Relações de Poder No Processo de Ensino e Aprendizagem de Matemática

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO JOÃO PAULO ATTIE Relações de poder no processo de ensno e aprend!a"e# de #a$e#%$ca  São Paulo 2013

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Educação

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE EDUCAO

    JOO PAULO ATTIE

    Relaes de poder no processo de ensino e aprendizagem de matemtica

    So Paulo

    2013

  • JOO PAULO ATTIE

    Relaes de poder no processo de ensino e aprendizagem de matemtica

    Tese apresentada Banca Examinadora da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    rea de Concentrao: Ensino de Cincias e Matemtica.

    Orientador: Prof. Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura.

    So Paulo

    2013

  • Autorizo a reproduo total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Attie, Joo Paulo. Relaes de poder no processo de ensino e aprendizagem de matemtica / Joo Paulo Attie; orientador Manoel Oriosvaldo de Moura So Paulo, 2013.164 p.:

    Tese (Doutorado) Universidade de So Paulo, 2013.

    1. Interao Professor-Aluno. 2. Relaes de Poder. 3. Educao Matemtica. I. Moura, Manoel Oriosvaldo. II. Ttulo.

  • ATTIE, J. P. Relaes de poder no processo de ensino e aprendizagem de matemtica.

    Tese apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Aprovado em: 23/ 04 / 2013

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura Instituio: FEUSPJulgamento: Assinatura:

    Prof. Dr. Vincio de Macedo Santos Instituio: FEUSPJulgamento: Assinatura:

    Prof. Dr. Oscar Joo Abdounur Instituio: IME USP Julgamento: Assinatura:

    Profa. Dra. Flavia Dias Ribeiro Instituio: UFTPRJulgamento: Assinatura:

    Prof. Dr. Wellington Lima Cedro Instituio: IME UFG Julgamento: Assinatura:

  • Rosana, ao Gabriel e Beatriz.

  • Agradecimentos

    Ao meu orientador, Ori, que, mais uma vez, me acompanha nesta trilha,

    mostrando, com sua ao e seu exemplo, que os caminhos que percorremos para aprender

    e conhecer so rduos e, por vezes, temveis, mas imensamente compensadores.

    Aos professores que, mesmo sem saber, foram responsveis por certas

    alternativas escolhidas nesta trilha acadmica. Flvia Schilling, pelo precioso auxlio em

    minhas primeiras incurses ao mundo foucaultiano. Vincio de Macedo Santos e

    Wellington Cedro, pelas fundamentais contribuies, especialmente por terem vindo em

    um momento to decisivo do trabalho. Oscar Abdounour, pela incomparvel capacidade

    de ouvir e de buscar as estruturas ocultas por trs da realidade aparente. E, por fim,

    Bernard Charlot, que, em uma das encruzilhadas mais difceis do caminho, foi a bssola

    que me manteve na trilha.

    Aos colegas do Grupo GEPAPe, um agradecimento especial pelo amparo nesse

    processo. Flvia Ribeiro, as Carolinas, Flvia Asbahr, Bel, Elaine, Ronaldo, enfim, o

    grupo todo foi fundamental nessa caminhada e sei que injusto citar apenas alguns nomes,

    mas, de toda forma, as relaes evoluem de maneiras e em direes diversas.

    Aos colegas da Universidade Federal de Sergipe, pela acolhida e pelo

    companheirismo, quero fixar o agradecimento especialmente nos nomes de Rita e Denize,

    mas tambm ao Franklin, Lcia, Aryana, Francisco e Danilo.

    Aos amigos que acompanharam e me mantiveram nessa jornada, de perto ou de

    longe, Gleidson, Ndia, Marta e Lorisvaldo, Janice, Ana Paula e Nilson.

    Aos estudantes, a seus pais e aos profissionais da educao, especialmente aos

    da rede pblica estadual, que se dispuseram a dar um pouco do seu tempo e de sua

    reflexo para a coleta dos dados deste estudo.

    Ao professor Jorge Miguel, cujas aulas encantadas (de literatura!) me levaram a

    seguir a carreira de professor.

    Aos familiares e amigos, que tiveram horas de convvio subtradas nesta etapa,

    e que souberam compreender e amparar esta empreitada. Em particular, alm do Biel e da

    Bia, esses rebentos cada vez mais belos e ao Tito, novo e promissor parceiro, um obrigado

    especial ao Z Lus e ao Joo, parceiros inestimveis e incomparveis no apoio.

  • RESUMO

    ATTIE, J. P. Relaes de poder no processo de ensino e aprendizagem de matemtica. 164 p. Tese de Doutorado. Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    A sala de aula de matemtica um contexto no qual so tecidas as relaes de poder entre professor e aluno, ainda que esse possa no ser um fenmeno consciente para os sujeitos diretamente envolvidos. Consideramos que a ocorrncia dessas relaes no , por si, um acontecimento que merea um julgamento moral. O objetivo deste trabalho investigar as Relaes de Poder estabelecidas entre professor e aluno na aula de matemtica e discutir suas implicaes para o ensino e a aprendizagem dessa disciplina. Para esse objetivo ser alcanado, nos aprofundamos nos conceitos de poder e de relaes de poder e em algumas caractersticas das relaes de poder, que fundamentamos principalmente nos escritos de Foucault e Bourdieu. Detivemo-nos tambm no processo histrico de institucionalizao da matemtica na sociedade. Foi realizado um trabalho de campo, que desenvolvemos com a aplicao de entrevistas, semiestruturadas, no caso de professores e pais de alunos, separadamente, e utilizando as tcnicas de Grupo Focal, com alunos, em duas escolas com algumas caractersticas distintas. No trabalho de campo, obtivemos de cada grupo elementos que ampararam nossa anlise. Dos alunos, alcanamos elementos que nos permitiram perceber como so descritas por eles as modalidades instrumentais, o sistema de diferenciaes e as formas de institucionalizao do exerccio do poder nas relaes entre estes e seus professores; dos pais, obtivemos suas impresses sobre a importncia que atribuem ao desempenho em matemtica para a vida dos filhos, configurando uma das formas de institucionalizao do poder atribudo disciplina; por fim, dos professores, vislumbramos a presena do formalismo, as modalidades instrumentais e os graus de racionalizao que so produzidos em suas prticas pedaggicas.

    Palavras-Chave: Interao Professor-Aluno. Relaes de Poder. Educao Matemtica.

  • ABSTRACT

    ATTIE, J. P. Power Relations in the Process of Teaching and Learning of Mathematics. 164 p. PhD Thesis. Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    The mathematics classroom is a context in which are woven the power relations between teacher and student, although this may not be a conscious phenomenon for subjects directly involved. We consider that the occurrence of these relationships is not, in itself, an event that deserves a moral judgment. The objective of this study is to investigate the relations of power established between teacher and student in math class and discuss their implications for the teaching and learning of the discipline. For this goal to be achieved, we delve into certain concepts, such as power and power relations and some characteristics of power relations, that we base in the writings of Foucault and Bourdieu and we studied also the historical process of institutionalization of mathematics in society. We conducted a field study, we developed the application with interviews, semi-structured, in the case of teachers and parents separately, and using the techniques of focus group with students in two schools with some distinct characteristics. During the fieldwork, each group got elements that bolstered our analysis. Students, elements that have allowed us to reach realize how they are described by the terms instrumental in the exercise of power relations between them and their teachers; parents, got their impressions of the importance they attach to mathematics performance for the life of the children, configuring a form of institutionalization of power assigned to the discipline; finally, the teachers, we see the degrees of rationalization that are produced in their teaching.

    Keywords: Teacher-Student Interaction. Power Relations. Mathematics Education.

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    LISTAS

    FIGURAS:

    Figura 1. Matemtica e Religio ............................................ p. 22

    Figura 2. Tirei Dez ............................................................. p. 26

    Figura 3. Nota ..................................................................... p. 26

    Figura 4. As Namoradas de Papai .......................................... p. 65

    Figura 5. Crescei e Multiplicai-vos .................................... p. 69

    Figura 6. Viso Geral das Posies... ..................................... p. 71

    Figura 7. Problema 32: Papiro de Rhind .............................. p. 155

    Figura 8. Melancholia .......................................................... p. 164

    TABELAS:

    Tabela 1. ndices do IDEB ..................................................... p. 91

    Tabela 2. Distribuio de dez vagas: Regra atual ............ p. 142

    Tabela 3. 1a Vaga, Distribuio de onze vagas .................... p. 143

    Tabela 4. 2a Vaga, Distribuio de onze vagas ................ p. 143

    Tabela 5. Distribuio de dez vagas: Regra antiga .......... p. 143

    Tabela 6. Distribuio de onze vagas ................................... p. 144

    Tabela 7. Resultados da Votao ..................................... p. 145

    Tabela 8. Algoritmo de Duplicao ................................. p. 155

    GRFICOS

    Grfico 1. Diversidade entre os ndices ............................ p. 91

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    SUMRIO

    Introduo ........................................................................................................ p. 11

    I. A Produo de um paradoxo: o orgulho da ignorncia ............................ p. 14

    II. A Presena da Matemtica na Escola e na Sociedade ........................... p. 26

    III. Representaes sobre os modos de fazer, ensinar e aprender Matemtica:

    rastros do humano ........................................................................................... p. 57

    IV. Relaes de Poder ..................................................................................... p. 74

    V. Metodologia ................................................................................................ p. 88

    VI. Dados e Anlise ......................................................................................... p. 98

    VII. Consideraes Finais ............................................................................ p. 117

    VIII. Bibliografia ........................................................................................... p. 131

    IX. Apndices ................................................................................................ p. 142

    X. Anexo ........................................................................................................ p. 164

  • 11

    Introduo:

    Este trabalho teve como objetivo investigar as Relaes de Poder estabelecidas

    entre professor e aluno na aula de matemtica e discutir suas implicaes para o ensino

    e a aprendizagem dessa disciplina. Dentro do contexto das interaes professor-aluno,

    que um dos inmeros fenmenos que influenciam o processo de ensino e

    aprendizagem, emergem relaes de poder, ainda que este elemento possa no ser

    conscientemente compreendido pelos sujeitos do processo. Longe de ser um fenmeno

    restrito sala de aula, compreendemos que ele permeia o campo de toda a sociedade e

    sofre influncia de vrios agentes, como por exemplo, os pais, os meios de

    comunicao, os professores de outras reas, entre tantos outros.

    A maneira como os alunos e os professores de matemtica enxergam as

    interaes ocorridas em sala de aula influenciam fortemente as reaes e

    comportamentos assumidos pelos primeiros e tambm a prtica pedaggica como um

    todo destes ltimos, a includos vrios componentes dessa prtica, tais como o

    planejamento e a avaliao, por exemplo. Assumimos como pressuposto, tambm

    apoiados em pesquisa bibliogrfica realizada (PISCARRETA, 2001; HELIODORO,

    2002; SILVA, 2004; UTSUMI, 2008), que essas interaes so determinantes na

    disposio dos estudantes para a aprendizagem da disciplina, residindo a um dos

    fatores importantes para analisarmos as Relaes de Poder entre professor e aluno

    vivenciadas em relao matemtica e discutirmos suas implicaes para o ensino e a

    aprendizagem dessa disciplina.

    O objeto de pesquisa com o qual trabalhamos nos foi proporcionado a partir de

    uma questo principal, que se constituiu ao longo de nossa trajetria acadmica e

    profissional, a partir de um locus ao mesmo tempo peculiar e abrangente, que o lugar

    de professor de matemtica. Peculiar, pois ser (e j ter sido durante vrios anos)

    professor de Matemtica 1 a especificidade, a particularidade que nos permitiu

    enxergar indcios de dois fenmenos complementares em estudantes, pais, colegas de

    outras disciplinas, coordenadores, etc. E abrangente, pois a percepo desses elementos

    no se deu apenas na sala de aula, ao contrrio, pois nos parece que eles ocorriam e

    ocorrem tanto dentro como fora da escola.

    1 Em nosso caso, nos nveis de Ensino Fundamental, Mdio e/ou Superior nas ltimas trs dcadas.

  • 12

    A questo a que estamos nos referindo o fenmeno da averso matemtica,

    experimentada de maneira quase espontnea por grande nmero de indivduos, que pode

    se desdobrar em um segundo fenmeno, que chamaremos de renncia em aprender

    matemtica.

    No captulo I, fazemos uma anlise acerca de como se processa, a nosso ver, o

    mecanismo disparador desses fenmenos. Alm disso, em se tratando do universo

    escolar, ressaltamos aspectos que se mostraram relacionados ao longo do trabalho,

    acerca de trs elementos principais, o ensino de matemtica, o conhecimento

    matemtico e a aprendizagem da matemtica. Nas representaes atualmente presentes

    sobre o conhecimento matemtico necessrio na escola, aparecem caractersticas tais

    como a necessidade do rigor, e as supostas exatido e infalibilidade deste conhecimento.

    Em relao ao ensino, destacamos a predominncia do aspecto formalista e a

    consequente diferena que essa caracterstica implica relativamente ao ensino das outras

    disciplinas. Acerca da aprendizagem, sobressaem aspectos como a necessidade da

    linearidade e tambm da submisso s regras. Tais caractersticas implicam em uma

    enorme disparidade entre o que seriam a matemtica escolar e a atividade matemtica.

    Enquanto a primeira envolveria principalmente a repetio e a memorizao de regras e

    algoritmos, na segunda haveria a necessidade da compreenso dos processos por trs

    dos procedimentos. Uma das mais trgicas decorrncias desse cenrio seria a carncia

    de argumentaes (lgica e didaticamente) vlidas no processo de ensino e

    aprendizagem da disciplina, com evidentes implicaes na produo das relaes de

    poder dentro do processo.

    Em seguida, no captulo II, discorremos sobre o papel e a valorizao da

    matemtica na escola e na sociedade, a partir de uma srie de elementos. A partir da

    importncia que os pais de alunos atribuem ao desempenho na disciplina, abordamos

    tambm a quantidade de horas que as aulas de matemtica ocupam dentro dos currculos

    escolares, identificando as vrias justificativas apontadas para essa prerrogativa. Alm

    disso, tambm destacamos a fora que esse conhecimento empresta aos principais

    sistemas de avaliao, finalizando com uma descrio do processo histrico de

    valorizao do conhecimento matemtico, com a identificao de alguns pontos de

    inflexo desse processo dentro da histria humana. Ressaltamos ainda que, apesar da

    inegvel penetrao do conhecimento matemtico em quase todas as instncias do

  • 13

    cotidiano, a invisibilidade desse conhecimento se apresenta tambm como um

    fenmeno inquestionvel.

    No captulo III, consideramos a importncia de identificarmos as representaes

    que os indivduos possuem a respeito, por exemplo, da matemtica ou do professor de

    matemtica, pois estas representaes iro interferir nas interaes que incluam esses

    elementos. Dessa forma, neste captulo, identificamos vrias dessas representaes, nos

    fornecendo elementos que iro subsidiar nossa investigao sobre as relaes de poder,

    que so consideradas no captulo IV. Neste captulo, destacamos os fundamentos

    tericos que utilizamos para a compreenso dos processos que aliceram, produzem,

    modificam e perpetuam as relaes de poder. De como, por exemplo, conforme afirma

    Bourdieu, o poder simblico necessita da legitimidade do outro para se firmar, passando

    pelas caractersticas necessrias para as anlises das relaes de poder, especialmente

    trazidas por Foucault, como, por exemplo, as modalidades instrumentais, o sistema de

    diferenciaes e as formas de institucionalizao, entre outras.

    No captulo V, apresentamos as opes trilhadas na pesquisa e fazemos uma

    descrio de como se deu esse desenvolvimento, como por exemplo, o processo de

    seleo dos sujeitos e de escolas com caractersticas distintas, bem como das escolhas

    dos instrumentos de coleta de dados mais apropriados a cada categoria, entrevistas

    semiestruturadas para pais e professores e grupo focal para alunos.

    Em seguida, apresentamos os dados obtidos e realizamos uma breve anlise

    interpondo os fundamentos tericos presentes nos elementos alcanados nas entrevistas.

    Finalmente, no ltimo captulo, fazemos as consideraes finais sobre o

    trabalho, confirmando a ocorrncia das caractersticas das relaes de poder e da

    existncia das representaes e ainda, considerando algumas das consequncias para o

    processo de ensino e aprendizagem de matemtica. Consideramos ainda o fato de que a

    invisibilidade do conhecimento matemtico estimula e estimulada pelo processo de

    alienao do indivduo, que sucede e se eterniza em face de um crescente movimento de

    abstrao desse conhecimento, historicamente determinado, consequncia do

    afastamento de seus processos de significao.

  • 14

    Captulo I: A produo de um paradoxo: o orgulho da ignorncia

    Saber matemtica parece ser um domnio em que, no sentimento da maioria das

    pessoas, no existem meios termos. Ou a pessoa sabe matemtica, ou no sabe, o que

    se acredita e se propaga. uma rea que ainda ... vista pela grande maioria como

    algo a ser dominado somente por poucos iluminados (SAKAY, 2007, p. 119), crena

    essa que estaria ligada a questes arraigadas e vivenciadas por todos ns (idem,

    ibidem).

    uma arena 2 em que as atribuies sobre esse saber se valem de uma lgica

    binria, em que as vrias, quase infinitas, gradaes de cinza existentes entre o preto e o

    branco, ou respectivamente, o saber tudo e o no saber nada em matemtica, no tem

    oportunidade de aparecer. Consideramos desnecessrio, porm no exagerado, salientar

    que no existe atualmente um indivduo que conhea toda a matemtica produzida.

    Alguns dos mais respeitados historiadores da matemtica consideram que o matemtico

    francs Henri Poincar tenha sido, na passagem dos sculos XIX e XX, o ltimo

    universalista da matemtica (BELL, 1986, p.527; BOYER, 1974, p.441; EVES, 2005,

    p.617) 3. Considera-se que o incio do sculo XX tenha sido o ponto em que a qualidade

    e a quantidade da matemtica produzida tenham chegado a um nvel muito alm do

    entendimento de qualquer pessoa (DAVIS & HERSH, 1995, p.35). E, em

    contrapartida, tampouco seria possvel afirmar que exista um indivduo que no saiba

    nada do assunto. Alm das tradicionalmente conhecidas capacidades de contar e de

    fazer relaes geomtricas, usualmente as nicas atribudas ao pensamento matemtico,

    as capacidades de comparar, ordenar, classificar, estimar, relacionar e generalizar, entre

    outras, tambm fazem parte do que pode ser considerado o saber matemtico. Com isso,

    razovel ponderarmos que seria impossvel a prpria sobrevivncia de um indivduo

    sem nenhuma dessas capacidades, mesmo desconhecendo qualquer vestgio de

    matemtica formal. Apesar disso, so constrangedores a intensidade e o alcance social

    do pensamento de que um indivduo deve pertencer a apenas um desses dois conjuntos 2 O termo arena utilizado bem a propsito, pois acreditamos estar diante de um dos campos de luta da realidade, em torno da imposio de sentidos (FOUCAULT, 2007). Consideramos, entretanto, que, sem uma espcie de planejamento (uma metodologia, ou mesmo uma perspectiva), no ser uma luta de verdade.3 Um dos mais importantes matemticos do sculo XIX, James Sylvester, comenta seu enlevo ao encontrar-se pessoalmente com Poincar: ... Na presena de to imensa fora intelectual, minha lngua, de incio, se recusou a agir, e no seria depois de alguns minutos que eu tivesse percebido e absorvido sua presena, que pude estar em condies de falar qualquer coisa. (BELL, 1986, p.526-527, traduo nossa).

  • 15

    excludentes. Acredita-se, em geral, que, ou a pessoa sabe matemtica e, neste caso,

    considerada uma pessoa inteligente, eleita, in, fazendo parte do seleto grupo dos

    quase gnios, ou ento, no caso de o indivduo no pertencer a esse grupo de seres

    especiais, ou seja, de estar includo entre os que no sabem matemtica,

    considerada, conscientemente ou no, uma pessoa inferior, ignorante, out, comparada a

    um deficiente, com o sentido pejorativo que frequentemente acompanha o termo.

    O bom desempenho em Matemtica considerado, em geral, como uma mostra de sabedoria e inteligncia. Consideram-se as pessoas que tm facilidade para Matemtica como gente especial, com algum dom extraordinrio: o saber matemtico goza de prestgio [...] e esse prestgio, por sua vez, gera em quem tem dificuldades uma averso muito forte Matemtica. (MARKARIAN, 2004, p. 276, 277).

    No seria excessivo, supomos, dizer que a imensa maioria da humanidade se

    considera fazendo parte do segundo grupo, o dos que no sabem matemtica. Essa

    dicotomia, essa binariedade que se coloca entre o saber tudo e o no saber nada, sem

    a existncia de gradaes de cinza entre os dois polos, um dos elementos que, aliados

    averso matemtica 4, produzem um campo frtil para o nascimento e crescimento

    do fenmeno da renncia em aprender o contedo da disciplina. O sentimento de ser

    excludo, de estar fora de um grupo inconfessadamente desejado, porm tido como

    inalcanvel, faz com que uma parte dos indivduos reaja desdenhando esse desejo e

    esse grupo. Cria-se assim, numa consequncia secundria, um contingente que termina

    propagando com altivez sua ignorncia em matemtica, um conjunto de indivduos que,

    por estar obrigatoriamente colocado em uma categoria de suposta inferioridade, reage

    no somente aceitando a classificao de inferioridade que lhes impingida (pois

    considera no possuir os meios para refut-la), mas inverte essa classificao e, de

    modo altaneiro, at mesmo orgulhoso, publicamente se regozija ao abraar essa fortuna,

    a de pertencer ao conjunto, ao grupo dos que no sabem matemtica. E importante que

    esse propagar seja feito de forma pblica, alardeada aos quatro cantos, pois, de maneira

    particular, reservada, essa alegria no conseguiria esconder um ressentimento inicial,

    que est na origem desse tipo de reao. somente no corpo social que esse falso

    orgulho viceja e sobrevive. Entre as pessoas ditas letradas, inclusive, comum que

    4 ... nossa sociedade parece estar repleta de indivduos que desenvolveram uma averso a esta disciplina e que, irremediavelmente, vo transmitindo uma imagem pejorativa da Matemtica a quem os rodeia (SOUSA, 2005, pg. 3).

  • 16

    algum se envergonhe ... de ser flagrada incapaz de diferenciar concretismo de

    futurismo, mas essa mesma pessoa se orgulha de odiar a matemtica... (SILVA,

    2004, p.99).

    O matemtico Godfrey Hardy utiliza-se de uma certa dose de acidez ao

    comentar o fenmeno:

    O fato que existem poucas disciplinas to populares como a matemtica. A maioria das pessoas tem alguma estima pela matemtica, do mesmo modo que a maioria consegue apreciar uma melodia agradvel, e, com toda a probabilidade, h mais pessoas realmente interessadas em matemtica do que em msica. As aparncias podem at sugerir o contrrio, mas h explicaes simples para o fenmeno. A msica pode ser usada para estimular as emoes das massas, ao passo que a matemtica no; se a incapacidade musical reconhecida (e bem) como ligeiramente descredibilizante, a maior parte das pessoas sente tal pavor pelo nome da matemtica que est genuinamente disposta a exagerar a sua estupidez na matria.

    (HARDY, 2007, p.74)

    Aparece desta forma, como podemos perceber, a outra face dessa mesma

    moeda, uma das caractersticas complementares da renncia em aprender matemtica,

    um pretenso, mas, ao nosso ver, falso, orgulho da ignorncia, uma certa alegria de no

    fazer parte de um grupo com a evidente tentativa de desqualificao do mesmo.

    Parafraseando a fbula de Esopo 5, poderamos afirmar que sim, as uvas estavam mesmo

    verdes e no nos interessaram verdadeiramente em nenhum momento. Se, na fbula a

    que nos referimos, faltam raposa melhores instrumentos, ou talvez um pouco mais de

    sorte, para que as uvas pudessem ter sido alcanadas, a situao no se mostra to

    diferente fora do mundo da fantasia, no caso do grupo que estamos considerando. No

    animal, falta a conscincia de que ele tem condies para agarrar o alimento, se

    possusse ferramentas apropriadas. No indivduo que acredita no saber matemtica,

    da mesma forma falta essa conscincia, a de que existem instrumentos adequados para

    que ele possa compreender como j utiliza matemtica em sua vida (e como pode

    utiliz-la melhor). Dessa forma, o que poderia diferenciar o humano do animal no se

    faz presente nestes indivduos, a disposio de poder modificar sua prpria histria, de

    superar as limitaes impostas pelas condies existentes. Falta assim, tanto no homem

    quanto na raposa, a conscincia de que fala o filsofo espanhol, quando afirma que o

    5 Na fbula A Raposa e as Uvas, a primeira, no conseguindo, aps vrias tentativas, alcanar as frutas, por estarem no alto da parreira, vai-se embora, afirmando no querer de fato as uvas por estas no estarem maduras. (ESOPO, 1997).

  • 17

    homem rende ao mximo de sua capacidade quando adquire plena conscincia de suas

    circunstncias (ORTEGA y GASSET, 1981, p.21, traduo nossa) 6. A suposta

    incapacidade do indivduo algo que ele acredita estar dentro dele (e que se configura,

    para ele, imutvel, quase uma marca gentica que esse indivduo carregar pela vida

    aps ter sido qualificado como incapaz). A analogia que se permite fazer com a raposa

    a de que ela mesma tivesse um defeito incorrigvel que no a permitisse sequer sonhar

    com a suculenta refeio. Pois, mesmo que as uvas estivessem maduras e ao alcance,

    nunca lhe seria permitido sabore-las, e, pior, por sua prpria suposta incapacidade.

    Ainda que esse fenmeno carea de comprovao estatstica, consideramos que

    ele ocorra to frequentemente nos vrios campos sociais, alm da prpria escola, que

    podemos atribuir a ele uma expresso, cunhada por Foucault, como sendo um daqueles

    fatos banais. O filsofo francs, quando utiliza a expresso fato banal, no o faz

    considerando o sentido de que o acontecimento no seja algo importante, mas sim com

    o significado de ser um fato que acontece o tempo todo e que todo o mundo

    conhece. E justamente por ocorrer com tanta frequncia, que esse acontecimento

    acabaria passando pelos indivduos de maneira completamente despercebida, causando,

    a sim, a impresso de que seria um fato pouco importante, ou seja, banal, no sentido

    mais corrente do termo na linguagem cotidiana. A averso matemtica e a

    consequente renncia em aprend-la, , a nosso ver, um desses acontecimentos sobre o

    qual afirmaramos, como o autor, que: no por serem fatos banais que no existem.

    O que necessrio fazer com esses fatos descobrir, ou pelo menos tentar descobrir

    qual o problema especfico e, talvez original, que a se estabelece (FOUCAULT, 1995,

    p.232).

    A existncia desse fenmeno igualmente ratificada pelo historiador Paul

    Veyne, segundo o qual certos fatos humanos no so bvios e, no entanto, ... parecem

    to evidentes aos olhos dos contemporneos e mesmo de seus historiadores que nem uns

    nem outros sequer o percebem. (VEYNE, 1982, p.152)

    Desta forma, manifesta-se um processo de naturalizao do fenmeno, conceito

    apontado e criticado por Marx (1987, p. 83-84), como parte de um procedimento que

    torna o indivduo incapaz de compreender o processo histrico e social de sua prpria

    formao. Tal artifcio remete tentativa de justificar as desigualdades por meio de

    supostas causas naturais. No caso da naturalizao do fenmeno ao qual fazemos

    6 E em outra passagem: Eu sou eu e minha circunstncia (ORTEGA y GASSET, 1981, p.25, traduo nossa).

  • 18

    referncia, a relao de animosidade do indivduo com a matemtica, esse processo

    significa um apagamento da histria dessa relao que se torna, desse modo, uma

    relao apontada como natural, permanente e imutvel. De acordo com Duarte (2003),

    O fetichismo faz com que os homens, tanto em sua vida cotidiana como em seu pensamento, no percebam as relaes mediadas pelo valor de troca como relaes sociais, isto , como produtos histricos da ao humana. Ao invs disso, os homens naturalizam o valor de troca, como se ele fosse uma propriedade natural, fsica, das coisas [...] a naturalizao, ao contrrio de significar uma tentativa de retorno a um primitivo estgio natural, significa a tentativa de justificao, atravs da eternizao e da universalizao, de uma determinada realidade, apresentando-a como correspondente natureza humana.

    (DUARTE, 2003, p. 63-64)

    No processo de desenvolvimento dessas percepes, alguns questionamentos e

    reflexes tiveram lugar. Num primeiro momento, pensamos sobre como a relao entre

    os fenmenos averso a certo corpo de conhecimentos e a renncia em aprend-lo

    poderiam ser compreendidos como se o segundo fosse uma consequncia espontnea,

    ou reao instintiva, ao primeiro. Outra cogitao que nos deteve foi relativa questo

    da prpria matemtica escolar. Quais teriam sido as caractersticas do processo

    (histrico, social e econmico) que levaram atual configurao da matemtica escolar?

    De que forma o conhecimento matemtico, em si, contribuiria para essa configurao e

    para a importncia atribuda matemtica na sociedade? E, entre esses elementos, nos

    parecia claro que partes como a prpria histria escolar do aluno (e a a figura do

    professor de matemtica e do conhecimento matemtico seriam relevantes) e o alcance

    da representao que a sociedade (representada por pais, meios de comunicao, etc.)

    faz a respeito da matemtica e da matemtica escolar, deveriam ter alguma influncia

    nesse processo.

    Neste ponto do trabalho, consideramos que, alm de uma anlise relativa

    institucionalizao social do conhecimento matemtico, tambm seria apropriado

    anteciparmos algumas questes, relativas a algumas das principais variveis envolvidas

    (o conhecimento, o professor e o aluno) no fenmeno das Relaes de Poder na sala de

    aula, que poderiam vir a ser pertinentes, na anlise a ser realizada aps a concretizao

    da pesquisa de campo.

    Assim, primeiramente, em relao ao conhecimento matemtico, conjeturamos

  • 19

    que poderia vir a aparecer, nos resultados (de professores e alunos), alguma aluso

    necessidade do rigor, que seria imperativo para esse conhecimento. Neste caso,

    advogaramos considerar uma defesa do equilbrio entre a intuio e o rigor, que devem

    ser tratados como complementares, sendo, na apreciao de alguns autores, ...

    inadmissvel separar intuio e rigor no ensino de qualquer contedo matemtico...

    (REIS, 2001, p.79).

    Outras caractersticas que espervamos encontrar, relativas ao conhecimento

    matemtico, foram as da exatido e da infalibilidade desse conhecimento, que

    poderamos relacionar denominada ideologia da certeza (SKOVSMOSE, 2001). Neste

    ponto, consideramos que, se fosse esse o caso, seria necessrio discorrer sobre de que

    maneira a utilizao desse sistema teria potencialidades para o controle poltico, ou de

    elementos que poderiam ser uma resposta, ou um desafio a essa ideologia, a partir, por

    exemplo, da teoria da votao, ou dos paradoxos lgicos ou semnticos. Como falar, por

    exemplo, em certezas quando se observa que uma simples e ingnua escolha de uma

    opo diversa de operaes aritmticas em um sistema eleitoral pode modificar os

    resultados de uma votao, mesmo aps ela ter sido realizada? 7 Ou ainda, como

    possvel se garantir a infalibilidade desse conhecimento ao nos depararmos com

    situaes estritamente objetivas em que uma afirmao e a afirmao contrria podem

    ser consideradas verdadeiras simultaneamente? 8

    Acerca dos predicados do aprendizado em matemtica, acreditvamos que, nos

    dados, poderia aparecer como caracterstica, a necessidade de que este fosse realizado

    de maneira metdica e linear, isto , encadeada, seguindo uma ordem, visto que a forma

    de arranjo linear vista como ... amplamente predominante na organizao do trabalho

    escolar (MACHADO, 1993, p.29), especialmente na matemtica, um conhecimento

    que, para os alunos, ... linear, se no aprendeu uma coisa, no consegue aprender a

    prxima. (CHAMIE, 1990, p. 99). Fosse o caso de aparecer esse aspecto em nossos

    dados, considervamos afirmar que h mltiplos exemplos de aspectos positivos do

    ensino de matemtica como uma rede de contedos e significados, que mostram que a

    linearidade no necessariamente uma caracterstica inerente matemtica, ... mas sim

    uma mera questo de como organizar os contedos. (idem, ibidem).

    Um aspecto que, implicitamente, poderia aparecer como caracterstica do

    aprendizado em matemtica seria a necessidade de submisso s regras. O

    7 Ver Apndice A.8 Ver Apndice B.

  • 20

    questionamento principal que nos remeteu a este atributo era relativo ao processo de

    negociao estabelecido nas aulas de matemtica, em que nem sempre apareceriam

    argumentos vlidos para as concluses ou contedos presentes na aula.

    Consideramos necessrio elucidar a situao descrita acima com dois exemplos,

    a nosso ver, emblemticos, ainda que, lamentavelmente, no sejam os nicos. Tomemos

    um contedo essencial, como o dos critrios de divisibilidade entre naturais, ensinados

    atualmente no 6 ano do Ensino Fundamental. Vrios livros didticos trazem as regras

    para a divisibilidade pelos primeiros nmeros naturais (exceto o zero) no 6 ano do

    Ensino Fundamental (alguns no 7 ano e at no 8 ano). Verificamos, a partir dos dez

    livros recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didtico PNLD 2011 9,

    relativo a este nvel de ensino, o contedo dos critrios de divisibilidade. Em todos eles,

    as regras de divisibilidade aparecem. Entretanto, aparecem, ora incompletas, ora sem

    nenhuma justificao. As dedues desaparecem, e cedem lugar a uma ambicionada

    induo dos critrios, a partir de poucos exemplos. Em um dos ttulos inclusive, surge o

    pretexto de que no se percebe um padro que leve a uma regra de divisibilidade para

    aquele nmero especfico sendo, portanto, foroso, que se demonstrem os resultados

    mais tarde (o que de fato realizado, no livro do 9 ano desta coleo, mas apenas no

    nvel algbrico). como se as regras passassem a existir a partir de mentes iluminadas,

    superiores (discurso que, de fato, aparece implicitamente em uma das colees).

    Sabemos que existem demonstraes para cada uma delas, e a maior parte das

    justificativas pode ser elaborada em nvel compatvel compreenso de alunos do

    Ensino Fundamental 10, e que, portanto, poderiam estar presentes nos livros didticos

    deste nvel. Entretanto, ao nosso aluno negada a possibilidade de compreenso do

    processo que justifica esse conhecimento, em privilgio de uma espcie de adestramento

    das regras 11.

    Outro exemplo relevante relativo aos algoritmos operatrios, em geral,

    ensinados nas sries iniciais. A automatizao dos procedimentos nos parece

    plenamente justificada pela facilidade que imprime aos clculos. Assim, justifica-se a

    9 Ver Apndice C.10 Em todos os casos, a demonstrao pode ser feita utilizando-se de congruncias, o que no seria recomendvel em termos didticos, visto que um assunto de nvel universitrio. Mesmo o uso da lgebra do final do Ensino Fundamental seria uma antecipao ao tratar do assunto. Entretanto, com algumas das mais simples operaes aritmticas, como adio, multiplicao e mais a propriedade distributiva, seria possvel ao menos justificar as regras. 11 E provavelmente, tambm ao professor, que se apoia no livro didtico como ferramenta principal na preparao de suas aulas (BITTENCOURT, 1993; FREITAG, 1997).

  • 21

    efetivamente a necessidade do ensino dos algoritmos. Entretanto, assumir os mtodos

    como invariantes historicamente tem sido a norma nas prticas pedaggicas,

    desconsiderando o fato de que os procedimentos empregados atualmente sofreram

    alteraes ao longo da histria, no sendo, portanto, nicos 12. Talvez nesse ponto, seja

    necessrio reforar que consideramos imperativo o ensino dos algoritmos habituais. O

    que queremos chamar a ateno para o fato de que essas tcnicas so ensinadas como

    se fossem a nica forma existente de se efetuar um produto, ou uma diviso, por

    exemplo, desconsiderando a evoluo histrica desses procedimentos, com evidentes

    consequncias pedaggicas. Alm disso, a conformao atual dos mtodos para o

    clculo das operaes fundamentais termina por ser considerado um fim em si mesmo,

    deslocando a compreenso dos conceitos envolvidos para uma mera justificao inicial

    ao assunto, quando muito.

    Diante deste quadro, nos aventuramos a conjeturar que, a partir de episdios

    como esse, poderia ser desenvolvida uma justificativa consistente para a atual e

    permanente associao que se faz entre o processo de ensino e aprendizagem da

    matemtica e o que Paulo Freire denominou de pensamento mgico (FREIRE, 1983),

    em que a justificativa para os acontecimentos se encontraria em um lugar alm de

    nossas possibilidades de compreenso.

    Esta a razo pela qual ao perceber um fato concreto da realidade sem que o ad-mire, em termos crticos, para poder mir-lo de dentro, perplexo frente aparncia do mistrio, inseguro de si, o homem se torna mgico. Impossibilitado de captar o desafio em suas relaes autnticas com outros fatos, atnito ante o desafio, sua tendncia, compreensvel, buscar, alm das relaes verdadeiras, a razo explicativa para o dado percebido. (FREIRE, 1983, p. 29).

    Desta forma, no chega a ser surpreendente que os indivduos (inclusive os

    letrados) relacionem os resultados em matemtica ... magia, ou religio, tornando o

    sucesso nesta rea uma questo de f, pois, a partir de uma atitude em que no se

    colocam as causas e nem o processo de desenvolvimento dos conceitos, a aceitao ou

    no dessas regras no decorre de uma anlise racional das necessidades concretas.

    antes uma questo de passividade, aceitando, ou de mera rebeldia, se opondo a ela sem

    saber por que (DUARTE, 1986, p.8).

    12 Ver Apndice D.

  • 22

    Esse distanciamento entre a tcnica e o conhecimento evidentemente incentiva

    que o conhecimento matemtico seja representado como o faz, por exemplo, Bill

    Watterson, na seguinte tira de quadrinhos,

    Fig. 1: Matemtica-Religio, por Bill Watterson.Fonte: Watterson (1996).

    em que a representao que se faz do conhecimento matemtico de um elemento

    que, alm de ser incompreensvel, tem sua justificao apoiada em dogmas, no

    logicamente verificveis, sendo fundamentado em propriedades mgicas, ou at

    mesmo religiosas, de f, sendo assim algo que se mostra distante da realidade

    concreta do menino Calvin. O personagem, no segundo quadro, ao afirmar que as

    equaes so como milagres, apoia-se no fato de que, para ele, a operao de

    adio de dois nmeros d um certo resultado por magia e que ningum pode

    dizer como que se chegou a esse resultado ou porque o resultado aquele e no

    outro. Desta forma, chega concluso de que, em Matemtica, os resultados (e

    tambm os procedimentos que os produzem) so inexplicveis, incompreensveis e,

    tal qual a existncia de Deus, nesses resultados e procedimentos o indivduo est

    posto em uma situao em que simplesmente acredita-se ou no.

    Talvez a analogia entre Matemtica e Religio possa parecer despropositada, a

    princpio, pois nada sugere alguma afinidade entre maneiras humanas to distintas de

    compreenso da realidade, j que apoiadas em elementos to contrapostos como a razo

    e a f. Entretanto, interessante considerarmos que, se em termos religiosos, no dado

    ao indivduo conhecer ou discutir os processos que levaram elaborao e aceitao dos

  • 23

    dogmas 13 prprios daquela religio particular e, mais que isso, existe a concordncia de

    que talvez esses processos s possam ser conhecidos apenas por alguns eleitos, ou

    iluminados por uma fora maior, essa mesma viso pode ser sobreposta para indivduos

    que, assim como o personagem Calvin, da tira de quadrinhos, enxergam a matemtica

    como um conjunto de coisas cujos significados e processos lhes parece enigmtico e

    misterioso, s podendo ser aceitos, portanto, como uma questo de f. Se admitirmos

    que a atitude de submeter-se a certos dogmas considerada socialmente como uma

    postura aceitvel em se tratando de questes religiosas, emerge fortemente, alm das

    questes especficas da aprendizagem, uma das consequncias negativas dessa possvel

    (e indesejvel) analogia entre Matemtica e Religio, quando as regras da matemtica

    so percebidas como dogmas, com a necessidade da subordinao s regras. De

    qualquer forma, consideramos necessrio enfatizar que essa analogia deve ser

    caracterizada muito mais como uma semelhana entre posturas, atitudes e

    procedimentos em relao ao elemento (Matemtica ou Religio) do que como uma

    semelhana entre os elementos em si.

    Dentro desse contexto, consideramos necessrio ponderar que uma das imediatas

    consequncias a uma possvel necessidade de submisso s regras, alm das evidentes

    implicaes sociais e polticas, a forte probabilidade da transformao (ou da

    consolidao) da relao professor-aluno em uma relao difcil e/ou autoritria.

    Finalmente, em relao s caractersticas do ensino de matemtica, nos parece

    apropriado esperar que apaream, em nossos resultados, indicativos da concepo

    platnica da matemtica, com o saber matemtico associado fortemente s ideias de

    verdade, perfeio e exatido. H uma forte vinculao do platonismo com o

    formalismo 14, o que, pelos aspectos inerentes ao formalismo, traz consequncias para a

    perspectiva da sala de aula, j que legtimo [...] concluir que o mtodo de ensinar

    matemtica que constitui o paradigma do formalismo pedaggico clssico enfatiza a

    exposio, a imitao, a repetio e a memorizao (MIGUEL, 1993 p.165).

    Nesta perspectiva, se solidifica uma dissociao entre a matemtica escolar e a

    realidade, sendo este um aspecto fundamental, que diferencia extraordinariamente o

    13 Definidos como Verdades inquestionveis, para as quais no se admitem discusses (DUROZOI & ROUSSEL, 2005, p.141).14 Com a matemtica, no platonismo, sendo considerada a representao mais apropriada do mundo ideal, sua vinculao com a realidade pode ser preterida completamente, sendo esta uma das mais importantes consequncias do formalismo para o processo de ensino e aprendizagem.

  • 24

    ensino de matemtica, em relao ao ensino dos demais saberes. Nas disciplinas que se

    dedicam ao estudo dos fenmenos naturais, por exemplo, possvel ao professor

    [...] recorrer a elementos do ambiente para completar suas explicaes; pode propor a observao de fenmenos na natureza ou provocar sua ocorrncia, mediante experimentao. Ele pode solicitar a anlise e a manipulao de coisas para que os alunos elaborem as relaes entre causas e efeitos, percebam as relaes entre o trabalho cientfico e os seus resultados. (MICOTTI, 1999, p.163-164).

    Nas demais disciplinas, ligadas ao estudo das lnguas ou aos fenmenos sociais

    inegvel a ligao entre os conhecimentos e a realidade do aluno, visto que este se

    comunica e existe no meio social.

    No queremos com isso afirmar que a matemtica no se faz presente na

    realidade concreta dos indivduos, alunos ou no. Ao contrrio, apesar de considerarmos

    que existem incalculveis aplicaes da matemtica na vida cotidiana, o panorama que

    se apresenta, no contexto do mtodo de ensino denominado de formalista clssico ou

    tradicional (MIGUEL, 1993; FIORENTINI, 1995) o de que a matemtica escolar no

    busca se apropriar desse fato. Nesse contexto, ainda aparecem as exigncias de

    adestramento, repetio e disciplinamento, entendidas na escola como condio de

    sucesso em Matemtica (SANTOS, 1989, p.3). Por mais que o desenvolvimento e a

    utilidade da matemtica estejam fortemente vinculados s demandas da realidade, ela

    a nica disciplina em que o professor pode, caso assim o deseje (e essa opo pode ou

    no ser consciente e intencional), explanar seus contedos sem qualquer conexo com o

    mundo sensvel. Nas demais disciplinas, o aluno possui algum entendimento precedente

    acerca dos assuntos abordados. Na matemtica escolar, que, enfatizamos, diferente da

    matemtica, esse entendimento no compulsrio. A despeito de um movimento em

    que incentivada cada vez mais a contextualizao dos contedos matemticos, a

    disciplina ainda se conserva como sendo a nica em que aparece a possibilidade de no

    vinculao com o mundo.

    Como j foi mencionado anteriormente, consideramos que o processo do

    aprendizado em matemtica no se desenvolve pela mera posse dos contedos e

    procedimentos, mas sim pela compreenso dos raciocnios e processos envolvidos

    nesses contedos. De outra forma, a se considerar apenas a deteno dos contedos, j

    que nesse caso o professor parece possuir o conhecimento e o aluno no, a decorrncia

    natural a utilizao do conhecido argumento de autoridade, no qual a concluso se

  • 25

    sustenta unicamente numa suposta autoridade do sujeito que a pronuncia e no nas

    dedues lgicas relativas ao assunto considerado. Essa maneira de convencimento traz

    inegavelmente, embutida dentro de si, a possibilidade de desenvolver uma postura de

    no questionamento das normas em vigor (tendo, evidentemente, como tambm j foi

    citado, srias implicaes na vida social e poltica dos indivduos).

    As indagaes relativas a esses fatores, o conhecimento, o professor e o aluno, e

    tambm ao papel que a sociedade atribui ao conhecimento matemtico, nos levaram a

    ponderar sobre como as interaes ocorridas nas aulas de matemtica certamente

    desempenhavam um papel importante nos fenmenos que nos incomodavam. Como o

    papel e a presena do conhecimento matemtico, na escola e na sociedade, a atuao

    dos professores de matemtica e as posturas e reaes dos alunos podem ser

    considerados determinantes nas interaes que examinamos, tal caminho culminou no

    objetivo que nos moveu durante o trabalho, isto , investigar as Relaes de Poder

    estabelecidas entre professor e aluno na sala de aula de matemtica e discutir suas

    implicaes para o ensino e a aprendizagem dessa disciplina.

  • 26

    Captulo II: A presena da Matemtica na Escola e na Sociedade

    Um dos fatos banais, utilizando novamente o sentido dado por Foucault

    expresso, a que podemos fazer referncia a a inegvel importncia que o desempenho

    em matemtica alcana na sociedade. As tiras de quadrinhos abaixo ilustram bem essa

    condio, particularmente entre os pais de alunos, j que no parece plausvel que as

    reaes extremadas das mes dos personagens Mafalda (figura 2) e Baixinho (figura 3),

    ocorressem com a mesma nfase se a disciplina fosse outra que no a matemtica:

    Fig. 2: Tirei Dez, por Quino.Fonte: Quino, 1999, p.3

    Fig. 3: Nota, por Henfil.Fonte: Henfil, 1976, p.7

    Tanto no primeiro caso, em que a nota alta em Matemtica faz com que a me

    imediatamente pegue a filha e euforicamente d voltas com ela no colo, quanto no

    segundo, em que a reao da me, tambm imediata, a uma nota baixa em Matemtica

  • 27

    a iminncia de um castigo fsico ao filho, percebemos a intensidade da manifestao dos

    pais. Os dois casos, absolutamente opostos em relao ao resultado da avaliao dos

    filhos, revelam uma forte energia nas respostas, quando a matria em questo a

    Matemtica.

    A disciplina Matemtica ocupa, dentro da carga horria do currculo escolar dos

    nveis de Ensino Fundamental e Mdio, a maior quantidade de horas de ensino, em

    comparao com as outras disciplinas. Apesar de algumas propostas isoladas de

    diminuio do tempo destinado disciplina 15, o predomnio da mesma dentro do

    currculo permanece sendo um fato. Nesse item, rivaliza apenas com o ensino da Lngua

    Materna.

    As preferncias e a disposio dos currculos escolares remetem a escolhas que

    envolvem quais conhecimentos vo ser considerados mais ou menos importantes, para

    serem ensinados, em determinado tempo e espao, bem como quais sero as

    capacidades mais ou menos desejadas para os indivduos adquirirem na escola.

    Tratamos aqui de ... uma seleo e uma organizao de conhecimentos disponveis

    numa determinada poca, as quais envolvem opes conscientes ou inconscientes...

    (YOUNG, 1982, p. 159).

    Em vista disso, nos propusemos a examinar algumas das justificativas para esse

    predomnio da disciplina Matemtica dentro do currculo escolar.

    A utilidade da Matemtica na resoluo de problemas cotidianos e cientficos,

    sua importncia na preparao para o mundo profissional e sua capacidade para auxiliar

    no desenvolvimento cognitivo so, em geral, as justificativas mais apontadas para a

    necessidade de uma matemtica escolar. Alm das razes de ordem prtica, ainda se

    distinguem razes de ordem cultural, tais como ser a Matemtica um exemplo de um

    modo de pensar, ou ainda sua importncia enquanto exemplo superior da cultura

    humana.

    Em termos oficiais, no Brasil, nos Parmetros Curriculares Nacionais, ou PCN,

    de Matemtica para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, p.19-20), os principais

    argumentos utilizados para defender a importncia da Matemtica dentro do currculo

    escolar so a utilizao de conhecimentos e habilidades matemticas para resolver

    situaes e problemas cotidianos, suas aplicaes no mundo do trabalho, seu papel na 15 Como o caso do Estado de So Paulo que, no final de 2011, sugeriu inicialmente a reduo da carga horria de Portugus e Matemtica no Ensino Mdio para implantar aulas de Filosofia, Sociologia e Artes. A proposta, entretanto, foi retirada pelo governo do Estado apenas uma semana aps sua divulgao.

  • 28

    construo de conhecimentos em outras reas e seu valor na construo das capacidades

    intelectuais do aluno, por sua capacidade de incentivar a estruturao do pensamento e o

    desenvolvimento do raciocnio dedutivo. Nos Parmetros Curriculares Nacionais para o

    Ensino Mdio (BRASIL, 2000, p.111-113), argumenta-se igualmente que a importncia

    da Matemtica est em sua contribuio para desenvolver capacidades que sero

    exigidas na vida social e profissional. Tambm aparece a justificao de que todas as

    reas requerem alguma competncia em Matemtica, sendo sua compreenso necessria

    para o processo de tomada de decises, tanto na vida pessoal quanto na vida

    profissional. Explicita-se que ... ela deve ser vista pelo aluno como um conjunto de

    tcnicas e estratgias para serem aplicadas a outras reas do conhecimento, assim como

    para a atividade profissional (BRASIL, 2000, p.113). Alm disso, tambm ,

    novamente, citado o seu valor formativo, por auxiliar na estruturao do pensamento e

    do raciocnio dedutivo.

    A compreenso da natureza pelo homem e at a compreenso do mundo que o

    cerca, seja por parte de uma criana, de um jovem ou de um adulto, se d a partir de

    capacidades que so permeadas por processos com caractersticas matemticas, pois a

    compreenso de propriedades globais dos objetos que nos so apresentados no se faz

    por mera acumulao. Faz-se por reordenao, por associao de semelhanas, que so

    parte fundamental do conhecimento matemtico (MARKARIAN, 2004, p.275).

    Em termos do mundo profissional, por exemplo, as alegaes a favor da ampla

    presena da matemtica no currculo escolar tambm se fazem presentes. Em um estudo

    realizado na Inglaterra, dentro de empresas e indstrias de sete reas distintas, foram

    detectadas, a partir de uma perspectiva baseada em conceitos e estruturas matemticas,

    algumas caractersticas necessrias aos trabalhadores: ser mais eficiente, lidar com

    frequentes mudanas e inovaes, relatar progressos, manter-se competitivo e manter-se

    atuando. Todos esses objetivos requerem habilidades e competncias matemticas

    (HOYLES, 2002, p.9, traduo nossa).

    Em relao ao papel da compreenso da matemtica para a construo do

    conhecimento em outras reas na escola, Freitas (2009), relatando uma experincia

    como professora de matemtica em um contexto interdisciplinar, afirma que, mesmo

    no intencionalmente, proporcionou aos colegas a imagem de que o conhecimento

    matemtico seria uma base que poderia validar conhecimentos nas outras reas.

    Instrumentos como a gesto de dados, a capacidade de abstrao e simbolizao e o

  • 29

    reconhecimento de padres teriam sido utilizados para constatar a veracidade dos

    fenmenos de outras disciplinas. Segundo a autora, os professores das outras

    disciplinas aceitaram como premissa que a Matemtica seria utilizada como uma

    ferramenta para descobrir outras formas de conhecimento (FREITAS, 2009, p.311,

    traduo nossa).

    Bassanezi (2004), ao defender a utilizao da Modelagem Matemtica no ensino

    da disciplina, reitera que a matemtica deve ser um instrumento para o conhecimento do

    mundo 16 e domnio da natureza e comenta sobre a crescente utilizao da Matemtica

    como instrumento para validao de fenmenos de todas as reas do conhecimento.

    Quando averiguamos as alegaes prticas, largamente empregadas, de que a

    Matemtica auxilia na resoluo de questes cotidianas e cientficas, inegvel a

    crescente matematizao 17 das atividades humanas e sociais. Nesse contexto, aparece

    novamente a importante questo da validao de um discurso ou de uma posio com

    base em supostos conhecimentos matemticos, j que ... se construiu na sociedade um

    certo consenso sobre a legitimidade, veracidade e confiabilidade dos resultados

    matemticos. (BARBOSA, 2003, p.5).

    Ainda que parea evidente o emprego da matemtica nas atividades humanas e

    sociais, se torna necessrio reconhecer que h autores que consideram que a utilidade da

    Matemtica, especialmente a praticada na escola, superestimada, no mundo moderno.

    Ernest (2000), por exemplo, considera que o argumento utilitrio fornece uma

    justificao muito fraca para o ensino universal da disciplina durante todo o perodo de

    escolarizao obrigatria. Segundo o autor, houve um crescimento exponencial da

    utilizao da matemtica na sociedade e na vida moderna, pois uma ampla extenso das

    atividades e processos humanos, como por exemplo, os esportes, os meios de

    comunicao, sade, educao, governo, poltica, negcios, produo comercial e

    cincia, so planejados e controlados numericamente. Por outro lado, prossegue o autor,

    em termos individuais, vivemos em um universo cada vez mais quantificado,

    conformando nossas vidas nos contornos de engrenagens numricas, como relgios,

    16 No papiro de Ahmes, ou de Rhind, escrito h aproximadamente quatro mil anos, teramos, a partir da matemtica (ainda no existia o termo), a posse das regras para se chegar ao conhecimento de todas as coisas obscuras, de todos os segredos... os mistrios que as coisas contm (NEWMAN, 1956, p.174, traduo nossa). 17 Um conceito que se aproxima dessa denominao se origina na obra do filsofo Edmond Husserl, em 1936. Considerando o modus operandi de Galileu, Matematizao significaria uma ... busca da verdade objetiva do mundo, no necessariamente a partir do mundo sensvel. (HUSSERL, 1974, p. 212, traduo nossa).

  • 30

    calendrios, horrios, finanas, seguros, impostos, medidas de comprimentos, reas,

    volumes e massas, representaes grficas e geomtricas, etc. (ERNEST, 2000, p. 2,

    traduo nossa).

    Essa matematizao excessiva, contudo, no justifica, de acordo com o autor,

    a necessidade do ensino de matemtica em escala to dilatada. O argumento utilizado

    o de que

    ... a maioria das pessoas no necessita de muitas habilidades matemticas, alm das adquiridas nos nveis da escola elementar, para assegurar o sucesso econmico da moderna sociedade industrializada [...] e a minoria que precisa aplicar matemtica mais avanada adquire muitos dos conhecimentos necessrios em instituies fora da escola ou da academia... (ERNEST, 2000, p.3, traduo nossa).

    Existem algumas consideraes que acreditamos necessrio salientar, em vista

    do argumento acima. Em primeiro lugar, consideramos que, de fato, no h, na

    sociedade e na vida moderna, uma utilizao (ou pelo menos a compreenso da

    utilizao), pela maioria dos indivduos, de grande parte dos contedos matemticos

    vistos na escola bsica. Ponderamos, entretanto, que a impossibilidade de alcanar-se

    uma utilizao prtica desse conhecimento no autoriza a renncia a esse legado. A

    simples abdicao a um conhecimento assemelha-se mais negao do acesso

    informao, para, supomos, uma determinada parcela de indivduos. Sem entrar no

    mrito da diviso social que certamente decorre (e se perpetua) a partir disso, a

    associao entre conhecimento e poder suficientemente clara e importante para ser

    tratada de forma to ingnua. Considerando essa relao ao largo das afirmaes de

    Francis Bacon 18, a psicloga social Berit s (1999) assevera que negar o acesso

    informao , em ltima anlise, uma tcnica de dominao. Avaliamos que a

    abordagem da autora, especfica da questo feminista, pode ser utilizada neste tema,

    com o cuidado das necessrias adaptaes. Desta forma, consideramos, da mesma forma

    que a autora, que reter informaes uma tcnica hbil e comum de dominao. Os que

    no possuem o conhecimento, deixados na ignorncia, se sentiro sozinhos, inseguros e

    incapazes, deixando o caminho livre para que os que conhecem mantenham a iniciativa

    e sua posio de superioridade 19.18 O filsofo ingls afirma que o conhecimento , em si mesmo, um poder, tratando do poder sobre a natureza com a consequncia de que o conhecimento da natureza representaria a fonte desse poder. Desta forma, conhecimento e poder se equivaleriam. (BACON, 1988).19 Reter informaes uma tcnica hbil e comum de dominao. A mulher, deixada na ignorncia, se sentir s, insegura e incapaz, deixando o caminho livre para que os homens mantenham a iniciativa e sua posio de superioridade (S, 1999, p. 6, traduo nossa).

  • 31

    Assim, considerar a questo da necessidade da Matemtica unicamente em torno

    do tema de sua utilidade nos autoriza a fazer uma ponderao acerca do grau de

    compromisso que um professor possa ter em relao ao direito do indivduo ao

    conhecimento humano. Longe de considerarmos que necessariamente haver

    aprendizagem compulsria daquele conhecimento, reafirmamos nossa posio de que

    deve ser garantido ao aluno o acesso a ele. Consideramos que, ao deslocarmos a

    questo, saindo do tema utilidade dos conhecimentos para o tema do direito dos

    indivduos ao conhecimento, transformamos o ambiente da discusso, transferindo a

    mesma para uma questo de cidadania e no de produtividade.

    Consideramos necessrio, neste ponto, fazermos uma breve digresso em relao

    ao tema da cidadania. Ao avaliarmos uma srie de possveis posturas frente ao

    conhecimento, acreditamos que o conhecimento matemtico, ou qualquer outro, a

    propsito, no pode ser imposto a nenhum indivduo. Essa escolha por aprender, seja

    ela consciente ou no, deve ser individual, ainda que certamente sofra influncias

    relativas a aspectos sociais e histricos. Entretanto, consideramos que deve ser

    assegurado ao indivduo o direito de aprender. Nesse sentido que defendemos a

    necessidade e a importncia do conhecimento matemtico como elemento essencial na

    construo da autonomia dos indivduos. Ao criticarmos o ensino centrado em

    caractersticas como a memorizao, por exemplo, nos colocamos em defesa do direito

    que o aluno deve possuir em relao utilizao de argumentos fundamentados na

    lgica, e no na autoridade, como elementos estruturantes de sua histria.

    Alm da maior proporo em relao ao tempo, h ainda a questo da

    importncia conferida disciplina. Em relao aos currculos universitrios, Young

    (1982) afirma que ... os programas acadmicos tm implcita a ideia de que alguns

    tipos ou algumas reas de conhecimento so mais teis que outros (YOUNG, 1982,

    p.173). Consideramos legtima a analogia que se pode fazer, nesse caso, em relao aos

    currculos dos nveis de Ensino Fundamental e Mdio. Novamente aludimos a um

    daqueles fatos banais, ao concordarmos com a afirmao de que

    ... a Matemtica ocupa uma posio determinante na hierarquia das disciplinas do currculo [...] j que a legitimao do conhecimento do aluno deve passar necessariamente pela comprovao de seu saber matemtico, o que sugere uma formatao da realidade pela matemtica escolar. (MILANEZI, 2007, p.39-40)

  • 32

    Alm disso, tambm consideramos um fato banal a existncia de um ponto de

    vista segundo o qual a disciplina Matemtica costuma ser caracterizada na escola: um

    saber especial, parte e imprescindvel, concedendo ao prprio professor de

    Matemtica, dentro da escola,

    uma posio de destaque relacionada a aspectos como: o rigor e o perfil incontestvel de sua avaliao; a imagem de um profissional mais preparado e responsvel, aquele que conduz com mais seriedade o processo de ensino/aprendizagem dos alunos, um docente dono de um conhecimento mais difcil e elaborado (AUAREK, 2009, p. 20)

    Para ficarmos ainda dentro do ambiente escolar, relembramos a inegvel

    importncia que o desempenho em matemtica alcana entre os pais de alunos.

    Hawighorst (2005), Abreu & Cline (2001) e Quintos, Bratton & Civil (2005),

    descrevem, a partir de famlias migrantes, as estratgias e percepes de pais de alunos

    em relao disciplina matemtica e a importncia atribuda por estes competncia

    matemtica dos filhos. Alm dessa importncia, citada tambm nas tiras de quadrinhos

    apresentadas ao incio desse captulo, aparecem ainda, entre os pais, os argumentos

    hoje disseminados [...] de que a Matemtica algo de difcil compreenso e quem a

    domina so pessoas com inteligncia diferenciada (SANTOS, 1989, p.42)

    interessante notar como certos elementos que emergem do discurso dos pais

    de alunos reforam algumas das justificativas expostas anteriormente nos documentos

    oficiais. Pritchard (2004), em uma pesquisa sobre as atitudes e crenas de pais de alunos

    em relao ao ensino de Matemtica relata que

    ... quando foi solicitado que os pais respondessem por que sentiam que era importante que sua criana fosse boa em matemtica, as respostas caram dentro de quatro categorias gerais: o maior destes grupos descreveu o papel das regras da matemtica na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo. Diversas referncias foram feitas maneira que a matemtica ajuda a crianas com outros aspectos do currculo, e a ajuda para o raciocnio lgico e crtico. Um dos entrevistados disse que a matemtica um dos pilares fundamentais para a aprendizagem. Outro grupo das respostas abordou a matemtica como sendo uma necessidade essencial para se participar eficientemente na sociedade. Todas essas vises, inclusive, aparecem nos parmetros curriculares do Ministrio da Educao 20, de 1992. Algumas categorias ainda contiveram as ideias que envolvem o uso prtico e dirio da matemtica, e das respostas que focalizaram na importncia da matemtica para as oportunidades profissionais.

    (PRITCHARD, 2004, p.481-482, traduo nossa)

    20 A autora refere-se ao Ministrio da Educao da Nova Zelndia.

  • 33

    Por outro lado, o discurso que os pais de alunos possuem sobre o que seja e para

    que sirva o conhecimento matemtico revela a viso de que Matemtica fundamental

    em nossa vida e est em toda parte [...] e os que no sabem Matemtica so

    praticamente analfabetos ou cegos (SANTOS, 1989, p.71) e permite aos pais

    Fazerem projees sobre a perspectiva dos seus filhos com a Matemtica:- ter uma base para poder se virar- ter um desenvolvimento no estudo- ter uma profisso diferente e melhor que a sua

    (SANTOS, idem, ibidem)

    Esses elementos, entre outros, refletem, por exemplo, a posio que o

    conhecimento matemtico ocupa nas principais iniciativas de avaliao da educao,

    surgidas nas ltimas dcadas, tanto em nvel nacional, como o Sistema Nacional de

    Avaliao de Educao Bsica, SAEB, ou o Exame Nacional do Ensino Mdio, ENEM,

    como em nvel internacional, como o Programa Internacional de Avaliao de

    Estudantes, PISA, por exemplo. Em todos esses sistemas de categorizao, h

    avaliaes do conhecimento matemtico dos alunos como um dos predicados mais

    importantes na avaliao.

    A Provinha Brasil, por exemplo, elaborada pelo INEP 21 e distribuda para todas

    as secretarias de educao municipais e estaduais do pas, um sistema de avaliao

    diagnstica, relativo ao 2 ano do Ensino Fundamental, realizado em duas etapas, uma

    no incio do ano e a segunda ao final do ano letivo. Desse sistema de avaliao constam

    apenas duas reas, Leitura e Matemtica.

    Em outros nveis de ensino (Fundamental II e Mdio), h o Sistema Nacional de

    Avaliao da Educao Bsica, o SAEB, que um sistema, tambm elaborado pelo

    INEP, composto por duas avaliaes complementares, a Avaliao Nacional da

    Educao Bsica, realizada de maneira amostral, para alunos das redes pblica e

    privada, dos 5 e 9 anos do Ensino Fundamental e 3 ano do Ensino Mdio, e a

    Avaliao Nacional do Rendimento Escolar, conhecida como Prova Brasil, realizada

    com o objetivo de servir como um recenseamento, nas escolas das redes pblicas, para

    alunos de 5 e 9 ano do Ensino Fundamental. As avaliaes so realizadas a cada dois

    anos com provas, mais uma vez, somente de Portugus e Matemtica. Na histria desse

    21 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira, rgo vinculado ao Ministrio da Educao, MEC.

  • 34

    sistema, j houve perodos em que foram aplicadas, alm das duas disciplinas citadas,

    provas de Cincias, Histria e Geografia. A partir de 2001, entretanto, apenas Portugus

    e Matemtica seguiram na avaliao. J o Exame Nacional do Ensino Mdio, o ENEM,

    realizado no pas desde 1998, conta em sua disposio com quatro provas, diferenciadas

    por reas de Conhecimento. Em uma das provas, aparecem quatro disciplinas a serem

    avaliadas, Histria, Geografia, Filosofia e Sociologia. Em outra, trs disciplinas,

    Qumica, Fsica e Biologia. Numa terceira prova, as disciplinas avaliadas so em

    quantidade ainda maior: Lngua Portuguesa, Literatura, Lngua Estrangeira, Artes,

    Educao Fsica e Tecnologias da Informao e Comunicao. Cinco disciplinas, se

    considerarmos a disciplina Literatura dentro de Lngua Portuguesa. Por fim, uma nica

    prova que contm apenas um componente curricular, Matemtica. Explicita-se, desta

    maneira, a importncia dada a este componente curricular, que obriga a que sua

    avaliao deva ser realizada em uma nica prova.

    O PISA, (Programme for International Student Assessment) um programa

    internacional que, desde o ano 2000, vem avaliando os sistemas educacionais atravs de

    testes de habilidades e conhecimentos em estudantes de 15 anos, ou seja, estudantes que

    esto em um hipottico limite do perodo da educao obrigatria e que, supostamente,

    estariam prontos para a insero no mundo do trabalho. A quantidade de pases em que

    o teste tem sido aplicado aumentou de 43, em 2000, para 75, em 2009/2010. O objetivo

    do sistema, organizado pela Organizao de Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    (OECD), verificar, dentro desse conjunto, as habilidades e conhecimentos necessrios

    para a completa participao na sociedade. Para isso, so aplicados testes em quatro

    reas: Matemtica, Resoluo de Problemas, Leitura e Cincias.

    Consideramos importante, alm da importncia conferida ao conhecimento

    matemtico nesses programas de avaliao, assinalar que esse fenmeno sugere um grau

    de legitimidade relao existente entre o desenvolvimento da sociedade e o

    desenvolvimento da matemtica, que , de qualquer modo, mencionada por uma srie

    de autores.

    No que diz respeito ao Brasil, em particular, os estudos de Valente (1999),

    Bastos (2006) e DAmbrosio (2008), contm abordagens que atendem concepo de

    que o desenvolvimento da Matemtica no pode ser compreendido sem levarmos em

    conta o contexto social a partir do qual essa matemtica foi produzida.

  • 35

    Em termos mais gerais, Davis & Hersh (1995), por exemplo, afirmam que a

    prpria Matemtica se modifica de acordo com o tempo e o lugar em que produzida e

    apontam que analisar o processo de produo do conhecimento matemtico uma tarefa

    complexa, pois essa produo est emaranhada em uma teia de motivaes, aspiraes,

    interpretaes e potencialidades. Dessa forma, a produo Matemtica fortemente

    influenciada por fatores sociais e culturais.

    O matemtico francs Jean Dieudonn aponta tambm que na ecloso de um

    talento matemtico, o meio social ambiente desempenha um papel importante e [...]

    verossmil que numerosos talentos matemticos nunca cheguem a manifestar-se por

    falta de uma atmosfera social favorvel (DIEUDONN, 1990, p.21).

    De acordo com o educador portugus Joo Pedro da Ponte, fundamental a

    influncia exercida por fatores sociais e culturais na produo da matemtica, no que

    concorda com a posio de Bento de Jesus Caraa, segundo o qual

    A Cincia pode ser encarada sob dois aspectos, [...] como coisa criada, [...] onde os captulos se encaixam em ordem, sem contradies, ou, no segundo aspecto, [...] onde v-se toda a influncia que o ambiente da vida social exerce sobre a criao da Cincia. [...] A Matemtica, sem dvida possui problemas prprios, que no tem ligao imediata com os outros problemas da vida social. Mas no h dvida tambm de que os seus fundamentos mergulham tanto como os de outro qualquer ramo da Cincia na vida real; uns e outros entroncam na mesma raiz. (CARAA, 1958, prefcio)

    Da mesma forma que os contextos culturais, sociais e econmicos exercem

    influncia na produo da Matemtica, tambm verdade que essa produo transmite

    sua influncia na sociedade. Como bem assinala Bell,

    Quando a Itlia foi grande em arte, foi superior em lgebra; quando a ltima luz da idade isabelina se extinguiu na Inglaterra, a supremacia em Matemtica passou para a Sua e a Frana [...] os rpidos ressurgimentos da vida nacional foram acompanhados ocasionalmente por um aumento da atividade matemtica, como nas guerras napolenicas que se seguiram Revoluo Francesa, ou at mesmo na Alemanha, aps os distrbios de 1848. Entretanto, a Guerra Mundial de 1914-1918 parece ter sido uma oportunidade para o progresso matemtico na Europa e, em menor grau, em outras partes, como tambm o foram as manifestaes subsequentes do nacionalismo na Rssia, Alemanha e Itlia. Estes fatos aceleraram o rpido progresso da matemtica nos Estados Unidos, desde cerca de 1890, elevando esse pas ao topo. (BELL, 2003, p. 26-27, traduo nossa).

  • 36

    H uma srie de exemplos que ratificam essa ideia, de que h uma relao

    significante entre a sociedade e a produo da matemtica, como o da tribo Ashanti, de

    Gana, cuja economia se baseava preponderantemente na explorao de ouro em p e

    que, por isso, desenvolveu um sistema de pesos conhecido e admirado pelos europeus

    desde o sculo XVII (KULA, 1980, p.5 e p.13, traduo nossa). Os nmades do deserto

    do Saara, por outro lado, a partir da importncia de se determinar a distncia entre dois

    poos de gua que fosse o mais prxima possvel da realidade, construram um sistema

    de medidas com uma rica terminologia, em que as distncias podem ser descritas em

    tiros de basto, tiros com arco, alcance da voz, alcance da vista, alcance da vista em cima de um camelo, a marcha de um homem: desde o amanhecer at o por do sol, desde a primeira hora da manh, por meia manh, por meio dia, a marcha de um homem carregado, a marcha de um asno ou boi carregado, a marcha por um terreno fcil ou difcil, etc. (idem, p. 5-6, traduo nossa).

    Como se percebe, no caso acima, a necessidade de se medirem distncias

    maiores fez com que fosse preciso criar unidades de medidas que no fossem

    unicamente as antropomtricas, tais como brao, p, polegada, palmo, etc. No difcil

    nos lembrarmos de um exemplo das medidas de comprimento utilizadas em meados do

    sculo XX, nas zonas rurais brasileiras, ao se dizer, talvez de maneira despretensiosa,

    que tal localidade ficava a um tiro de espingarda de distncia de outra, expresso

    semelhante ao alcance dos tiros de arcabuz, unidade de medida de distncia utilizada,

    segundo KULA (1980, p.32, traduo nossa), pelos navegantes da poca dos grandes

    descobrimentos, conforme tambm est descrito no livro de Antonio Pigafetta, cronista

    da primeira viagem ao redor do mundo, realizada no incio do sculo XVI, comandada

    pelo navegante portugus Ferno de Magalhes. Nesta obra, entretanto, constam ainda

    uma srie de outras unidades de medida, tanto de distncia como de massa. Um estreito

    de 440 milhas de comprimento, ou seja, 110 lguas marinhas de quatro milhas cada

    uma, com largura de cerca de meia lgua (PIGAFETTA, 1985, p.69), ou ... to

    profundo que, mesmo estando bastante prximo da terra, no se encontrava fundo para a

    ncora, nas 25 ou 30 braas (idem, ibidem), ou ainda ... bananas dos mais diversos

    tipos, algumas de um palmo de comprimento (idem, p.130). Por fim, referindo-se

    especificamente aos nativos da regio das atuais Filipinas, Kula (1980) relata que

    ... esse povo, amante da justia, conhece pesos e medidas. Sua balana constituda por um pau de madeira suspenso tendo por um lado um

  • 37

    prato e de outro um peso equivalente ao qual se acrescentam pesos equivalentes a libra, meia libra, etc. [...] tm tambm medidas de comprimento e capacidade. (KULA, 1980, p.105-106, traduo nossa).

    Consideramos ainda como exemplo relevante dessa relao estreita entre a

    matemtica e o contexto no qual ela se desenvolve, uma situao de ensino e de

    aprendizagem localizada nas ltimas trs ou quatro dcadas, se tanto. Neste perodo,

    devido tanto s especificidades do processo econmico quanto ao avano tecnolgico,

    houve uma massificao da utilizao da calculadora pela sociedade. Consideramos

    aceitvel presumir que houve, entre a populao em geral, um grande crescimento da

    representao dos nmeros racionais em decimais em detrimento da representao

    destes nmeros em fraes ordinrias. Evidentemente, como a escola e seus agentes

    (professores, alunos, coordenadores, agentes de limpeza, segurana, etc.) esto inseridos

    na sociedade, conjeturamos que esse processo deve ter determinado algum tipo de

    fenmeno no processo de ensino e aprendizagem, ainda a ser melhor estudado,

    delimitado e compreendido.

    Consideramos, entretanto, que quase todas as justificativas anteriores poderiam,

    em maior ou menor grau, ser aplicadas a outras disciplinas do currculo escolar. O que

    diferencia a matemtica, em relao a seu prestgio, so justamente a importncia e o

    alcance de seu processo de institucionalizao, com a consequente valorizao desse

    tipo de conhecimento.

    Historicamente, o processo de valorizao do conhecimento matemtico pode

    ser descrito atravs de alguns pontos de inflexo na histria de seu desenvolvimento, em

    que avanos fundamentais no conhecimento matemtico possibilitaram mudanas

    considerveis, em relao economia, tecnologia e sociedade. A despeito da

    influncia que o conhecimento matemtico possui nos sistemas de pensamento, como o

    racionalismo, por exemplo, optamos neste trabalho por estabelecer esses marcos

    unicamente a partir de elementos intrnsecos prpria matemtica.

    Esses pontos de inflexo, entretanto, no ocorreram subitamente, de forma

    visvel ou determinada, qual uma revoluo ou uma tomada de poder, mas, ao contrrio,

    foram se desenvolvendo e consolidando pacientemente, lentamente, ao longo de

    perodos de extenses variadas.

    O aparecimento da demonstrao dedutiva, na Grcia, em meados do sculo VI

    a.C., o desenvolvimento da lgebra Simblica e da Geometria Analtica, especialmente

  • 38

    na Itlia e na Frana do Renascimento, a estruturao do Clculo Diferencial e Integral

    e da Anlise, especialmente na Frana, Inglaterra e Alemanha, a partir do sculo XVII e

    o casamento entre a Lgica Simblica e a Tecnologia, nos sculos XIX e XX,

    culminando com o aparecimento e a invaso dos processadores de dados, podem ser

    apontados como os quatro momentos histricos fundamentais que permeiam o processo

    da ampliao da importncia que o conhecimento matemtico foi estabelecendo ao

    longo da histria humana.

    O mtodo dedutivo dos gregos marca o primeiro desses momentos, por

    apresentar possibilidades de generalizao at ento desconhecidas, e consideradas at

    hoje uma das principais fontes da utilidade da matemtica e o segredo de seu poder

    cientfico. (BELL, 2003, p.18, traduo nossa). De acordo com Aristteles, para

    Tales... a questo primordial no era o que sabemos, mas como o sabemos (BOYER,

    1974, p.33).

    Segundo DAmbrosio (1990), essa preponderncia ocorre por ter sido o

    conhecimento matemtico, ou a prpria Matemtica, desde os gregos,

    ... a forma de pensamento mais estvel da tradio mediterrnea que perdura at os nossos dias como manifestao cultural que se imps incontestada, s demais formas. [...] A Matemtica se universalizou, deslocando todos os modos de quantificar, de medir, de ordenar, de inferir e servindo de base, se impondo, como o modo de pensamento lgico e racional que passou a identificar a prpria espcie.

    (DAMBROSIO, 1990, p.17).

    Existem inmeros exemplos de utilizao da matemtica anteriores ao

    aparecimento da civilizao grega. Entretanto, as diversas manifestaes nas quais

    aparecem elementos matemticos, datadas de antes do sculo VI a.C., esto imbudas de

    um sentido prtico, imediato. O aparecimento das demonstraes e dedues, devida

    principalmente aos contemporneos Tales e Pitgoras considerada o marco do

    nascimento da matemtica, tanto por matemticos,

    Se todas as civilizaes antigas tiveram de desenvolver, para as necessidades da vida corrente, processos de clculo aritmtico e de medida das grandezas, apenas os Gregos, a partir do sc. VI a.C., pensaram em analisar os encadeamentos lgicos de tais processos e criaram, assim, um modo de pensar completamente novo.

    (DIEUDONN, 1990, p.43)

  • 39

    como por historiadores da matemtica:

    Existe um abismo entre o empirismo prtico dos agrimensores que parcelavam os campos do antigo Egito e a geometria dos gregos do sculo VI a.C. Aquele primeiro foi o que precedeu a matemtica; esta ltima, a matemtica propriamente dita. Esse abismo estabelece uma ponte tanto com o raciocnio dedutivo aplicado de forma consciente e deliberada, quanto com as indues prticas da vida diria.

    (BELL, 2003, p.14, traduo nossa).

    O historiador Eric Bell, mais alm, afirma que a parte essencial de sua doutrina

    a insistncia na demonstrao dedutiva (idem, p.19, traduo nossa). At ento,

    havia, entre os egpcios e babilnicos, por exemplo, uma cadeia de problemas

    resolvidos indutivamente, de maneira praticamente particular. Como evidente, no

    pretendemos com isso negar a fora do raciocnio indutivo. Entretanto, o mesmo pode

    apresentar analogias que sejam apenas aparentes e, portanto, levar a concluses

    equivocadas. O mtodo de deduo que advm com os gregos proporciona ao

    raciocnio, alm da generalizao envolvida, uma capacidade libertadora incomparvel,

    a partir da abstrao e do distanciamento da realidade nele impregnados.

    Se tomarmos, por exemplo, a definio 15, do Livro I, dos Elementos de

    Euclides 22:

    Crculo uma figura plana contida por uma linha (que chamada circunferncia), em relao qual todas as retas que a encontrarem (at a circunferncia do crculo), a partir de um ponto dos pontos no interior da figura, so iguais entre si (EUCLIDES, 2009, p.97)

    ou ento a definio 14, do livro XI:

    Esfera a figura compreendida quando o dimetro do semicrculo permanecendo fixo, o semicrculo tendo sido levado volta, tenha retornado, de novo, ao mesmo lugar de onde comeou a ser levado (idem, p.482)

    poderemos observar que, ao invs de exemplificar desenhando um crculo ou uma

    esfera, Euclides apresenta uma propriedade geral que suficiente para definir tais

    elementos e, unicamente, aqueles elementos.

    O impacto do mtodo dedutivo sobre a evoluo do conhecimento no se

    restringe ao conhecimento matemtico, mas se estende s demais Cincias, pois22 O Livro Os Elementos, escrito por Euclides por volta de 300 a.C., ainda que seja mais de dois sculos posterior a poca de Tales e Pitgoras, considerado at hoje um dos melhores modelos do poder dessa capacidade dedutiva, j que um nmero relativamente pequeno de axiomas carrega todo peso das inesgotavelmente numerosas proposies deles derivveis (NAGEL E NEWMAN, 1973, p. 14).

  • 40

    ... o desenvolvimento axiomtico da geometria causou poderosa impresso sobre os pensadores no curso dos tempos, pois a forma axiomtica da geometria se afirmou a muitas geraes de notveis pensadores como o modelo do conhecimento cientfico no que ele tem de melhor. Era natural, pois, perguntar se outros ramos do pensamento, afora a geometria, podem ser situados sobre um fundamento axiomtico seguro.

    (NAGEL & NEWMAN, 1973, p.15)

    O segundo momento que assinalamos como importante historicamente nessa

    trajetria, pode ser localizado a partir dos meados da Idade Mdia, adentrando pelo

    perodo do Renascimento, at a metade do sculo XVII, e marcado por um processo

    em que, ao final, se percebe novamente como, a partir do desenvolvimento da

    matemtica, o crescimento do poder da abstrao foi utilizado para avanos no

    conhecimento. Por outro lado, torna-se visvel de que maneira esse desenvolvimento do

    conhecimento matemtico tambm teve como uma de suas causas o contexto social em

    que foi produzido.

    No seria possvel delimitar exatamente as causas mais importantes para as

    modificaes sofridas pela Europa nesse perodo. fato, entretanto, que apareceram

    cada vez mais as necessidades relacionadas preciso das informaes e das medidas e

    eficincia e rapidez na consecuo dos resultados.

    Durante o fim da Idade Mdia e o Renascimento, despontou na Europa um novo modelo de realidade. Um modelo quantitativo foi comeando a substituir o antigo modelo qualitativo. Coprnico e Galileu, assim como os artesos