Relações Étnico Raciais

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ESPECIAL CURSO ERER CADERNOS PENESB Revista do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira Faculdade de Educação – UFF n. 12, 2010 Cadernos Penesb 2010 Niterói n. 12 p. 1-390 ISSN 1980-4423

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  • ESPECIAL

    CURSO ERER

    CADERNOS PENESBRevista do Programa de Educao sobre o Negro na

    Sociedade BrasileiraFaculdade de Educao UFF

    n. 12, 2010

    CadernosPenesb 2010Niteri n. 12 p. 1-390

    ISSN 1980-4423

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    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)Cadernos Penesb Peridico do Programa de Educao sobre o Negro

    na Sociedade Brasileira FEUFF(n. 12) (2010) Rio de Janeiro/Niteri Ed. ALTERNATIVA/EdUFF/2010

    ISSN 1980-44231. Negros. Educao - Brasil - Histria. 2. Negros. Identidade racial

    3. Relaes raciais. 4. EducaoCDD 370.981

    Indexado na bibliografia de Educao

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  • SUMRIO

    APRESENTAO ....................................................................................7Iolanda de Oliveira

    HISTRIA DA FRICA ..................................................................23Mnica Lima

    O NEGRO NA HISTRIA DO BRASIL ........................................ 69Hebe Mattos Martha AbreuCarolina Vianna Dantas (orgs)

    TRFICO DE ESCRAvOS E ESCRAvIDO NA AMRICA PORTUGUESA ....................................................... 70Gabriel Aladrn

    ESCRAvIDO E ALFORRIA NA AMRICA PORTUGUESA .......81Gabriel Aladrn

    QUILOMBOS, REvOLTAS E FUGAS ........................................93Matheus Serva Pereira

    IRMANDADES, FESTAS E SOCIABILIDADE NEGRA NO BRASIL .............................................................................103Larissa Viana

    A FAMLIA ESCRAvA: POSSIBILIDADES E EXPERINCIAS ..113Camila Marques

    ESCRAvIDO E CIDADANIA NO BRASIL ..............................121Keila Grinberg

    ABOLIO E ABOLICIONISMO ........................................... 129Eric BrasilCamila Mendona

  • RACIALIZAO E MOBILIZAO NEGRA NAS PRIMEIRAS DCADAS REPUBLICANAS ................................141Carolina Vianna Dantas

    MOvIMENTO NEGRO NO BRASIL REPUBLICANO..............153Amilcar Araujo Pereira

    DIvERSIDADE CULTURAL, REPARAO E DIREITOS ........161Martha Abreu

    TEORIA SOCIAL E RELAES RACIAIS NO BRASIL CONTEMPORNEO ......................................................................169Kabengele Munanga

    RAA, CURRCULO E PRXIS PEDAGGICA: RELAES RACIAIS E EDUCAO: O DILOGO TEORIA/PRTICA NA FORMAO DE PROFISSIONAIS DO MAGISTRIO ..............205Iolanda de OliveiraMnica Pereira do Sacramento

    O NEGRO NA LITERARURA ........................................................285Mrcia Maria de Jesus Pessanha

    RELIGIES DE MATRIZ AFRICANA ...........................................325Rogrio Cappelli

    SUBJETIvIDADE E NEGRITUDE ................................................369Maria das Graas Gonalves

  • CADERNOS PENESB: ESPECIAL

    CURSO ERER

    Iolanda de Oliveira1

    1 Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento USP Professora do Programa de Ps-graduao em Educao UFF

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    ApresentAo

    Educao para as Relaes tnico Raciais: composio curri-cular e dinmica de um curso de formao continuada para docentes da escola bsica.

    O Cadernos Penesb no 12, um nmero especial no qual apresentado todo o material utilizado no curso Educao para as relaes tnico raciais (ERER), ministrado no perodo 2009/2010 pelo Programa de Educao sobre o Negro na Sociedade Brasileira.

    O curso ERER foi oferecido como educao continuada a pro-fissionais que atuam na educao bsica, na rede pblica, em cinco municpios do estado do Rio de Janeiro, na modalidade distncia, com carga horria de 180 horas, das quais 30 horas foram presenciais, a partir da aprovao submetida ao Edital no 1 SECAD/MEC de 16 abril de 2008. O edital consistiu em uma chamada pblica para seleo de instituies de ensino superior para implementao da rede de educao para a diversidade, no mbito do sistema Universidade Aberta do Brasil.1

    A proposta do Penesb orientou-se pelo princpio de que a questo principal dos cursos, tanto os de formao inicial, quanto continuada, est vinculada garantia de qualidade, independente-mente da modalidade em que os cursos so oferecidos. Entende-se que em ambas as modalidades, respeitando-se as particularidades de cada uma, h de se considerar a necessidade de estabelecer critrios e uma organizao dinmica que impeam o sucateamento, isto , que garantam um nvel de ensino, compatvel com uma atuao docente devidamente qualificada.

    Tendo o Penesb sua maior experincia na oferta de cursos de educao continuada na modalidade presencial, a nvel de ps-graduao lato sensu e de extenso, decidiu-se propor um curso de extenso na modalidade contemplada pelo referido edital, a fim de

    1 Edital no 1 SECAD/MEC, de 16 de abril de 2008.

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    que os esforos do Programa, centrados em um curso de extenso, pudessem ter maior probabilidade de sucesso, eliminando-se em um primeiro momento o curso de ps-graduao lato sensu que implica em elaborao de monografias, o que um elemento cujo enfrentamento na modalidade distncia se decidiu adiar.

    Coerente com todos os cursos de formao continuada ofere-cidos pelo Penesb, o curso ERER teve os seguintes objetivos:

    1 Oferecer aos profissionais em exerccio na Escola Bsica, oportunidade de:

    adquirir conhecimentos que lhes possibilitem compreender e interferir na situao da populao negra no sistema de ensino, por meio da reviso da sua prtica pedaggica, com vistas a uma pedagogia que promova a real democratizao das oportunidades educacionais;

    desenvolver a habilidade de incluir os referidos conhecimentos no seu planejamento pedaggico e, consequentemente, garantir o domnio desses conhecimentos pelos alunos a fim de tornar as relaes raciais entre os estudantes respeitosas e dialgicas, com vistas incorporao de tais comportamentos nas relaes raciais em todos os espaos sociais;

    2 Despertar nos cursistas a confiana no potencial dos estudantes pretos e pardos, com o propsito de tornar as relaes professor-aluno negro, capazes de promover a equidade racial;

    3 Contribuir para alterar o quadro de desigualdades raciais na educao brasileira.

    Orientando-se pelo ncleo das disciplinas bsicas dos cursos de for-mao continuada, ministrados pelo Penesb, a grade curricular teve os seguintes componentes:Histria da fricaO Negro na Histria do BrasilTeoria Social e Relaes Raciais

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    Raa, Currculo e Prxis Pedaggica

    O Negro no Ensino da Lngua e da Literatura

    Religies de Matriz Africana (Mitologia e Cosmologia Africanas)

    As disciplinas relacionadas foram precedidas de aulas intituladas Como estudar distncia, com o propsito de preparar os cursistas para a utilizao da plataforma determinada para o curso.

    Os autores de cada texto tiveram tambm a funo de discutir o texto com a coordenao colegiada do curso, com os professores on line e com os presenciais.

    A coordenao colegiada foi composta de cinco professores, sendo quatro doutores vinculados UFF e um professor da escola bsica, mestre, a fim de se garantir a estreita articulao com o espao escolar que precede o nvel superior. Foram denominados professores on line, profissionais selecionados por meio de edital, mestrandos, mestres e doutorandos, com pesquisas concludas sobre o negro, na rea de sua atuao, os quais tive-ram a funo de orientar, acompanhar e avaliar os cursistas via plataforma, com um encontro presencial por disciplina. Excepcionalmente, foram admitidos entre os 48 profissionais assim denominados, trs docentes especialistas em Educao para as Relaes Raciais, cuja produo final, no curso de especializao, foi a nvel de excelncia.

    Os professores presenciais tiveram a funo de dar orientao presencial sobre a utilizao da plataforma, atuando junto aos polos. A despeito da funo desses ltimos, restringiu-se a orientao sobre a maneira pela qual o estudo distncia realizado; a seleo foi feita com o mesmo rigor que para os professores on line, o que provocou a participao dos mesmos nas discusses sobre o contedo das dife-rentes disciplinas ministradas, dando significativas contribuies para o bom desempenho dos cursistas.

    Nesta publicao, apresentam-se os textos bsicos elaborados e dois DVDs, com a gravao feita com cada autor, os quais fazem a apresentao dos textos elaborados e aqui apresentados.

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    Nos DVDs, precedendo a apresentao das disciplinas, feita uma apresentao geral do curso pela coordenadora do mesmo, a fim de situar os destinatrios desta publicao sobre a respectiva produo visual que acompanha os textos escritos.

    A durao de cada apresentao seria inicialmente de 15/20min., o que viabilizaria a produo de apenas um DVD. Entretanto, por motivo da qualidade das apresentaes, decidiu-se respeitar a deciso de cada autor sobre o contedo a permanecer em cada apresentao. Em face de tal deciso, houve necessidade de realizar as gravaes em dois DVDs.

    O fundo musical apresentado nas aulas-vdeo tem como ttu-lo Origem da Humanidade e foi produzido pelo seguinte grupo: Autor: Jorge soares (Jorge Tropical)

    Grupo musical: cavaquinho solo bandolim: Ded Aguiar

    Percusso e voz: Jos Paulo

    Cavaquinho centro: Jorge Soares (Jorge Tropical)

    O trabalho sobre Histria da frica ficou sob a responsabilidade da Profa Dra Mnica Lima, que apresenta o contedo mnimo indis-pensvel a uma atuao satisfatria de um profissional que atua na escola bsica, fazendo um percurso sinttico da histria do continente africano da poca pr-colonial, at os nossos dias.

    O Negro na Histria do Brasil, sob a coordenao das profes-soras doutoras Hebe Mattos e Martha Abreu, teve o texto produzido por seus orientandos a nvel de mestrado, doutorado e ps-doutorado, sendo que o vdeo-aula foi gravado pelas duas coordenadoras.

    A disciplina O negro na histria do Brasil, foi apresentada por meio de dez textos, elaborados por diferentes autores, sob a coorde-nao das professoras doutoras Hebe Mattos e Martha Abreu.

    Os textos apresentados situam o negro na histria do Brasil em relao a diferentes aspectos, contribuindo para eliminar a equivocada ideia de que o negro foi submetido a uma subalternizao absoluta, desprovida de formas de resistncia.

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    Os autores dos textos e suas respectivas produes so a seguir relacionados.

    Gabriel Aladrn elaborou o texto Trfico de escravos e escravi-do na Amrica Portuguesa, situando o contedo em um contexto para alm do Brasil, o que amplia e enriquece a viso do leitor sobre a escravido brasileira. O mesmo autor escreveu, tambm, Escravido e alforria na Amrica Portuguesa

    Quilombos, revoltas e fugas de autoria de Matheus Serva Pereira. Superando equvocos da histria tradicional, o autor enfatiza a interseo entre a situao do negro como vtima e como sujeito, evidenciando que nenhum dos dois aspectos se d de modo absoluto, destacando as formas de resistncia que intitulam o texto.

    Larissa Viana deu a sua contribuio produzindo o texto Irman-dades, festas e sociabilidade negra no Brasil escravista, salientando, entre outros aspectos, as irmandades como espaos de identidade, solidariedade e coeso grupal.

    Camila Marques apresentou o seu texto sob o ttulo A famlia escrava: possibilidades e experincias, no qual a autora refere-se a laos de solidariedade, com destaque na organizao familiar.

    Escravido e cidadania no Brasil foi elaborado por Keila Grin-berg discutindo a cidadania de escravos libertos e de seus descen-dentes a partir da independncia.

    Abolio e abolicionismos tem como autores Eric Brasil e Camila Mendona, os quais apresentam o processo que resultou na eliminao oficial da escravido no Brasil.

    De Carolina Dantas Vianna, tem-se a produo intitulada Ra-cializao e mobilizao negra nas primeiras dcadas republicanas, no qual a autora estabelece a relao entre a extino oficial da escravido e ocorrncias nos primeiros anos do Brasil republicano.

    O movimento negro no Brasil tem sua histria documentada por Amilcar Arajo Pereira que organizou o seu texto a partir das

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    dcadas 1920/1930, fazendo um percurso histrico at o movimento negro contemporneo.

    Culminando a produo sobre a disciplina, a professora Martha Abreu apresenta o tema que, tendo implicaes no contexto mun-dial, ganha destaque no Brasil contemporneo: Diversidade cultural, reparao e direitos humanos.

    Os textos apresentados, rompem com a tradicional ideia de alguns autores que apresentam o negro exclusivamente como objeto subalternizado e pacfico, mas evidenciam a complexidade das relaes estabelecidas no Brasil na interao do negro com a sociedade em diferentes momentos da histria brasileira.

    O professor Kabengele Munanga, autor da parte relativa disciplina Teoria Social e Relaes Raciais no Brasil Contemporneo, tratou de questes particulares das relaes raciais no mbito das cin-cias sociais, particularizando aspectos antropolgicos e sociolgicos.

    Na parte introdutria o autor retoma alguns aspectos gerais sobre o racismo para, posteriormente, abordar a questo particula-rizando o negro ao recorrer aos seguintes subtemas: O outro, sob o ttulo: No incio era o outro bem diferente da gente o ns e os outros, mantendo, ainda neste item, de maneira ampla, a questo da diferena; seguem-se as consideraes sobre o significado da palavra raa, a discusso sobre a palavra racismo seguida de reflexes sobre a relao entre racismo e diferena. Biologizao das lnguas, cultura e criminalidade um dos subttulos da parte que discute inicialmente aspectos relativos raa ariana, seguida de consideraes sobre culturas negra, branca e amarela e sua racializao.

    Como explicar a diversidade biolgica humana outro item que aborda aspectos biolgicos vinculados raa.

    O contedo apresentado nesta disciplina foi distribudo em trs semanas, sendo que na quarta semana foi includa a leitura do texto cuja referncia se encontra a seguir por motivo da importncia de situar os leitores sobre a pesquisa em relaes raciais, patrocinadas

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    pela UNESCO nos anos de 1951/1952, o que contribui para com-preender o tema das relaes raciais no mbito da Antropologia e da Sociologia na poca considerada no texto indicado para leitura pelos cursistas:

    MAIO, Marcos Chor. O projeto UNESCO e a agenda das cincias sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 14, n. 41, out. 1999.

    A disciplina Religies de Matriz Africana foi ministrada em trs semanas e as outras ou seja, Histria da frica, O Negro na Histria do Brasil e O Negro na Literatura, foram ministradas em quatro semanas. A disciplina Raa, Currculo e Prxis Pedaggica, por ser o espao para o qual devem convergir todos os contedos das outras disciplinas, tem uma durao maior, ocupando seis semanas.

    A diviso semanal do contedo das disciplinas foi feita pela equipe responsvel pela produo e disseminao dos textos, a fim de facilitar a apropriao dos mesmos pelos cursistas. Entretanto, nesta publicao, cuja inteno principal subsidiar a formao tanto inicial quanto continuada de profissionais docentes, a equipe considerou conveniente desvincular os textos da diviso em semanas, a fim de deixar livre para os profissionais que quiserem utilizar esta produo, a diviso ou no em perodos para estudo. Julgou-se que fazer permanecer esta diviso em uma publicao que pretende ser de acesso nacional e tambm internacional, seria pretender unificar o que diversificado. No Brasil, um pas com acentuadas diferenas regionais, nas quais a formao dos docentes atingida por esta di-versidade, de modo paralelo a aspectos em que uma certa unidade percebida, no se podem padronizar a formao docente, ainda que preservando certos contedos em carter nacional.

    A padronizao em semanas, mesmo no curso ministrado pelo Penesb, de onde os textos aqui apresentados tiveram origem, foi fle-xvel em diferentes momentos do curso. Entende-se, portanto, que a organizao em semanas foi necessria em um primeiro momento para organizar o curso e situ-lo no tempo disponvel para o mesmo,

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    mas sem dotar esta organizao de uma inflexibilidade incompatvel com o trabalho que visa a diversidade humana e, no caso particular do curso em questo, a diversidade racial brasileira. Igualmente, s questes apresentadas para avaliao, foram atribudos pontos para o cmputo final em cada disciplina. Entretanto, nesta publicao, reti-ramos a atribuio de notas, deixando a critrio dos possveis usurios deste Cadernos Penesb especial, tanto a deciso de atribuir pontos s questes apresentadas, quanto a alterao das mesmas, possibilitando a explorao de aspectos salientados em cada texto que no foram explorados pela equipe do Penesb.

    Raa, Currculo e Prxis Pedaggica, disciplina que tem a funo de oferecer aos cursistas a possibilidade de adquirir condi-es de manipular os contedos assimilados pelas outras disciplinas, colocando-os ao alcance dos seus alunos em seus diferentes nveis, foi elaborada pela autora desta apresentao, com a participao da doutoranda Mnica Pereira do Sacramento.

    Procurando expressar o exposto anteriormente por meio do ttulo da disciplina, acrescentou-se mesma a frase que se segue: O dilogo teoria/prtica na formao dos profissionais do magistrio, ttulo que expressa o sentido atribudo disciplina e ao contedo selecionado para a mesma. Tal acrscimo foi feito porque considera-se que o perfil do magistrio se define no somente pelo domnio de contedos especficos, mas tambm pelo conhecimento e utilizao da parte pedaggica, a fim de dar a forma pedaggico/didtica aos contedos que devem ser assimilados pelos alunos. Entende-se que contedos especficos e aspectos pedaggicos se completam na for-mao docente, sendo que o seu isolamento nesta formao provoca a esterilidade de ambos.

    Ainda que caracterizada pelo aspecto pedaggico, no texto produzido foram includos contedos sobre a produo das teorias raciais e sua disseminao no Brasil para possibilitar aos cursistas o domnio de conhecimentos que esclarecem o percurso histrico social do pensamento acadmico sobre as raas humanas.

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    Precedendo o contedo sobre polticas de ao afirmativa, decidiu-se reapresentar dados da srie temporal 1995/2005, publicados pelo IPEA e j apresentados por ns em outro texto, de acesso no ime-diato pelos cursistas, a fim de orientar a reflexo sobre a necessidade da tomada de medidas polticas eficazes para desestabilizar a persistncia das desigualdades raciais constatadas, em face da ineficcia das polticas universalistas. Apresenta-se tambm, no mesmo item, dados do relatrio anual das Desigualdades raciais no Brasil que tambm evidenciam, no ensino mdio, acentuadas disparidades entre brancos e negros.

    de extrema importncia atentar para a atividade de imerso no final do item intitulado A questo racial na educao brasileira, que remete os cursistas reflexo da prpria realidade em que atuam, levando-os a fazer uma anlise da situao dos estudantes por cor, sob sua responsabilidade, em relao ao desempenho escolar e da relao srie/idade. a partir desses micros espaos que se tem a possibilidade de transformar a educao a nvel macro em coerncia com as teorias progressistas produzidas pela academia e com as determinaes legais vigentes, sendo este o objetivo primeiro do curso ministrado.

    A partir dos conhecimentos anteriormente apresentados, as autoras sugerem que o momento de discutir aes afirmativas como alternativa para reparar os danos constatados, cometidos populao negra pela violao dos seus direitos.

    Culminando, apresenta-se conhecimentos sobre planejamen-to escolar e do ensino, com o propsito de subsidiar a atividade de imerso/avaliao que apresentada no final do texto, a qual teve a possibilidade de ser apresentada no final do curso, quando o contedo de todas as disciplinas j havia sido ministrado, ampliando o universo para a seleo dos contedos a ensinar.

    O texto da disciplina O negro na Literatura, foi produzido pela professora Mrcia Maria de Jesus Pessanha sob o ttulo Do silncio ao canto pico do negro na literatura brasileira, no qual se percebe a recuperao dos estudos sobre a presena negra na literatura, ora de maneira estigmatizada, ora de modo edificante, sendo o negro, nesse

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    caso, apresentado como sujeito do seu discurso. Este segundo aspecto contribui para desestabilizar a ideia disseminada sobre a passividade do negro em diferentes situaes em que o mesmo subalternizado, sem que se evidencie a comprovao das diferentes formas de resistncia que atravessam toda a histria do Brasil.

    Entre outros aspectos importantes, destacados pela autora, encontra-se a classificao da literatura em dois grandes momentos da histria: a literatura produzida na era colonial e a produo na-cional. Esta classificao contribui para que se perceba claramente que a produo literria no algo isolado e sim produzida em um determinado contexto.

    Religies de matriz africana a disciplina cuja produo textual teve a autoria do professor Rogrio Cappelli, a qual includa no currculo de todos os cursos ministrados pelo Penesb.

    A disciplina tem o propsito de desconstruir aspectos equivo-cados sobre as religies de matriz africana, equvocos estes que foram incorporados no imaginrio social e individual brasileiro, provocando preconceitos e discriminaes para com as prticas religiosas que preservam algum trao originrio da frica.

    importante esclarecer que se d especial ateno ao princpio que deve orientar as universidades pblicas, em um estado laico que o princpio da no doutrinao.

    Entende-se que a universidade pblica o lugar de produo e disseminao de saberes, sob a responsabilidade de intelectuais genu-nos, que tem como princpio a busca da verdade, sendo desprezveis as posies tendenciosas, comprometidas com interesses particulares de determinados grupos, sem entretanto, negar a no neutralidade dos conhecimentos produzidos. Por outro lado, se a no neutralidade est presente em todos os saberes produzidos, a coleta de dados deve ser o resultado de um esforo do pesquisador, no sentido de ver o que , o que est posto na realidade que constitui o seu universo de pesquisa e no aquilo que ele em sua no neutralidade pretende que a realidade seja.

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    A universidade pblica , portanto, o lugar do saber, da pro-duo e da disseminao dos conhecimentos filosficos e cientficos, delegando-se s instituies religiosas, a funo de doutrinar. Portan-to, a atitude de dvida, de busca, da desestabilizao dos equvocos prpria do espao acadmico, inclusive diante do conhecimento revelado, sendo este o papel que o Penesb se prope a desempenhar junto ao pblico destinatrio do seu trabalho, sendo esta a postura que se mantm, inclusive em se tratando do conhecimento sobre as reli-gies de matriz africana. Entende-se que a doutrinao, a inculcao da crena em um determinado conhecimento tido como inquestio-nvel, no papel da universidade e, se comprovada a legitimidade da doutrinao, o seu lugar no nas instituies de ensino superior pblico e sim nas instituies religiosas.

    A partir de tais consideraes, pode-se questionar, ento, qual o papel da disciplina Religies de matriz africana nos cursos ministrados pelo Penesb? Pretende-se que o espao da disciplina seja um convite aos cursistas para terem uma atitude cientfica diante dos conhecimen-tos a serem apresentados no curso sobre o assunto, confrontando-os com o que ocorre no senso comum, no seu cotidiano, no cotidiano escolar e com as representaes que cada um construiu sobre o tema. Espera-se que, a partir desta pretenso, os equvocos sobre o assunto sejam eliminados, dando lugar ao que de fato a cultura religiosa de matriz africana, independentemente da religio que cada cursista tem o direito de praticar e tambm da postura dos materialistas. A disciplina um convite a todos, espiritualistas e materialistas, para experimentarem o exerccio de um intelectual genuno diante da cultura religiosa de matriz africana e no um convite para profess-la, o que no , repito, papel do ensino pblico em um estado laico.

    Coerente com a postura do Penesb, o professor Rogrio Ca-ppelli, elaborou o texto que se apresenta nesta edio de Cadernos Penesb.

    importante salientar que alguns membros do colegiado do curso, em reunio, propuseram a mudana do ttulo da disciplina

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    para Mitologia e cosmologia africanas, a fim de acentuar o carter acadmico das discusses. Entende-se que f e cincia, independen-temente dos seus possveis cruzamentos, tm espaos diferenciados e tambm caractersticas diferenciadas: f conhecimento revelado, pronto, acabado, no sendo passvel de questionamentos, devendo ser incorporado sem discusses; conhecimento filosfico/cientfico, em construo, inacabado, passvel de questionamento sobre o seu grau de confiabilidade, aberto a novas elaboraes e a desestabilizao de saberes anteriormente construdos.

    A posio apresentada necessita, ainda, de ampliao das dis-cusses para que seja tomada a posio que a maioria tomar, sendo de extrema importncia a voz do autor do presente texto e de outros profissionais respeitveis que pesquisam sobre o tema.

    Subjetividade e Negritude, a denominao sugerida para uma disciplina que no curso de Ps-graduao lato sensu tem a denominao provisria de Psicologia e identidade racial. Ministrada pela professora Maria das Graas Gonalves, com resultados muito satisfatrios, houve a sugesto de que a disciplina, com a nova denominao, seja includa nos cursos de extenso, o que exigir tambm, a ampliao das discusses.

    Tendo em vista a importncia do contedo mencionado para o profissional docente, decidiu-se incluir nesta publicao, uma vdeo-aula e um texto sobre o assunto, ambos apresentados pela professora Maria das Graas Gonalves.

    Com a publicao do Cadernos Penesb Especial, curso ERER, o Penesb se empenha a fim de ampliar o acesso a conhecimentos funda-mentais para abrir espao para a construo de novas representaes sobre o negro, para tornar as relaes inter-raciais baseadas no respeito e no dilogo sem hierarquizaes, preconceitos e discriminaes e, par-ticularmente, contribuir para a formao continuada de profissionais docentes sobre a diversidade racial brasileira e os efeitos que os seus significados sociais provocaram nos setores sociais, ao racializarem os diferentes lugares ocupados pela populao brasileira. Espera-se, a partir dessas consideraes, que se contribua para a construo de um espao

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    escolar em que o desempenho escolar e a relao srie/idade, o acesso aos nveis mais elevados de educao, no mais sejam condicionados pela cor dos sujeitos como um dos fatores de excluso/incluso.

    Ainda nesta apresentao cabe prestar alguns esclarecimentos sobre a forma dos textos apresentados.

    Em funo do propsito particular deste nmero, decidiu-se, na presente edio, manter ao mximo a originalidade dos textos, devido s discusses que foram feitas com os autores e sobre os textos, as quais resultaram em alteraes consensuais no grupo de professores que compem a coordenao colegiada, entre os professores on line e presenciais e cuja apresentao aos cursistas, segundo avaliao pelos mesmos, atendeu plenamente aos objetivos do curso. Em consequncia, pretendendo-se que esta publicao seja utilizada na formao de outros profissionais, tendo em vista o xito alcanado, decidiu-se preservar a forma pela qual foi apresentada aos professores cursistas, o que no privilegia uma nica forma de apresentao, preservando-se, entretanto, alguns aspectos essenciais ao curso em todos os textos.

    Chamamos a ateno do leitor para a questo da importncia da dualidade unidade/diversidade, na busca da igualdade de grupos, entre os quais a sociedade criou um largo espao no acesso a determi-nados direitos, privilegiando um grupo e rechaando outros. Unidade e diversidade no constituem pares excludentes, mas se cruzam na forma de apresentao dos textos que compem esta obra. Ao mes-mo tempo que mantm semelhanas, se diferenciam de acordo com a rea privilegiada, com a natureza do contedo apresentado e com a maneira particular de cada autor interagir com os destinatrios de sua produo.

    O texto Negritude e Subjetividade, um primeiro momento em que sua autora, comprometida com a construo de uma identi-dade racial compatvel com as caractersticas fenotpicas dos sujeitos, apresenta alguns aspectos sobre o assunto, no dando a priori, sua produo, a forma didtica que se apresenta nos outros textos.

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    ESPECIAL CURSO ERER

    Este nmero de Cadernos Penesb, ao mesmo tempo em que se diferencia dos outros nmeros, preserva a identidade da publicao, sobretudo porque mantm fidelidade ao seu objetivo primeiro que o de disseminar os conhecimentos produzidos sobre o negro em educao e afins, tendo os docentes como seus principais destinatrios.

    Elaborados inicialmente para a formao continuada na modali-dade distncia, utilizados na modalidade presencial, o material aqui apresentado, tem tambm alcanado o objetivo proposto inicialmente, exposto nesta introduo.

    Iolanda de Oliveira

  • HIstrIA DA FrICA

    Mnica Lima1

    objetIvos:

    Oferecer aos cursistas oportunidades de adquirir conheci-mentos de alguns temas e questes sobre a histria da frica, dando destaque aos processos histricos ocorridos em regies do continente que tiveram uma relao mais intensa com o Brasil.

    1 Doutora em Histria UFF. Professora da UFRJ.

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    Cadernos Penesb l 12

    IntroDuoNeste texto sero apresentados alguns temas e questes sobre a

    Histria da frica, numa viso panormica, dando destaque aos pro-cessos histricos ocorridos em regies do continente que tiveram uma relao mais intensa com o Brasil. E tambm sero discutidos alguns dos desafios a serem enfrentados pelos educadores brasileiros ao lidar com esses assuntos nos currculos escolares. Como sabemos, a abordagem desses temas foi modificada a partir da lei no 10.639/03, que tornou obrigatrio o ensino de Histria da frica e dos Africanos no Brasil nos estabelecimentos de ensino pblicos e privados no nosso pas. Essa lei, dirigida Educao Bsica, tem seus desdobramentos para a formao de professores no ensino superior expressos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnicorraciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Estes dispositivos legais alte-raram a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (lei 9394/1996).1

    DICAsVeja os textos da Lei e da Resoluo na ntegra, nos seguintes endereos da internet:

    (Lei no 10.639 de 09/01/2003)

    (Resoluo CNE no 1 de 17/06/2004)

    Os temas sero apresentados em tpicos, seguidos de indicaes bibliogrficas e/ou de sugestes de atividades para aprofundamento. A abordagem ampla e o enfoque sobre cada um dos assuntos sele-cionados de carter geral. O que se pretende informar sobre os principais aspectos e indicar caminhos para um maior conhecimento do tema. Foram privilegiados tpicos que abrissem possibilidades de uma abordagem interdisciplinar nos currculos escolares e que tivessem relao com grandes questes da histria geral e do Brasil.

    1 Mais recentemente, esta mesma lei foi ampliada com a incluso de contedos sobre histria e culturas indgenas pela lei 11.645/2008. No entanto, manteve-se a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica

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    ESPECIAL CURSO ERER

    A FrICA nA HIstrIA Do brAsIl e Do munDo

    No so apenas os aspectos legais que nos colocam diante da Histria da frica. Muito antes e alm deles, sabamos que no se pode entender a Histria do Brasil sem compreender suas relaes com o continente africano. A frica est em ns, em nossa cultura, em nossa vida, independentemente de nossa origem familiar pessoal. Sendo brasileiros, carregamos dentro de ns muito da frica. Portan-to, conhecer a Histria da frica um caminho para entendermos melhor a ns mesmos.

    E ainda devemos lembrar que a Histria da frica parte indis-socivel da Histria da humanidade, na sua expresso mais completa. A frica o bero da humanidade, l surgiram as primeiras formas gregrias de vida dos homens e mulheres no nosso planeta. Em toda sua longa histria, os nativos do continente africano estiveram relacionando-se aos habitantes de outras regies e continentes. Seus conhecimentos, produtos, criaes e ideias circularam o mundo, assim como os seus criadores.

    A histria do trfico de escravos africanos constituiu o mais longo e volumoso processo de migrao forada da Histria. Para as Amricas foram cerca de 11 milhes de escravizados, e destes, 40% trazidos para o Brasil, em mais de trs sculos de trfico atlntico. Este doloroso e duradouro processo histrico levou a presena africana ao nosso pas e s diferentes partes do mundo atingidas pela chegada dos cativos. E mais do que isso: fez com que amplas reas do planeta mantivessem contatos permanentes e sistemticos com a frica, num ir e vir de pessoas, ideias, tecnologias, ritmos, vises de mundo...

    E ento nos deparamos com o fenmeno da dispora africana.2 Africanos e afrodescendentes foram espalhados pelo mundo, contra

    2 Processo histrico por meio do qual africanos e africanas foram sendo dispersos pelas Amricas e por outras partes do mundo, por meio, sobretudo, do trfico atlntico de escravos.

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    suas vontades, retirados de suas aldeias, cidades, de suas famlias e de sua terra natal. No carregavam consigo nada alm de si prprios seus corpos, suas tradies, suas memrias. E, atualmente, culturas de matriz africana se fazem presentes em diferentes sociedades no nosso planeta. Cabe a ns educadores conhec-las e estud-las para entender o mundo de ontem, de hoje e de amanh.

    HIstrIA DA FrICA Alguns CuIDADos ImportAntes

    Ao comear nossos estudos sobre Histria da frica estaremos lidando com uma matria-prima fascinante e delicada: os diversos matizes da nossa formao cultural, a memria dos nossos ancestrais africanos e suas heranas, to longamente invisibilizadas. Todo o cuidado ser sempre pouco para no resvalarmos pelas trilhas aparen-temente fceis do maniquesmo, da simplificao e da folclorizao. Vamos pensar, ento, na preveno desses perigosos males que podem enfraquecer nossa percepo e nos distanciar dos nossos objetivos. Alguns desses cuidados podem parecer bvios, mas muitas vezes o aparentemente bvio merece ser re-visto e re-visitado, para refletirmos sobre ele.

    Vamos l...

    1. Os africanos e seus descendentes nascidos da dispora no Novo Mundo (as Amricas, incluindo o Brasil) eram serem humanos, dotados de personalidade, desejos, mpetos, valores. Eram tambm seres contraditrios, dentro da sua humanidade. Tinham seus interesses, seu olhar sobre si mesmo e sobre os outros. Tinham sua experincia de vida, pessoal e, sobretudo, comunitria. Vinham muitas vezes de sociedades no iguali-trias na frica ou nasciam aqui em plena escravido. No h como uniformizar atitudes, condutas e posturas e idealizarmos um negro sempre ao lado da justia e da solidariedade. O que podemos e devemos ressaltar so os exemplos desses valores de humanidade, presentes em muitos, e injustamente nega-

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    ESPECIAL CURSO ERER

    dos e tornados invisveis pela sociedade dominante, durante tanto tempo. Mas, sugerimos veementemente evitar dividir o mundo em brancos maus e negros bons, o que no ajuda a percebermos o carter complexo dos grupos humanos. A ideia valorizar o positivo, mas sem idealizar.

    REFLEXO

    O que entendemos por valorizar o positivo?Trata-se de reconhecer que entre as heranas africanas no Brasil

    esto conhecimentos, condutas e vises de mundo. Os africanos e africanas foram trazidos como escravos para o Brasil e trouxeram em suas memrias maneiras de se relacionar com as pessoas, de celebrar, de preparar os alimentos, de lidar com a religiosidade, entre outros aspectos, que marcaram profundamente nossa cultura e modo de ser. Nos legaram, portanto, parte de sua civilizao.

    2. O nosso desconhecimento sobre a histria e a cultura dos afri-canos e dos seus descendentes no Brasil e nas Amricas pode fazer muitas vezes com que optemos por utilizar esquemas simplificados de explicao para um fenmeno to complexo quanto a construo do racismo entre ns. O racismo um fenmeno que influiu e influi nas mentalidades, num modo de agir e de se ver no mundo. E as diferentes sociedades interagiram com ele de diversas maneiras o Brasil no tem a mesma histria de relaes raciais que os Estados Unidos, para usar um exemplo clssico. No entanto, durante muito tempo se defendeu a ideia de que aqui no havia discrimina-o e, ainda, que o que separava as pessoas era apenas sua condio social. Hoje no s vemos pelos dados da demografia da pobreza brasileira que ela tem uma inequvoca marca de cor, como sabemos que um olhar mais atento Histria e vida do afrodescendentes no pas revela a nossa convivncia permanente com o preconceito e seus efeitos perversos. Mas, para podermos enxergar isso tivemos que ouvir relatos, ver

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    dados e entender como foi essa Histria. S assim pudemos desnaturalizar as desigualdades e ver a face hostil do nosso racismo envergonhado. O que isso quer dizer? Que devemos nos dedicar ao tema: estudar, ler, nos informar, sempre e mais. Afinal, o que est em jogo bem mais que a nossa competncia profissional, o nosso compromisso com um pas mais justo e com um mundo melhor para todos e todas.

    SAIBA MAIS

    Sobre desigualdade racial no Brasil consulte o artigo:HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil: evolu-

    o das condies de vida na dcada de 90. 2001. Disponvel em: .

    3. Muitas vezes nos acostumamos no Brasil a ver as manifestaes culturais de origem africana confinadas ao reduto do chamado folclore. Este conceito de folclore que remete s tradies e prticas culturais populares no tem em si nenhum aspecto que o desqualifique, mas o olhar que foi estabelecido sobre o que chamamos de manifestaes folclricas sim. E, sobre-tudo, no mundo contemporneo, em que a modernidade est repleta de significados positivos, o folclore e o popular se identificam no poucas vezes com o atraso algo curioso, extico, porm de menos valor. Logo, se no problematizar-mos a insero da cultura africana neste registro, correremos o risco de no criarmos identidade nem estimular o orgulho de a ela pertencermos. Podemos desmistificar a ideia de fol-clore presente no senso comum e tambm mostrar o quo complexa e sofisticada a nossa cultura negra brasileira. Ela envolve saberes, tcnicas e toda uma elaborao mental para ser elaborada e se expressar. E, assim como ns, est em perma-nente mudana e no nada bvia. Podemos estar dando um carter restrito se a retivermos nos limites das manifestaes culturais mais aparentes.

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    ESPECIAL CURSO ERER

    4. Faramos uma viagem perdida frica se fossemos buscar l origens puras das religies de matriz africana que conhecemos no Brasil, ou dos ritmos, danas e brincadeiras com que hoje convivemos na nossa cultura popular. O candombl, a capoeira, a congada, o maracatu so manifestaes culturais nascidas no Brasil, e sob a forte marca da histria da escravido no nosso pas, da mistura de povos africanos que aqui se deu e das relaes que criaram entre si e com a sociedade. Na frica encontraremos al-gumas de suas bases, mas nunca sua forma original. Certamente, todas essas manifestaes tm profundas razes africanas. Mas, so africanamente brasileiras. Portanto, saibamos que vamos ao encontro da Histria da frica e que nela encontraremos muitos conhecimentos para entendermos melhor a Histria do Brasil (e do mundo), mas no todas as chaves para compreendermos nossa diversidade cultural.

    ATIVIDADE DE REFLEXO

    Visite o site e reflita sobre as representaes de arte africana que voc pde visualizar. Como voc pensaria em utilizar essas imagens nas suas aulas ou num grupo de estudos sobre Histria da frica?

    pensAnDo A FrICA e A CulturA AFrICAnA sob outrA perspeCtIvA

    Alm desses cuidados citados, h outros pontos sobre os quais devemos refletir e estar sempre atentos:

    1. A frica um amplo continente, em que vivem e viveram desde os princpios da humanidade (afinal, foi l que a hu-manidade surgiu), grupos humanos diferentes, com lnguas, costumes, tradies, crenas e maneiras de ser prprias,

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    construdas ao longo de sua Histria. Dizer de o africano ou a africana como uma ideia no singular um equvoco. Podemos at utilizar esses termos quando tratarmos de pro-cessos histricos vividos por diversos nativos da frica, mas sempre sabendo que no se trata de um todo homogneo e sim de uma ideia genrica que inclui alguns indivduos, em situaes muito especficas. Por exemplo: podemos dizer o trfico de escravos africanos ou seja, estamos nos referindo atividade econmica cujas mercadorias eram indivduos nativos da frica, conhecido nos seus anos de declnio como o infame comrcio (como passou a ser chamado o trfico de escravos africanos). Nesses tipos de casos, vale dizer, de um modo geral, africanos ou negros africanos. Mas devemos evitar atribuir a essas pessoas qualidades comuns, como se fossem tipos caractersticos.

    2. Um dos preconceitos mais comuns, quanto aos africanos e afrodescendentes, com relao s suas prticas religiosas e um suposto carter maligno contido nestas. Esse tipo de afirmao no resiste ao confronto com nenhum dado mais consistente de pesquisa sobre as religies africanas e a maioria das religies afro-brasileiras. Por exemplo: no h a figura do diabo nas religies da frica tradicional nem de nenhum ser ou entidade que personifique todo o Mal. As divindades africanas e suas derivadas no Brasil em geral se encolerizam se no forem cultuadas e consideradas, e podem vingar-se; mas jamais agem para o mal de forma independente dos agentes humanos que a eles demandam. O grande adversrio das foras do Bem no existe; no h este poder em nenhum ente do sagrado africano, a no ser naquelas religies influenciadas pelos monotesmos cristo e islmico.

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    ESPECIAL CURSO ERER

    sAIbA mAIs

    H boas leituras sobre lendas africanas dos orixs, divinda-des tambm presentes em religies de matriz africana praticadas no Brasil. Reginaldo Prandi, antroplogo e escritor, publicou, no ano de 2004, em So Paulo, pela editora Cia. das Letrinhas, trs bonitos livros: If, o Orix Adivinho; Oxumar, o Arco-ris e Xang, o Trovo. Lindamente ilustrados e com uma linguagem acessvel, valem como leitura e material de uso didtico-pedaggico para o pblico infanto-juvenil.

    ConHeCenDo A FrICA

    A frica o segundo continente do mundo em populao, com mais de 800 milhes de habitantes. L vivem 13 de cada 100 pessoas no mundo e a taxa de crescimento da populao uma das mais altas do nosso planeta: quase 3% ao ano. o terceiro continente do mundo em extenso, com cerca de 30 milhes de quilmetros quadrados, que correspondem a 20,3% da rea total da Terra. So 54 pases, sendo 48 continentais e seis insulares e ainda h 10 territrios dominados por pases estrangeiros sendo que a maioria desses so ilhas. Cerca de 75% da superfcie do continente se situa nos trpicos; somente as suas extremidades norte e sul tm clima temperado. o mais quente dos continentes, ainda que tenha regies de altas montanhas, sempre cobertas de neve, como o Monte Kilimanjaro, no Qunia.

    Na frica so faladas aproximadamente duas mil lnguas, as quais, por sua vez, tm suas variantes: os dialetos. Entre essas lnguas, mais de 50 so faladas por mais de um milho de pessoas. O rabe, por exemplo, falado por cerca de 150 milhes de africanos e a lngua oficial de sete pases da frica. O hau, falado no Norte da Nigria, tem quase 70 milhes de falantes.

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    Os estudiosos localizam cinco grandes famlias lingusticas na formao dos idiomas do continente. As famlias lingusticas so a Afro-Asitica (Norte, Nordeste e Noroeste, cobrindo o Saara e regies da franja do deserto); a Nilo-Saariana (partes centrais do deserto e arredores da nascente do Nilo); Khoisan (Nambia, partes do Sudoeste e regies pontuais no centro-leste); Austronesia (ilhas do ndico, em especial Madagascar) e Nger-Cordofoniana (frica Ocidental, Cen-tral e Sudeste). A famlia Nger-Cordofoniano, assim como as outras, se dividiu em troncos lingusticos e estes, por sua vez, em idiomas.

    Um dos troncos lingusticos derivados da famlia Nger-Cordofoniana o banto, que deu origem a muitas lnguas africanas faladas ao sul da linha do equador. As lnguas bantas, trazidas pelos escravos para o Brasil, trouxeram muitas palavras para o Portugus que falamos e escrevemos. Alm disso, existem lnguas na frica resul-tantes da mistura do Portugus com lnguas locais so as chamadas lnguas crioulas.

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    ESPECIAL CURSO ERER

    De olHo no mApA

    Observe atentamente o mapa das grandes famlias lingusticas

    da frica.

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    sAIbA mAIs

    Sobre as palavras bantas faladas no Brasil:

    LOPES, Ney. Novo dicionrio Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

    Sobre as lnguas crioulas, criadas na frica a partir da mistura de lnguas locais com o Portugus, consulte:

    CurIosIDADes

    Palavras que utilizamos no nosso dia a dia como BAGUNA, CARIMBO, DENGO, FAROFA, MOCHILA, NENM, QUI-TANDA e XOD, entre muitas outras, tm sua origem nas lnguas banto.

    O que podemos concluir com essas breves informaes gerais sobre a frica?

    Fundamentalmente, a sua grande e enriquecedora diversidade. E essa diversidade nas paisagens e nas muitas lnguas acompanhada pela diversidade em opes religiosas, costumes, modos de vida. Isso acontece no apenas entre os pases, mas dentro deles na Nigria, por exemplo, se falam cerca de 200 lnguas entre idiomas e suas variaes dialetais. Normalmente, num pas com tal caracterstica, seus habitantes falam mais de um idioma no seu dia a dia, no con-tato uns com os outros. Para ns, brasileiros, pode at parecer muito complicado, mas surpreendente como essa diversidade no cotidiano se torna algo vivido com naturalidade.

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    ESPECIAL CURSO ERER

    sAIbA mAIs

    H livros que apresentam captulos com boas informaes sobre a diversidade das paisagens e idiomas na frica, tais como:

    BELLUCCI, Beluce (Org.). Introduo Histria da frica e da cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: UCAM/CEAA: CCBB, 2003. (Especialmente O continente africano: perfil histrico e abordagem geo-poltica das suas macrorregies, de Jos Maria Nunes Pereira)

    OLIVER, Roland. A experincia africana: da Pr-Histria aos dias atuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. cap. 1-4.

    Para visualizar as diferentes paisagens do continente em mapas, voc tambm pode consultar o site

    AFrICAnIDADe: semelHAnAs em meIo DIversIDADe

    Apesar de toda essa diversidade, existente tanto no passado mais remoto como hoje em dia, muitos autores encontram tambm aspectos comuns entre diversos povos da frica. Esses aspectos permi-tiriam falar de uma base comum a culturas e civilizaes africanas. Na abordagem dessa viso, existem basicamente duas tendncias, como assinalou o antroplogo Kabengele Munanga:3

    Uma delas se baseia nas diferenas e encara o continente africano como um mundo diverso culturalmente, mas sem negar a possibilidade de resumir essa diversidade em algumas poucas civilizaes. [...] A outra, ultrapassando a primeira, considera que essas semelhanas apresentam certa unidade,

    3 Kabengele Munanaga, um brasileiro nascido no Congo (RDC), professor titular de Antropologia da USP e autor de diversos trabalhos de referncia sobre as sociedades africanas e as desigualdades raciais no Brasil.

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    uma constelao, ou seja, uma configurao de caracteres que conferem ao continente africano sua fisionomia prpria. (MUNANGA, 2009, p. 30)

    A segunda tendncia de anlise das semelhanas entre os povos da frica permitiu construir um conceito: africanidade. Este concei-to nasceu muito ligado s lutas pela descolonizao em meados do sculo XX, e foi aprofundado nas dcadas que se seguiram. A ideia de africanidade est muito relacionada experincia de similaridade cultural vivida por aqueles que vivenciam diferentes (e distantes) realidades no continente e nelas percebem semelhanas no domnio da cultura. Os aspectos similares na arte, nas prticas religiosas, em certos costumes, em padres artsticos e em manifestaes culturais variadas assinalariam a unidade cultural da frica ao sul do Saara. A regio Norte do continente, por sua relao estreita com o mundo mediterrneo e o Oriente Mdio, no compartilharia tantos aspec-tos com as demais regies do continente. No faria parte, portanto, dessa comunidade cultural da frica sul-Saariana, conforme afirmou Kabengele Munanga, nosso autor de referncia neste tema.

    A FrICA tem umA HIstrIA

    Com esta frase, o grande historiador Joseph Ki-Zerbo, nascido em Burkina Fasso (frica Ocidental), abriu a sua Introduo Coleo Histria Geral da frica, organizada e patrocinada pela UNESCO nas dcadas de 70 e 80 do sculo XX, depois do perodo das independn-cias de muitos pases africanos (nos anos 60 daquele sculo). Foram oito volumes publicados e desses apenas quatro saram no Brasil, todos com artigos de autores selecionados entre os maiores especialistas nos diferentes temas, regies e perodos da Histria africana. Antes dessa publicao havia obras de boa qualidade na historiografia sobre frica. Mas era a primeira vez que se reuniam tantos historiadores, inclusive africanos, para debruar-se sobre um projeto geral de histria do continente. A frica ainda era vista como terra desconhecida para a

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    ESPECIAL CURSO ERER

    maioria dos estudantes e profissionais das chamadas humanidades. Para muitos, ainda era um continente perdido num passado com lees, florestas e selvagens.

    A viso sobre a Histria da frica que este projeto das Na-es Unidas visava combater em grande parte fora construda no perodo colonial (que se iniciou em fins do sculo XIX e chegou at a segunda metade do sculo XX), mas tambm se alimentara da longa histria do trfico atlntico de escravos, quando foram criadas justificativas para o infame comrcio. Era uma viso que negava frica o direito sua Histria e aos africanos o papel de sujeitos e no apenas objetos de dominao, converso ou escravi-zao, como de costume.

    Depois dessa iniciativa, muito se criou e discutiu sobre a His-tria da frica, nas dcadas seguintes. A contribuio dos estudiosos do prprio continente, com agendas prprias e slidos trabalhos de pesquisa, trouxe novas luzes para esse campo. Seus trabalhos ao mes-mo tempo enriqueceram a anlise geral com os dados dos processos histricos locais e inseriram os africanos de forma ativa na construo de uma Histria que ia alm das fronteiras de seu continente.

    Neste nosso estudo da Histria da frica vamos estar sempre procurando resgatar os quatro grandes princpios que J. Ki-Zerbo destacou na citada introduo pois, apesar do tempo passado, ain-da so de grande atualidade. O primeiro: a interdisciplinaridade. Para entender as conjunturas, os processos ocorridos e a maneira como as informaes nos chegaram, fundamental o auxlio de outras disciplinas, como a Geografia, a Sociologia, a Antropologia, a Lingustica, entre outras. Outro ponto de partida fundamental buscar sempre apresentar a Histria sob o ponto de vista africano, e no de fora para dentro. Isso no quer dizer ignorar os processos compartilhados e as conexes, mas sim perceber as reciprocidades das influncias, as aes que partiram dos africanos na construo de sua Histria. O terceiro princpio seria o de apresentar a histria dos povos africanos em seu conjunto, no numa perspectiva simplista

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    e homogeneizadora, que no v a pluralidade e a diversidade na frica, mas entendendo as conexes e trocas, bem como a presena de aspectos de semelhana e identidade entre muitas sociedades do continente. E, finalmente, o quarto princpio seria o de evitar o factual, ou seja, uma histria de eventos dissociados, que tanto mal fez e faz aprendizagem crtica, ao entendimento das relaes entre as diversas partes do mundo e compreenso da atuao dos sujeitos histricos em toda sua complexidade. Por essa razo, traba-lharemos sobre grandes temas e questes, situados historicamente e contextualizados no tempo e no espao. No pretendemos contar toda a Histria da frica mas destacar nela assuntos e problemas, sem deixar de seguir uma linha lgica e cronolgica na apresentao dos mesmos.

    temAs DA HIstrIA AFrICAnA

    I. FrICA: onDe nos tornAmos HumAnos

    A frase A frica o bero da humanidade bastante co-nhecida. Ela nos faz recordar que os primeiros registros de presena humana no nosso planeta foram encontrados no continente africano. E no apenas a presena humana, mas de grupos humanos vivendo em conjunto, buscando formas de sobrevivncia e criando artefatos para isso. As pesquisas tm demonstrado que a frica teria sido o cenrio das primeiras e fundamentais etapas da evoluo humana. L se encontraram vestgios dos primeiros homindeos (antepassados dos humanos) como os recentemente achados no Chade (em 2002), datados de 7 milhes de anos atrs. E tambm foram descobertos muitos e importantes exemplares dos Homo habilis (humano que produzia ferramentas e demonstrava raciocnio complexo), que vive-ram, entre 2 milhes e 2 milhes e meio de anos atrs, entre outros lugares na frica, no desfiladeiro de Olduvai (Tanznia) cenrio de tantas descobertas arqueolgicas importantes para o conhecimento das origens da humanidade.

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    ESPECIAL CURSO ERER

    H muitas discusses sobre como esses primeiros humanos foram se espalhando pelo mundo, e se saram da frica como Homo erectus ou Homo sapiens. Mas, o que se pode afirmar sem erro que na frica encontram-se os vestgios dos mais antigos antepassados dos humanos. E que tambm em territrio africano que puderam ser achadas as pistas de toda uma srie de tipos diferentes dos primeiros humanos. A frica revelou para a Histria informaes fundamentais sobre a vida desses homens e mulheres que criaram a humanidade.

    sAIbA mAIs

    Sobre a origem da humanidade na frica (com ilustraes):

    Sobre um importante stio arqueolgico na frica (que Patrimnio Mundial da UNESCO): .

    II. A HIstrIA DA FrICA e A CrtICA Ao termo pr-HIstrIA

    Toda essa histria tem, entre outras, duas consequncias muito importantes: a primeira, que revela que os estudos de campo feitos na frica nos permitiram conhecer mais sobre o processo de evoluo humana. O territrio africano , portanto, uma fonte para a histria da humanidade. E a segunda, por que os estudos de Histria da frica sobre esses tempos to remotos tambm contriburam para se rever o conceito de pr-Histria.

    Durante muito tempo se marcou o comeo dos tempos histri-cos a partir do surgimento da escrita. Tal linha divisria deixava fora da Histria os povos que no criaram formas de escrita. E marcava para sempre (como gente fora da Histria) aqueles que, apesar de viverem no tempo da escrita bem difundida, no a utilizavam como meio de registro e comunicao. E, de alguma maneira, associava a

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    ausncia da escrita ao que era primitivo, arcaico, quase perdido no tempo. Seria um tempo sem Histria?

    As pesquisas nos stios arqueolgicos da frica, de uma forma muito explcita, mostraram que no. A chamada pr-Histria foi um tempo de muitas mudanas, de criaes, de inventos, de desco-bertas que revolucionaram a vida de homens e mulheres. Nada de ser vista como um perodo em que os dias se sucediam iguais e no qual a histria das relaes humanas no poderia ser lida muito ao contrrio. O controle sobre a Natureza, as migraes desenhando novos territrios e a descoberta de formas de sobrevivncia todos esses passos que foram construindo as trajetrias dos humanos mais antigos ocorreram em tempos histricos e consistiram em mudanas radicais na trajetria humana.

    A arte rupestre africana tambm revelou ao mundo muito do estilo de vida e padres estticos dos homens e mulheres de tempos remotos. So fontes para o estudo das antigas formas de vida e tam-bm de sonhos, religiosidades e simbologia dos primeiros grupos humanos. Em paredes de pedra de diferentes regies da frica esto registros de cenas do cotidiano assim como de desejos e sonhos, o que faz das pinturas documentos reveladores das formas de representao caractersticas de homens e mulheres h milhares de anos atrs.

    sAIbA mAIs

    Sobre a discusso terica acerca do termo arte rupestre:

    Arte rupestre: conceito e marco terico, de Joaquim Perfeito da Silva Departamento de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade do Sudoeste da Bahia (UNESB), disponvel em:

    Portanto, vemos que a Histria da frica ilumina aspectos da Histria do Mundo em seus perodos mais remotos ao trazer tantas fontes sobre o incio da vida humana em sociedade. E nos ajuda a

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    ESPECIAL CURSO ERER

    rever conceitos consolidados como o de Pr-Histria, nos fazendo repensar o modo de olhar povos e grupos contemporneos que no dominam a escrita, mas registram sua Histria.

    III. As soCIeDADes AFrICAnAs e As trADIes orAIs

    Outro aspecto da histria africana que veio a contribuir para o desenvolvimento da Histria da humanidade como um todo foi o trabalho com as fontes orais. Para pesquisar sobre muitos povos no continente africano os historiadores tiveram que aprender a lidar com esse tipo de fonte e criar metodologias que dessem conta de extrair delas dados e valid-las como registro. Foi todo um aprendizado e grandes passos foram dados em direo criao de um mtodo de trabalho com as fontes orais, que trouxe desdobramentos para a his-tria de muitas sociedades, inclusive aquelas que utilizavam a escrita, mas tinham em seu meio grupos que no o faziam. Ou que tinham toda uma srie de aspectos fundamentais de sua Histria registrados apenas oralmente, apesar de fazerem uso da escrita.

    Todo esse trabalho tinha inicialmente como desafio encontrar fontes que informassem sobre a Histria africana. Mas acabou trazen-do desafios para a histria de amplos grupos humanos e, sobretudo, fez a historiografia olhar para essas pessoas como autores de registros histricos. Grupos de analfabetos ou semianalfabetos, indgenas e povos nmades excludos do registro escrito vivendo em pases do mundo desenvolvido no Ocidente, graas ao reconhecimento das metodologias de trabalho com fontes orais, recuperaram seu lugar na Histria das academias e instituies cientficas.

    Um passo importante para a Histria da frica foi o aprendiza-do de trabalho com as tradies orais. Mais do que fontes informativas sobre histria de povos africanos, as tradies orais revelam muito da relao dos seus autores com o conhecimento histrico. As tradies orais na frica so o espao simblico de preservao de dados his-tricos e tambm da interpretao desses mesmos dados.

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    A coleta de relatos da tradio oral africana no foi obra exclu-siva de historiadores africanos ou africanistas. Alguns administradores letrados no perodo colonial (fim do sculo XIX e princpios do s-culo XX, principalmente) fizeram este trabalho, acompanhados por estudiosos africanos formados em escolas coloniais. No entanto, lhes faltava um metodologia que desse melhor compreenso e legitimidade a essas fontes. Esta metodologia surgiu logo no incio da dcada de 1960, a partir do trabalho pioneiro do belga Jan Vansina. Em seus estudos, indicou as possibilidades de controle e crtica necessrios para a utilizao cientfica das tradies orais. Em seguida e paralelamente, seminrios acadmicos realizados na frica (em Dacar, no Senegal, em 1961, e em Dar-es-Salam, na Tanznia, em 1965) trazendo a contribuio de outros estudiosos da Histria africana, e destacando o papel insubstituvel da tradio oral como fonte.

    A palavra memria viva na frica, como disse Amadou Hampate-B historiador e escritor nascido no Mali (frica Oci-dental) e um dos grandes nomes nos estudos das tradies orais no continente. tambm o que podemos perceber neste trecho de seu artigo, considerado um texto clssico sobre o tema:

    Para alguns pesquisadores, o problema se resume em saber se a transmisso oral, enquanto testemunho de acontecimentos passados, merece a mesma confiana concedida transmisso escrita. A meu ver, esta colocao errnea. Em ltima anlise, o testemunho, escrito ou oral, sempre um testemunho humano, e seu grau de confiabilidade o mesmo do homem. O que se questiona, alm do prprio testemunho, o valor da cadeia de transmisso qual o homem est ligado, a fidelidade da memria individual e coletiva e o preo atribudo verdade em deter-minada sociedade. Ou seja, o elo que une o homem Palavra.Ora, nas sociedades orais que a funo da memria mais desenvolvida, e mais forte o elo entre o homem e a Palavra. Na ausncia da escrita, o homem se liga a sua palavra. Tem um compromisso com ela. O homem a sua palavra e sua palavra

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    d testemunho do que ele . A prpria coeso da sociedade depende do valor e do respeito pela palavra.Nas tradies africanas pelo menos nas que conheo, que so de toda a zona de savana ao sul do Saara a palavra falada, alm de seu valor moral fundamental, possui um carter sagrado que se associa a sua origem divina e s foras ocultas nela depositadas. Sendo agente mgico por excelncia e grande vetor de foras etreas, no pode ser usada levianamente. (B, 1973, p. 17)

    Em obra mais recente, publicada no Brasil, o mesmo autor fala sobre a sua formao e de outros historiadores da tradio oral africana:

    que a memria das pessoas de minha gerao, sobretudo a dos povos de tradio oral, que no podiam apoiar-se na escri-ta, de uma fidelidade e de uma preciso prodigiosas. Desde a infncia, ramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta ateno, que todo acontecimento se inscrevia em nossa memria, como em cera virgem. (B, 2003, p. 13)

    O trabalho com relatos orais na frica abriu novas fontes para o estudo da Histria como um todo, numa perspectiva antieurocntrica e antielitista, incorporando novas vozes e vises de mundo.

    reFleXo

    Como o trabalho com depoimentos orais pode gerar uma pers-pectiva transformadora no resgate das histrias de comunidades afrodescendentes no Brasil?

    sAber mAIs

    Sobre o uso de depoimentos orais no trabalho histrico acesse pela internet o artigo de Antonio Csar de Almeida Santos, professor da Universidade Federal do Paran (UFPR):

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    Iv. A FrICA nA HIstrIA AntIgA

    Os estudos de Histria Geral sobre o perodo conhecido como Histria Antiga quase nunca ou muito raramente contemplam o continente africano. Ou, se o fazem, no o revelam. Isso particular-mente perceptvel quando se apresenta a Histria do Antigo Oriente Prximo e, nela, a histria do Egito. O Egito, apesar de por todos os mapas e referncias geogrficas, se encontrar no continente africano, mostrado como se fosse parte de um mundo oriental no espe-cificado. Privilegia-se o enfoque em seus contatos com a pennsula arbica e a antiga Mesopotmia e menos a sua ligao com as terras africanas ao Sul na qual ficam hoje a Etipia e o Sudo.

    No entanto, hoje sabemos, em grande parte devido aos longos e criteriosos estudos de Cheikh Anta-Diop intelectual de muitos saberes nascido no Senegal. Ele afirmou, comprovando com fontes pesquisadas, que o Egito se ligava de forma profunda ao mundo afri-cano. As principais bases da chamada civilizao egpcia se encon-travam ao Sul, dentro da frica, e para l corriam faras e sacerdotes em busca de proteo, inspirao e sabedoria. A fundao do Imprio egpcio, que se fez h cerca de 5000 anos atrs, se deu a partir do Sul, e dali conquistando a regio do Delta do Nilo. O Egito e foi sempre africano, ainda que muito prximo ao Oriente e ao mundo mediter-rneo. As trocas culturais e demogrficas com outras regies da sia Ocidental no tiram o lugar geogrfico e histrico do Antigo Egito.

    Da mesma forma, quando estudamos a histria do mediterrneo ocidental na Antiguidade, ouvimos falar de Cartago e das guerras desta cidade africana contra a poderosa Roma, sem mencionar os dados internos quela cidade. O que fazia de Cartago uma cidade to rica e poderosa? O seu papel comercial, sem dvida. Mas o que de to valioso comerciava Cartago, que enriquecia seus governantes a ponto de fazer dela rival temida da cidade mais poderosa do Mediterrneo? Cartago possua frteis campos de trigo, base para a alimentao dos povos naqueles tempos e o contato com os berberes, povos do deserto

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    do Saara que traziam, pelas rotas das caravanas, o ouro do interior do continente. De Cartago saam os navios fencios que costeavam a frica em direo ao ocidente, chegando ao litoral ao sul do Marrocos em busca de produtos locais.

    O domnio sobre Cartago a partir de 146 a.C. significou no s o incio do poder de Roma sobre o Norte do continente, como o estreitamento das relaes do mundo europeu mediterrneo com os povos do deserto. Provavelmente graas aos romanos, os berberes tomaram contato com o camelo o navio do deserto, animal de carga e transporte que se adequou especialmente s condies do Saara. E com o camelo, os africanos do deserto chegaram ainda mais longe dentro do continente, levando e trazendo pessoas, produtos, tcnicas e conhecimentos.

    Outro tema de histria africana que tem estreita relao com a Histria geral na Antiguidade a expanso do cristianismo sobre as terras africanas. Isto se deu sob o domnio de Roma. A presena de religiosos fez nascer na frica ramos do Cristianismo muito an-tigos e profundamente influenciados por crenas locais. No Egito dominado por Roma, muitos grupos oprimidos se cristianizaram e fizeram da nova f um motivo de consolo e de resistncia contra os opressores. Porm, no sculo IV, Roma se tornou um imprio cristo e fundou uma nova capital em Bizncio, na Europa Oriental. A partir de Bizncio saram misses para a frica e dessas misses africanas saram muitos estudiosos e lderes do Cristianismo. Santo Agostinho, nascido na Numdia (na costa oriental da atual Arglia) em 354, foi um dos mais importantes. E tambm surgiram comunidades crists que criaram igrejas locais, como os cristos coptas no Egito e a igreja crist etope, nascidas nos primeiros sculos da era Crist.

    Estes e outros temas entrelaam a histria africana e a histria de grandes movimentos de expanso poltica, religiosa e econmica na Antiguidade. Estamos entrando em contato com apenas alguns aspectos e, no entanto, podemos ver como se enriquece a nossa com-preenso da histria que acreditvamos j conhecer. Ao acrescentar

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    estas partes da histria africana nos estudos de Histria geral, estaremos ampliando e aprofundando o nosso olhar e o de nossos alunos sobre o continente de nossos antepassados e sobre as relaes entre eles e o restante do mundo.

    sAIbA mAIs

    Sobre a importncia da frica na Histria Antiga (entre outros aspectos):

    Histria da frica: o qu e para qu?, artigo publicado em 26/03/2003, de Marina de Mello e Souza, professora de Histria da frica da USP, disponvel em:

    v. As mIgrAes bAnto

    O nome banto pode soar familiar a muitos de ns. Alis, j falamos no texto deste mdulo (quando caracterizamos a diversida-de africana) sobre o tronco lingustico banto e da importncia das lnguas dele derivadas para o Portugus do Brasil. Mas, o que quer dizer esta palavra?

    Banto uma palavra que resulta da combinao de ntu (ser humano) acrescido do prefixo ba, que designa plural. Ou seja, banto (em alguns lugares escrita como bantu) quer dizer: seres humanos ou gente.

    Os bantos, isto , os grupos de lnguas bantas, no formam uma etnia nem muito menos um povo. Compartilham uma origem em termos dos idiomas e dialetos que falam. No entanto, sabemos que compartilhar origem lingustica geralmente tambm significa compartilhar aspectos culturais. Ou seja: isto indica que poderamos encontrar algumas semelhanas nas formas de interpretar a realidade entre os povos de lnguas bantas. Mas isso no faz deles um povo e muito menos um grupo tnico.

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    Vamos conhecer um pouco sobre a histria desses povos, que criaram tantas realidades novas para as regies da frica aonde chegaram e que tambm trouxeram tantos aspectos de suas culturas para o Brasil.

    A ocupao dos bantos sobre grandes reas do continente afri-cano ao sul da linha do equador se deu muito lentamente, ao longo de milhares de anos. A primeira grande leva teria se movimentado ainda no final do segundo milnio a.C., saindo de uma regio que hoje ficaria na fronteira norte entre o Camares e a Nigria. Esses grupos cruzaram a regio em que fica hoje a Repblica Centro Africana, ocu-pando reas dentro e fora da floresta equatorial, a oeste e a leste. Ao se estabelecerem, de forma sedentria ou semisedentria, introduziram dois sistemas diferentes de produo de alimentos, que se adaptaram respectivamente s florestas e savana. Eram agricultores e foram os primeiros nesta regio a se organizar em aldeias e a agrupar essas aldeias em unidades mais abrangentes, com cerca de 500 pessoas cada.

    Uma segunda leva migratria se deu em torno do ano 900 a.C., quando terminava a longa expanso inicial. A esta altura havia dois grandes grupos, falando lnguas aparentadas, porm diversas: os bantos do oeste (norte da atual Repblica Popular do Congo e leste do Gabo) e do leste (atual Uganda). Os do oeste desceram para onde hoje o norte de Angola e chegaram a uma regio mais seca. Outros permaneceram na fronteira entre a savana e a floresta, seguindo os cursos de gua. Enquanto isso, os do leste moveram-se em direo ao Sul, para o sudeste do Zaire e Zmbia atuais.

    importante lembrar que esses processos expansionistas no foram invases. Fizeram parte de um movimento de populaes, lento, e com intensidade irregular, e que no poucas vezes levou esses bantos a estabelecerem contatos e misturar-se com grupos que j habitavam as regies ou regies prximas aonde chegavam. As pes-quisas lingusticas e arqueolgicas demonstram que algumas vezes os bantos mudaram seu modo de vida, tornaram-se pastores nmades, e chegaram em alguns casos a transformar sua prpria lngua, sendo absorvidos pelos grupos khoisan.

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    Novas ondas migratrias dos grupos banto do leste em direo ao Sul, nos sculos iniciais da era Crist, parecem ter levado junto consigo as importantes tcnicas de metalurgia para essas reas. A esta altura seriam, alm de agricultores, ferreiros. O domnio dessa tcnica modificou enormemente a vida desses povos. A partir desse momento em torno do sculo V, e como resultado dessa verdadeira rede de movimentos de populao se expandiram tcnicas de produo de alimento e metalurgia entre os povos da frica sub-equatorial.

    Uma vez que a produo de alimentos estava mais assegurada, houve maior tendncia a que esses grupos ficassem sedentrios. E as populaes foram ficando mais fortemente ligadas aos seus territrios. Os contatos entre os grupos se intensificaram com as trocas entre produtores de diferentes tipos de alimentos, segundo a regio. O inhame e o azeite de dend, juntamente com a caa e a pesca das reas mais prximas s florestas, podiam ser trocados por cereais e outros produtos (inclusive artesanais) de reas prximas. E tais mudanas foram sendo acompanhadas por transformaes nas organizaes sociais desses grupos. Surgiram novos modos de reconhecer e se rela-cionar interna e externamente. Em alguns casos, apareceram divises sociais mais profundas e em outros se criaram autoridades a partir da histria de liderana da ocupao da terra. E, em todos os casos, estas criaes para o funcionamento da vida em sociedade se referendaram no mundo espiritual, parte inseparvel do entendimento da vida para essas populaes.

    Assim, e paralelamente a esta histria de ocupao de grandes partes da frica ao sul do equador, foram surgindo grupos que, por uma histria, lngua, crenas e prticas em comum passaram a cons-tituir povos. Isto ocorreu longamente, entre o sculo V a.C e o sculo V da nossa era. Foram surgindo identidades de grupo, que mais tarde ficaram conhecidas como identidades tnicas.

    Muitos fatores estiveram presentes na formao dessas identi-dades tnicas. A situao ambiental sempre foi bsica nessa constru-o. E a identidade coletiva passou a dar sentido vida das pessoas:

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    o pertencimento comunidade tornou-se o elemento definidor da pessoa. No existia a ideia do indivduo, o ser humano era parte da comunidade ou no era ningum. Por isso, quando ocorria a escra-vizao, o escravo passava a ser considerado um estrangeiro algum sem vnculos com a comunidade.

    De olHo no mApA

    Observe atentamente o mapa das migraes banto:

    sAIbA mAIs

    Sobre a expanso banto h um captulo especial no seguinte livro:SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lana: a frica antes dos portugueses. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. cap. 7.

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    vI. eXpAnso Do Isl e o ComrCIo De longA DIstnCIA

    Ao pensarmos em religio islmica a primeira imagem que em geral ocorre de um bando de fanticos, intolerantes e de faces ligadas ao terrorismo. Nada poderia ser mais estereotipado. H uma enorme ignorncia, que alimenta um talvez ainda maior preconceito, em relao ao Isl e sua histria. E esta histria tem na frica captulos especialmente importantes.

    Sabemos que o Islamismo nasceu na Pennsula Arbica na primeira metade do sculo VII. Dali se expandiu para a sia e para o norte da frica. A expanso islmica no se dava inicialmente pela fora, a tarefa dos muulmanos (nome dado aos fiis do Isl) era a de convencer os descrentes que deveriam voluntariamente aceitar a nova f. Mas, na medida em que os fiis ao Isl dominaram politicamente o norte da frica, seus sistemas de justia e de governo colocavam na religio suas bases. E muitos dos governados, por convencimento real ou por considerarem estrategicamente mais interessante, se con-verteram. Pouco a pouco a religio muulmana dominou do Egito ao Marrocos.

    A partir do norte do Egito, os muulmanos tentaram ir mais ao sul, mas esbarraram nos exrcitos da Nbia crist. Derrotados, foram forados a reconhecer a autonomia do reino cristo nbio. Mas, do norte, conseguiram expandir-se para o oeste (que, em rabe, quer dizer Magreb, nome pelo qual esta regio da frica ficou conhecida). Foram pouco a pouco, durante todo a segunda metade do sculo VII. A partir dali, cruzaram o mar Mediterrneo e conquistaram partes do sul da Europa, incluindo toda a pennsula ibrica (Espanha e Portugal).

    Ao conquistarem o norte da frica tambm estabelecem as bases da cultura islmica, em especial as escolas de ensinamento religioso. No entanto, no h maiores extenses do Islamismo ao sul das plancies

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    costeiras antes do sculo XI. Existiram antes algumas converses entre os nmades berberes, mas suas prticas religiosas estavam longe do que pregavam os ensinamentos do Alcoro livro sagrado do Islamismo, assim como a Bblia para os cristos. Somente no sculo XI foi que a adeso de um chefe berbere iniciou uma srie de mudanas e uma onda de converses na direo sul, incluindo os povos do deserto e a regio na franja do deserto na frica Ocidental.

    Esta expanso fez com que o Isl chegasse no apenas aos povos e aldeias daquela regio da frica como ao poderoso reino de Gana, que se localizava na fronteira sul dos atuais pases Mauritnia e Mali, entre os sculos V e XIII. Gana era conhecido como o pas do ouro. Por meio dos grandes comerciantes desse reino, o ouro da frica Ocidental chegava at a Europa, cruzando o deserto do Saara nas caravanas rumo ao Norte e dali atravessando o Mediterrneo. Mas as reservas de ouro no estavam propriamente no territrio do reino e sim mais ao Sul, e os comerciantes de Gana tinham acordos com o povo da rea das minas de ouro que lhe dava exclusividade em sua obteno.

    Os soberanos de Gana no se converteram ao Isl, mas abriram as portas do reino aos muulmanos. Estes ltimos, ligados ao comrcio caravaneiro, incluram o reino numa rede mercantil que atravessava o Saara, e chegava no s Europa, mas ao Oriente Mdio e Extre-mo Oriente, nas rotas de longa distncia. O Isl no fez inaugurar o comrcio transaariano, pois este j existia desde h muito e fora em especial fortalecido com a disseminao do uso do camelo como animal de transporte a partir do sculo V.

    A religio muulmana tambm se estendeu a Oriente, che-gando at a ndia e s fronteiras da China. E o pertencimento ao Isl fortaleceu este comrcio e inseriu Gana, assim como outros reinos da frica Ocidental numa dimenso transcontinental. Uniu mercados da frica Ocidental s cidades italianas (Gnova e Veneza, sobretudo), ao Oriente Mdio, Europa Oriental, indo at a ndia, China e Japo.

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    Como o Isl fortaleceu esse comrcio de longa distncia?

    Ora, um dos pontos mais importantes para a religio muul-mana a questo da formao de uma relao de irmandade entre os fiis. Como se trata de uma religio sem autoridades e hierarquias centralizadoras (diferente, por exemplo, da Igreja Catlica), o fiel fortalece sua f e encontra orientao juntando-se a outros. Eventual-mente, um estudioso, um sbio do Isl funciona como referncia, mas a irmandade a base. E isso faz dos vnculos entre os muulmanos algo muito forte, que inclui apoio e compromisso.

    Logo, ao aderir ao islamismo, os comerciantes entravam tam-bm nesses grupos, e passavam a fazer parte das confrarias muulma-nas. E as normas quanto honestidade nos negcios e hospitalidade a um irmo de f em viagem eram algo sagrado. Portanto, o comrcio entre muulmanos se tornava muito mais seguro. Alm disso, um fiel do Isl faria negcios com muito mais boa vontade com um seu irmo de f. E mais ainda: as redes muulmanas se estendiam em rotas muito amplas, que chegavam at Pequim, passando por Bagd e pela Cashemira, entre outros tantos lugares de produtos cobiados pelo grande comrcio.

    Depois de Gana, outros reinos surgiram nas franjas do deserto da frica Ocidental (regio chamada tambm de Sudo Ocidental). Foram os reinos de Mali (sculos XIII-XV) e Songai tambm conhecido como Gao (sculos XV-XVII). Alm desses reinos, as cidades haus (no norte da Nigria) se destacaram nas relaes comerciais transaarianas. Nos reinos de Mali e Songai os soberanos se converteram ao Isl, fortalecendo ainda mais as conexes dessa regio com as rotas de longa distncia comandadas por muulma-nos. A poltica dos Mansa (palavra que queria dizer rei no Mali) atraiu mercadores, professores e profissionais de diferentes rea para seu reino, tal era a prosperidade local. Em Tombuctu, uma das mais famosas cidades da regio do Sudo Ocidental, entre as mercadorias mais valorizadas estavam os livros, tal a concentrao de sbios e estudiosos.

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    DE OLHO NO MAPA

    Grandes reinos do Sudo Ocidental

    Obs: o mapa pode ser includo no texto ou colocado acessvel por meio de num cone a ser clicado. Se possvel, traduzir as legendas do mapa para o Portugus. Posso fazer isso se quiserem e algum inserir as legendas traduzidas na imagem, se for o caso.

    CurIosIDADe

    Entre 1324 a 1325, um soberano do Mali, chamado Mansa Mussa, fez uma peregrinao cidade sagrada dos muulmanos, Meca. Esta cidade fica na Pennsula Arbica. Portanto, o cortejo do Mansa Mussa cruzou os desertos, passou pelo Cairo (Egito) e pelo Mar Vermelho at chegar a seu destino. Sua caravana levava cem camelos carregados de produtos preciosos. Ao chegar ao Cairo, distribuiu tantos presentes em ouro que o valor do metal na cidade caiu e ficou em baixa por muito tempo.

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    Alm de serem conhecidos como destino de rotas comerciais, os reinos do Sudo Ocidental englobavam, em suas fronteiras, po-vos de agricultores e mineradores os trabalhadores que criavam as grandes riquezas controladas por reis e nobres. Na verdade, toda a pompa dos reinos se sustentava sobre os impostos, pagos em produto e em trabalho, dos habitantes das aldeias subordinadas. Entre estes estavam os soldados dos exrcitos conquistadores, os carregadores do comrcio de longa distncia, as escravas comerciadas nas rotas para o norte do continente. Essas pessoas homens e mulheres inventa-ram instrumentos, elaboraram tecnologias e sistemas de trabalho que contriburam para o desenvolvimento da minerao e da produo agrcola, no s em suas regies como, quando escravizados e trazidos no trfico negreiro, para o Brasil.

    sAIbA mAIs

    1. Sobre as contribuies para a minerao e agricultura trazidas pelos africanos escravizados ao Brasil, consulte a revista Nova Escola, no 187, ed. especial frica de todos ns.

    2. Sobre os reinos do Sudo Ocidental:SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lana: a frica antes

    dos portugueses. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. cap. 9, 11.

    MAESTRI, Mario. Histria da frica Negra Pr-Colonial. Porto Alegre: Mercado aberto, 1988. cap. 2.

    Conforme vimos, o Islamismo na frica significou a ampliao de conexes com amplas reas do mundo e o estmulo ao surgimento de uma srie de prticas culturais. Foram historiadores, gegrafos e viajantes do mundo islmico que produziram as primeiras fontes es-critas sobre os reinos do Sudo Ocidental. E tambm esses estudiosos muulmanos foram os que em sua maioria levaram notcias, para alm da frica, sobre o movimento das rotas de longa distncia e a vida nas cidades e aldeias africanas ao sul do Saara.

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    vII. A FormAo Do munDo AtlntICo e o trFICo De esCrAvos

    Cerca de 11 milhes de africanos foram trazidos para as Am-ricas como escravos, no mais longo processo de imigrao forada da Histria da humanidade. Destes, aproximadamente quatro milhes ou mais foram transportados para o Brasil. Ou seja, 40% dos africanos escravizados o foram para vir trabalhar no nosso pas: para plantar comida e produtos agrcolas de exportao (como a cana de acar, o tabaco, o algodo, o cacau, o caf), para extrair ouro e diamantes das minas, para carregar tudo o que fosse necessrio para construir casas, igrejas e ferrovias, para abrir e pavimentar ruas. Tudo isso, e ainda ensinar muitas tcnicas produtivas e remdios para a popula-o brasileira. Enfim, alm da sua fora de trabalho, trouxeram a sua civilizao, seus conhecimentos e saberes.

    O comrcio atlntico de escravos conectou no s o Brasil e a frica. Como parte do Imprio Portugus que se estendia at a cidades costeiras da ndia e Macau (na China), esta ampla rede colo-cou todo um conjunto de lugares distantes em contato permanente e sistemtico. As naus da carreira da ndia chegavam carregadas ao nosso litoral, pois antes passavam pelo litoral da frica, trocando os panos do sul da sia que traziam (conhecidos como panos de negros) por escravos e aqui, no Brasil, estes por acar e aguardente. Era uma ampla rede de comrcio que envolvia diferentes parceiros em diferentes partes do mundo, durante o tempo que durou o trfico de escravos.

    Essas relaes, que cruzavam os oceanos, levavam e traziam pessoas e mercadorias, alm de novos produtos agrcolas, novos ali-mentos, novas maneiras de cultivar, e instrumentos de trabalho at ento desconhecidos. E mais (muito mais!): outros jeitos de falar e de se expressar, ideias, religies...

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    CurIosIDADe

    Entre as trocas possibilitadas pelas grandes navegaes e pelas conexes via oceanos na poca Moderna (sculo XV-XVIII), uma das mais impactantes na vida cotidiana foi o intercmbio de alimentos.

    Alguns exemplos:3. o milho e a mandioca que saram das Amricas e foram

    fazer parte da alimentao na frica como elementos essenciais;

    4. o inhame e o quiabo africanos que fazem parte de pratos tradicionais da cozinha brasileira;

    5. as frutas que vieram da ndia como a manga e a jaca, que hoje integram nossas paisagens e nossa mesa.

    Mas, no devemos esquecer: o trfico de escravos africanos tra-zia pessoas. Eram seres humanos retirados de sua terra natal, de suas aldeias, de suas casas e de suas famlias. Por meio de guerras mais do que tudo, mas tambm eram aprisionados em expedies de captura especialmente montadas para este fim. Os envolvidos nisto que depois (no sculo XIX) se chamou de o infame comrcio eram africanos e europeus, inicialmente. E, principalmente a partir do sculo XVIII, eram brasileiros ou residentes no Brasil.

    Como puderam, perguntam alguns, os africanos traficar seus prprios irmos? Para comear, eles no se sentiam como irmos naquela poca. A frica um continente, lembremos. E um conti-nente dividido em pases e povos. Naquela poca tampouco havia os pases, mas os povos, organizados em unidades ainda menores. Eram mais do que tudo pequenos grupos, conjuntos de aldeias, algumas cidades e poucas vezes reinos como o reino do Congo (que ficava no norte de Angola e em parte dos pases que adotaram este mesmo nome).

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    Anteriormente falamos que a identidade das pessoas nas socie-dades africanas se vinculava s suas comunidades. E essas comunidades eram os povos de cada um. No havia nada que os irmanasse acima de suas fronteiras tnicas. Um diula no se via como um irmo de um mandinga, no Senegal. Um habitante de Oi (no que veio a ser chamado pas iorub, na Nigria) no se identificava com um hau (que habitava o que veio a ser depois o mesmo pas, a Nigria, mas na poca do trfico eram apenas identificados como os grupos do norte, muitas vezes inimigos de guerra). Um bakongo e um mbundo, na atual Angola, tinham histrias distintas apesar de poderem estar prximos no espao. A guerra havia pautado diversas vezes suas relaes no sempre, mas em algumas ocasies.

    A ideia de africano como unidade somente surgiu no sculo XIX, muito vinculada ao contexto da luta contra o trfico e a escra-vido. ao mesmo tempo uma resposta ao europeu e um novo sig-nificado dado ao tratamento que esse mesmo europeu vinha fazendo quando se referia aos nativos da frica.

    O trfico enfraqueceu comunidades africanas inteiras, mas enriqueceu mercadores e reis na frica. Enriqueceu tambm al