico-cerimonial, enfim, as lideranças sociais, eram instituídas em uma

função político-administrativa que consolidava sua autoridade, ao mesmo tempo que tirava

partido dela. Em termos weberianos, essa pequena fatia de “dominação racional” que cabia

aos inspetores de quarteirão, como representantes da municipalidade e, portanto, da

dominação estatal, era fundada diretamente sobre o reconhecimento pelo Estado, da

legitimidade local de determinadas formas de dominação tradicional.

Por outro lado, como a municipalidade não oferecia recursos especiais para o

desempenho dessas novas funções, elas acabavam por ser desempenhadas com base nos

recursos a que os indivíduos instituídos como inspetores de quarteirão já dispunham e,

assim, às funções oficiais, definidas pelo código de posturas eram agregadas outras,

anteriores e costumeiras. Dessa forma, confundiam-se as funções de Estado e as

costumeiras, por estarem assentadas sobre os mesmos personagens.

Segunda observação: na sua formalidade e generalidade, a lei de 1899 não

contemplava parte da realidade concreta existente na maior parte do território municipal.

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Ela previa que os inspetores de quarteirão deviam observar o cumprimento da obrigação

que os proprietários de terras tinham em criar e manter as estradas enquanto elas passassem

por suas propriedades, mas naquele momento histórico a propriedade de terras no

município estava muito longe de ser tão clara e individualizada como a regra supunha

genericamente.

No caso do Cangume, especificamente, mas também no caso de outros bairros

vizinhos, não existiam proprietários de terras no sentido estrito. As terras do Cangume eram

de uso comum, circulavam entre diferentes posseiros, que estabeleciam posses mais ou

menos extensas, de acordo com as condições de que dispunham a cada ano. Além disso,

não eram todas as terras do bairro que estava sob domínio e uso durante todo o tempo,

algumas delas ficando em descanso durante vários anos, quando então retornavam da posse

familiar para o fundo de reserva territorial coletivo.

Por isso, as estradas e caminhos do Cangume cruzavam terras que não estavam sob

domínio de ninguém, enquanto as que estavam sob apossamento de uma determinada

família, mesmo assim, eram consideradas de uso comum. Isso fazia com que a

responsabilidade sobre as estradas e caminhos tampouco pudesse ser repartida

individualmente, sendo pensada, por outro lado, como de responsabilidade de toda a

coletividade. Da mesma forma que a terra era de uso comum, os caminhos eram cuidados

em comum. Isso fez com que os inspetores de quarteirão no Cangume, em lugar de

exercerem o simples papel de fiscais, assumissem a tarefa executiva de organizar o trabalho

coletivo necessário aos cuidados com as estradas e caminhos. Isso reforça a hipótese de que

a função dos inspetores de quarteirão acabou por dar um rótulo e agregar certos encargos à

indivíduos que já desempenhavam um papel de autoridade moral sobre o grupo, seja em

função da idade, da ascendência sobre uma larga parentela ou de alguma outra habilidade

especial, como a religiosa, por exemplo.

Tinha um velho lá, o Damiano, que era o chefe do bairro, e que era quem ajeitava essas coisas. Quando eu estive lá, acho que ele já tinha uns 90 anos. Ele era o chefe de todo mundo lá, porque quando ele gritava lá da porta – ele só fazia ‘Ooooh!’ – todo mundo corria pra saber o que o sr Damiano queria. Era ele que dava a ordem pra ir pros matos trabalhar. Eu falei, ‘sr. Damiano, o sr que é o chefe daqui, ajeita um lugar pra mim poder dar aulas pras crianças’. (d. Dirce)

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A memória dos atuais moradores do Cangume confirma esse depoimento da

professora Dirce, relativo a meados dos anos 60. Todos parecem estar de acordo em

reconhecer que, entre meados das décadas de 50 e 60 essa autoridade era atribuída ao sr.

Damiano4 que, nos anos 70, a transmitiu para o seu filho João Dias Monteiro que, por sua

vez, a transmitiu depois para o seu irmão, o sr. Francisco Monteiro, a partir dos anos 80. O

título de inspetor de quarteirão acompanhou essa mesma transmissão da autoridade moral

no interior do grupo. É possível recuperar também que antes dos anos 50, essa autoridade,

assim como o título de inspetor de quarteirão, eram divididos entre o sr. Damiano e o sr.

Zeferino, que não parece ter feito descendência nesse sentido.5 Principalmente a estes dois

primeiro personagens, era atribuída, além da regulação dos trabalhos coletivos relativos à

“roçança”, a função de mediadores de brigas entre vizinhos, desavenças relativas à invasão

de roças por porcos e animais muares (o gado era raro) e, de certa forma, o poder de

polícia, autorizados que estavam para isso pelas forças municipais.

Terceira observação: Por se tratar de uma área de uso comum e não de um agregado

de propriedades contíguas e por ser o trabalho dos inspetores dos bairros um trabalho de

organização social e não apenas de fiscalização estatal, tal serviço de manutenção das

estradas e caminhos, no caso do Cangume não apenas racionalizava os serviços públicos

em um quarteirão municipal, mas ajudava a definir um território social. As obrigações

impostas pela municipalidade sobre-codificaram os domínios espaciais, os trabalhos

coletivos, enfim, a relação entre aquela população e um determinado recorte espacial,

instituindo-o como um território no sentido pleno do termo.

Novamente é Calazans Luz quem corrobora os relatos locais sobre este aspecto do

funcionamento dos bairros ou “comuns” como territorialidades:

A ordem social no ‘comum’era levada tão a sério, que na década de cincoenta os comuneiros de um determinado bairro do município, para expulsar uma pessoa que se mostrava inconveniente no dia-a-dia do ‘comum’ chegaram a apresentar ao juiz da comarca um abaixo assinado, pedindo suas providências para que se

4 Voltaremos a falar dele ao apresentarmos os posseiros de 1966 (cf., p.ex. o quadro 1 da relação entre parentesco e uso comum da terra).5 Note-se que o sr. Zeferino, no entanto, pode ter assumido essa posição por atributos diferentes daqueles que provavelmente marcavam o Damiano. Pista disso é apresentada nos livros de registro do “Imposto Cedular dos Imóveis Rurais”, no qual o sr. Zeferino aparece pagando em seu nome a cota relativa ao Cangume (cf. nota 8 a seguir).

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consumasse aquela expulsão. O magistrado nada pode fazer porque a legislação civil e constitucional vigentes já não permitiam o pretendido procedimento, e a situação no bairro tanto se agravou que o fato terminou em séria pancadaria e custosa intervenção policial. Mas o intruso deixou o ‘comum’, conforme a maioria havia decidido (Luz, 1993: 119).

O fim deste tipo de territorialidade coletiva começou se dar em meados do século

XX, segundo Calazans Luz, em função de dois fatores: a abertura das estradas de rodagem,

com o aumento dos veículos motorizados, que teriam inviabilizado o uso das antigas

porteiras, e a criação de uma legislação civil que estabeleceu novas regras para o direito de

vizinhança e para a criação e conservação de animais. O mais provável, porém, é que uma

compreensão mais ampla do fim dessa organização sócio-territorial deva buscar uma

articulação menos mecânica as relativas às novas condições de trânsito.

Se o Código de Posturas Municipais interviu sobre aquelas territorialidades de uma

forma aparentemente negociada, ao reformular (ao mesmo tempo em que reconhecia)

certos aspectos da organização social local, o Código Civil, absolutamente alheio às

especificidades locais, parece ter sido não apenas incapaz de continuar tal negociação,

como trabalhou para o esvaziamento daquela organização.

Daí as estradas de rodagem serem efeito de uma causa anterior, diretamente

incidente sobre a organização comunal dos bairros rurais daquela região: a abertura de um

mercado de terras que não desrespeitou apenas as posses familiares historicamente

estabelecidas, mas também as posses em comum, sem tradução específica na legislação

corrente. Uma grande particularidade do Cangume está justamente em ser o único bairro do

perímetro de Apiaí a manter terras de uso comum, representadas pelo antigo “patrimônio”,

ainda que o território social do bairro, por vezes também conhecido como o “grande

patrimônio”, que ia até as “divisas”, tenha se esvaecido. A divisão das terras em glebas

individuais eliminou não apenas a terra comum que eram destinadas às roças, mas também

o trabalho em comum, responsável tanto pela manutenção das estreadas e dos limites do

bairro, quanto pelas cercas e pelo vedo que circunscreviam o “patrimônio”.

4.1.3. A “medição”: notas entre o macro o micro

Em 1850, o governo imperial editou a lei n. 601, conhecida como Lei de Terras, por

meio da qual permitia-se que o Estado dispusesse das Terras Devolutas para venda,

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exigindo-se para isso, porém, que se efetuasse a medição, divisão e demarcação dessas

terras, ao mesmo tempo que se proibia a sua aquisição por outro meio que não fosse pela

compra. Os primeiros procedimentos de discriminação e regularização das terras privadas,

públicas e devolutas, porém, só tiveram início com a República e com a transferência das

Terras Devolutas aos estados da Federação. No caso do estado de São Paulo, tal

responsabilidade ficou a cargo, sucessivamente, dos juízes comissários, da Secretaria de

Agricultura e, finalmente, depois da lei estadual 10.351 de 21.06.1939, da Procuradoria do

Patrimônio Imobiliário e Cadastro – PPI (Junqueira, 1978).

A ação discriminatória, segundo tal legislação, implicava em três fases: a) fase

preliminar: quando, delimitado o perímetro a ser submetido à ação, os interessados eram

chamados a apresentarem seus títulos; b) fase contenciosa: quando discutia-se a validade ou

não dos títulos apresentados, concluindo-se pelo reconhecimento público ou particular; c)

fase demarcatória: delimitação dos domínios particulares, quando existentes (Guglielmi,

1996: 36-37).

Assim, as primeiras Ações Discriminatórias do estado de São Paulo começaram a

ser propostas no final da década de 1930, tendo como primeira preocupação a arrecadação

do patrimônio imobiliário e apenas secundariamente a regularização das posses nas terras

devolutas. Mas como o estado não conseguiu levar a termo muitas das ações iniciadas, o

processo em lugar de organizar a posse da terra, acabou por agravar o problema da

indefinição dos domínios tanto no Vale do Ribeira, quanto no Litoral Sul, Pontal do

Paranapanema, Vale do Paraíba e região de Sorocaba, onde foram deflagrados, a partir de

então, vários conflitos fundiários. Como chama atenção um relatório técnico do ITESP,

alguns exemplos marcantes dessas conseqüências estão justamente no Vale do Ribeira,

onde ocupantes de terras devolutas muitas vezes possuem documentos registrados nos

Cartórios de Registro de Imóveis sobrepostos a outros registros em nome do Estado. Nesse

processo, apenas os latifundiários conseguiram legitimar e mesmo ampliar suas posses,

enquanto os pequenos posseiros permaneceram sem qualquer regularização. A única

exceção entre estes foi a dos migrantes japoneses, que conseguiram seus títulos de

propriedade em função das negociações entre a empresa responsável por sua imigração e o

governo paulista (Miranda e Mustafá, 1992). Por contraste, a situação do pequeno sitiante

tradicional, o caipira, tornou-se ainda mais precária do ponto de vista jurídico.

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O próprio processo de discriminação de terras passou por diversas reformulações

que o fizeram oscilar entre o formato administrativo e o judicial, assim como entre a

atribuição de competências para os plano federal ou estadual, tornando o seu histórico

bastante confuso e aberto às manipulações. Em 1945 o governo de São Paulo reformou os

procedimentos de discrinação de terras (decr. 14.216 de 06.08.1945), estabelecendo um

procedimento misto: judicial e administrativo (por meio da PPI), mas que foi novamente

reformado no ano seguinte, por força de um decreto do governo federal (decr. 9.760 de

05.09.1946), que limitava o processo judicial apenas para as situações de contencioso

envolvendo as Terras Devolutas. Com o Estatuto da Terra (lei 4.504 de 30.11.1964),

reestabelecia-se o procedimento administrativo, mas poucos anos depois, uma outra lei

federal (6.383 de 07.12.1970) disciplinaria de outra forma o processo discriminatório das

Terras devolutas, estabelecendo que ele poderia ser judicial ou administrativo, federal ou

estadual (Miranda e Mustafá, 1992).

De qualquer forma, praticamente todo o Vale do Ribeira foi incluído nesse processo

de discriminação iniciado em 1993, que cobriu 571.930 ha, distribuídos em 115 perímetros.

Entre os 39 perímetros que assim recortavam o município de Apiaí, o que recebeu o no. 46

foi praticamente coincidente com a área ocupada pelo bairro do Cangume.

A primeira fase do processo, na qual delimitam-se os perímetros e convocam-se os

interessados a apresentarem seus títulos foi iniciada, como se vê anunciado no jornal “O

Apiahy”, no dia 29 de outubro de 1939. O jornal trazia o edital de convocação que citava

nominalmente os interessados que já haviam sido identificados no chamado “percurso

prévio”, etapa de trabalho de campo que precedia as fases jurídicas descritas no item

anterior. O relatório detalhado desse percurso prévio6, parcialmente transcrito abaixo,

citava o Cangume e a forma de ocupação (benfeitorias) de seus 350 alqueires, assim como

o nome de seus ocupantes e a existência de um documento de registro daquelas terras para a

recuada data de 1856, ou seja, há quase 150 anos. Note-se, além disso, que a área

documentada parece ser complementar a uma outra, vizinha, denominada Sítio do Funil,

que aparece ocupada por praticamente os mesmos posseiros do Cangume:

6 Este relatório é um documento avulso de 4 folhas, que consta em uma das três caixas de documentos que resultaram da Ação Discriminatória do 46o perímetro de Apiaí, atualmente depositadas no escritório do ITESP de Capão Bonito.

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46o Perímetro de ApiaíÁrea = 2.613,00 alqueires + ou –

Relação dos Imóveis e ocupantes

No. 1B = Sítio Porto dos Apertados (porto de Apiaí) [...]No. 2B = Sítio Sepultura e Porto Novo [...]No. 1B = Fazenda Pavão [...]No. 4B = Sítio Córrego da Lavra [...]No. 5B = Sítio do Henrique [...]No. 6B = Sítio Bom Sucesso [...]No. 7B = Sítio Santo Antônio [...]No. 8B = Sítio Jacutinga [...]No. 9B = Sítio da Forquia [...]No. 10B = Sítio do Rio do Meio [...]

No. 11B = Sítio Funil. Herds. de Jacinto de Carvalho: Francisco Gonçalves de Carvalho, já falecido deixou os seguintes herdeiros: Antônio, Joaquim, Félix, José, Cesária, Paula, Jacinta, Constância, Rita, deixou os herdeiros Sebastião, Gregório, Maria, Rosa, Virgínia, Amância, Izidora, já falecida deixou os seguintes herds.: Adriano, Francisco, Damião, Ludgero, Olimpio, Anna, Ignácia e Gregória. Joana, já falecida deixou a herdeira Alexandrina.

Tempo de ocupação: Não moram no sítio. Agregado: Cirino Dias Monteiro está no sítio a + ou – 25 anos. Benfeitorias: + ou – 8,00 alqs. Em roças de milho e feijão,

poucos pés de cafeeiros, laranjeiras e bananeiras, 1 casa barreada coberta de telhas e palha, 1 rancho de paos a pique, 1 monjolo.

Documentação: Tem título, não menciona a área. Área: + ou – 80,00 alqs.

No. 12B = Sítio Pinheiro Feio (conhecido por Cangume) Herds. de Jacinto de Carvalho: Francisco Gonçalves de Carvalho, já falecido deixou os seguintes herdeiros: Antônio, Joaquim, Félix, José, Cesária, Paula, Jacinta, Constância, Virgínia, Amância, Rita já falecida deixou os seguintes herds.: Adriano, Francisco, Damião, Ludgero, Olimpio, Anna, Ignácia, Gregória e Claro de Oliveira Rosa. Joana, já falecida deixou a herdeira Alexandrina.

Tempo de ocupação: Há 81 anos. Agregado: Paulo de Almeida Rosa está nas terras a + ou – 30

anos. Benfeitorias = + ou – 30,00 alqs. em roças de milho e feijão, +

ou – 5,00 alqs. em mandioca, bananeiras, laranjeiras e cafeeiros, 3 casas barreadas e cobertas de telhas, 12 casas barreadas cobertas de palha, 3 ranchos de paos a pique, 2 monjolos e 1 casa barreada coberta de telhas que serve de Centro Espírita.

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Documentação = Registro de 1856, não mensiona área. Área: + ou – 350,00 alqs.

No. 82B = Sítio Abaixo dos Apertados [...]No. 83B = Sítio Córrego do Salto [...]

São Paulo, 3 de novembro de 1939Chefe da 3a. Secção T.E

De fato, há uma perfeita concordância entre os nomes apresentados neste

documento e aqueles que conseguimos recuperar por meio do levantamento genealógico do

grupo (cf. o próximo item deste capítulo e o gráfico genealógico do capítulo 5), de forma

que, nesse caso, a memória está perfeitamente documentada do ponto de vista histórico7.

Além disso, a consulta que realizamos aos livros de “Imposto Cedular dos Imóveis

Rurais” que restaram no improvisado arquivo municipal de Apiaí, relativos aos anos entre

1939 e 1941 (não encontramos livros anteriores ou posteriores), revelou o pagamento de

taxas relativas ao Cangume em nome de Antônio Gonçalves, Benedito Xavier de Pontes,

Benedito de Oliveira, Manuel Cezário da Rocha e Zeferino dos Santos Lisboa. Antônio

Gonçalves é, provavelmente, o Antônio relacionado como um dos herdeiros de Francisco

Gonçalves de Carvalho, citado no relatório do percurso prévio citado acima, e Zeferino é

relacionado pelos atuais moradores do Cangume como um dos dois inspetores de quarteirão

do bairro para o período anterior aos anos 50. Com relação aos outros nomes, porém, não

foi possível identificar, em outros documentos ou na memória do grupo, pista que os

identificassem8.

Não há registros documentais sobre os encaminhamentos da segunda fase da Ação

Discriminatória, mas é possível que ela tenha ocorrido em meados dos anos 50, já que é

dessa época que a população do Cangume guarda a memória de ter sido alertada por

7 Dois pontos, porém, ainda precisariam ser esclarecidos: a natureza do registro citado para o ano de 1856, ao qual o restante do processo de Ação Discriminatória não faz mais menção e o nome do ancestral mais recuado a que o grupo faz referência. Segundo os moradores mais antigos, o ancestral fundador do grupo teria o nome de José, mas há dúvidas se ele seria o pai de Francisco Gonçalves ou de sua esposa, Benedita Maciel de Pontes. Não há referência a Jacinto de Carvalho.8 Podemos sugerir algumas hipóteses sobre isso: (a) os registros podem se referir a uma outra localidade existente em Apiaí, também conhecida como Cangume (que não chegamos a visitar); (b) não era incomum que pretensos proprietários pagassem impostos em seu nome relativos a terras na qual não tinham posse efetiva, como estratégia de produção de direitos sobre elas.

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vizinhos sobre a necessidade de passarem a pagar um imposto – que estes imaginavam

municipal – sobre as terras ocupadas, como forma de garantir seus direitos de posse9. De

qualquer forma, também é desta época a chegada dos primeiros migrantes “mineiros” na

região, alguns para ficar e implantar seu criatório de gado, outros apenas para especular

com o valor que a terra começava a alcançar.

Ao contrário das duas primeiras, a terceira e última fase está registrada com muita

nitidez na memória dos moradores do Cangume, que se referem a ela simplesmente como

“a medição” e cujos trabalhos de campo (a demarcação física) se desdobraram entre os anos

de 1965 e 1966, ficando a entrega dos títulos para dois anos depois, em 1968. Alguns

homens mais velhos trabalharam como peões na equipe de demarcação física das terras do

perímetros e relatam os procedimentos seguidos então, sobre os quais não têm maiores

críticas. O engenheiro responsável, ou seu encarregado, consultava os moradores sobre os

limites das posses e a partir de suas indicações, definia as glebas individuais cujos

perímetro fixava em solo e em mapa.

Um desses peões, que participou durante quatro anos (1964-1967) da equipe de

medição das terras, tinha 22 anos quando se integrou à equipe, em substituição a um

conhecido que havia se afastado dos trabalhos por razões de saúde. Como lembra o sr.

Argeu, o encarregado da turma, constituída de seis trabalhadores, era um engenheiro

“japonês” residente em Apiaí, que delegava boa parte do trabalho de campo ao encarregado

“Zé Fortes”, que se tornaria um dos grandes proprietários de terras da região, boa parte

delas sobrepostas ao bairro do Cangume, de quem as comprou logo após a titulação das

glebas individuais.

Segundo o que pudemos reconstituir, o encarregado ia a campo munido de uma lista

de posseiros e lá, de acordo com as informações colhidas diretamente destes, traçava as

linhas que individualizaria as glebas que mais tarde seriam tituladas. Traçava-se a picada no

chão, que era transcrita para o caderno e depois para o mapa. As dúvidas eram tiradas no

local, diretamente com a presença dos confrontantes ou pelo recurso aos mais velhos, aos

“cabeça” do local que, no caso do Cangume, ele confirma ter sido o sr. Damiano.

9 Trata-se de uma descontinuidade da memória local que aponta para as descontinuidades do processo de discriminação das terras e da própria vida econômica do município, já que tais pagamentos podem ter sido realizados e depois suspensos, em função do maior ou menor impacto local do processo.

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Isso trouxe alguma dificuldade para os moradores, que se viram obrigados a repartir

individualmente e com precisão trechos de roças que eram usados de forma familiar e com

limites muito pouco definidos, já que muitas vezes faziam parte de um conjunto mais

amplo sob o comando de um patriarca. Foi comum, então, que esse também tenha sido o

momento de produção de alguns acordos familiares, em que os patriarcas determinaram os

recortes que dariam origem às glebas, assim como sua atribuição a este ou aquele filho ou

genro, muitas vezes abrindo mão de assumir títulos em seu próprio nome.

Mesmo assim, o Cangume conseguiu manter ainda um trecho de terra de uso

comum, o “patrimônio”. Como recorda sr. Argeu, os únicos bairros em que encontrou

“patrimônios” foram o Cangume e o bairro vizinho do Pavão, em ambos os casos, algo em

torno de 1 “alqueire de chão”. No bairro do Pavão, ao contrário, seus moradores optaram

em repartir o patrimônio em minúsculos lotes individuais, ao ponto de não ficar de fora

dessa repartição nem mesmo o chão da igrejinha do povoado.

Os moradores do Cangume não perceberam de imediato, porém, extensão dos

efeitos dessa sua resposta à exigência da Ação Discriminatória. Isso só ficaria claro poucos

anos depois, logo em seguida à entrega dos títulos e o início do assédio dos fazendeiros que

começavam a chegar dos estados vizinhos em busca de terra barata. Daí que a memória da

demarcação (1965-66) surja mesclada e temporalmente fundida com a memória da titulação

e seus efeitos (1968-70).

4.2. O patrimônio em 1966: um instantâneo da ocupação histórica

Nos itens anteriores buscamos apresentar o esboço mais geral das formas de

ocupação tradicional do bairro, para agora nos deteremos no quadro mais detalhado

oferecido pelo relatório técnico de 1966, da Ação Discriminatória. Com base podemos

recuperar um instantâneo do momento final dessa organização social e produtiva, testando

o quadro sintético apresentado anteriormente, assim como corrigindo os próprios dados

oficiais pelo recurso à memória dos atuais moradores.

O “46o perímetro de Apiahy” cobria uma área total de 6.329,10 ha., repartido por

182 glebas, com extensões médias de 34,7 ha. Desse total, apenas 1.382,7 ha foram

considerados de “domínio particular”, restando uma extensão de 4.946,4 ha de terras

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consideradas “devolutas”, parte delas “devolutas vagas” (807,35 ha) e outra parte

“devolutas ocupadas” (4.139 ha). Ainda segundo esse relatório técnico, o valor médio

dessas terras por hectare era de R$ 17.000,00 (moeda de 1966).

Recorrendo à memória dos moradores mais velhos do Cangume, foi possível

identificar pela lista de nomes de posseiros do 46o perímetro, 77 domínios ou “glebas” que

se encontravam dentro do que eles consideram ser o território tradicionalmente ocupado

pelos moradores do bairro. O que não significa, como veremos, que se trata do território do

próprio Cangume, já que seus moradores podiam ter posses que ultrapassavam as

tradicionais “divisas”, estas sim, definidoras dos limites do bairro. Assim, somando tais

glebas, é possível estimar que tal domínio cobria uma área de 1.312,08 ha., que seria

repartido em glebas com a extensão média de 17 ha. Dessa forma, podemos identificar

também, com relativa precisão, suas posses, culturas, criações e benfeitorias. Mesmo no

caso dos posseiros que não eram considerados “do local” (conforme o relatório de 1966) e

que adquiriram suas terras dos antigos herdeiros, todos os moradores vindos de fora haviam

chegado há no máximo 10 anos), foi possível recuperar os nomes dos legítimos herdeiros

anteriores, dos quais eles compraram os direitos de herança.

4.2.1. As posses

A cultura daquele povo ali, agora eu não sei, mas naquela época era a pior das piores. Era a mesma coisa que tudo índio. A comida deles lá era feijão e abóbora, ou então mandioca. Eles não comiam arroz. Eu sempre levava arroz pra lá porque tinha um senhor que morava na frente de onde eu trabalhava e um dia eu levei um arroz pra ele lá e ele me disse que nunca tinha comido arroz. Aí o que aconteceu? Cada vez que eu vinha de Apiaí, eu tinha que levar arroz pra ele. Lá não plantava arroz. O que se plantava mais lá era milho, mandioca e abóbora e feijão. O senhor não via um pé de couve no quintal de ninguém. [...] Era primitivo mesmo. (d. Dirce)

Comecemos pela descrição das posses enquanto base física e produtiva do bairro,

partindo das categorias utilizadas pelo relatório de 1966, que informava sobre a presença de

córregos, dividia as atividades entre “cultivo de cereais”, “criatórios domésticos” e

“criatório de gado” e classificava a cobertura vegetal como “pastos nativos”, “capoeiras” e

“matas”. Além disso, constava do relatório a relação de benfeitorias de cada posse.

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A Das 77 glebas, apenas 10 não tinham algum tipo de cultivo, genericamente

informado como de “cereais”. Duas delas eram cobertas exclusivamente por “pastagens

naturais” (ou “nativas”), enquanto para as outras o relatório não indica outras coberturas,

provavelmente por falha na coleta de dados10 [cf. MAPA 1]

Assim, o cultivo de cereais é de presença quase absoluta, de forma que as coberturas

de “matas” e “capoeiras” surgem sempre associadas a eles. Por outro lado, as “matas” são

excludentes com relação às “pastagens”, não havendo nenhuma ocorrência de gleba que

possuísse ambas. Incompatibilidade que não ocorre com as capoeiras, já que das 16 glebas

com capoeiras, em 5 elas aparecem associadas a pastos naturais. Finalmente, com relação à

composição entre matas e capoeiras, há o registro de 6 glebas que combinam ambas, 3 em

que só ocorrem matas e 10 em que só ocorrem capoeiras. [cf. MAPA 2]

10 Presumida essa falha no registro dos dados, nosso universo de amostragem passa a ser de 69 glebas, para as quais há informações completas sobre tipo de cobertura vegetal.

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MAPA 1

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112

MAPA 2

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113

Glebas de 1966 classificadas por faixas de extensão e cobertura vegetal

Faixas Número de Glebas

Glebas com

cultivos de cereais

Glebas com matas

Glebas com

capoeiras

Glebas com pasta-

gens nativas

Glebas com

criação de gado

Glebas com

"criações domes-ticas"

Área total da faixa

Percen-tual da faixa

sobre a área total do bairro

< 5 ha. 24 17 1 1 14 0 16 62,1

5%5-10 ha. 21 19 2 6 13 1 16 157,44

13%10-20 ha. 21 21 3 6 14 2 17 292,36

21%20-50 ha. 7 6 1 2 4 1 4 253,08

19%50-100 ha. 4 2 1 1 2 3 1 275,66

21%

100 > ha. 2 2 1 0 0 2 0 272,16 21%

Total 77 67 9 16 47 9 54 1312,08 100%

Observando o quadro-resumo acima, é possível estabelecer algumas correlações

entre extensão da gleba e formas de uso e cobertura vegetal das glebas. Em primeiro lugar,

nota-se a brutal descontinuidade entre o número de glebas entre as faixas que vão até 20 ha

e as restantes. Este parece ser um marco definidor da posse de formato mais tradicional, já

que todos os 10 posseiros recentes tinham posses acima desse marco. Essa faixa também

serve para separar as áreas com maior presença de capoeiras e criações domésticas (até 20

ha) daquelas em que predomina o gado (acima de 20 ha). As pastagens nativas ou naturais,

no entanto, são distribuídas de forma bastante homogênea por todas essas faixas, só

perdendo em recorrência para a presença da cultura de cereais.

Já com relação à moradia, além da gleba 115, que corresponde ao patrimônio, com a

presença de 20 casas e 17 posseiros, outras 16 glebas foram apontadas como sendo

destinadas prioritariamente para moradia, 6 delas sem qualquer cultivo. Entre estas, mais da

metade tem 6 ha ou menos, enquanto o resto não ultrapassa os 44 ha, o que contribui para

consolidar nossas hipóteses sobre a distinção entre áreas de moradia e de produção, assim

como sobre a dinâmica de diversificação espacial das posses. [cf. MAPA 3]

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MAPA 3

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115

Glebas de 1966 classificadas por faixas de extensão e cobertura vegetal

Faixas Número de Glebas

Número de casas

Número de paióis

Terras cercadas de arame farpado

Currais Área total da faixa

Percen-tual da faixa

sobre a área total do bairro

< 5 ha. 24 10 16 0 0 62,1

5%5-10 ha. 21 7 19 0 0 157,44

13%10-20 ha. 21 7 20 0 0 292,36

21%20-50 ha. 7 23 6 1 1 253,08

19%50-100 ha. 4 3 5 1 0 275,66

21%

100 > ha. 2 1 1 0 0 272,16 21%

Total 77 51 67 2 1 1312,08 100%

Ainda com relação à função de moradia, é curioso observar que nem todas as glebas

apontadas como de uso prioritário para moradia possuíam “casas”, segundo os dados

trazidos pelo levantamento. Na relação de seis dessas glebas de moradia entre as

benfeitorias citava-se apenas a presença de um ou mais paióis, que deviam se destinar

também à moradia. Mas, independentemente da menção que o levantamento fazia sobre a

destinação prioritária da gleba ser para moradia, ele registrava que, em 27 glebas existia

uma casa entre as benfeitorias e em 2 glebas existiam 2 casas. Disso resulta que no bairro

do Cangume existissem 51 casas, fora os paióis que eventualmente também poderiam servir

de moradia, caso os dados trazidos pelo levantamento de 1966 estejam corretos11. Enquanto

isso, as áreas cercadas de arame farpado eram raríssimas (apenas dois registros, justamente

nas faixas de áreas mais extensas, onde também se localizam os criatórios de gado) e só há

menção a currais em um único caso.

11 Se somarmos essas 51 casas com pelo menos mais seis paióis (caso das glebas em que, apesar de não se registrarem casas, indica-se o uso prioritário para moradia), chegaremos ao número de pelo menos 57 residências de posseiros no Cangume para o ano de 1966.

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Há um confronto, porém entre os dados do relatório de 1966 e a memória da

população do Cangume em um ponto de grande relevância, no que diz respeito às

benfeitorias existentes à época. Trata-se da presença de monjolos, moendas e farinheiras,

tanto no interior do patrimônio quanto nas áreas de plantio mais próximas dele. Os atuais

moradores mais velhos são capazes de localizar com absoluta precisão a localização desses

aparelhos hoje todos desaparecidos, assim como identificar seus proprietários e a forma de

acesso a eles, conforme o quadro abaixo, montado a partir desses depoimentos.

Aparelhos produtivos:Aparelho Peças Proprietário Forma de acesso

1 patrimônio Coletivo1 Sitinho Coletivo1 Zeferino Familiar1 Pedro Dias dos Santos Prioritariamente familiar, franqueado ao coletivo2 Pedro Dias Monteiro Prioritariamente familiar, franqueado ao coletivo1 Leopoldino Almeida Rosa Prioritariamente familiar, franqueado ao coletivo

Monjolo

1 Geraldo Pereira Prioritariamente familiar, franqueado ao coletivoMoenda

de tração animal

1 Damião Dias Monteiro Coletivo

1 José Dias Gonçalves FamiliarMoenda de tração humana

1 Geraldo Pereira Coletivo

O uso predominante do monjolo era para a produção de farinha de milho e para

quebrar o sal, enquanto a moenda ficava dedicada ao processamento da cana de açúcar. As

farinheiras não aparecem no quadro acima porque não dispunham de locais em separado

para uso coletivo e de grande escala. Elas eram mantidas nas próprias residências, feitas de

barro e em tamanho reduzido, junto aos fogões domésticos, confeccionadas por artesãos

especializados da própria comunidade. Nesse caso, era comum que uma casa, em geral do

patriarca, servisse de referência para a produção de farinha pela família extensa.

O que chamamos de proprietários desses aparelhos, porém, eram pessoas que

tinham a posse fixa do local onde o aparelho se localizava, que provavelmente haviam

tomado a iniciativa da sua construção, mas que haviam mobilizado recursos coletivos (no

mínimo familiar) para essa tarefa, assim como, como se observa pelo quadro anterior,

franqueavam o acesso do aparelho também ao uso coletivo. Mesmo os casos em que o

acesso aos aparelhos é classificado apenas como familiar, os informantes lembram que essa

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restrição de acesso se devia mais à distância que o aparelho ficava situado com relação ao

patrimônio e às dificuldades de acesso e transporte dos gêneros, do que a uma real restrição

de uso.

No campo do artesanato, o Cangume dispunha de uma larga produção de esteiras de

dormir, cestos de cipó, taquara e palha, além de panelas e potes de barro, que servia não só

ao uso da coletividade, mas também era exportado para alguns bairros vizinhos. Por meio

de entrevista com uma afamada paneleira nascida no bairro12, mas atualmente moradora de

um bairro vizinho, foi possível recuperar uma lista de antigos paneleiros e paneleiras, já

todos mortos:

BeneditaAndrezaVelha ConstânciaJacintaInáciaDianaJúlia Monteiro (além das panelas: “blocos”)João Monteiro (além das panelas: fornos domésticos e de farinha)

O comércio desses artefatos, porém, não parece ter alcançado autonomia com

relação à produção agrícola e animal, mantendo-se como uma complementação de renda de

pequena escala. Indicativo disto é o fato desses artesãos do Cangume não explorarem

extensivamente o mercado urbano formado por Itaóca, que só era atendido por meio de

encomendas individuais, que deveriam buscar o produto no próprio bairro.

A importância da presença desses aparelhos está ainda em eles apontarem a

capacidade de autonomia relativa do grupo com relação aos mercados externos gêneros

processados, como a farinha de milho, a farinha de mandioca e o melado. Isso somado ao

cultivo diversificado de gêneros, ao criatório de animais como galinhas e porcos (incluídos

no que o relatório de 1966 denomina como “criatório doméstico”), à presença de diversos

artesãos, permitia que o bairro fosse autônomo com relação a quase todas as suas

necessidades básicas

12 Dona Cianinha tem uma oficina no bairro do Gurutubinha que faz parte do roteiro turístico que começa a ser promovido pela municipalidade. Suas peças já foram expostas diversas vezes em São Paulo, Brasília e, no Rio de Janeiro, teve uma exposição individual na Sala do Artista Popular do Museu do Folclore.

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4.2.2. Os posseiros

Os dados levantados no relatório de 1966 nos permitem traçar um esboço de

demografia do Cangume de quase 40 anos passados. Por meio dele é possível identificar a

existência de 78 posseiros, distribuídos por 77 glebas que podiam estar sob posse individual

ou “comum”. Descontando-se a presença de posseiros celibatários, é possível ainda estimar

a existência de 52 famílias ocupando o bairro, formadas por chefes de família com média

de idade em torno dos 40 anos. A distribuição desses chefes pelas cinco faixas etárias da

tabela a seguir revela uma pirâmide bastante equilibrada, que começa muito jovem,

envelhecendo pouco. Infelizmente o relatório não fornece informações sobre os demais

moradores do bairro.

Relação dos posseiros do Cangume por idade e estado civilEstado civilFaixas de idade No. de

posseiros Casados viúvos solteirosSem informação 34* 13 1 2

17 – 29 anos 9 5 0 430 a 39 anos 10 9 0 140 a 49 anos 9 9 0 050 a 59 anos 11 9 2 060 a 64 anos 5** 4 0 0

Total 78 52 famílias*** 6* 17 posseiros de glebas individuais e 17 posseiros da “gleba em comum” (no. 115), para os quais não há informação sobre estado civil.** Sem informação sobre um posseiro.*** 49 casados e 3 viúvos.

Para entender a distribuição dos posseiros e suas famílias pelas 77 glebas

relacionadas é necessário partir da distinção fundamental entre o a gleba 115, o

“patrimônio”, e o restante das glebas. Como registra o próprio relatório, a gleba 115

É uma gleba em comum na qual residem e possuem suas casas em lotes mínimos aproximadamente 20 cidadãos, que mantêm além de seus sítios onde trabalham em outros lugares, o seu comércio através de lojas (Relatório PPI, processo 33606).

A extensão desta gleba é de aproximadamente 37 ha., tendo por benfeitorias "... uma

Igreja, um campo de futebol, praças públicas etc.", habitada por 17 posseiros “em comum”

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(apesar do texto falar de 20 chefes de família), que são relacionados nominalmente nesta

ordem:

1. Damião Dias Monteiro;2. Amâncio Gonçalves de Carvalho;3. Virgínia Gonçalves;4. Lourenço Dias Monteiro;5. Evaristo Gonçalves;6. Julião Gonçalves;7. Gregório Gonçalves;8. Benedito Salomão Dias;9. Catarino Gonçalves;10. Casemiro Gonçalves;11. Raimundo Gonçalves;12. Vitório Dias Monteiro;13. Martinho Rodrigues de Lima14. Ricardo Dias dos Santos;15. Lutero Dias Monteiro;16. Pedro Dias;17. Marcos Gonçalves.

Não há registro desses nomes nas listas de antigos posseiros que venderam seus

direitos de posse para moradores mais recentes. Oito ou nove13 deles, no entanto, são

relacionados como titulares de mais uma ou duas glebas individuais ou em comum:

Evaristo, Martinho e Ricardo, por exemplo, além de ocuparem a gleba 115, ocupam, cada

um, uma gleba individual. Catarino, Benedito e Raimundo ocupam duas glebas individuais

cada. Julião ocupa uma gleba em comum e Gregório duas glebas individuais e uma gleba

em comum. Nenhuma dessas glebas, porém, era de grande extensão, variando entre 0,36 ha

e 16,25 ha., o que levava a uma média de menos de 7 ha. por gleba. Média bastante inferior

à média geral do bairro, de 17 ha, e muito menor que a média geral de todo o 46o perímetro,

que era de quase 35 ha. Eram posses destinadas ao cultivo e ao criatório, cuja função era

completar a posse residencial, localizada no interior da gleba 115.

13 Há uma dúvida quanto ao registro de Pedro Dias, que aparece na gleba 115. Não é possível verificar se ele é o mesmo Pedro Dias dos Santos das glebas 114 e 120, se é o Pedro Dias Monteiro da gleba 149 ou se se trata de uma terceira pessoa.

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Além destes oito ou nove posseiros, há outros 14 que, não estando relacionados na

gleba 115, aparecem como titulares de mais de uma das outras 76 glebas, seja de modo

individual ou “em comum”.

Posseiros tradicionais com mais de uma glebaA = Nome do posseiro B = Estado civilC = Idade

D = Residente no local?E = Número da Gleba

F = Pedido de legitimação da posseG = Legitimação concedida

H = BenfeitoriasI = Área (ha.)J = Soma das posses por posseiro

A B C D E F G H I JAcácio Maciel de Pontes casado 45 Sim 176 Não Não não 16,84

138 Não Não Sim 2,4 19,24Argemiro da Silva Rosa solteiro 20 Sim 110 Não Não Sim 10,25

152 Não Não Sim 8,75 19Benedito Salomão Dias casado 0 Sim 133 Não Não Sim 3,2

161 Não Não não 4,9 8,1Catarino Gonçalves casado 41 Sim 147 Não Não Sim 10,85

181 Não Não não 5,2 16,05Evaristo Gonçalves casado 40 Sim 146 Não Não Sim 16,25

180 Não Não não 8,71 24,96Francisco Dias Monteiro solteiro 25 Sim 117 Não Não Sim 3,2

165 Não Não Sim 4,78 7,98Gonçalo Silva casado 37 Sim 153 Não Não não 18,64

165 Não Não Sim 18,7 37,34Gregório Gonçalves casado 51 Sim 143 Não Não Sim 5

175 Não Não Sim 11,3 16,3José Dias Monteiro casado 30 Sim 116 Não Não Sim 3,6

132 Não Não não 10174 Não Não não 12,4 26

José Gonçalves de Pontes casado 60 Sim 142 Não Não Sim 3,2160 Não Não não 5

(em comum)14 141 Não Não Sim 9,62Julião Gonçalves (em comum)15 casado 35 Sim 139 Não Não Sim 10,8 28,62Pedro Dias dos Santos casado 23 Sim 114 Não Não não 15,35

120 Não Não Sim 4,75 20,1Raimundo Gonçalves casado 49 Sim 119 Não Não não 0,36

137 Não Não não 3,7 4,06Samuel Monteiro solteiro 24 Sim 118 Não Não Sim 6,4

14 Terra "ocupada em comum", pelo titular desta ficha com Gregório Gonçalves, sem inf. sobre idade, casado, nascido e residente no local, com posse trintenária, adquirida por herança.15 Apesar de só ser citado uma vez, a gleba registrada em nome de Julião Gonçalvez foi iuncluída nessa lista pelo relatório registrar que ela era "ocupada em comum" com José Gonçalves de Pontes que também tem posse sobre as glebas 142 e 160 (individualmente) e 141 (em comum).

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124 Não Não não 3,25 9,65Sebastião Gonçalves casado 54 Sim 134 Não Não Sim 3,46

148 Não Não não 34,9151 Não Não não 14,4 52,76

Sebastião Gonçalves Rosa casado 56 Sim 136 Não Não Sim 6,5159 Não Não não 6,06 12,56

Siriaco Carriel de Lima casado 28 Sim 167 Não Não Sim 5,75177 Não Não não 8 13,75

Vitorino Dias Monteiro casado 39 Sim 128 Não Não Sim 1,7131 Não Não não 3,3 5

Área total 321,47Número de glebas 38Número de posseiros 17Fonte: Processo 33606 (relativo à Ação Discriminatória do 46o perímetro de Apiaí) da Procuradoria do Patrimônio da União – PPI, 1966.

A extensão delas variava entre 4 ha e quase 53 ha, alcançando uma média maior que

aquela formada pelas posses duplicadas dos moradores do “patrimônio”. Ainda assim,

porém, elas alcançavam uma média baixa, de aproximadamente 19 ha. Temos, portanto, 22

ou 23 posseiros e 38 glebas (mais da metade do total) partilhando de um padrão de

apossamento que implicava em uma distribuição do esforço familiar por mais de uma gleba

de dimensões reduzidas. Não se tratava, portanto, no caso dessas segundas e terceiras

posses, de algum tipo concentração fundiária, mas de diversificação espacial, que permitia

uma mesma família ter acesso a mais de uma região, sem que isso implicasse em

significativo acúmulo territorial. Essa forma de apossamento cobria quase 360 ha dos 1.312

ha do bairro e, se descontarmos a área ocupada pelos posseiros recém-chegados (623 ha),

de que falaremos a diante, esse padrão de apossamento correspondia a mais de 50% da área

ainda sob domínio dos posseiros tradicionais.

Essa imagem, porém, ainda é apenas uma simplificação. Recorrendo à memória dos

atuais moradores, filhos e netos daqueles que foram relacionados em 1966, observamos que

o apossamento das terras do bairro não era tão bem delimitado e fixo quanto o relatório de

1966 faz crer. Tais apossamentos respondiam, antes, a dinâmicas definidas pela

combinação entre fatores como a disponibilidade familiar e ecológica, variáveis

impossíveis de serem registradas por um levantamento que concebia a posse apenas como

uma forma não-regularizada da propriedade. De fato, a posse não pode ser imaginada como

uma propriedade à qual faltam os documentos. Ela implica em uma relação diferente com a

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terra, com a família, com a vizinhança e com a produção agrícola. Vejamos alguns

exemplos.

Damiano Dias Monteiro (1881-1966), por exemplo, a pessoa de maior destaque

público do Cangume, inspetor de quarteirão que também assumia a função de receber e,

eventualmente, hospedar as pessoas chagadas de fora, era pai de uma extensa família,

formada por cinco filhos e três filhas casados no próprio bairro. Quando o levantamento foi

realizado, ele ainda desempenhava o papel de aglutinador familiar, de forma que seus filhos

e genros, apesar de suas famílias constituídas, continuavam trabalhando em comum, sob

sua orientação. Assim, ainda que cada nova família formada no interior da família do

Damiano pudesse ter seu próprio trecho de roça e suas próprias criações, isso não

demarcava uma separação clara com relação às posses do patriarca, em cujas roças todos

trabalhavam conjuntamente. Todos “plantavam juntos”, como lembra um de seus filhos. No

momento da demarcação, no entanto, Damiano avaliou que, provavelmente em função do

avançado da idade, seria melhor que as terras utilizadas pela família não fossem registradas

em seu nome, mas apenas no nome de seus filhos. Assim, ele ficou registrado apenas na

gleba 115, enquanto seus filhos se distribuíram como titulares parcelados dos trechos em

que até então “plantavam juntos”, como se vê do esquema abaixo (onde os números

correspondem às glebas tituladas em nome dos filhos e genros):

Quadro (1) da relação entre parentesco e uso comum da terra

Outro exemplo é a família de Geraldo Nicolau Pereira (*), onde também o patriarca

“plantava junto” com dois filhos e mais um genro, repartindo em trabalho comum, os

quatro trechos em que suas posses seriam repartidas. Geraldo ficou sem gleba registrada em

seu nome pelo mesmo motivo que o de Damiano. Nesse caso, porém, não há qualquer

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registro do patriarca na gleba 115 por ele ter casa na gleba que ficou com um dos seus

filhos (146). Outro filho da família, o Júlio (**) também ficaria fora da titulação porque na

época havia saído para trabalhar fora, ainda que mantivesse uma casa junto à do seu pai

(146):

Quadro (2) da relação entre parentesco e uso comum da terra

Assim seguem-se outros exemplos que repetem o mesmo padrão de posse em

comum (traduzido na recorrente expressão “plantavam junto”) que ficaram invisíveis ao

levantamento de 1966. Esse padrão definia áreas de posse familiar que, em lugar de se

traduzirem em extensões contínuas, desenhavam apossamentos espacialmente

descontínuos, como arquipélagos. O trabalho de “medição das terras”, orientado pelo

objetivo de transformar as posses em propriedades, rompeu com esse padrão, trazendo a

posse da família para o indivíduo. Mesmo que, como vimos nos parágrafos anteriores,

traços importantes desse padrão tenham se perpetuado temporariamente, a ação

discriminatória operou congelando como em um retrato, um momento daquela dinâmica

territorial. Fixou em pedaços bem definidos, estáticos e individualizados (os irmãos

passavam a ser titulares de trechos separados) o movimento de apossamento familiar do

bairro. Assim, o relatório de 1966 não nos apresenta qual era a estrutura fundiária do

Cangume, mas apenas um momento do permanente rearranjo territorial que definia tal

estrutura fundiária. E o problema surge exatamente aí, quando o retrato acaba por

conformar a realidade, impondo-lhe sua fixidez.

Finalmente, como último item dessa análise das posses e dos seus posseiros, temos

que distinguir entre dois tipos de posseiros: aqueles que privilegiamos até agora e que

chamamos “tradicionais” e aqueles que, tendo chegado a partir de meados dos anos de

1950, constituíram suas posses por meio da compra dos direitos dos posseiros tradicionais.

Apenas 10 glebas (menos de 15% das 77 totais) estavam, em 1966, sob o domínio de nove

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posseiros nascidos fora do bairro. Se descontarmos deste total os dois posseiros originários

de Itaóca que tinham uma gleba em “posse comum”, por já a habitarem há 40 anos16 e a

terem adquirido por herança, nós temos um total de apenas sete posseiros recentes e nove

glebas fora do domínio de antigas famílias do local, chegados em períodos que recuam de

dois a 10 anos (com concentração em 4 anos). Três destes sete posseiros recentes não

habitavam o próprio bairro, dois deles morando em Itaóca e um em Apiaí.

Apesar de sua pouca expressão numérica, as posses desses posseiros correspondiam

a 47,5 % (623,15 ha.) da extensão considerada aqui, com uma média elevada de hectares

por gleba: quase 70 ha. Ou seja, o dobro da média do perímetro e mais de sete vezes a

média do conjunto de tradicionais habitantes do bairro, que não chegava aos 10 ha.

Coerentemente com isso, o relatório aponta a presença do criatório de gado em sete dessas

10 glebas, indicando desde esta época a direção em que a estrutura agrária local estaria se

transformando ao longo dos anos seguintes: concentração fundiária e conversão da cultura

de “cereais” e “criatórios domésticos” em criatório de gado. Ela aponta também para o

padrão migratório que estará na base desta transformação, já que dos cinco posseiros

recentes que relatório identifica a origem e que vinham de fora do estado de São Paulo, três

eram do Paraná e dois de Minas Gerais.

A força desse processo de concentração fundiária pode ser avaliado também por

meio dos dados que o relatório traz sobre duas das maiores glebas recentemente adquiridas,

para as quais registra o nome dos antigos posseiros. Observamos, então, que a gleba no.

106, de 158 ha., foi construída pela compra dos direitos de posse de oito posseiros,

enquanto a gleba de no. 107, de 113 ha, foi criada pela compra dos direitos de posse

(sempre trintenários) de nove posseiros. Na primeira delas a média de tamanho das posses

anteriores era de menos de 20 ha., enquanto na segunda era de pouco mais de 12,5 ha.

Finalmente, é preciso observar também as distinções internas a esses posseiros

recentes. Excetuando-se os dois posseiros da gleba em comum que parecem ser de famílias

do próprio bairro, dentre os outros sete posseiros recentes, dois haviam conseguido suas

posses por meio do casamento com uma herdeira direta das posses trintenárias, enquanto os

16 É provável que ambos sejam “filhos” do bairro irmãos entre si. Eles têm o mesmo sobrenome e um deles tem 40 anos de idade e o outro 55, ou seja, o primeiro chegou recém-nascido e outro muito jovem ao bairro, talvez pelo retorno de uma família originária do local.

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outros cinco as teriam adquirido por compra. Três dessas compras haviam sido escrituradas

em cartório, como “cessão de direitos possessórios”, enquanto duas, justamente aquelas

realizadas mais recentemente (dois anos) e pelo mesmo comprador, não tinham sido

legalizadas de qualquer forma, contando apenas com recibos simples.

4.2.3. A despossessão

É preciso ter em conta o quanto tal processo, aparentemente tão linear e

formalizado, deixou margens de manobra para aqueles que tinham interesse não em fazer

legitimar posses já existentes, mas amplia-las ou mesmo cria-las a partir do nada. É nesse

sentido que ganham relevância dois depoimentos sobre a observação direta e em campo,

desse processo que recuperamos por meio de entrevista e de documentos.

Há sobre isso, um interessante testemunho localizado nas caixas de documentos

referentes à Ação discriminatória do 46o perímetro. Trata-se de um texto de uma folha,

assinado pela Juíza Angélica Capasso17, no qual ela registra o impacto que o processo de

regularização teve sobre a população mais pobre, que buscava regularizar suas posses. O

documento é curioso por não ser dirigido a qualquer outra instância administrativa, órgão

do estado ou pessoa, por não ser nem uma declaração, nem um ofício, nem uma decisão e

por não ter qualquer outro objetivo manifesto a não ser o simples registro, como em um

trecho solto de um diário pessoal, daquilo que surpreendia a juíza no exercício de suas

funções, no decorrer da Ação Discriminatória. Por isso, também, o documento parece não

ter tido qualquer efeito prático, a não ser o de perpetuar as impressões da juíza, para que

hoje pudéssemos partilhar um pouco delas.

Ele porém, é muito significativo por relatar como as etapas, instrumentos e

mecanismos de regularização fundiária tenderam fortemente a excluir os pequenos

posseiros e, mais do que isso, a submete-los aos riscos da desinformação, deixando-os à

mercê da especulação e da desonestidade dos bem-informados, mesmo ou justamente

quando conseguiam regularizar suas posses:

17 Uma cópia do documento original encontra-se em anexo.

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Procuradoria do Patrimônio ImobiliárioC a r t ó r i o

Fatos curiosos e dolorosos pude observar e conhecer através dos contatos que mantive com os posseiros.

As dificuldades que tiveram que enfrentar, por falta de meios de transporte para poderem chegar a Apiaí, dada à distância em que se encontram suas terras, como também a falta de meios pecuniários para se locomoverem. Muitos deles foram obrigados a vender suas colheitas antes do prazo, para obterem o numerário necessário ao pagamento das Texas, como também para despesas de sua viagem, sempre realizada sob as mais precárias condições. Outros, por não terem conseguido dinheiro para transporte, viajaram noite e dia a pé, pois apenas possuíam o necessário para pagar as taxas.

A situação de vida dessa população rural chega a ser chocante e o seu atraso no conhecimento dos seus direitos e obrigações é de merecer compadecimento. Posso citar o caso de uma senhora idosa que, gozando da isenção do pagamento de taxas, julgava que, só porque pagava apenas as estampilhas, teria reduzida as dimensões da área que lhe foi conferida. Também surgiram os espertos que, procurando ludibriar a boa fé alheia, queriam comprar as propriedades doadas, oferecendo quantias irrisórias.

São Paulo, 2 de junho de 1966Angélica Capasso

Observamos, assim, a corrida de obstáculos que os posseiros deveriam percorrer:

eram incorretamente informados sobre as condições e circunstâncias da regularização

(muitas vezes pelos próprios responsáveis pelos trabalhos locais da PPI); tinham de

providenciar recursos extras, em um contexto em que prevalecia a economia de

subsistência de baixíssima circulação monetária; deveriam percorrer longas distâncias, em

uma época em que eram precários os caminhos e o transporte era um serviço raro; e,

superados esses obstáculos, deveriam resistir à pressão de um mercado especulativo

nascente. Apesar de sucinto, o texto registra de forma viva esse último tema, relativo à

venda de terras recém regularizadas por “quantias irrisórias”, como um efeito da instalação

de um mercado de terras na região, que os posseiros “trintenários” (como eram

classificados genericamente) não tinham condições de apreender. Se o mercado de gêneros

era insipiente na região rural de Apiaí, o que dizer dessa novidade representada pelo

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mercado de terras, que lançava mão de uma valorização das terras do local18 que era pouco

perceptível para seus próprios moradores?

Torna-se mais fácil compreender esse processo quando nos damos conta de sua

generalidade19. A monografia de Queiroz (1983: 68-80) sobre Ivaporunduva já identificava

um processo semelhante de expropriação fundiária que não era estancada, mas ao contrário,

instrumentalizada pela chamada regularização fundiária das terras devolutas. Apesar das

particularidades daquela situação, ali também o autor identificava o processo de rápida

valorização das terras no final dos anos de 1960 como motivação fundamental da compra e

venda de “direitos” de posse a preços irrisórios que transformava posseiros em excedente

de mão de obra para a instalação das fazendas de gado e outros empreendimentos

emergentes. Naquele caso, a existência da uma “terra da Santa” desempenhou função

semelhante a que vimos o “patrimônio” desempenhando para o caso do Cangume: reserva

de um chão de morada e de criatório de pequeno porte que permitia uma margem de

sobrevivência mínima aos moradores que iam se desfazendo de suas glebas

individualizadas.

Algo semelhante é descrito no caso de outra comunidade recentemente reconhecida

como remanescente de quilombos no Vale do Ribeira. A mesma Ação Discriminatória que

atingiu o Cangume fez sentir seus efeitos sobre a comunidade de Praia Grande (Iporanga)

em 1969. Nesse caso, no entanto, a agressividade dos especuladores imobiliários fez com

que eles se mobilizassem não só depois da titulação, mas ao longo do próprio processo de

delimitação de glebas individuais. Por ter marcado fortemente a memória do grupo, é

possível, recorrendo a seus depoimentos (Scalli dos Santos, 2002: 39-41), sumariar o

processo em seus traços mais genéricos. Em primeiro lugar, a Discriminatória também

encontrou no local uma terra comum (“tudo da Curimbada”), que foi fracionada em glebas

18 Note-se que a estrada ligando Apiaí a Itaóca foi construída entre 1949 e 1950.19 De fato, o maior efeito dos projetos elaborados a partir dos anos de 1930 para o Vale do Ribeira parece ter sido a especulação imobiliária e os conflitos fundiários decorrentes dela. Gricoli Iokoi (1995) registra ambos por meio de notícias de jornais de época que tanto anunciavam as políticas de incentivo dos projetos de desenvolvimento (Iokoi, 1995: 68 - FSP 26.04.71 / 29.04.71 / 22.10.71), quanto os conflitos na região (pg. 88-89: FSP 22.10.78 e pg. 90-91: Isto É 26.04.80). Nessas matérias diz-se que apenas 40% das terras do Vale do Ribeira eram tituladas em 1978 e que entre o início e o fim dos anos 70 tais terras, depois de tituladas,valorizaram em mais de 10 vezes (de Cr$ 1.500, 00 para 20.000,00 o alqueire). Em 1980, anunciava-se que, desde 1977, em função das pressões sobre suas terras (que teriam expulsado cerca de 2000 famílias de suas terras), os trabalhadores da região criaram nove associações de moradores.

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individuais (“Depois que veio esse negócio de terra [e] cada um vai ser titulado no lugar

onde ficava, cada um tirava um pouco de terra”). Esse fracionamento, porém, talvez por

trabalhar com base em módulos fixos ou simplesmente em função de distorções

interessadas por parte do engenheiro responsável, acabou deixando de contemplar alguns

dos moradores, que ficaram sem terras. Nesse caso a Ação Discriminatória foi instrumento

de expropriação direta.

Mesmo no caso dos contemplados, porém, foi comum que os responsáveis pela

demarcação forçassem a definição de glebas menores que aquelas ocupadas pelos

moradores, sob o argumento dos altos impostos que teriam que pagar por elas (“ ‘Ah! Se

ficar com mais de dez alqueires você vai pagar um imposto danado’. Amedrontando todo

mundo: ‘Você não vai conseguir pagar’”). Oura estratégia da equipe de demarcação foi

forjar provas de domínio de terceiros, assim como documentos de compra e venda de

pessoas mortas muitos anos antes. E, finalmente, outra estratégia de desapropriação da

comunidade da Praia Grande se deu no momento de registro dos títulos. Alguns dos que

conseguiam ultrapassar as barreiras descritas até aqui, acabaram sendo lesados por pessoas

que, se dizendo amigos e lançando mão do analfabetismo do grupo, se prontificaram em

registrar os títulos dos moradores, mas acabaram os deixando sem registro ou mesmo

registrando em seu próprio nome.

No caso do Cangume a expropriação não parece ter se dado tanto no processo de

demarcação e registro das terras, quanto por meio do mercado que se abriu com a repartição

das terras em unidades comercializáveis. Esse mercado parece ter sido dominado

inicialmente por um morador do bairro do Boavas, mas originário de Minas Gerais,

chamado Zitão. Ele foi responsável por boa parte das terras vendidas pelos moradores do

bairro e talvez por todas as que foram vendidas logo nos primeiros anos depois da titulação.

Foi ele quem comprou, por exemplo, as terras vizinhas tituladas em nome de Raimundo,

Nhá Mélia (Amélia), José Monteiro, José Gorgonho e Julião Gorgonho. Tratava-se de um

grupo que usava a terra em regime de uso comum. Logo depois de adquirir destes, Zitão as

repassou para Jonas Mendes, antes mesmo de pagar a todos os moradores, alguns dos quais

só receberam depois do Zitão já ter recebido do Mendes. Um dos atuais moradores lembra

que, aos que se recusavam a vender, mesmo diante da pressão que impunha, Zitão dizia “eu

hei de ver ainda os bois tirando barranco da casa de vocês”, ou “... batendo cabeça na porta

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de vocês”. E de fato, a competição entre o pasto e a roça se tornou insuportável para esta

última, com o avanço dos bois e o progressivo isolamento da população que, aos poucos ia

perdendo seus vizinhos. Boa parte dos moradores vendeu seus direitos de posse por

dificuldades com a saúde ou em função das dívidas contraídas nas vendas de Itaóca, que

depois da titulação passaram a ser cobradas com maior pressa pelos comerciantes, enquanto

conhecidos seus se apresentavam aos moradores oferecendo tais valores em troca dos seus

títulos.

4.3. Considerações finais: gênese do mercado de terras

A forma de apossamento livre e coletivo das terras de uso comum do Cangume só

se alterou depois da titulação das terras, no final dos anos 60. A data relativamente recente

permite-nos recorrer com segurança à memória dos moradores mais velhos de hoje para

reconstituir esse processo e seus efeitos imediatos, da mesma forma que nos serviu de apoio

à leitura dos dados levantados no relatório técnicos de 1966.

A soma de relatos e da leitura dos dados levantados na Ação discriminatória

permitem caracterizar o ordenamento histórico do Cangume como uma seqüência de três

segmentos espaciais concêntricos, cuja distinção tem implicações na forma de apossamento

da terra e na forma de trabalhar a terra, inclusive no que diz respeito à divisão sexual do

trabalho. Além disso, vimos como a caracterização dos limites externos desse território, o

círculo mais amplo e mais distante do bairro do Cangume, além de ser trabalho atribuído à

coletividade implicava não só no reavivamento físico dos limites entre bairros, como

também na atribuição de funções de estado a um tipo de liderança caracteristicamente

tradicional. A produção da fronteira territorial, assumia, assim, as funções de permanente

reafirmação dos encargos coletivos no trato desse território, ao mesmo tempo que na

formalização de uma organização política para esse grupo.

Buscando uma descrição mais íntima desse ordenamento, apoiados no confronto

entre memória coletiva e documentos disponíveis, foi possível estabelecer algumas

hipóteses sobre a dinâmica que regia o uso comum da terra. Destaque-se, em primeiro

lugar, como o retrato traçado pela Ação Discriminatória deve ser percebido como uma

falsificação dessa dinâmica, na medida em que, justamente por impor às posses familiares a

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lógica da propriedade, nos fornece uma imagem fragmentada e individualizada de um

conjunto dinâmico e móvel de apossamentos. Mais do que isso, essa imagem se impôs

como realidade de fato, esfacelando o sistema anterior que a ação discriminatória apenas

aparentemente refletia. A transformação de um momento do apossamento em um relação

de propriedade engessou as estratégias tradicionais de circulação territorial e alternância no

uso do tempo, do espaço e da força de trabalho familiar, abrindo caminho para a

mercantilização da terra e a expropriação daqueles posseiros.

Por fim, talvez não seja demais alertar para o fato de que o esforço de utilizar os

dados da Ação Discriminatória, úteis para apreender tais aspectos da dinâmica territorial,

não devem levar a supor que o perímetro traçado pela soma das glebas com que

trabalhamos traduzam os limites da ocupação histórica do grupo, que estão na base de sua

reivindicação atual. Estes devem ser buscados nos limites a que nos referimos no item

relativo à “roçança dos caminhos” e que tinham o papel de delimitar o espaço de uma auto-

atribuída unidade social, traduzida pelo trabalho coletivo de manutenção dos caminhos,

assim como pela obediência a uma determinada autoridade moral, representada pelos

inspetores de quarteirão.

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ANEXO 1: Atos administrativos de nomeação de Inspetores de Quarteirão

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ANEXO 2: Quadro-resumo das informações da Ação Discriminatória do 46o perímetro de Apiaí, 1966.

A = Número da GlebaB = Há cultivos de cereais?C = Há matas?D = Há capoeiras?E = Há pastagens nativas?

F = Há criação de gado?G = Há "criações domésticas"?H = Número de casasI = Número de paióisJ = Outras benfeitorias

K = Gleba de moradia?L = Extensão da área ocupada em hectares (ha.)M = Banhada pelas águas do:

N = Segunda posse do mesmo posseiro?O = Observações

A B C D E F G H I J K L M N O103 Sim Não Sim Sim Não Sim 1 3 Não 16,00 Rio Santo

AntônioNão

104 Sim Sim Sim Não Não Sim 1 Não 27,56 Rio Santo Antônio

Não

105 Sim Não Não Não Não Sim 1 1 Não 9,34 Rio Santo Antônio

Não Casa de telha

106 Sim Sim Não Não Sim Não Não 158,66 Rio Jacutinga

Não Não há indicação do tempo de ocupação, mas ela é posterior ao "arrolamento no percurso prévio".

107 Sim Não Não Não Sim Não 1 1 Não 113,50 Rio do Meio Não O tempo de posse indicado é do grupo de herdeiros de quem o atual proprietário comprou o direito de herança há 4 anos.

108 Sim Não Não Sim Não Sim 1 Não 13,30 Rio do Meio Não109 Sim Não Sim Não Não Sim 1 Não 6,05 Rio do Meio Não Casa de barro coberta de telha110 Sim Não Sim Sim Sim Sim 1 1 Não 10,25 Rio do Meio Não Do mesmo posseira da gleba 152. Casa de telhas.152 Sim Não Sim Sim Sim Sim 1 1 Não 8,75 Rio do Meio Sim Do mesmo posseira da gleba 110. Casa de telhas.111 Não Não Não Sim Sim Não 1 Terras

cercadas de arame farpado.

Não 53,25 Rio do Meio Não Os direitos possessórios foram adquiridos de Alcides da Silva Barros, que adquiriu dos herdeiros originais.

112 Não Não Não Não Sim Não 1 Terra cercada de arame farpado.

Não 64,18 Córrego da Bulha

Não Do mesmo posseiro da 129.

129 Não Não Não Sim Não Sim 1 Sim 1,40 Córrego da Bulha

Sim Uso principal para moradia. Do mesmo posseiro da gleba 112.Também há criação de aves.

113 Sim Não Não Sim Sim Não 1 Currais e cercas de arame farpado em toda a propriedade

Sim 44,00 Córrego da Bulha

Não Do mesmo posseiro da gleba 121

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121 Sim Não Não Sim Sim Não 3 Não 15,43 Córrego da Bulha

Sim Do mesmo posseiro da gleba 113

114 Sim Não Não Sim Não Sim 0 0 Não 15,35 Córrego da Bulha

Não

120 Não Não Não Não Não Sim 1 1 Sim 4,75 Córrego da Bulha

Sim

115 Não Não Não Não Não Não 20 0 "... uma Igreja, um campo de futebol, praças públicas etc."

Sim 37,00 Córrego do Cangume

Sim "É uma gleba em comum na qual residem e possuem suas casas em lotes mínimos aproximadamente 20 cidadãos, que mantêm além de seus sítios onde trabalham em outros lugares, o seu comércio através de lojas."" O local é conhecido pelo nome 'patrimônio do cangume'."Não há informações sobre origem da posse ou se há cultivos etc.Lista dos posseiros em comum:Damião Dias Monteiro; Amâncio Gonçalves de Carvalho; Virgínia Gonçalves; Lourenço Dias Monteiro; Evaristo Gonçalves; Julião Gonçalves; Gregório Gonçalves; Benedito Salomão Dias; Catarino Gonçalves; Casemiro Gonçalves; Raimundo Gonçalves; Vitório Dias Monteiro; Martinho Rodrigues de Lima Ricardo Dias dos Santos; Lutero Dias Monteiro; Pedro Dias; Marcos Gonçalves.Apesar do documento falar em 20 posseiros, só faz a lista de 17.

116 Sim Não Não Não Não Sim 1 1 Sim 3,60 Córrego do Cangume

Não

132 Sim Não Não Não Não Sim 0 0 Não 10 Córrego do Cangume

Sim

174 Sim Não Não Não Não Sim 0 0 Não 12,40 Sim Não tem água. Terceira posse do lavrador.117 Sim Não Não Sim Não Não 0 1 Não 3,20 Córrego do

CangumeNão

118 Sim Não Não Sim Não Não 0 2 Não 6,40 Córrego do Cangume

Não

124 Sim Não Não Sim Não Não 0 0 Não 3,25 Córrego do Sitinho

Sim

119 Não Não Não Não Não Sim 0 0 Sim 0,36 Córrego do Cangume

Não

137 Sim Não Sim Não Não Não 0 0 Não 3,70 Córrego do Sitinho

Sim

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Sitinho122 Não Não Não Não Não Não 0 1 Sim 1,20 Córrego do

CangumeNão

123 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 3,00 Córrego do Sitinho

Não

125 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 1,65 Córrego do Sitinho

Não

126 Sim Não Não Sim Não Sim 1 1 Não 1,20 Córrego da Bulha

Não

127 Sim Não Não Não Não Sim 1 1 Não 1,83 Córrego da Bulha

Não

128 Sim Não Não Sim Não Sim 1 1 Não 1,70 Córrego da Bulha

Não

131 Sim Não Não Sim Não Sim 0 0 Não 3,30 Córrego da Bulha

Sim

130 Sim Não Não Sim Não Sim 2 1 Não 3,30 Córrego da Bulha

Não

133 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Sim 3,20 Córrego da Bulha

Não

161 Sim Sim Não Não Não Não 0 0 Não 4,90 Não Desprovida de água134 Não Não Não Não Não Não 1 1 Sim 3,46 Córrego da

BulhaNão

148 Sim Não Sim Não Não Não 0 0 Não 34,90 Córrego da Lage

Sim

151 Sim Não Sim Não Não Não 0 0 Não 14,40 Rio do Meio Sim Terceira Posse do lavrador.136 Sim Não Não Sim Não Sim 1 1 Sim 6,50 Córrego do

SitinhoNão

159 Sim Sim Sim Não Não Não 0 0 Não 6,06 Sim Rara situação em que o texto cita explicitamente o cultivo milho e feijão.Não possui água.

138 Sim Não Não Sim Não Sim 0 2 Sim 2,40 Córrego do Sitinho

Não Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

176 Sim Sim Sim Não Não Não 0 0 Não 16,84 Córrego da Bulha

Sim Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

139 Sim Não Não Sim Não Sim 1 1 Não 10,80 Córrego do Sitinho

Não Terra "ocupada em comum".Pelo titular desta ficha mais: José Gonçalves de Pontes, 60 anos, sem inf. Sobre estado civil, nascido e residente no local, com posse trintenária, adquirida por herança. JGP também possui individualmente as glebas 142 e 160 e em comum a gleba 141.

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141 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 9,62 Córrego do Cangume

Não Terra "ocupada em comum", pelo titular desta ficha mais: Gregório Gonçalves, sm inf. sobre idade, casado, nascido e residente no local, com posse trintenária, adquirida por herança. JGP Tamém possui em comum a gleba 139 e individualmente, as glebas 142 e 160.

142 Sim Não Não Sim Não Sim 1 0 Sim 3,20 Córrego do Gurutuba

Não Tamém possui em comum as glebas 139 e 141 e individualmente, a gleba 160

160 Sim Sim Sim Não Não Não 0 0 Não 5,00 Sim Desprovida de água.Tamém possui em comum as glebas 139 e 141 e individualmente, a gleba 142.

143 Sim Não Sim Sim Não Sim 1 2 Não 5,00 Córrego do Gurutuba

Não Também possui em comum a gleba 141.Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

144 Sim Não Sim Não Não Sim 1 2 Não 7,00 Córrego do Gurutuba

Não

145 Sim Não Não Não Não Sim 0 1 Não 16,92 Córrego do Gurutuba

Não Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

146 Sim Não Não Sim Não Sim 1 0 Sim 16,25 Córrego do Cangume

Não Também possui a gleba 180.Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

180 Não Não Não Não Não Não 0 0 Não 8,71 Sim Não possui água.Também possui a gleba 146.Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

147 Sim Não Não Sim Não Sim 1 1 Não 10,85 Córrego da Bulha

Não Também possui a gleba 181.Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

181 Não Não Não Não Não Não 0 0 Não 5,20 Sim Não tem água.Também possui a gleba 147.Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

149 Sim Não Não Sim Não Sim 1 1 Não 27,46 Córrego da Bulha

Não Não informa idade

150 Sim Não Não Sim Não Sim 0 2 Não 43,56 Córrego da Bulha

Não Não informa idade

153 Sim Não Não Sim Não Sim 0 0 Não 18,64 Rio do Meio Não Também possui a gleba 165.165 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 18,70 Córrego da

BulhaSim Também possui a gleba 153.

154 Sim Não Não Sim Não Sim 1 2 Não 38,60 Rio Jacutinga

Não Não indica a posse como “trintenária”, mas sua caracterização é a mesma das assim descritas.

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155 Sim Sim Sim Não Sim Não 0 1 Não 93,50 Rio Jacutinga

Não Também é banhada pelo córrego do Areado.Diz que as terras são cobertas "na quase totalidade de matas e capoeiras".

156 Sim Sim Não Não Não Sim 0 1 Não 10,53 Rio do Meio Não Cabeceiras do rio.As matas são ditas "grossas".

Sim Não Não Sim Não Sim 2 3 Não 64,73 Rio Ribeira do Iguape

Não Em comum com Leopoldo Morato de Almeida, casado, 55 anos, natural de Itaóca, morador dolocal há 40 anos, com posse adquirida por herança.

158 Sim Sim Sim Não Não Sim 0 1 Sim 18,70 Rio do Meio Não162 Sim Não Sim Sim Não Sim 0 1 Sim 10 Rio do Meio Não Cabeceiras do rio.

Sim Não Não Não Não Sim 1 2 Não 8,07 Córrego da Bulha

Não

164 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Sim 14,50 Córrego da Bulha

Não

166 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 8,65 Córrego da Bulha

Não

167 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 5,75 Córrego da Bulha

Não Também possui a gleba 177.Cabeceiras do córrego.

177 Sim Não Não Sim Não Sim 0 0 Não 8 Córrego da Bulha

Sim Também possui a gleba 167.Cabeceiras do córrego.

165 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 4,78 Córrego da Bulha

Não Cabeceiras do córrego.

169 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 9,60 Córrego da Bulha

Não Diz que a gleba tem a "quase totalidade de pastagens nativas".Cabeceiras do córrego.

171 Sim Não Não Sim Não Sim 1 2 Não 11,20 Córrego da Bulha

Não Cabbeceiras do córrego.

172 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 9,80 Córrego da Bulha

Não Cabeceiras do córrego.

173 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 6 Córrego da Bulha

Não Não informa idade.Cabeceiras do córrego.

175 Sim Não Não Sim Não Não 1 2 Não 11,30 Córrego da Bulha

Não Cabeceiras do córrego.Exepcionalmmente o texto diz que a lavoura é "para consumo e venda".

178 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 8,91 Córrego da Bulha

Não Cabeceiras do córrego.

179 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 9,03 Não Não tem água.182 Sim Não Não Sim Não Sim 0 1 Não 2,72 Não Não informa idade.

Não tem água.

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Capítulo 5O Cangume hoje

Perfil sócio-econômico

5.1. Paisagem

O Cangume ocupa uma área de aproximadamente 37 ha no fundo de um pequeno

vale circular, ao qual temos acesso por uma estreita estrada de terra, marcada por ângulos

de forte inclinação, que o liga à cidade de Itaóca, cruzando os bairros do Henrique, da

Fazenda e do Gurutuba. Atualmente os caminhos que levavam em outras três direções,

ligando-o ao bairro do Pavão, à cidade de Apiaí (passando pela chamada “Companhia”) e

ao município de Iporanga (passando pelo chamado “Matão”), estão abandonados e só

podem ser cruzados a pé ou a cavalo. A exceção se faz no caso do caminho de Iporanga,

freqüentado anualmente por grupos de motoqueiros que cruzam o bairro em busca dos

caminhos mais difíceis e enlameados de acesso ao PETAR.

As casas ocupam o trecho mais baixo do Vale, cruzado no sentido norte-sul pelo

córrego do Cangume, dispostas de forma relativamente circular com relação ao açude

formado no fundo do vale por uma retenção daquele córrego (no. 8 do croqui abaixo). No

final de 2002 esse açude foi beneficiado e ampliado pela prefeitura, para ser utilizado na

criação de peixes, mas as obras já dão mostras de grave erosão, provocada pelas chuvas que

têm aberto novos caminhos para o córrego.

Os aparelhos públicos principais, quais sejam, a escola (1), o galpão comunitário

(3), a granja (4) e o bar (2), todos, com exceção deste último, que hoje funciona onde era a

antiga escola de madeira, foram construídos em alvenaria pela prefeitura de Itaóca e ficam

concentrados numa mesma face desse circulo formado em torno do açude, próximos à

estrada do bairro. Do outro lado fica o centro espírita (7), de alvenaria, construído nos anos

de 1960, que veio suceder a primeira construção de madeira dos anos 30. No local em que

era situada a casa do antigo festeiro da comunidade, na qual localizava-se também a capela

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católica dedicada a Santo Antônio e à Santa Cruz (ativa até a conversão coletiva ao

kardecismo se completar entre os anos de 1920 e 1930), atualmente situa-se o campo de

futebol do Cangume (5). Mais adiante, na estrada que contorna o açude e passa na frente do

centro espírita e sobe em direção a Iporanga, localiza-se o terreno da horta coletiva (6),

também proposta e organizada pela prefeitura. A localização das residências acompanha,

em parte, esses pontos de referência: na área ocupada pelos aparelhos públicos localizam-se

10 casas (letras G, H, I e J, no croqui abaixo); imediatamente em torno do açude ou

próximas dele estão outras seis casas (E, F e K); ao lado do centro espírita, oito (C e D); e

coladas ao terreno da horta, apenas três (B), de uma mesma família. Perto desse

agrupamento de três casas, num trecho superior do córrego do Cangume, seus moradores,

inspirados na iniciativa da prefeitura, adaptaram um outro tanque formado pelo córrego

para iniciar sua própria criação de peixes. Um agrupamento de sete casas (A) destaca-se do

conjunto por se localizar mais acima, na estrada que leva a Iporanga, mas que vai formando

uma curva em torno do centro marcado pelo açude, numa espiral que faz com que esse

outro agrupamento se situe em um platô mais alto. Desgarrada desse conjunto, uma única

casa encontra-se isolada na estrada que leva ao Pavão (L).

Croqui manuscrito do Cangume (caderno de campo)

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Até o ano de 1999, a comunidade do Cangume era composta de cerca de 30 casas de

pau-a-pique e barro, cobertas de sapê, a maioria sem unidades sanitárias e na totalidade sem

saneamento básico ou energia elétrica. A construção das casas de alvenaria pela prefeitura1,

de dimensões bastante reduzidas (cf. croqui 1), provocou um efeito curioso sobre a

paisagem do Cangume. Elas não implicaram sempre na destruição das casas anteriores, mas

em uma composição entre as duas construções. Por todo o “patrimônio” observamos as

casas de taipa convivendo com as novas casas de blocos expostos e, mesmo no caso em que

as antigas casas foram derrubadas, novos cômodos de taipa vieram se ajustar às novas

construções. Nesses casos, a casa ou cômodo de taipa assume a função de cozinha ou

depósito. Isso é fundamental em uma situação social em que o principal e quase exclusivo

combustível doméstico é a lenha.

Croqui manuscrito das “casas de bloco” do Cangume, aspecto externo (caderno de campo)

1 Projeto “Habitação para a Comunidade remanescente do quilombo do Cangume”, a que já fizemos referência no capítulo 3 deste relatório.

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A permanência dos fornos de barro implicou a permanência das cozinhas de taipa.

Mas também ocorrem casos em que é a nova casa de blocos que assume uma função

complementar à de taipa: enquanto a antiga casa continua concentrando as atividades

sociais da família, desenvolvidas no ambiente da cozinha, o uso da casa nova restringe-se à

função estrita de dormitório.

No total são 28 casas de alvenaria, todas ladeadas de ao menos um cômodo de taipa

destinado à função de cozinha, dotada de um forno de barro à lenha. Cinco casas de

madeira, porém, não foram substituídas pelas de alvenaria porque seus moradores não

concordaram em derruba-las – exigência imposta pela prefeitura para a construção das

novas casas (e que, por isso, permanecem sem numeração oficial). São casas bem mais

amplas, feitas de tábuas ou mesmo de grossas lascas de árvore e cobertas de telhas (cf.

croqui 2). Nesses casos, a prefeitura construiu apenas banheiros de alvenaria, ao lado das

casas de madeira, cobrindo a meta de dotar a todas de unidades sanitárias (chuveiro, pia,

privada e fossa).

Em um caso ou em outro, as casas contam, na maioria das vezes (exatamente 21 das

33 residências), com pequenos “quintais” cercados, formados por paliçadas altas de varas

de bambu, bem ao lado das casas, destinado ao cultivo de hortaliças: principalmente couve,

por ser a mais resistente, mas também cebolinha, cenoura, repolho, alface, almeirão,

beterraba e, mais raramente abóbora, mamão e ervas medicinais. Tais quintais podem ter

até 44 m2 (7 residências), ter entre 45 e 90m2 (6 residências) ou entre 90 e cerca de 120m2

(8 residências).

Esses cercados são fundamentais em função do hábito de se criar galinhas e porcos

soltos por todo o “patrimônio”, o que remete, como vimos, a um hábito bastante recuado no

tempo. Hoje, porém, esse hábito gera sérios problemas com os fazendeiros vizinhos. Como

já não mantém o domínio sobre a área em torno do patrimônio, isto é, não mantêm a antiga

organização coletiva destinada seja à “roçança dos caminhos”, seja à manutenção das

cercas e vedos em torno do patrimônio, assim como, por outro lado, os fazendeiros das

vizinhanças não fazem a manutenção de suas próprias cercas, separando os seus pastos do

patrimônio, não é raro que porcos e cavalos penetrem os pastos destinados ao gado. Quando

os fazendeiros flagram algum animal nessa situação, são capazes de mata-los ou, no caso

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dos cavalos, leva-los para longe, soltando-os onde já não podem encontrar seu caminho de

volta.

Mais de uma vez, um desses fazendeiros fez questão de anunciar na cidade de Itaóca

que havia comido um porco do Cangume, como represália e forma de humilhação de seus

moradores. Isso tem sido a principal fonte de tensão entre os moradores e tais proprietários,

que parecem lhes querer impor pura e simplesmente o fim de seu pequeno criatório, fonte

ainda de alguma autonomia no que se refere à obtenção de carne.

Croqui manuscrito de uma das casas antigas (de madeira) do Cangume (caderno de campo)

Menos significativas numericamente são as residências que mantém árvores

frutíferas no terreno em torno da casa. Quando isso ocorre, a principal fruta é a banana,

seguida da laranja e, em poucos casos, uma variedade maior de tipos.

Até cerca de 1980, as encostas que cercam o Cangume eram abrigadas por uma alta

capoeira que tornava o povoado praticamente invisível ao viajante, até que ele de fato

entrasse no povoado. Mas hoje restam pequenas manchas dessa mata de capoeira, em

função do avanço dos pastos de fazendeiros vizinhos até o limite do patrimônio. É mesmo

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possível que, em alguns trechos, o antigo limite tenha sido desrespeitado por tais

fazendeiros, mas isso é difícil de recuperar com precisão hoje.

Na mesma época em que as casas de alvenaria foram construídas, a prefeitura

também levou ao bairro o programa de eletrificação rural, instalando postes pelo bairro, que

levaram energia elétrica a todas as casas. Como à época nem todos tinham os documentos

necessários à assinatura do contrato com a companhia elétrica, alguns assinaram mais de

um contrato. Com a chegada da energia uma ou outra família adquiriu geladeira ou

televisão e todas instalaram pontos de luz em suas casas. Poucos meses depois, porém,

praticamente nenhuma casa podia mais arcar com os custos do novo luxo. Como apenas a

assinatura individual gira em torno dos R$ 45,00, sem contar com o custo do consumo,

muitos moradores se tornaram inadimplentes no segundo ou terceiro mês. Como veremos

adiante, nem a produção agrícola, nem o trabalho por diárias são capazes de cobrir tal

gasto. Por isso, hoje, apenas três casas, além da escola, do galpão coletivo e do centro

espírita possuem energia elétrica. Este último, em função do esforço dos seus

administradores, que coletam donativos e, vez ou outra, assumem sozinhos as contas.

Aqueles que assinaram mais de um contrato, em nome de vizinhos, estão com dívidas que

superam a casa dos R$ 1.000,00.

5.2. População

O levantamento censitário realizado no Cangume2 apurou um total de 149

moradores, entre adultos e crianças, distribuídos por 33 residências, perfazendo uma média

aproximada de 4,5 pessoas por casa (ANEXO: tabela 1). A família média entre os

moradores do Cangume é formada, portanto, por um casal e dois filhos, onde o pai tem

entre 35 e 44 anos e a mãe entre 25 e 34 anos, ambos de baixa escolaridade média: até a

quarta série primária incompleta.

2 Para informações sobre o levantamento a que faremos referência daqui a diante, cf. a “Nota técnica” em anexo.

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147

Há, porém, um grande desequilíbrio na proporção entre homens e mulheres no

Cangume, que leva a razão de masculinidade (RM) do grupo a mais de 1503. Se dividirmos

a população em faixas etárias, observaremos que tal desequilíbrio é especialmente grave na

faixa etária entre 5 e 14 anos (RM: 206), permanecendo, ainda que com menor gravidade,

na faixa seguinte, de jovens entre 15 e 24 anos (146), para então, a partir daí, ir tendendo a

um equilíbrio nas faixas seguintes. Mesmo assim, esse impacto deixa suas marcas sobre a

população adulta: ao compararmos o número de casados por faixas etárias para ambos os

sexos, veremos que as mulheres casam-se mais cedo, com homens mais velhos e que, a

partir da faixa de 35 a 44 anos de idade, o estoque de mulheres disponíveis já se esgotou,

enquanto sobram homens solteiros (ANEXO: tabelas 2 e 3).

Esse desequilíbrio pode ser correlacionado aos dados relativos ao número de filhos

por casal. Nesse caso, vemos que há uma forte tendência em restringir o número de filhos à

dois (mais de 60% das famílias encontram-se concentradas aí), ainda que não seja

insignificante o número de famílias com quatro filhos (ANEXO: tabela 4). Se a isso

somarmos os dados relativos ao número de filhos de casais do Cangume morando fora do

bairro (ANEXO: tabela 5), veremos que há um fluxo constante de exportação de pessoas

para fora do bairro (metade dos casais tem filhos morando fora e quase 60% deles têm mais

de um filho nessa situação). A análise dos dados mostra que tal exportação não atinge

igualmente homens e mulheres: há um cálculo implícito sobre a capacidade inelástica de

ampliação da população familiar e o excedente a essa capacidade leva a privilegiar a

exportação de mulheres, em função da avaliação sobre o maior aproveitamento, para a

economia familiar, da força de trabalho masculina.

3 Número de homens para cada 100 mulheres.

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148

Pirâmide etária (%)

6

5

4

13

14

19

31

9 10

15

13

12

7

2

5

3

De 0 a 4 anos

De 5 a 14 anos

De 15 a 24 anos

De 25 a 34 anos

De 35 a 44 anos

De 45 a 54 anos

De 55 a 64 anos

65 anos ou mais

masculino feminino

A diferenciação entre homens e mulheres continua no que se refere à escolarização,

que tende ser levemente favorável às mulheres, provavelmente pelos mesmos motivos.

Ainda que a escolarização em geral seja muito baixa entre os adultos do Cangume (a

grande maioria da população adulta só estudou até a quarta série incompleta – ANEXO:

tabelas 6 e 7), as mulheres conseguem adiantar-se um pouco, com mais pessoas com a

quarta série completa e com um único caso que vai além dessa marca (contra nenhum

homem adulto nessa situação).

A situação melhora significativamente quando a comparação se dá entre as faixas de

idade. Ainda que exista um número significativo de crianças em idade escolar fora de sala

(6 no total), já é possível observar um fluxo de jovens em direção ao segundo grau que

altera radicalmente o perfil de escolarização da população que se situa na faixa entre 15 e

24 anos em comparação com a faixa seguinte (ANEXO: tabela 8). Por tratar-se de uma

mudança de política educacional recente, ela não beneficiou os recém-chegados à idade

adulta.

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RTC / ITESP – Cangume (Arruti, 2003)

149

Escolaridade dos filhos por idade (n° absolutos)

15

6 15

1

4

5

2

1

11

9

1

1

8 4

De 0 a 4 anos

De 5 a 14 anos

De 15 a 24 anos

De 25 a 34 anos

Não estudou Até a 4ª série incompleta Até a 4ª série completa

Até a 8ª série incompleta Até a 8ª série completa Até o 2º grau incompleto

Isso é efeito tanto da política de subsídios familiares à educação das crianças e

jovens, como bolsa-escola (municipal) e o PET (Programa de Erradicação do Trabalho

Infantil – federal) que representam importantes fontes de complementação da renda

familiar, quanto da simples disponibilidade de transporte para que os jovens do bairro

possam se deslocar até a escola do bairro vizinho, o Pavão, onde cursam o segundo ciclo do

fundamental (19 alunos no ano de 2001), ou até a escola municipal, na sede do município,

para o ensino médio (4 alunos nos anos de 2002 e 8 no ano de 2003)4. O transporte

oferecido pela prefeitura a partir do ano de 1997 é fundamental por ser o único transporte

regular a ligar o Cangume com os núcleos vizinhos.

Mesmo assim, aos dados sobre os números de filhos matriculados no ano de 2003

aponta para precariedade desse processo de escolarização. À medida que se chega à idade

do trabalho e a partir do qual já não se tem direito à bolsa-escola ou ao PET, há uma forte

tendência de interrupção dessa escolarização.

4 Dados fornecidos pela Secretaria de educação do município.

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Filhos matriculados por idade (n° abs)

15

5 2

9

4

30

13

2

De 0 a 4 anos

De 5 a 14 anos

De 15 a 24 anos

De 25 a 34 anos

Nunca foi matriculado Não matriculado Matriculado

Também foi no bojo dessa nova política, viabilizada pela emancipação do

município, que a população pôde documentar-se de forma razoável, reduzindo bastante esse

tipo de exclusão do universo formal. A maioria das pessoas adquiriu seus documentos de

identificação pessoal em função de campanhas da prefeitura, mas sem dúvida, o documento

que se tornou mais presente entre os moradores, alcançando os 100% entre os chefes de

família, foi o título de eleitor.

Documentação do pai de família (%)

96,7

80

90

100

80

3,3

3,3

20

10

20

96,7

Certidão de nascimento

Carteira de identidade

Carteira de trabalho

Título de eleitor

CPF

Insc. Sindical

Possui Não possui

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151

Documentação da mãe de família (%)

100

86,7

93,3

96,7

70

13,3

6,7

3,3

30

100

Certidão de nascimento

Carteira de identidade

Carteira de trabalho

Título de eleitor

CPF

Insc. Sindical

Possui Não possui

Acrescente-se, nesse ponto, que uma parte bastante significativa dos moradores

migrados para Tatuí continuam com seus domicílios eleitorais no Cangume, servindo a

ocasião das eleições como um desses momentos de retorno em massa de filhos e parentes

ao bairro. Nas últimas eleições a própria prefeitura viabilizou um ônibus com esse fim,

facilitado pelo fato dos migrados para Tatuí se encontrarem concentrados em um ou dois

bairros do município. Isso implica que o colégio eleitoral do Cangume pode quase dobrar o

número de seus habitantes em idade de votar, tornando-se um atrativo especial para as

políticas públicas implementadas pelo governo municipal.

Com relação à saúde dos moradores, até o ano de 2000, segundo a própria prefeitura

municipal de Itaóca, eles apresentavam um histórico de incidência de doença de Chagas,

alto índice de mortalidade infantil (80 para cada 1.000 nascidos vivos) e doenças associadas

à problemas de saneamento, como verminoses. Com a construção de 31 unidades

habitacionais em alvenaria dotadas de banheiros e fossas, complementadas pela instalação

de energia elétrica e uma rede de água local, a partir de duas fontes situadas no próprio

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bairro, alguns problemas de saúde começaram a ser reduzidos, ainda que estejam longe de

serem erradicados5.

Os dados fornecidos pelo sistema de monitoramento dos agentes de saúde informam

que, da população de 140 pessoas cadastradas no Cangume, 17 têm hipertensão arterial,

com certa concentração na faixa de idade que vai dos 20 aos 30 anos (6 casos). Não há

registro de anemia falciforme, mas 13 pessoas apresentam anemia ferropriva (5 delas em

idades entre 4 e 16 anos). Todas possuem carteira de vacinação em dia, mas a verminose

perdura em alto índice, atingindo 31 pessoas (16 delas entre 2 e 13 anos).

5.3. Terra, trabalho e migração

Como vimos, a quase totalidade dos moradores titulados no ano de 1968 venderam

suas terras ao longo dos anos imediatamente seguintes. Apenas duas famílias mantiveram

seus títulos, justamente por terem migrado para trabalharem fora, em Tatuí, colocando-se

longe da pressão dos fazendeiros e vendo nesse pedaço de terra uma espécie de reserva para

o momento, sempre possível, em que já não lhes restasse qualquer outra alternativa na

cidade. Hoje são os filhos desses titulados (3 famílias6) que ocupam tais terras.

Há uma particularidade nesse êxodo populacional do Cangume: mais de 70% dos

pais de família já moraram fora uma ou duas vezes e em quase 60% desses casos a

migração se deu para Tatuí, não existindo nenhuma preferência secundária com relação a

esta. Se não se trata de Tatuí, a escolha será absolutamente incidental (ANEXO: tabela 9).

Muitas vezes, por isso, não se trata propriamente de êxodo, mas de migração temporária,

que desenha um movimento pendular entre o Cangume e Tatuí. “Quando foram para

Tatuí”, lembra um dos moradores, “formaram um povoado inteiro só com cangumeiros”.

Com exceção das três famílias citadas acima, os moradores não possuem outra terra

além do patrimônio compartilhado, no qual dispõem do chão de casa e do minúsculo

quintal a que fizemos referência. Nesses casos, o que ocorre é trabalharem como diaristas

5 A apresentação oficial do projeto municipal que construiu as casas de alvenaria superestimou seus efeitos sobre a situação de saúde do grupo, supondo incorretamente, por exemplo, a erradicação da verminose no bairro.6 Uma dessas famílias é formada pelo filho de um dos dois titulados com a filha do outro.

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em fazendas vizinhas e em outras nem tão próximas, para onde se deslocam em caminhadas

de até três horas a pé. Nesse caso, percebem, no caso dos homens, diárias de R$5,00 (era de

R$3,50 até dezembro de 2002) e, no caso das mulheres e crianças, de R$3,00 a R$4,00. Isso

em contraste com os trabalhadores dos bairros vizinhos, brancos, que hoje recebem R$8,00,

ou seja, 60% a mais que os trabalhadores do Cangume, pelo mesmo trabalho. Não existe

uma razão explícita para esta diferença de remuneração. Os moradores do Cangume a

percebem como simples resultado de uma lógica de mercado, onde a precariedade extrema

em que se encontram os fazem aceitar propostas de trabalho e remuneração que os

trabalhadores dos bairros vizinhos têm condições de recusar. Mas se tivermos em conta a

análise apresentada no capítulo 2 deste relatório, veremos que essa diferença também está

relacionada à discriminação mais específica que marca o tratamento diferenciado dado aos

cangumeiros (“pretos, pobres e primitivos”, “quase bugres”) por parte da população do

município de forma geral.

Vários trabalharam nas terras vizinhas ao patrimônio, já sob o domínio dos

fazendeiros, derrubando capoeira e fazendo roça em troca de, ao final do ano, devolverem

as terras com pasto plantado. Com isso, nos últimos 20 anos, o trabalho dos próprios

cangumeiros valorizou as terras dos fazendeiros vizinhos em três vezes ou mais com

relação ao seu valor original, sempre muito baixo, ao mesmo tempo em que deram fim às

matas no entorno do bairro. No início de 2003 as terras da região eram avaliadas entre R$

1.000,00 o alqueire, no caso em que apresentam capoeiras, e R$ 3.000,00 o alqueire, no

caso das que apresentam pasto formado.

Recentemente, esses moradores começaram a desfrutar da possibilidade de

plantarem roças em terras cedidas por uma das famílias de fazendeiros vizinhos. Diante do

impasse familiar relativo ao inventário de bens do patriarca morto, sua viúva resolveu ceder

gratuitamente parte das terras em processo de partilha para 22 chefes de família do

Cangume plantarem. Reservadas as terras dedicadas ao gado, cedeu-se as terras mais

íngremes da propriedade (que podem chegar a ângulos de inclinação impressionantes),

além de terem uma composição pedregosa. A sua repartição entre aqueles 22 chefes de

família não permite que as porções individuais ultrapassem 1,5 ha7.

7 Pudemos apurar a existência de 8 trabalhadores com até 0,6 ha de roça, 7 com extensões entre 0,7 e 1,35 ha e outros 9 com extensões maiores que 1,35.

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Nesses trechos os moradores têm plantado prioritariamente feijão (94% das roças),

seguido de milho (84% das roças) e de arroz (56% das roças), já outros gêneros

normalmente privilegiados, como a mandioca, são considerados muito demorados para a

precariedade e informalidade da cessão de uso de que dispõem. Isso fez com que em nosso

levantamento da renda percebida pelas famílias do Cangume no ano de 2002, a

comercialização do feijão figurasse como praticamente a única fonte de recursos dessas

famílias. Como o saco foi vendido por valores entre R$65,00 e R$35,00 no final do ano

passado, dependendo do momento em que foi colhido, e como cada família só

comercializou entre meio e cinco sacos, isso nos leva a um rendimento médio de R$ 190,00

ao final da colheita, completado com a venda de dias de trabalho e com os programas de

apoio à continuidade escolar dos filhos (bolsa escola e PETI).

Nesse caso, apesar de cada chefe de família ter o seu trecho de roça, o fato de

estarem partilhando de uma área que foi cedida em bloco para a coletividade, permitiu que

certos modelos de colaboração fossem novamente acionados. Assim, todos se utilizam do

trabalho familiar, mas para permitir um melhor aproveitamento do tempo e do espaço,

também lançam mão do sistema de “troca de dias”. Ninguém compra ou vende trabalho no

Cangume. O sistema de troca de dias é extremamente simples: implica em um fluxo de

empréstimos de dias de trabalho entre os vários moradores, cuja contabilidade é sempre

entre duas pessoas, não implicando, portanto, no formato de mutirão. Assim, quando um

homem trabalha na roça do outro, ele está “dando um dia” àquele companheiro e ficando

com um saldo do mesmo valor, que deve ser retribuído no mesmo período agrícola. Da

mesma forma, quando ele convida companheiros para trabalharem em seu trecho, diz-se

que ele ganhou três, quatro, cinco ou mais dias de trabalho, de acordo com o número de

trabalhadores que lhe serviram. Desses dias alguns já são retribuição por outros dias dados,

enquanto outros dias são dívidas que ele contrai com outros companheiros.

O mutirão, diferentemente, é uma convocação coletiva, na qual aquele que convoca

assume obrigações imediatas diante dos convocados, como o almoço, a cachaça e

(fundamental, do ponto de vista local, para que se possa falar em um mutirão) o baile no

final do dia de trabalho. No caso do mutirão não está em jogo a troca do trabalho, mas a

capacidade de convocação coletiva, assegurada, é verdade, pela assiduidade com que

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aquele que convoca também participa da convocação de outros, mas sem que isso implique

em uma troca diádica de favores, como no caso do sistema de “troca de dias”.

Recentemente, três programas municipais vieram complementar os rendimentos

familiares: a roça coletiva, a horta coletiva e a granja, construída no bairro. O espaço físico

destinado para essas atividades, porém, é diminuto, assim como o retorno para cada uma

das famílias que participa dessas iniciativas. Além disso, por não terem sido acompanhados

de qualquer trabalho de capacitação, os moradores se mantêm distantes com relação à

gestão desses projetos, pensando-se mais como trabalhadores da prefeitura do que como

donos das iniciativas, localizadas nas terras de uso comum que lhes restaram. Estão alheios

tanto à decisão sobre o que plantar, quanto sobre como e onde comercializar e não

participam da contabilidade do empreendimento, tomando conhecimento apenas dos

resultados, determinados e distribuídos pelos técnicos da prefeitura.

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Anexo2: Lista de moradores (apenas os casais ou responsáveis)

No. casa Nome do pai Nome da mãe

1 BENEDITO MACIEL BRASILINA GONÇALVES PONTES

2 IVAN GONÇALVES DE PONTES

3 FRANCISCO GONÇALVES DE OLIVEIRA ELIZA DA SILVA RAMOS

4 DANIEL CARRIEL GORGONHA DE LIMA DELFINA DIAS DE OLIVEIRA GONÇAL

5 ALTINOR PEREIRA DE LIMA IRIA DIAS DE LIMA

8 JAIR CARRIEL DE LIMA HIOLANDA DE OLIVEIRA LIMA

9 NOEL GONÇALVES DANTAS MARIA APARECIDA SILVA ROSA

10 JOSEMAR GONÇALVES DE LIMA

13 IVAN CARRIEL DE LIMA NELI DA SILVA ROSA

13 MÁRIO MONTEIRO DOS SANTOS

14 ADILSON PEREIRA LIMA MARIA BENEDITA OLIVEIRA LIMA

15 ORLANDO GONÇALVES DE LIMA CIRIA MACIEL DA ROSA

16 NILTON PEREIRA OLINDA DIAS DE RAMOS PEREIRA

17 VITORINO DIAS MONTEIRO ANTÔNIA SABINA DE RAMOS

18 CYRIACO CARRIEL DE LIMA FLORENTINA DANTAS CARRIEL DE LI

19 MANOEL CARRIEL DE LIMA JACIRA GONÇALVES DE PONTES LIMA

20 JORGE PEREIRA JUVENTINA PEREIRA DE LIMA

21 DENISARDO DE MATOS MONTEIRO SÔNIA DOS SANTOS MACIEL

22 KARDEQUE ROSENILDA DE OLIVEIRA ROSA

24 CARLOS MACIEL DA ROSA MARIA DAS NEVES PEDROSO

25 MAURI DE OLIVEIRA LIMA MARIA RAMOS DE LIMA

26 JOSÉ CARLOS DIAS MACIEL CARLINA DIAS DE RAMOS

27 OSCAR MACIEL DOS SANTOS BENEDITO DIAS MACIEL

28 JAIME MACIEL DE PONTES VIRGÍNIA DIAS MONTEIRO

29 CLÁUDIO MACIEL DE PONTES NOELI CARRIEL DOS SANTOS

30 ANTÔNIA GONÇALVES DE PONTES

31 LEONORA DE ALMEIDA OLIVEIRA

S/N-1 FRANCISCO DIAS MONTEIRO JANDIRA MATOS MONTEIRO

S/N-2 MARTINHO RODRIGUES DE LIMA ELÍDIA GONÇALVES PONTES DE LIMA

S/N-3 JOEL DIAS GONÇALVES IZABEL DE OLIVEIRA GONÇALVES

S/N-4 EURICO DE OLIVEIRA LIMA IOLANDA PEREIRA ROSA LIMA

S/N-5 EZEQUIEL GONÇALVES DE PONTES SUELI DA SILVA ROSA PONTES

S/N-6 CLARISSE DIAS DE ALMEIDA ROSA

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Anexo2: Quadro genealógico resumido do Cangume

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Anexo3: Quadros estatísticos

Nota técnica

Em janeiro de 2003, as 34 casas do bairro do Cangume foram visitadas para que

seus moradores respondessem um questionário sócio-econômico de duas partes. Uma

primeira, constituída de dois formulários, com 21 questões de perfil demográfico, dedicada

às características das pessoas que compõem os domicílios. Outra, com mais dois

formulários de cerca de 80 questões, relativas às unidades residenciais como espaço social,

físico e produtivo, onde abordamos a questão da posse e uso da terra:

- Escolaridade, Religião e Documentação

- Trabalho e Renda

- Genealogia e Migração

- Situação das Casas, da Terra e da Produção

A unidade de pesquisa foi, portanto a “casa”, ainda que tenha sido necessário

considerar umas poucas situações que fugiam a este enquadramento. As questões foram

formuladas com base em experiências de pesquisas anteriores, mas também em uma visita

prévia ao grupo em setembro de 2002, que permitiu eliminar impropriedades e incluir

questões específicas como, por exemplo, as relativas à freqüência da população ao Centro

Espírita Kardecista. Deste survey, resultou um universo amostral de 33 questionários

respondidos. Uma casa não foi incluída por ser habitada por um morador sozinho, com

problemas mentais e grande dificuldade de fala. Várias outras casas não foram consideradas

por encontrarem-se vazias, reservadas para famílias do Cangume que já não habitam o

bairro, mas o visitam regularmente, ao menos uma vez ao ano, em períodos de festas, como

o natal, carnaval, ou para casamentos, batizados e aniversários. A seguir apresentamos

apenas as tabelas diretamente referidas neste capítulo.

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Tabelas estatísticas

Tabela 1

Total de moradores por domicílio

2 6,1 6,1

2 6,1 12,1

5 15,2 27,3

11 33,3 60,6

3 9,1 69,7

6 18,2 87,9

2 6,1 93,9

1 3,0 97,0

1 3,0 100,0

33 100,0

1 morador

2 moradores

3 moradores

4 moradores

5 moradores

6 moradores

7 moradores

9 moradores

10 moradores

Total

Frequency Valid PercentCumulative

Percent

Tabela 2

Idade do pai de família

1 3,0

7 21,2

10 30,3

3 9,1

4 12,1

8 24,2

33 100,0

De 15 a 24 anos

De 25 a 34 anos

De 35 a 44 anos

De 45 a 54 anos

De 55 a 64 anos

65 anos ou mais

Total

Frequency Valid Percent

Tabela 3

Idade da mãe de família

3 9,1

10 30,3

7 21,2

2 6,1

5 15,2

6 18,2

33 100,0

De 15 a 24 anos

De 25 a 34 anos

De 35 a 44 anos

De 45 a 54 anos

De 55 a 64 anos

65 anos ou mais

Total

Frequency Valid Percent

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RTC / ITESP – Cangume (Arruti, 2003)

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Tabela 4

Total de filhos por domicílio

4 12,1 12,1

7 21,2 33,3

10 30,3 63,6

2 6,1 69,7

6 18,2 87,9

2 6,1 93,9

2 6,1 100,0

33 100,0

Sem filhos

1 fi lho

2 fi lhos

3 fi lhos

4 fi lhos

5 fi lhos

8 fi lhos

Total

Frequency Valid PercentCumulative

Percent

Tabela 5

Número de filhos morando fora da comunidade

5 41,7

3 25,0

2 16,7

2 16,7

12 100,0

21

33

1 filho

2 filhos

3 filhos

4 filhos

Total

NA

Total

Frequency Valid Percent

Tabela 6

Escolaridade do pai de família

9 30,0

3 10,0

12 40,0

6 20,0

30 100,0

3

33

Não estudou

Apenas sabe ler

Até a 4ª série incompleta

Até a 4ª série completa

Total

NA

Total

Frequency Valid Percent

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Tabela 7

Escolaridade da mãe de família

5 16,7

4 13,3

13 43,3

7 23,3

1 3,3

30 100,0

3

33

Não estudou

Apenas sabe ler

Até a 4ª série incompleta

Até a 4ª série completa

Até a 8 ª série incompleta

Total

NA

Total

Frequency Valid Percent

Tabela 8

Não estudou

Até a 4ª sérieincompleta

Até a 4ª sériecompleta

Até a 8ª sérieincompleta

Até a 8ª sériecompleta

Até o 2º grauincompleto

De 0 a 4 anos 15De 5 a 14 anos 6 15 5 11 1De 15 a 24 anos 1 2 9 8 4De 25 a 34 anos 4 1 1

Escolaridade dos filhos por idade

Tabela 9

Local de migração do pai de famíl ia

13 59,1

1 4,5

3 13,6

1 4,5

1 4,5

1 4,5

1 4,5

1 4,5

22 100,0

11

33

Tatuí

Barrado Turvo

Apiaí

Adrianópolis

Capoeirando

Martins

Itapeva

Guarulhos

Total

NA

Total

Frequency Valid Percent

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Anexo4: Caderno de fotos

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Capítulo 6Conclusão

Sumário dos argumentos

1. Não há registro histórico indiscutível ou um relato memorial claro no próprio

grupo de atuais moradores sobre a origem do Cangume. No seu lugar, é possível chamar

atenção para os seguintes elementos:

a) porque a sociedade branca local tem uma memória muito nítida de sua

migração para a região, seja vinda de Portugal, de Minas Gerais ou do Paraná, o

Cangume aparece como um grupo cuja presença é anterior a de todos os outros,

apresentando uma forma muito próxima daquilo que, no campo indigenista,

convencionou-se designar como “imemorialidade da posse”;

b) existem indícios muito relevantes na parca historiografia do município

sobre a tendência da economia local a, nos momentos de crise do extrativismo

mineral, apostar na ampliação dos plantéis de escravos por meio da formação de

famílias escravas e mesmo de redes relativamente extensas de compadrio, sugerindo

que tenha surgido uma rede de famílias negras capazes de ocupar os sertões de

Apiahy, antes ou depois da abolição;

c) existem indícios muito relevantes na parca historiografia do município

sobre a existência de quilombos em todo o sertão de Apiahy, facilitados pela

precariedade de transportes para o interior. A localidade de Itaóca, em especial,

figurava como uma das localidades de mais difícil acesso, tornando-se fonte de

preocupação para os poderes públicos e elites municipais;

d) há ainda indícios, trazidos pela memória do grupo e que exigiriam maior

investimento de pesquisa cartorial e de arquivo, sobre a possibilidade das terras do

Cangume terem sido adquiridas por um dos ancestrais do grupo em retribuição aos

seus serviços na Guerra do Paraguai;

e) finalmente, há um consenso generalizado em toda a sociedade local

(incluindo órgãos oficiais) de que o Cangume é uma comunidade remanescente de

quilombos.

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2. A reconstituição das formas de ordenamento territorial do Cangume anteriores

aos anos de 1960, apontam para a existência de uma terra de uso comum, com as seguintes

características:

a) suas terras eram “abertas”, isto é, não eram individualizadas em posses

individuais ou familiares permanentes, mas por roças que eram delimitadas a cada

novo período agrícola segundo as necessidades e possibilidades de trabalho familiar.

b) tais apossamentos eram regulados por regras próprias, consensuais e não

escritas, constituindo um código de auto-regulação jurídica;

c) os limites no interior dos quais tais regras eram válidas definia os limites

políticos do próprio grupo, regulado por uma mesma autoridade moral, que também

organizava tais trabalhos coletivos de avivamento dos caminhos que definiam

também as fronteiras físicas do grupo;

d) tal autoridade moral era efetiva para o interior do grupo, assim como era

reconhecida e legitimada pelos poderes públicos municipais que, ao lhe instituírem

poderes e obrigações complementares às suas com relação a um determinado

território, consolidava a territorialidade do grupo;

e) com tais limites, assim definidos, o território do Cangume era ordenado à

forma de três círculos concêntricos: I – o “patrimônio” pequeno, destinado à

moradia, cultivos frágeis e pequenos criatórios (trabalho feminino); II – um segundo

círculos, destinado às roças temporárias de subsistência e comercialização (trabalho

familiar); III - e o “sertão”, limites do “patrimônio” grande, ocupado por roças

complementares, reserva de madeira e área de caça (trabalho masculino);

f) a partir desse arranjo territorial, as famílias do Cangume organizavam sua

vida produtiva por meio da ocupação simultânea (que variava ao longo do tempo)

de diferentes trechos do território coletivo, de forma a aplicar a técnica de rodízio

das roças, mas também de apropriarem-se da diversidade de nichos ecológicos

existentes no território;

g) tal organização implicava, por sua vez, no trabalho familiar, no sentido

extenso do termo, que podia incluir vários núcleos familiares em torno da roça ou da

administração das roças por um mesmo patriarca. Esse trabalho familiar sendo

completado pelo sistema de troca-de-dias e pelos mutirões.

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RTC / ITESP – Cangume (Arruti, 2003)

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3. Com o processo de Ação Discriminatória promovida pelo estado de São Paulo

entre os anos de 1930 e 1960, tal arranjo territorial é desfeito e, logo em seguida, a própria

comunidade sofre uma brutal redução física, perdendo suas áreas de cultivo para

concentrar-se naquilo que identificamos como o primeiro círculo do arranjo territorial do

grupo, designado por eles como “patrimônio”. Tal redução foi legitimada por meio de

transações aparentemente legais, mas que serviram apenas como legitimação de uma

expropriação de fato, levando ao início de uma constante migração para a periferia de

Tatuí, onde constituíram novo povoado, aparentemente dotado de algumas características

levadas desde o Cangume, como a religião e a organização espaço calcada nas relações de

parentesco. Esse processo de expropriação e fragmentação territorial do Cangume esteve

marcado pelas seguintes características:

a) a primeira fase da Ação Discriminatória (anos 30) documentou com

precisão os domínios efetivos e comuns das famílias do Cangume sobre as terras de

dois “sítios” que correspondem aproximadamente (porque ultrapassam) a área

atualmente reivindicada pelo grupo para demarcação pelo ITESP;

b) a partir da segunda fase da Ação (anos 50), os moradores do Cangume,

que continuam sem informações sobre a Ação e seus objetivos, já percebiam (e a

pesquisa nos povoados em torno e na sede do município confirma) a chegada de

proprietários de estados vizinhos, em busca de terras de pasto a preços baixos, sem,

no entanto se darem conta dos possíveis efeitos disso;

c) na terceira e última fase (anos 60), a Ação recorta o território coletivo em

unidades individualizadas, levando a que a lógica da distribuição das roças e até

mesmo das autoridades fosse desfeita, ao mesmo tempo que criou as condições de

mercantilização da terra em toda a região;

d) imediatamente à demarcação e documentação das posses individualizadas,

abre-se um violento mercado de terras, para o qual concorrem antigos proprietários

das imediações (que tinham total domínio do curso da Ação e, por vezes,

participarão diretamente dela), mas também fazendeiros recém-chegados, em

especial de Minas Gerais, justamente m função da Ação. Depoimentos de época,

incluindo autoridades envolvidas na Ação, apontam para os perigos desse avanço

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levar à simples expropriação dos posseiros tidos como “trintenários”, que se

mantinham desinformados;

e) a população do Cangume, em especial, não-alfabetizada, sob forte

discriminação racial, alheia a qualquer lógica de mercado (nem mesmo o relativo

aos gêneros agrícolas era significativo) e habituada em um uso da terra que

implicava o constante deslocamento espacial, não foi capaz de compreender a

ferocidade desse mercado de terras e suas implicações, perdendo praticamente todas

as suas terras de forma imediata.

f) as transações comerciais que legitimaram tais aquisições, porém, não

encontram respaldo nos termos da lei que regulava a Ação Discriminatória e exigia

que os recém-titulados fossem considerados apenas usufrutuários das terras, que

estavam indisponíveis para a venda. Apesar disso, as autoridades locais e estaduais

se mantém indiferentes ao processo, permitindo que também na escala municipal se

reproduza a desordem fundiária já diagnosticada pela bibliografia para todo o Vale

do Ribeira, como resultado da Ação.

4. A situação atual do grupo de famílias do Cangume é marcado por uma situação

de penúria prolongada e de mudanças recentes e rápidas:

a) como efeito desse processo, a população do Cangume passou a viver em

um estado de penúria acentuado e permanente, só atenuado pela migração sazonal

ou permanente de jovens e adultos em idade de trabalho para os núcleos

subsidiários, formados no município de Tatuí (periferia de Sorocaba). Apesar da

municipalidade reconhecer essa situação, ela serviu apenas, até um período recente,

como fone de preconceitos e discriminações contra essa mesma população, que

mantiveram as condições de reprodução dessa penúria.

b) hoje, depois da mobilização de diversas comunidades por todo o Vale do

Ribeira como remanescentes de quilombos e dotadas de características muito

semelhantes às do Cangume, os poderes públicos locais perceberam a importância

que a existência e proteção do grupo podem ter, em especial em termos políticos

para a própria municipalidade e sua elite política.

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c) da parte da população, a participação nos encontros estaduais de

remanescentes de quilombos e as visitas que passaram a receber de lideranças de

outros grupos e de técnicos do ITESP, assim como a mudança de comportamento

dos poderes públicos, permitiram uma progressiva aproximação do grupo do debate

sobre o artigo 68 e sua atual auto-identificação como remanescentes de quilombos.

d) como efeito desse debate e do próprio trabalho de realização deste laudo,

a população foi motivada e se fez capaz de reconstituir frações significativas de sua

memória coletiva e definir com certeza o território reivindicado, baseado

fundamentalmente nesses elementos de memória.

5. Diante desses elementos, concluímos que:

a) ainda que a legislação da época não contasse com os dispositivos

necessários e que o preconceito e oportunismo das elites locais tenham lançado mão da lei

para expropriá-la, o estado de São Paulo já reconheceu o Caráter coletivo das terras do

Cangume desde 1939, quando mais não seja, pela titulação de uma “gleba em comum”

(sem que essa possibilidade estivesse prevista em norma oficial);

b) ainda que por motivos que possam não coincidir com os interesses da

própria comunidade, a sociedade local (incluindo historiadores locais) desde há muito

tempo reconhece no Cangume um grupo social distinto e, desde fins da década de 1980,

reconhece nele as marcas caracterizadoras dos grupos remanescentes de quilombos.

c) a própria comunidade de Cangume está perfeitamente contemplada nos

critérios oficiais que o estado de São Paulo estabeleceu, para o reconhecimento oficial de

remanescentes de quilombos, incluindo aí o item mais subjetivo da auto-atribuição.

d) diante de tudo isso, torna-se fundamental a breve regularização fundiária

do grupo, restituindo-lhe parcialmente aquilo que a própria ação do estado permitiu

favoreceu que lhe fosse retirado há cerca de 35 anos.

Anexo: Sobre a definição da demanda territorial

Como é o mais comum de acontecer, no início dos trabalhos de campo, a população

do Cangume não tinha uma noção precisa sobre o processo de reconhecimento e suas

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implicações de natureza legal e territorial. Foi preciso, portanto, que parte de nosso tempo

nas reuniões coletivas com os moradores fosse dedicado à esclarecimentos dessa natureza.

Desses esclarecimentos, dependia também uma correta compreensão por parte dos

moradores do que significava discutir o seu próprio território e, a partir dessa discussão,

delimitar com precisão as linhas de definição do seu perímetro. Uma pesquisa indiferente a

isso corre sempre o risco de consolidar no laudo um erro de avaliação ou um mal-

entendido.

Daí também serem importantes as reuniões coletivas, na qual se exigia a mais ampla

participação possível das famílias de moradores. A definição do território a ser demarcado

não pode ser pensada como fruto de uma descoberta etnográfica, mas como o resultado do

confronto e da convergência entre a reflexão do antropólogo, pautada no trabalho

etnográfico, e uma reflexão coletiva do grupo, estimulada por ela e orientada por

considerações de natureza estratégica, próprias a ele e relativas aos custos e benefícios que

cada decisão, avanço ou recuo dos limites territoriais implica.

Assim, foram provocadas algumas reuniões coletivas para esclarecimentos

sobre o “artigo 68” e para a solicitação de uma reflexão coletiva sobre os limites do

território. Outros personagens estavam intervindo na comunidade simultaneamente à minha

presença, provocando a comunidade a reflexões semelhantes, que eu também pude assistir1.

Além disso, pude realizar discussões com mais de um grupo de pessoas mais velhas sobre

características e problemas de tais limites, até realizar uma última reunião, em que tais

limites me foram definidos com uma aparentemente larga margem de segurança. Tal

definição recorreu basicamente à memória da forma de ordenamento territorial anterior aos

anos 60, por isso descrita com detalhes nesse relatório.

Como é possível perceber por meio dos croquis e dos mapas, há certa altura do

tempo existiu uma incongruência entre os limites estabelecidos para o Cangume enquanto

grupo social, submetido a uma mesma autoridade moral e responsável por um determinado

recorte espacial, e os limites estabelecidos pela soma das antigas roças de moradores, que

1 A presença e atuação desses outros atores é muito interessante e, em alguns momentos, importante para o destino das discussões internas ao grupo. Nesse relatório, dada as suas dimensões e objetivos, não pudemos analisar essa presença, assim como a de outros aspectos social e politicamente relevantes, como, por exemplo, o papel da religiosidade na vida do grupo. Nada, porém, que tivesse relevância direta para a descrição aqui realizada foi omitido.

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ultrapassavam esses limites. Essa incongruência gerou a dúvida central que dominou as

nossas primeiras conversas sobre o território: diante das avaliações estratégicas sobre sua

relação com proprietários vizinhos, com as famílias que hoje moram em Tatuí e sobre suas

concepções de justiça histórica, eles deveriam decidir entre ampliar a demanda territorial,

acompanhando o desenho das antigas posses familiares, ou reduzi-la, permanecendo nos

limites do exercício de uma certa soberania coletiva.

Optaram pela segunda alternativa, afirmando, com isso, um discurso coletivo e

centrado em uma história política e cultural do grupo como um todo, na definição do seu

território.

Concluímos:

- que os membros da comunidade do Cangume são remanescentes de comunidade de

quilombos, de acordo com as definições que embasam os critérios oficiais de

reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e devem, portanto, gozar dos

direitos de tal identificação lhes assegura.

- que se faz urgente à regularização fundiária do território quilombola aqui

demonstrado, de área 724,6039 ha.

____________________________

JOSÉ MAURÍCIO P. A. ARRUTI

Historiador e Antropólogo

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RELATÓRIO TÉCNICO CIENTÍFICO DOS

REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE

QUILOMBO DO CANGUME

MUNICÍPIO DE ITAÓCA – SP

SETEMBRO DE 2003

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Croqui de Uso e Ocupação Atual

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Mapa e Memorial Descritivo

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Croqui da Área Reivindicada

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*Concluímos:

- que os membros da comunidade do Cangume são remanescentes de comunidade de

quilombos, de acordo com as definições que embasam os critérios oficiais de

reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e devem, portanto, gozar dos

direitos de tal identificação lhes assegura.

- que se faz urgente à regularização fundiária do território quilombola aqui

demonstrado, de área 724,6039 ha.

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Moradores do Cangume

1- Antonia Gonçalves de Pontes

2- Cláudio Maciel de Pontes Noeli Carriel Santos de Pontes

3- Jaime Maciel de Pontes Virginia Dias Ramos Maciel

4- Jose Carlos Dias Monteiro Calina Dias Ramos Maciel

5- Amauri de Oliveira Lima Maria Dias Ramos Maciel

6- Oscar dos Santos MacielBenedita Dias Maciel

7- Carlos Maciel Da Rosa Maria Dias Neve pedroso

8- Odair Constantina

9- Marisa pereira Gonçalves Manoel Gonçalves

10-Iria Dias de Lima Altino Pereira

11- Iolanda Pereira Rosa Lima Eurico de Oliveira Lima

12- Delfina de Oliveira Gonçalves Daniel Carriel Gorgonha de Lima

13- Ezequiel Gonçalves de Pontes Ivani Gonçalves de Pontes

14- Francisco Gonçalves de Pontes Eliza da Silva Ramos

15- Brasilina Gonçalves de Pontes Benedito Maciel de Pontes

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16- Maria Aparecida da Silva Rosa Noel Gonçalves Dantas

17- Josemar Gonçalves de Lima

18- Clarice Dias de Almeida Rosa

19 - Elidia Gonçalves Dias de Lima Martinho Rodrigues de Lima

20 - Izabel de Oliveira Gonçalves Joel Dias Gonçalves

21- Neli Silva Rosa Ivan Carriel de Lima

22 - Maria Benedita de Oliveira Adilson de Lima Pereira

23- Jurandir Gonçalves de Lima

24- Síria Maciel da Rosa Orlando Gonçalves de Lima

25-Antonia Sabina de Ramos Monteiro Vitorino Dias Monteiro

26-Olinda Dias de Ramos Pereira Nilton Pereira

27-Ciriaco Carriel de Lima Florentina Dantas de Lima

28-Manoel Carriel de Lima Jacira Gonçalves de Pontes Lima

29 -Jorge Pereira de Lima Joventina Dantas de Lima

30-Mario Monteiro dos Santos

31-Jaír Carriel de Lima Iolanda de Oliveira Lima

32-Francisco Dias Monteiro Jandira de Matos Monteiro

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33-Kardeque Matos Monteiro Rosenilda de Oliveira Rosa

34-Denizarde Matos Monteiro Sonia dos Santos Maciel

35-Angelino Dias de Ramos Leonora de Almeida Oliveira

36-Ivan Carriel de Lima Neli da Silva Rosa

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1

RELAÇÃO DE MORADORES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DO

CANGUME – MUNICIPIO DE ITAÓCA.

16/12/2004.

1- Antonia Gonçalves de Pontes

Manoel Maciel de Pontes(filho)

Tadeu Fernando da Silva Rosa(neto)

2- Cláudio Maciel de Pontes

Noeli Carriel dos Santos

Daniane Santos de Pontes(filha)

Claudeniz Santos de Pontes(filho)

Danieli Santos de Pontes(filha)

Pedro Henrique Santos de Pontes(filho)

3- Jaime Maciel de PontesVirginia Dias MonteiroLucas Alexandre Monteiro Pontes(filho)Sandro Monteiro Pontes(filho)Tatiane Monteiro Pontes(neta)

4- José Carlos Dias Maciel Carlina dias de Ramos Maciel Cristina Dias Maciel(filha) Leandro Dias Maciel(filho) Jaqueline Dias Maciel(filha) Danilo Dias Maciel(filho)

5- Mauri de Oliveira de Lima Maria Dias de Ramos Lima Vanusa Ramos de Lima(filha) Vando Ramos de Lima(filho) Daniele Ramos de Lima(filha) Marcelo Ramos de Lima(filho) Marines Ramos de Lima(filha) Miriam Ramos de Lima(filha) Meire Ramos de Lima(filha) Mailsom Ramos de Lima(filho) Jean Ramos de Lima(filho) Tais Cristina Ramos de Lima(filha)

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2

6- Oscar dos Santos Maciel Benedita Dias Maciel Cleiton Maciel de Oliveira(neto) Reginaldo Maciel(filho) Angelina Maciel(filha)

7- Carlos Maciel da Rosa Maria das Neves Pedroso Eliane Pedroso da Rosa(filha) Osmarina Pedroso da Rosa(filha) Luiz Carlos Pedroso da Rosa(filho)

8- Odair Constancia de Oliveira Lima Sheila(filha) Bruno(filho)

9- Manoel Gonçalves Mariza Pereira Gonçalves Vilson Pereira Gonçalves(filho) Agnaldo Pereira Gonçalves (filho) Marlene Pereira Gonçalves (filha) Marli Pereira Gonçalves (filha) Sirlene Pereira Gonçalves (filha) Sonia Pereira Gonçalves (filha) Leandro Pereira Gonçalves (filho) Suzana Pereira Gonçalves (filha) Leandro Pereira Gonçalves (filho) Angelina Pereira Gonçalves (filha) Roberto Pereira Gonçalves (filho)

10- Altino Pereira Iria Dias de Lima Everton Pereira(filho Emerson Pereira(filho) Zenilda Pereira de Lima(filha adotiva)

11- Eurico de Oliveira Lima Iolanda Pereira Rosa Lima Tiago Rosa Lima(filho) Daniel Rosa Lima(filho) Pedro pereira Lima(filho) Edilson Rosa Lima(filho)

12- Daniel Carriel Gorgonha de Lima Delfina de Oliveira Lima

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Roseli de Oliveira Lima(filha) Adriana Pereira Lima(filha) 13- Esequiel Gonçalves de Pontes 14- Francisco Gonçalves de Oliveira Elisa da Silva Ramos Fernando Gonçalves da Silva(filho) Eliane Gonçalves da Silva(filha) Sebastião Gonçalves da Silva(filho) Elizangela Gonçalves da Silva Elenilze Gonçalves da Silva

15- Benedito Maciel de Pontes Brasilina Gonçalves de Pontes Antonio Gonçalves de Pontes(filho) Jair Gonçalves de Pontes(filho) Arlindo Gonçalves de Pontes(filho) Gilberto Gonçalves de Pontes(filho) Angelina Gonçalves de Pontes

16- Noeli Gonçalves Dantas Maria Aparecida da Silva Rosa Alisson Sebastião Dantas da Silva(filho) Karine Benedita da Silva Dantas(filha) Kaique Benedito Gonçalves Silva Dantas(filho)

17- Josemar Gonçalves de Lima Alessandro Rosa de Lima(filho) Jéssica Rosa Lima(filha)

18- Clarice Dias de Almeida Rosa Ilton da Silva Rosa(filho) Adeildo da Silva Rosa(filho) José Pedro da Silva Rosa(filho) Sueli da Silva Ponte(filha) Denildo da Silva Rosa(filho) Luiz Carlos da Silva Rosa(filho) Marilene da Silva Rosa(filha)

19- Martinho Rodrigues de Lima Elidia Gonçalves Dias de Lima Onório Dias de Lima(filho) Juliana Dias de Lima(filha) André Luiz Gonçalves Dias de Lima(filho)

20- Joel Dias Gonçalves Isabel Oliveira Gonçalves

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Joelma Oliveira Gonçalves(filha) Júlio Oliveira Gonçalves(filho) José Pedro Oliveira Gonçalves(filho) Edico de Oliveira Gonçalves(filho) Rosana Oliveira Gonçalves(filha)

21- Ivan Carriel de Lima Neli da Silva Rosa de Lima Débora Cristina Carriel de Lima(filha) Evair Rosa de Lima Jeiciele Rosa de Lima

22- Adilson de Lima Pereira Maria Benedita de Oliveira Lima Camilli de Lima Pereira(filha) Erik Mateus Pereira Lima(filho)

23- Jurandir Gonçalves da Silva24- Orlando Gonçalves de Lima Ciria Maciel da Rosa Fábio Gonçalves da Rosa(filho) Elielton Gonçalves da Rosa(filho)

25- Vitorino Dias Monteiro Antonia Sabino de Ramos Monteiro Angelino Dias de Ramos(filho) Nilson Dias de Ramos(filho) Nelson Dias de Ramos(filho) Delson Dias de Ramos (filho) Cinira Dias de Ramos

26- Nilton Pereira Olinda Dias de Ramos Pereira Willian Ramos Pereira(filha) Lidielle Aparecida Ramos Pereira(filha)

27- Cyriaco Carriel de Lima Florentina Dantas Lima Nilcélia Carriel de Lima(filha) Sidnéia Carriel de Lima(filha)

28- Manoel Carriel de Lima Jacira Gonçalves de Pontes Leonardo Gonçalves de Lima(filho) 29- Jorge Pereira Joventina Dantas de Lima

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Rosenilda Pereira de Lima(filha) Luciano Pereira de Lima(filho) Celina Pereira de Lima

30- Mario Monteiro dos Santos 31- Jair Carriel de Lima Hiolanda de Oliveira de Lima Jair Júnior de Lima(filho) Jaime de Lima(filho) Agregado- Damião Gonçalves

32- Francisco Dias Monteiro Jandira Matos Monteiro Luciana Matos Monteiro(filho) Constantina Matos Monteiro(filha) Alani Matos Monteiro(filha) Edivaldo Matos Monteiro(filho)

33 - Kardeque Matos Monteiro Rosenilde deOliveira Rosa Wellington de Oliveira Rosa(filho) Tainara da Rosa Monteiro(filha)

34- Denizarde de Matos Monteiro Sonia Santos Maciel(filho) Valeria Cristina Matos Maciel(filho)

35- Angelino Dias de Ramos Leonora de Almeida Oliveira Elaine de Almeida(filha) Aedil de Almeida(filho) Ana Lúcia de Almeida Oliveira(filha) Suzana de Almeida(filha) Leonize de Almeida(filho) Fernando Vitorino Souza Filho(filho) Fernanda Vitorino Almeida(filha) Anderson Almeida Ramos(filho) Nodir de Almeida Oliveira(filho) Benildo de Almeida Cerqueira Moreira Tatiane de Almeida (filha)

36- Ivan Gonçalves de Pontes37- Gerasil Dias Gonçalves Cleuza Maciel da Rosa Rafael(filho) Cleiton(filho)mora cangume Rosemeire(filho)mora cangume