Relações Brasil África: narrativas dos chanceleres brasileiros

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As Relações Brasil-África nas Memórias dos Chanceleres Brasileiros 1961- 1985 Henrique Gerken Brasil (IEB/USP) – [email protected] Resumo: Considerando a importância da influência da África na formação da identidade brasileira, o presente trabalho tem como objetivo analisar o discurso de formuladores da política externa brasileira em relação ao continente africano, no período de 1961 a 1985. Nesse sentido, emprega a ideia de narrativa de país, e, assim, como os discursos de agentes, como presidentes e chanceleres, podem representar elementos de como o Brasil se vê e como quer ser visto. Isso é possível pela análise de escritos e depoimentos de importantes personagens para o tema em questão, especialmente os diplomatas que atuaram à frente do Ministério das Relações Exteriores. A análise desses textos mostram a insegurança do Brasil em assumir influência africana em sua identidade externa. Palavras-chave: Relações Brasil-África; Política Externa Brasileira; Narrativa de país. Abstract: Considering the importance of the African influence on the Brazilian identity, this work aims to analyze the speech of the Brazilian foreign affairs policymakers, in relation to the African continent, during the period of 1961 to 1985. In this sense, this works uses the concept of narrative of nation, and, thus, how the speeches of foreign affairs agents, such as presidents and ministers of foreign relations, can represent elements of how Brazil sees itself and how Brazil wants to be seen. This is possible through the analysis of speeches and memoirs of important actors, specially the diplomats who worked in the head of the Ministry of Foreign Relations. The analysis of such texts shows the difficulty for Brazil to accept the African influence on its identity. Keywords: Brazil-Africa Relations; Brazilian Foreign Policy; Narrative of nation. 1. Introdução O objetivo deste trabalho é analisar os depoimentos e memórias de diplomatas brasileiros, na formulação da política externa brasileira para o continente africano, como parte da narrativa do país. No período de 1961 a 1985, os chanceleres brasileiros, em sua maioria vindos da carreira diplomática, tiveram um papel importante na política brasileira para a África, cujos princípios e conceitos então formulados foram em parte resgatados nos governos Lula e Dilma. Na formulação dessa política, no período destacado, pode-se observar a construção de uma narrativa, advinda, primeiro, do presidente Jânio Quadros, e, depois, do Itamaraty. No contexto histórico da descolonização africana, a narrativa de aproximação brasileira ao continente africano também pode ser vista como uma metanarrativa nacional, ou seja, como o Brasil enxerga a influência africana na sua própria identidade. 2. História e Narrativa Antes de adentrarmos na análise das memórias propriamente ditas dos narradores em questão – os diplomatas brasileiros –, cabe aqui deixar claro a conceituação teórica utilizada

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Análise das memórias de chanceleres brasileiros sobre as relações Brasil África

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  • As Relaes Brasil-frica nas Memrias dos Chanceleres Brasileiros 1961-

    1985

    Henrique Gerken Brasil (IEB/USP) [email protected]

    Resumo: Considerando a importncia da influncia da frica na formao da identidade brasileira, o presente trabalho tem como objetivo analisar o discurso de formuladores da poltica externa brasileira em relao ao continente africano, no perodo de 1961 a 1985. Nesse sentido, emprega a ideia de narrativa de pas, e, assim, como os discursos de agentes, como presidentes e chanceleres, podem representar elementos de como o Brasil se v e como quer ser visto. Isso possvel pela anlise de escritos e depoimentos de importantes personagens para o tema em questo, especialmente os diplomatas que atuaram frente do Ministrio das Relaes Exteriores. A anlise desses textos mostram a insegurana do Brasil em assumir influncia africana em sua identidade externa.

    Palavras-chave: Relaes Brasil-frica; Poltica Externa Brasileira; Narrativa de pas.

    Abstract: Considering the importance of the African influence on the Brazilian identity, this work aims to analyze the speech of the Brazilian foreign affairs policymakers, in relation to the African continent, during the period of 1961 to 1985. In this sense, this works uses the concept of narrative of nation, and, thus, how the speeches of foreign affairs agents, such as presidents and ministers of foreign relations, can represent elements of how Brazil sees itself and how Brazil wants to be seen. This is possible through the analysis of speeches and memoirs of important actors, specially the diplomats who worked in the head of the Ministry of Foreign Relations. The analysis of such texts shows the difficulty for Brazil to accept the African influence on its identity.

    Keywords: Brazil-Africa Relations; Brazilian Foreign Policy; Narrative of nation.

    1. Introduo

    O objetivo deste trabalho analisar os depoimentos e memrias de diplomatas

    brasileiros, na formulao da poltica externa brasileira para o continente africano, como parte

    da narrativa do pas. No perodo de 1961 a 1985, os chanceleres brasileiros, em sua maioria

    vindos da carreira diplomtica, tiveram um papel importante na poltica brasileira para a

    frica, cujos princpios e conceitos ento formulados foram em parte resgatados nos governos

    Lula e Dilma. Na formulao dessa poltica, no perodo destacado, pode-se observar a

    construo de uma narrativa, advinda, primeiro, do presidente Jnio Quadros, e, depois, do

    Itamaraty. No contexto histrico da descolonizao africana, a narrativa de aproximao

    brasileira ao continente africano tambm pode ser vista como uma metanarrativa nacional, ou

    seja, como o Brasil enxerga a influncia africana na sua prpria identidade.

    2. Histria e Narrativa

    Antes de adentrarmos na anlise das memrias propriamente ditas dos narradores em

    questo os diplomatas brasileiros , cabe aqui deixar claro a conceituao terica utilizada

  • neste trabalho, que atua na interdisciplinaridade entre Histria e Comunicao. Segundo o

    historiador alemo Koselleck (2013), o termo Histria um conceito cujo contedo se

    consolidou apenas no final do sculo XVIII. Na ideia moderna do termo, tem-se a confluncia

    de dois processos de longa durao, que constituem um novo campo de experincia. Um

    desses processos o surgimento do singular coletivo, ou seja, uma palavra que denota a soma

    de histrias individuais. O outro processo a fuso do termo Histria, como conjunto de

    coisas acontecidas, e do termo Historie, como conhecimento, narrativa e cincia (p. 119).

    No alemo medieval, a palavra Geschichte denotaria a ideia de acontecimento,

    processo, sequncia, e no incio da era moderna, representaria a narrativa do que aconteceu.

    No plural, evidenciaria a soma de histrias individuais. Com o passar do tempo, Geschichte

    passou a ser lida no singular feminino, adotando ento designao da soma de todas as

    Histrias individuais, resultando, portanto, em tudo o que aconteceu. (p. 120), e unificando,

    desse modo, uma srie de acontecimentos em um todo inter-relacionado (p. 121).

    Paralelamente, o termo latino historia mantinha a ideia do conhecimento sobre a Histria,

    os escritos sobre ela, como demonstra a Historia magistra vitae de Ccero, o conhecimento

    reunido sobre as histrias individuais, a reflexo sobre todas as histrias individuais (p. 132).

    Com o tempo, esses campos semnticos se aproximariam, como demonstra o estudo de

    dicionrios e obras histricas, dificultando distinguir um e outro termo.

    No final do sculo XVIII, segundo Koselleck, seria enfim possvel observar a reunio

    dos conceitos acimas na palavra Geschichte (em portugus, Histria). Seus significados

    ento, seriam em trs nveis diferentes: 1) a situao objetiva, ou seja, aquilo que aconteceu,

    uma coisa acontecida; 2) a representao daquilo, ou seja, a narrativa de determinada Histria

    ou de episdios; e 3) a cincia a respeito, ou seja, o conhecimento dos episdios acontecidos e

    o seu estudo (p. 134).

    No estudo do discurso, j no campo da Comunicao, Genette (1996) preocupa-se em

    deixar claro o significado de narrativa, tambm estabelecendo 3 sentidos. Num primeiro,

    narrativa seria o prprio enunciado narrativo, o discurso de um acontecimento. Em segundo,

    seria uma sucesso de acontecimentos, objetos daquele discurso. E num terceiro sentido, seria

    a ao de narrar, seria o discurso em si mesmo. A anlise do discurso, portanto, implica no

    estudo das relaes entre o discurso e seu objeto (os acontecimentos), e entre o discurso e o

    ato narrativo (p. 23-25). Genette prope ento denominaes para cada sentido, a fim de

    deixar mais claro o estudo. Histria seria o contedo narrativo; narrativa seria o

  • enunciado, discurso ou texto narrativo; e narrao, o ato produtor (p. 25). Desse modo, a

    Histria como representao do que aconteceu (da forma apresentada por Koselleck) tambm

    pode ser encarada como histria como narrativa, e assim, como prope Genette, deve ser

    estudada nas suas relaes entre narrativa e histria, e histria e narrao.

    Por fim, considerando aqui a poltica externa como uma narrativa de um pas, podemos

    pensar nas relaes entre seu contedo e seu contexto histrico, e seu contedo e seu

    produtor. A poltica externa brasileira para a frica, considerada aqui no recorte temporal

    referido, tomada como narrativa, tem em seu contedo diferentes eventos histricos,

    personagens e sentimentos; parte de uma narrativa maior, por certo, mas sua anlise pode

    demonstrar aspectos da narrativa nacional como um todo. A narrativa de pas, como prope

    Nassar (2013), mostra como um pas percebido, ou como querem ser percebidos, e de que

    forma estruturam suas vrias narrativas, relacionando questes ligadas histria, memria,

    identidade e imagens.

    3. A frica na Poltica Externa Brasileira 1961-1985

    O Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil divulgou, no final de maro deste ano,

    uma nota em seu portal na internet1 sobre a visita do chanceler Mauro Vieira a 4 pases

    africanos, denominando essa misso como o primeiro priplo africano do Ministro. A nota,

    ainda, evoca a continuidade do governo na nfase nas relaes com o continente africano,

    poltica (re)iniciada com o governo Lula, em reas como investimento direto, cooperao

    tcnica, comrcio e visitas de Estado.

    Tanto a poltica para a frica do governo Lula quanto o termo priplo africano no

    so inovaes na poltica externa brasileira para o continente africano e trazem em si

    referncias de outros tempos. A poltica externa de Lula, capitaneada pelo chanceler Celso

    Amorim trouxe de volta elementos iniciados e desenvolvidos ao longo das dcadas de 60 e 70

    (em relao frica). A expresso citada alm de uma referncia ainda mais longe no

    tempo, com Vasco da Gama tambm foi utilizada para descrever a viagem do chanceler

    Mario Gibson Barboza a diversos pases na frica, durante o governo Mdici (1969-1974).

    A construo de uma nova narrativa das relaes Brasil-frica pode ser observada a

    partir do governo Jnio Quadros, em 1961, que, apesar de sua curta durao, iria trazer

    1 http://www.itamaraty.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8479:visita-do-ministro-das-relacoes-exteriores-a-gana-sao-tome-e-principe-mocambique-e-angola&catid=42&Itemid=280&lang=pt-BR , ltimo acesso em 07.06.2015

  • diversas novas posies do Brasil no cenrio internacional. A mensagem de Quadros ao

    Congresso Nacional por conta de sua posse j demonstra essa construo: O nosso esforo

    em frica, por mais intenso que venha a ser, no poder seno constituir uma modesta

    retribuio, um pequeno pagamento da imensa dvida que o Brasil tem para com o povo

    africano. Essa razo, de ordem moral, justificaria por si s a importncia que este governo

    empresta sua poltica de aproximao com a frica (Franco, 2007). Essa seria parte da

    chamada Poltica Externa Independente, nome pelo qual se convencionou denominar a

    poltica externa brasileira do perodo Jnio Quadros-Joo Goulart, entre 1961 e 1964, pela

    busca de autonomia na formulao da poltica externa, mas sempre em respeito s tradies

    diplomticas brasileiras, de valores ocidentais.

    Afonso Arinos de Melo Franco, chanceler de Quadros durante seu governo, foi um dos

    mentores dessa nova narrativa. Quadros, diga-se, no era alheio s ideias de aproximao

    frica, e via nesse movimento oportunidades econmicas e polticas2. Afonso Arinos, por sua

    vez, tinha o quadro de referncia da democracia racial brasileira, o que legitimaria ainda

    mais a aproximao. No seu discurso de posse no Itamarati, Afonso Arinos indicava: (...) os

    processos de miscigenao com que a metrpole portuguesa nos plasmou facilitaram a nossa

    democracia racial, que, se no perfeita como desejaramos, , contudo, a mais avanada do

    mundo. (FRANCO, 1968, p. 63). Cabe apontar tambm que Arinos foi o autor da Lei contra

    a Discriminao Racial, de 1951, que lhe trouxe notoriedade no tema.

    Em um dos volumes de suas memrias, podemos observar bem a narrativa como

    discurso do ento chanceler: Minha poltica africana (...) era fundada em dois propsitos. De

    um lado eu sentia a possibilidade e at mesmo a relativa facilidade de construir um slido

    prestgio brasileiro nos novos Estados negros3. (...) O Brasil um dos maiores, seno o maior

    Estado negro do mundo, e uma poltica de aproveitamento deste fator inafastvel teria grandes

    resultados, tanto no prestigio do nosso pas na comunidade africana (com vantagens para

    nossa ao nas Naes Unidas) como no despertamento do interesse e do apoio das grandes

    massas brasileiras de sangue mestio em relao poltica externa do governo. (FRANCO,

    1968). Esse discurso vai ao encontro das ideias de intelectuais brasileiros poca, como a

    historiadora Maria Yedda Linhares: (...) a frica era muito importante para ns, intelectuais,

    2 Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 12 de maro de 1960, p. 6. 3 Vale lembrar que, poca, ocorria a descolonizao africana. Em 1960, o Ano da frica, tornam-se independentes Camares, Togo, Madagascar, Congo Belga, Somlia, Alto Volta (Burkina Faso), Costa do Marfim, Daom (Benim), Nger, Repblica Centro-Africana, Chad, Gabo, Congo, Nigria, Mali e Mauritnia. (Rodrigues, 1982, p. 244)

  • pessoas que nos julgvamos mais de esquerda. Tem de mudar a poltica, tem que se voltar

    para a frica. O Brasil tem suas razes na frica. (DVILA, 2011).

    Desse modo, Quadros e Arinos estabeleceram uma poltica externa baseada primeiro na

    presena diplomtico-cultural, em primeiro plano, e econmica, em segundo (FRANCO,

    1968). Novas embaixadas foram estabelecidas, e embaixadores nomeados, como o primeiro

    embaixador negro brasileiro, Raymundo de Souza Dantas, para o posto em Acra, Gana.

    Quadros reformou o prprio Ministrio das Relaes Exteriores, criando a Diviso de frica.

    Alm disso, criou o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-asiticos (IBEAA), para desenvolver

    estudos e projetos de conhecimento mtuo, prevendo tambm bolsas de estudos para

    estudantes africanos, intercmbio de professores, exposies e seminrios (LEITE, 2011).

    Entretanto, essa poltica para a frica ia de encontro aos interesses portugueses naquele

    continente, tendo em vista as colnias portuguesas. A posio anticolonialista brasileira

    chocava-se com a insistncia portuguesa, ainda sob Salazar, de manter as colnias africanas

    como provncias ultramarinas. Afonso Arinos receberia presso tanto diplomtica, externa,

    quanto pblica, interna. Durante o perodo da PEI, a posio de Arinos se sustentaria, ao

    menos no discurso. Aps a renncia de Quadros, em agosto de 1961, a pasta das Relaes

    Exteriores passaria por outros chanceleres, que continuariam com as novas posies da PEI,

    sendo os principais: San Tiago Dantas (1961 a 1962), Hermes Lima (1962 a 1963), e Joo

    Augusto de Arajo Castro (1963 a 1964). Porm, aps o golpe de 1964, a posio brasileira

    frente Portugal nesse tema ficaria mais fraca.

    A narrativa das relaes Brasil-frica sofre uma quebra a partir do regime militar. O

    novo chanceler, o diplomata de carreira Vasco Leito da Cunha (1964 a 1966), apesar de

    amigo e prximo de Afonso Arinos, no concordava com a direo da poltica externa. O

    continente africano era visto pelo filtro dos laos ancestrais com Portugal. Em depoimento,

    Leito da Cunha coloca claramente que a poltica anticolonialista brasileira era exagerada.

    Era muito hostil aos que se consideravam nossos amigos. Em relao a um novo

    posicionamento brasileiro, Leito da Cunha entendia que o que devamos fazer era nos

    beneficiarmos das nossas relaes com os pases africanos, tendo em considerao a nossa

    poltica de no-discriminao racial. (...) Minha opinio sobre esse assunto, em resumo, era

    que devamos fazer uma poltica africana, mas no em termos de passar a obedecer s

    injunes africanas em vez de obedecer s injunes americanas. (CUNHA, 1994, p. 231).

    Nesse sentido, os chanceleres seguintes, Juracy Magalhes e Jos Magalhes Pinto (1966 a

  • 1967, e 1967 a 1969, respectivamente) seguem uma poltica externa de alinhamento aos

    Estados Unidos e de apoio s pretenses coloniais europeias (principalmente portuguesas),

    com o raciocnio anticomunista e de preservao ideolgica (VISENTINI, 2004).

    A nova mudana de chanceler, aps a posse de novo presidente militar, em 1969, traria

    novas mudanas na narrativa aqui estudada. O novo presidente, Emlio Garrastazu Mdici,

    convida o diplomata Mario Gibson Barboza para assumir o Itamaraty. Gibson Barboza

    escreveu nas suas memrias (2007) a relao que teve com Afonso Arinos, e como isso o

    influenciou na sua gesto. Ele foi chefe de gabinete de Arinos, e presenciou discusses sobre

    as relaes brasileiras com a frica e com Portugal: Creio que brotou dessa fase a semente

    de tudo o que vim a formular e executar, nove anos mais tarde, na minha gesto como

    Ministro. (BARBOZA, 2007). Talvez por isso, ele tenha claro o dilema brasileiro entre

    Portugal e frica. tradicionalmente mantnhamos relaes especiais com Portugal, clula

    mater da nossa nacionalidade (...); por outro lado, Brasil era uma ex-colnia, e no podia

    deixar de simpatizar, solidariamente, com os anseios libertrios de possesses africanas

    submetidas a uma anacrnica poltica colonial, possesses estas cujas populaes (...) haviam

    contribudo de modo relevante para nossa formao, atravs de suas culturas trazidas pela

    fora para o nosso pas, durante os tristes tempos da escravido. (BARBOZA, p. 367).

    Uma iniciativa de Gibson Barboza na sua gesto foi uma longa viagem a nove pases

    africanos, j poca conhecido como priplo africano, expresso que retomada diversas

    vezes na diplomacia brasileira. Nessa viagem, Barboza pode compreender ainda mais a

    dificuldade na relao, pois ainda baseada no desconhecimento mtuo das partes. Em Gana,

    pode desmentir informaes sobre o apoio brasileiro a Portugal (p. 410). Em Togo, conheceu

    a comunidade de descendentes de brasileiros ex-escravos retornados, os Aguds, cujas

    comunidades tambm existem no Benim e na Nigria. Em suas memrias, Gibson Barboza

    relata outros episdios que demonstram a ele a importncia da relao entre Brasil e frica, e,

    na sua opinio, um ngulo cultural bsico, na busca da nossa prpria identidade como

    nao. (2007, p. 422).

    Quanto sua visita, Barboza conclui: A visita frica (...) no constituiu assim,

    exclusivamente, a abertura de vias de intercmbio comercial e cooperao mtua, assinatura

    de acordos, a proclamao de princpios gerais de convivncia internacional, mas tambm o

    reconhecimento e a retomada de uma das razes da nossa formao, abandonada pelo descaso

    ou preconceito de geraes que se envergonhavam do fato de sermos um pas mestio.

  • Ignorando que nisso, precisamente, reside um dos traos predominantes de nossa

    individualidade como nao. (p. 422). Entretanto, no que pese a opinio pessoal do

    chanceler, a posio brasileira em relao frica era ambgua. Declarava-se contra o

    apartheid, mas ficava ao lado da frica do Sul nas questes concernentes a Portugal. Evitava

    falar de provncias ultramarinas, por consider-las uma fico, mas apoiava Portugal pelo

    princpio da no-interveno em assuntos internos, quando o tema era discutido nas

    Assembleias das Naes Unidas.

    Gibson Barboza daria lugar a Antonio Francisco Azeredo da Silveira, tambm

    diplomata de carreira, chamado pelo novo presidente militar Ernesto Geisel (1974 a 1979).

    Cabe destacar que Azeredo da Silveira tambm citado como amigo, em um dos volumes de

    memrias de Afonso Arinos (FRANCO, 1965). Em depoimento ao CPDOC, Azeredo

    continua a linha da narrativa de Gibson Barboza, em referncia relao com Portugal, e que

    esta deveria ser finalmente corrigida. A solidariedade colonialista seria totalmente quebrada,

    embora reconhecssemos todos os laos de tradio e de amizade com Portugal.

    (SPEKTOR, 2010). Segundo Azeredo, toda uma gerao de brasileiros estava envenenada

    por palavras (...) que estavam entranhadas na alma de certos setores. (...) com a desculpa de

    que o pas era invivel, ou do ponto de vista econmico, ou do ponto de vista cultural, ou do

    ponto de vista social, justificava-se uma dominao colonialista que depois provou que tinha

    sido a coisa mais retardatria para essas prprias regies. (p. 94).

    As medidas concretas desse discurso foram os reconhecimentos das independncias de

    Guin-Bissau, em 1974, e de Angola, em 1975, sendo que o Brasil, neste caso, foi o primeiro

    pas a reconhecer o governo do MPLA. Tambm em 1975, o Brasil estabelece relaes

    diplomticas com Moambique. Deve-se notar tambm o intenso trabalho de diplomatas

    brasileiros nesses pases, como talo Zappa e Ovidio de Melo, que puderam estabelecer os

    contatos necessrios para os devidos reconhecimentos diplomticos.

    A partir de meados da dcada de 1970 e na dcada de 1985, a crise do petrleo e a

    subsequente crise financeira que atingiu os pases em desenvolvimento iria enfraquecer as

    relaes entre o Brasil e o continente africano, mas em nenhum momento elas deixaram de

    existir; simplesmente, em meio conjuntura internacional, no tinham foras para manter o

    flego. Nesse contexto, com a posse do novo e ltimo presidente militar, Joo Figueiredo

    (1979 a 1985), Azeredo da Silveira d lugar a Ramiro Saraiva Guerreiro na pasta das

    Relaes Exteriores. Guerreiro tentaria dar continuao poltica de Azeredo, na medida do

  • possvel. A primeira visita de um chefe de Estado brasileiro frica ocorre nesse momento,

    com a visita de Figueiredo, em 1983, Nigria, Senegal, Guin-Bissau, Cabo Verde e Arglia.

    Entretanto, podemos observar nas suas memrias que ele tinha noo de que o continente

    africano representava mais do que vantagens econmicas para o Brasil. A frica e, creio,

    crescentemente ser importante para ns. O fato de sua misria presente no nos deve

    enganar, nem realimentar preconceitos inaceitveis, que seriam a prpria negao do que

    somos. Metade pelo menos da populao brasileira tem algum sangue africano. O Brasil,

    disse em vrias ocasies, no uma sucursal da frica, mas tampouco uma sub-Europa ou

    um resduo amerndio. Da nossa complexidade e personalidade prprias. (GUERREIRO,

    1992, p. 185).

    4. Consideraes finais

    Considerando aqui ento as palavras dos principais personagens da poltica externa

    brasileira como narrativas do pas, podemos destacar as narrativas em relao frica, no

    perodo abordado, como micronarrativas do pas. Nesse sentido, na relao da narrativa com

    os elementos histricos, podemos observar a dificuldade com que o Brasil lida com a

    influncia que recebe da frica em termos de identidade. Se apesar de, internamente, por

    meio de Gilberto Freyre, haver o reconhecimento da mestiagem como elemento fundamental

    da nacionalidade brasileira, externamente o Brasil no enxergava os problemas raciais na sua

    prpria sociedade, como demonstra a expresso democracia racial de Afonso Arinos. Alm

    disso, a forte influncia portuguesa na sociedade brasileira, ainda presente em meados do

    sculo XX, refletida na posio do diplomata Vasco Leito da Cunha e consequentemente

    na formulao da poltica externa da dcada de 1960.

    Entretanto, a conjuntura internacional ajudaria a desenvolver a narrativa de

    aproximao brasileira frica. A prpria presso internacional em relao descolonizao

    iria estimular a mudana da narrativa brasileira e, com base nos elementos histricos da

    relao, sustentaria a virada de fato na relao entre Brasil e Portugal, que era o ltimo

    obstculo a ser removido para a aproximao efetiva do Brasil com diversos pases africanos,

    como fica demonstrado pelas narrativas de Gibson Barboza, que ainda sofre com o dilema

    portugus, e de Azeredo da Silveira, que, pela conjuntura internacional se v justificado a

    remover de vez as amarras com Portugal em relao frica.

    As dcadas de 80 e 90 no fariam continuidade a essa narrativa de poltica externa como

    narrativa de pas, pelo menos no indo alm do j existente. Apenas nos anos 2000, com o

  • governo Lula (2003-2010), essa narrativa seria retomada com fora, tambm aproveitando

    uma conjuntura econmica internacional favorvel, tanto para o Brasil quanto para a frica.

    O presidente Lula e seu chanceler Celso Amorim iriam ento empreender uma retomada de

    iniciativas como a abertura de embaixadas, visitas de Estado, cooperaes tcnicas, entre

    outras. Lula colocaria de novo a frica na narrativa do Brasil.

  • REFERNCIAS

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