Relativismo - Blablabla - Ponde - Folha de Sao Paulo

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4/10/2014 Folha de S.Paulo - Luiz Felipe Pondé: Blablablá - 02/03/2009 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0203200917.htm 1/2 Assine 0800 703 3000 SAC Bate-papo E-mail E-mail Grátis Shopping BUSCAR São Paulo, segunda-feira, 02 de março de 2009 Texto Anterior | Próximo Texto | Índice LUIZ FELIPE PONDÉ Blablablá Sempre suspeitei que esse papo relativista fosse blablablá; funciona bem em bares O QUE você faria se estivesse a ponto de assistir a um ritual de antropofagia? Interromperia (sem risco para você)? Ou deixaria acontecer em nome do relativismo cultural (essa ideia que afirma que cada um é cada um, que as culturas devem ser respeitadas em sua individualidade e que não podemos compará-las)? No primeiro caso, você seria um horroroso descendente dos "jesuítas"; no segundo você seria um relativista chique. Sempre suspeitei que esse papo relativista fosse blablablá. Funciona bem em aula de antropologia, em bares, em parques temáticos e lojas de curiosidades. É evidente que "jesuítas" de todos os tipos fizeram horrores nas Américas. Todo adulto bem educado sabe que é feio condenar cultos à lua ou à chuva. Mas há algo no relativismo cultural que me soa conversa fiada: o relativismo cultural morre na praia quando você é obrigado a conviver com o Outro. E o "Outro" nem sempre é legal. Se você aceita a antropofagia em nome do respeito à "cultura", aceita implicitamente a ideia de que o valor da vida humana seja subordinado à "cultura". A vida humana não tem valor em si. Todo estudante de antropologia sabe recitar esse credo. Quando confrontado com dilemas como esse, o relativista diz que se trata de uma situação meramente hipotética (hoje não existe mais antropofagia). Mas a verdade é que quando o relativista diz que a antropofagia é hoje quase nula, e, portanto, esse dilema não tem "validade científica", está literalmente correndo do pau porque "alguém" acabou com a antropofagia, não? Por que a antropofagia "acabou"? Algumas hipóteses: 1) os antropófagos foram mortos por gripes ou em batalhas; 2) foram convertidos pelos horrorosos "jesuítas" e seus descendentes; 3) descobriram formas mais fáceis de comer e rituais que deixam as pessoas (isto é, os Outros) menos irritadas e com menos nojo. É importante conhecer o "lugar" da antropofagia nas religiões dos canibais, mas isso é apenas um "dado" antropológico. Uma descrição de hábitos (ruins). Mas o relativista tem que correr

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4/10/2014 Folha de S.Paulo - Luiz Felipe Pondé: Blablablá - 02/03/2009

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LUIZ FELIPE PONDÉ

Blablablá

Sempre suspeitei que esse paporelativista fosse blablablá; funcionabem em bares

O QUE você faria se estivesse a ponto de assistir a um ritualde antropofagia? Interromperia (sem risco para você)? Oudeixaria acontecer em nome do relativismo cultural (essaideia que afirma que cada um é cada um, que as culturasdevem ser respeitadas em sua individualidade e que nãopodemos compará-las)?No primeiro caso, você seria um horroroso descendente dos"jesuítas"; no segundo você seria um relativista chique.Sempre suspeitei que esse papo relativista fosse blablablá.Funciona bem em aula de antropologia, em bares, emparques temáticos e lojas de curiosidades. É evidente que"jesuítas" de todos os tipos fizeram horrores nas Américas.Todo adulto bem educado sabe que é feio condenar cultos àlua ou à chuva. Mas há algo no relativismo cultural que mesoa conversa fiada: o relativismo cultural morre na praiaquando você é obrigado a conviver com o Outro. E o "Outro"nem sempre é legal. Se você aceita a antropofagia em nome do respeito à"cultura", aceita implicitamente a ideia de que o valor davida humana seja subordinado à "cultura". A vida humananão tem valor em si. Todo estudante de antropologia saberecitar esse credo. Quando confrontado com dilemas comoesse, o relativista diz que se trata de uma situação meramentehipotética (hoje não existe mais antropofagia). Mas averdade é que quando o relativista diz que a antropofagia éhoje quase nula, e, portanto, esse dilema não tem "validadecientífica", está literalmente correndo do pau porque"alguém" acabou com a antropofagia, não? Por que aantropofagia "acabou"? Algumas hipóteses: 1) os antropófagos foram mortos porgripes ou em batalhas; 2) foram convertidos pelos horrorosos"jesuítas" e seus descendentes; 3) descobriram formas maisfáceis de comer e rituais que deixam as pessoas (isto é, osOutros) menos irritadas e com menos nojo. É importanteconhecer o "lugar" da antropofagia nas religiões doscanibais, mas isso é apenas um "dado" antropológico. Umadescrição de hábitos (ruins). Mas o relativista tem que correr

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do pau mesmo, porque seu credo funciona bem apenas nasconversas de salão. A vida é sempre pior do que as festas.Relativistas culturais são, no fundo, puritanos disfarçados,gostam de "aquários humanos".Os seres humanos são culturalmente promíscuos, e "acultura" sem promiscuidade (trocas, misturas, confusões) sóexiste nos livros. Use internet, televisão, celulares, aviões eestradas, faça sexo ou guerra, e o papo do relativismocultural vira piada. Na realidade, as pessoas lançam mão doargumento relativista somente quando lhes interessa defendera "tribo" com a qual ganha dinheiro e fama. O problema como debate sobre os índios (ou qualquer outra culturaconsiderada "coitada") é a mitologia que ela provoca. Se, deum lado, alguns falaram dos índios (erradamente) comoinferiores, bárbaros ou inúteis, por outro lado, os que"defendem" os índios normalmente caem no mito oposto:eles são legais e só querem viver "sua cultura", e eles não são"capitalistas" como nós, e blablablá. Índios gostam de podercomo todo mundo, vide os índios "conscientes de seusdireitos" devorando computadores, celulares e internet noFórum Social, em Belém -ou ficam na idade da pedra mesmoe precisam que o Estado os defenda do mundo. As culturas mais bem-sucedidas são predadoras e seduzem asmais fracas (ser mais bem-sucedida não implica ser legal).Por que levar medicina científica (invenção dos"opressores") para as aldeias? Não seria contaminação"cultural"? Vamos ou não brincar de "curandeiros"? Que talabraçar árvores? Se você é católico e quer ser fiel aos seusprincípios, você é um retrógrado; se você quer viver no meioda selva (com direitos adquiridos porque você é de umacultura "coitada"), você é apenas uma tribo com direito aintegridade cultural. O conceito de cultura é quase um fetichedo mercado das ciências humanas. Não que não existamculturas, mas o conceito na sua inércia preguiçosa sófunciona no laboratório morto da sala de aula ou do museu.A vida se dá de forma muito mais violenta, se misturando, sedevorando. Nada disso é "contra" os índios, mas sim contra o relativismocomo ética festiva. O oposto dele não é o obscurantismo,mas a dinâmica da vida real. O relativismo é um (velho)problema filosófico e um "dado" antropológico. Um drama, enão uma solução.

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