Relação Entre Cultura e Identidade Nacional
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Revista HISTEDBR On-line Resenha
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.48, p 356-360 Dez.2012 - ISSN: 1676-2584
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Resenha do livro:
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade Nacional e Modernidade brasileira: o dilogo entre
Slvio Romero, Euclides da Cunha, Cmara Cascudo e Gilberto Freyre/ Ricardo Luiz de
Souza. Belo Horizonte: Autntica, 2007. 232 p.
Resenha por:
Daniela Perptua de Andrade
Universidade de So Joo del-Rei - UFSJ
A RELAO ENTRE CULTURA E IDENTIDADE NACIONAL
O autor do livro Identidade Nacional e Modernidade brasileira: o dilogo entre Slvio
Romero, Euclides da Cunha, Cmara Cascudo e Gilberto Freyre, Ricardo Luiz de Souza,
mestre em Sociologia e doutor em Histria pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Atualmente, professor do Centro Universitrio de Sete Lagoas (UNIFEMM).
A publicao resultado da tese de Doutorado defendida no Departamento de Histria
da Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 2006, sob a orientao de Jos Carlos
Reis. Este livro volta-se para a compreenso de um conjunto de obras de estudiosos da cultura
popular no Brasil. Identidade nacional, modernidade e tradio so os temas envolvidos por
um dilogo indireto entre os quatro autores: Slvio Romero, Euclides da Cunha, Cmara
Cascudo e Gilberto Freyre.
Trata-se de obras preocupadas em fornecer grandes interpretaes do Brasil, esforo
que possibilitaria o desenvolvimento da lgica que as perpassa. Ao se debruar sobre o
pensamento desses autores, Souza analisa a chamada questo nacional e o conceito do que ser brasileiro, elementos que identificam o povo e os diferenciam de outras naes. No
entanto, num esforo de anlise assim conduzido, deve haver cuidado a fim de no submeter o
que uma obra tem de caracterstico.
Na cultura brasileira, a definio de identidade nacional foi um tema de debate crucial.
A relao entre tradio e modernidade constituiu o tema central no debate sobre a formao,
desenvolvimento e futuro da nacionalidade.
Souza recupera a discusso sobre Modernidade e Identidade Nacional. Este autor
sagaz ao problematizar a identidade nacional, apontando sua presena em relaes de poder,
interao com as outras naes, construo como discurso, dinmica e heterogeneidade. Esse
debate analisado tomando como eixo questes como o que ser brasileiros, elementos da
brasilidade que nos identificam como povo e nos diferenciam das outras naes, processos da
formao da nacionalidade brasileira e a formao racial dos brasileiros. Alm dessas
questes, Souza trata de como se deu, tem se dado, e deve se dar a relao entre tradio e
modernidade, assim como a possibilidade de conciliao da identidade nacional e
modernidade. O autor elucida essas e outras questes ao refletir sobre a obra desses autores e
tambm ao contemplar o processo histrico vivido e ainda vivenciado pelo Brasil.
A identidade nacional e a relao entre tradio e modernidade, constituem temas
presentes nas obras dos autores abordados. Em um primeiro momento, o autor toma cuidado
em definir esses conceitos e apia-se em autores como Nobert Elias (1990) e Garcia Canclini
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(1997). Para Nobert Elias, a identidade subjacente aos povos e moldada por regularidades
humanas e sociais. Garcia Canclini explica que a incerteza em relao ao sentido e ao valor da
modernidade deriva no apenas do que separa naes, etnias e classes, mas tambm dos
cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno se misturam. Esta identidade
nacional inspirada no conceito de memria coletiva de Halbwachs (1990) seria estruturada pela tradio.
A identidade nacional ligada a valores compartilhados e vinculada a pases fundadores
que as encarnam como smbolo de um passado a ser reverenciado. J a tradio
corporificada em smbolos que a representam. A modernidade definida pelo seu carter
aberto e conectada a uma permanente transformao. Para o autor, os debates sobre a
formao ou existncia de uma identidade nacional e sobre a relao entre tradio e
modernidade no podem ser compreendidos de forma isolada (SOUZA, 2007)..
Slvio Romero foi o primeiro autor a ser abordado pela sua preeminncia em termos da
sistematizao sobre a identidade nacional e pelo carter pioneiro e inovador de sua obra. Esse
autor privilegia temas como: identidade nacional, cultura popular e raa. A cultura popular
serve como instrumento indispensvel de anlise e compreenso da identidade nacional. Ele
chama ateno para a compreenso do processo de formao racial do brasileiro e, mais
especificamente, a importncia da miscigenao como elemento central desse processo, o que
torna indispensvel para compreendermos a construo e os sentidos adquiridos pela
identidade nacional. Ainda de acordo com Romero (1997), a modernizao travada pelas
condies socioeconmicas, campo e cidade, provncia e corte. Segundo ele, tambm seria
preciso superar a imitao de modismos importados e a macaqueao do estrangeiro,
especialmente o francesismo.
Na perspectiva de Romero (1969), a modernizao brasileira travada pelas condies
socioeconmicas do Pas; uma nao embrionria que tem em uma lavoura rudimentar sua
principal fonte de riquezas, sem classe operria, toda ela marcada pela inrcia, com pequenas
indstrias locais e uma malha urbana rarefeita, com uma populao caracterizada pela
passividade e uma classe mdia pouco significante. Eis o quadro descrito por ele, do qual parte
para pensar a questo da modernidade.
Romero ao analisar a obra de Euclides da Cunha aponta algumas contradies que
tambm so as suas. Ambos adotam uma dualidade elite versus nao, na qual aquela
responsabilizada por ignorar esta e tentar construir um mundo a parte feita de materiais de
emprstimo.
Romero aponta em suas anlises que os caminhos adotados para a modernidade no
Brasil geraram uma nao injusta e excludente. A formao da nacionalidade brasileira
constituiu-se no apenas por miscigenao racial, que tambm deveria ser completada pelo
branqueamento, mas tambm sociocultural. Ento, sua obra uma demonstrao das razes de
seu pessimismo.
O segundo autor a ser abordado por Souza (2007) Euclides da Cunha. Euclides tinha
um olhar tanto de engenheiro como de literato observador. Seu pensamento era estruturado
pelo encontro de duas temticas: a modernidade e a identidade nacional, a civilizao e o
serto. Ele ao observar Canudos assinala como fatores explicativos do Brasil elementos
genticos, sociais e fsicos. Souza cita Levine (1995) que explica a base e o sentido do conflito
no apenas em termos humanos, como tambm a partir da histria geomorfolgica, climtica e
demogrfica da regio. Euclides ao observar Canudos, formula o ncleo de suas criticas s
elites e critica a alienao deste grupo.
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Para Euclides o atraso do sertanejo no se deve basicamente sua inferioridade racial. A
culpa recai sobre as elites que no tem olhos para o serto e o condena ao mais completo
abandono. Sua obra, Os Sertes, deve ser entendida no apenas no sentido geogrfico da
palavra, simbolizando tambm, um tempo anterior modernidade, que ultrapassa qualquer
espao fisicamente bem determinado e bem demarcado pelo autor como um tempo sertanejo
que desaparece. Revela a existncia de dois brasis: um progressista nas cidades do litoral e
outro arcaico do interior, no serto. Contrape o mulato do litoral (complacente) ao mestio do
interior (rgido)
O mestio e o sertanejo so para Euclides da Cunha seres distintos; as teorias que
condenam o mestio como ser inferior e degradado no valem para o sertanejo. Para Euclides
e Romero, o processo de formao da nacionalidade funciona como obstculo a ser vencido no
que tange aos projetos de nacionalidade por eles delineados. Trata-se de superar a
desvantagem resultante de uma formao social e racial mestia por meio da ao pedaggica
das elites, de forma a incorporar os novos padres de civilizao a toda uma populao que foi
deixada a margem.
O terceiro autor a ser abordado Cmara Cascudo. Para ele, aparece a dicotomia entre
serto e cidade, assim como, provncia e centro urbano. Cascudo tem a pretenso de preservar
a cultura popular a partir da qual, se poderia vislumbrar a identidade nacional. Para Cascudo, o
povo produtor de uma cultura e as elites cabem o domnio poltico e as posies de mando
na hierarquia social. A obra de Cascudo centrada em uma perspectiva elitista e o povo
apontado como figurante, mas exaltado como produtor de cultura. Cascudo (1984) entende
que o conto popular revela informao histrica, etnogrfica, sociolgica, jurdica e social.
um documento vivo, apontando costumes, ideias, mentalidades, decises e julgamentos.
Tendo em vista que os primeiros estudos estavam preocupados com a interpretao da
sociedade brasileira, na sua grande maioria, apresentaram tendncia culturalista, primando
pela cultura como aspecto privilegiado para o entendimento da realidade social. Cmara
Cascudo, um dos mais conhecidos folcloristas do pas, etngrafo que se limitou basicamente
ao registro de fatos, descreveu contos e lendas, elaborando fontes para a investigao da
cultura popular. Suas elaboraes ocorreram fora do espao acadmico, por isso no
considerada estritamente um cientista social, porm um respeitado estudioso da cultura
popular. Dessa maneira, justifica-se escolha acertada desse autor por Souza.
O ltimo autor a ser abordado Gilberto Freyre, socilogo nordestino que utiliza o
conceito de cultura para entender a realidade brasileira. Freyre desmoraliza cientificamente o
racismo com suas obras Casa Grande e Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e
Nordeste (1937).
Tanto em Cascudo quanto Freyre, a miscigenao atua como fator contrrio ao
surgimento de preconceitos, como fator democratizante e como instrumento de consolidao
de uma sociedade racialmente harmoniosa. Cascudo valoriza o povo enquanto criador de
tradies cuja preservao, contudo, cabe mais s elites que a ele prprio, devendo agir este
como tutor daquele. Na obra de Cascudo, o serto situado como espao geogrfico oposto
aos grandes centros urbanos e como temporalidade oposta modernidade, lugar de tradio,
espao onde se configurou uma identidade nacional e sertaneja.
Gilberto Freyre, por sua vez um continuador do pensamento tradicional, estudioso
que privilegiou a problemtica cultural. Assim como Cascudo, no apenas ressalta a existncia
da identidade nacional, como faz sua defesa ao mesmo tempo em que sublinham o risco de seu
desaparecimento sob o impacto da modernidade. Este autor estruturou sua obra na descrio
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da modernizao e tambm na nostalgia por um passado muitas vezes definido como
idilicamente comunitrio e qual se enraza a identidade nacional. Cmara Cascudo entendeu a
modernidade como horizonte inescapvel.
Souza destaca que o otimismo Freyreano em relao ao futuro assenta-se na defesa que
faz da mestiagem, pois ela que define a identidade nacional brasileira, o que possibilitaria
uma vantagem num mundo ps-moderno. Da automao decorreria um tempo livre para o
qual a vivncia hispnica do tempo estaria mais preparada. Ao contrrio dos outros autores,
em Freyre a modernidade superada, pois se trata de um momento histrico no qual uma srie
de valores urbanos entraria em conflito com um sistema rural no qual os contrrios se
equilibrariam.
Considerando o dilogo entre Euclides da Cunha, Slvio Romero e Gilberto Freyre, a
relao entre tradio e modernidade segundo a miscigenao torna-se hiptese para a criao
de uma raa brasileira. O passado preciso ser preservado da modernidade, ele e todo seu
acompanhamento de hbitos, crenas e tradies.
O debate sobre modernidade e identidade nacional se articula em Freyre partindo de
questes bsicas como a relao entre a arte e cincia. Freire (1962) explica se algum
acrescenta ao seu conhecimento da antropologia ou s suas analises de historia ou de
sociologia um poder literrio de expresso, ento ter conseguido combinao ideal.
Ainda de acordo com Freyre (1967) no h cincia mais dependente de outras cincias
que a sociologia. O olhar de Freyre socilogo e historiador eram inseparveis. Tanto em
Cascudo quanto em Freyre, a miscigenao atua como fator contrrio ao surgimento de
preconceitos, como fator democratizante e como instrumento de consolidao de uma
sociedade racialmente harmoniosa.
Souza menciona Ricardo Araujo (1994), em seu livro, ao explicar que o conceito de
raa auxiliar no mtodo de Freyre. Ele utiliza-o como se no quisesse se comprometer com
seu sentido usual. Antagonismos insuperados e insuperveis que fundamentariam a sociedade
brasileira, serto e litoral para Euclides. Casa-grande e senzala, sobrado e mucambo, ordem e
progresso, so antagonismos resolvendo-se na obra de Freyre em uma nao cujas promessas
so a mestiagem e a conciliao.
Nas obras de Slvio Romero, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Cmara Cascudo,
apresenta-se um dilogo de buscas de respostas para um projeto de nacionalidade. Estes
autores buscaram defender dos avanos da modernidade a tradio preservada e refugiada na
provncia. Eles interrogaram e procuraram o processo de formao nacional em busca de suas
linhas evolutivas, de seu sentido, de suas consequncias para o presente e o futuro.
Souza repete nas concluses sobre os quatro autores que estudou o peso de uma anlise
biogrfico-sociolgica. Chama as origens sociais daqueles pensadores, salientando, em Cmara Cascudo e Gilberto Freyre, serem descendentes de elites rurais provincianas em pleno processo de decadncia e perda de poder a nvel poltico e econmico. Sylvio Romero foi identificado a uma classe mdia nordestina empobrecida e Euclides da Cunha ligado pequena burguesia urbana.
Souza tem o mrito de tratar de fatores relacionados aos conceitos que coloca em
destaque. Seu estilo, marcado por uma anlise que privilegia um grande nmero de aspectos,
colocados nos pargrafos, possibilita tal feito, alm de tornar o texto mais interessante pela
ampla e variada instruo que demonstra, e no por uma redundncia que rejeita.
Ao retratar os conceitos de identidade nacional, modernidade e tradio nas obras selecionadas, cuja importncia da anlise por sinal muito bem fundamentado, Souza
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enfrenta deste modo, a produo discursiva de maneira muito acertada. No h, conforme se
depreende desta leitura, um discurso unitrio, definitivamente hegemnico, sobre o que viria a
ser a identidade do brasileiro.
O que se verifica, em contraposio, uma constante disputa por definies, cada uma
delas ajeitando de maneira especfica e em variados graus de sucesso um estoque disponvel para as mais variadas interiorizaes individuais. Desta forma, embora constantemente se
afirme que o poder pblico imps uma unificao cultural por intermdio de uma definio
especfica do que fosse a identidade nacional, pode-se perceber que esta realidade discursiva
muito mais complexa e no deve ser encarada como um nico discurso vencedor.
No entanto, num esforo de anlise assim conduzido, marcado por uma anlise que
privilegia vrios aspectos, colocados em pargrafos relativamente curtos e abundantes.
Referncias
ARAJO, Ricardo Benzaquem. Guerra e paz; Casa grande e Senzala e a obra de Gilberto
Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
CANCLINI, Nstor Garcia.Culturas hibridas: estratgias para entrar e sair da modernidade .
So Paulo : Edusp, 1997.
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte/ So Paulo :
Itatiaia/EDUSP, 1984.
CUNHA, Euclides da. margem da histria. So Paulo : Edusp, 1995.
ELIAS, Nobert. O processo civilizatrio. LISBOA : Publicaoes Dom, 1990.
Freyre, Gilberto. Casa grande e senzala. Brasilia .Rio de Janeiro: Jos Olympio,1978
GILBERTO, Freire. Homen, Cultura e tropico . Recife : Imprensa Universitaria , 1962a.
FREYRE, Gilberto. Sociologia. Rio de Janeiro: Jos Olimpio, 1967
LEVINE, Robert M. O serto prometido: O massacre de Canudos. So Paulo : Edusp, 1995.
HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990. 189 p.
ROMERO, Silvio. 1977. Estudos sobre a poesia popular no Brasil. Petropolis : Vozes, 1977.
ROMERO, Slvio. Obra filosofica. Rio de Janeiro : Jose Olympio, 1969.