RELAÇÃO CIDADE-CAMPO1: MANIFESTAÇÕES DO RURAL … · desta temática na ciência geográfica,...

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1 RELAÇÃO CIDADE-CAMPO 1 : MANIFESTAÇÕES DO RURAL NO URBANO 2 Flávia Aparecida Vieira de Araújo Universidade Federal de Uberlândia – UFU [email protected] Beatriz Ribeiro Soares Universidade Federal de Uberlândia – UFU [email protected] Resumo A nova dimensão assumida pelas relações sociais, econômicas e culturais estabelecidas entre o campo e a cidade passou a exigir a compreensão de que o urbano e o rural não devem ser mais pensados como recortes territoriais isolados, como tradicionalmente o fora. Diante dos pressupostos de que há uma interação do urbano e do rural em um mesmo local, de que as fronteiras entre eles são cada vez mais tênues e de que o significado dessas realidades deve ser buscado nas práticas sociais dos agentes, surgiu o interesse de se estudar as manifestações do rural em áreas urbanas. O recorte espacial compreende as cidades de Araguari, Uberlândia e Uberaba, localizadas no estado de Minas Gerais. Considera-se que esta pesquisa poderá trazer contribuições para a discussão da relação urbano-rural no âmbito da Geografia e para o entendimento da dinâmica socioespacial das cidades selecionadas para estudo. Palavras-chave: Manifestações. Rural. Urbano. Introdução A discussão da relação cidade-campo implica reconhecer a complexidade e relevância desta temática na ciência geográfica, já que a distinção e a delimitação entre o rural e o urbano tornaram-se uma tarefa mais difícil a partir da acentuação das articulações entre a cidade e o campo. Essa maior acentuação é resultante da revolução técnico-científica, iniciada a partir da segunda metade do século XX, a qual imprimiu uma nova complexidade ao estudo, pois intensificou os processos de urbanização e industrialização; promoveu o desenvolvimento do capitalismo no campo e a conseqüente modernização da agricultura. Mesmo não tendo ocorrido de forma homogênea, esses fatores redefiniram os espaços rurais, imprimindo-lhes uma nova dinâmica; diversificaram os serviços urbanos; intensificaram os fluxos de transportes e comunicações e reestruturaram a interação das áreas rurais com os espaços urbanos. Nessa perspectiva, um novo interesse pelo estudo da relação urbano-rural emergiu em algumas ciências, podendo-se destacar a economia, a sociologia, a antropologia e também a geografia. Estas disciplinas tentam estabelecer parâmetros para a definição,

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RELAÇÃO CIDADE-CAMPO1: MANIFESTAÇÕES DO RURAL NO URBANO2

Flávia Aparecida Vieira de Araújo Universidade Federal de Uberlândia – UFU

[email protected]

Beatriz Ribeiro Soares Universidade Federal de Uberlândia – UFU

[email protected]

Resumo A nova dimensão assumida pelas relações sociais, econômicas e culturais estabelecidas entre o campo e a cidade passou a exigir a compreensão de que o urbano e o rural não devem ser mais pensados como recortes territoriais isolados, como tradicionalmente o fora. Diante dos pressupostos de que há uma interação do urbano e do rural em um mesmo local, de que as fronteiras entre eles são cada vez mais tênues e de que o significado dessas realidades deve ser buscado nas práticas sociais dos agentes, surgiu o interesse de se estudar as manifestações do rural em áreas urbanas. O recorte espacial compreende as cidades de Araguari, Uberlândia e Uberaba, localizadas no estado de Minas Gerais. Considera-se que esta pesquisa poderá trazer contribuições para a discussão da relação urbano-rural no âmbito da Geografia e para o entendimento da dinâmica socioespacial das cidades selecionadas para estudo. Palavras-chave: Manifestações. Rural. Urbano. Introdução A discussão da relação cidade-campo implica reconhecer a complexidade e relevância

desta temática na ciência geográfica, já que a distinção e a delimitação entre o rural e o

urbano tornaram-se uma tarefa mais difícil a partir da acentuação das articulações entre

a cidade e o campo. Essa maior acentuação é resultante da revolução técnico-científica,

iniciada a partir da segunda metade do século XX, a qual imprimiu uma nova

complexidade ao estudo, pois intensificou os processos de urbanização e

industrialização; promoveu o desenvolvimento do capitalismo no campo e a

conseqüente modernização da agricultura. Mesmo não tendo ocorrido de forma

homogênea, esses fatores redefiniram os espaços rurais, imprimindo-lhes uma nova

dinâmica; diversificaram os serviços urbanos; intensificaram os fluxos de transportes e

comunicações e reestruturaram a interação das áreas rurais com os espaços urbanos.

Nessa perspectiva, um novo interesse pelo estudo da relação urbano-rural emergiu em

algumas ciências, podendo-se destacar a economia, a sociologia, a antropologia e

também a geografia. Estas disciplinas tentam estabelecer parâmetros para a definição,

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hoje, de urbano e de rural e a relação que ambos estabelecem. Essa busca torna-se,

portanto, um enorme desafio, visto que houve uma ressignificação dessas

espacialidades. Essa exige que as distinções e singularidades sejam valorizadas frente às

relações, às articulações e às influências mútuas que se estabelecem entre as

espacialidades urbana e rural.

A nova dimensão assumida pelas relações sociais, econômicas e culturais estabelecidas

entre o campo e a cidade, advinda, especialmente, do “relativo” fim da auto-suficiência

das localidades rurais (considerando que dependem de equipamentos e serviços

implantados na cidade), passou a exigir a compreensão de que o urbano e o rural não

devem ser mais pensados como recortes territoriais isolados, como tradicionalmente o

fora. Assim, o desafio de discutir os espaços urbano e rural além das distinções e

oposições existentes deve ser superado, pois a relação que se estabelece entre esses

espaços possui uma forte interdependência e complementaridade.

Na contextualização do atual período, é preciso considerar o papel do processo de

globalização nas transformações espaciais, seja nos níveis social, econômico, político e

cultural. E, dessa maneira, é necessário levar em conta o estreitamento que se observa

entre o rural e o urbano. Moreira (2005, p. 10) adverte que: “Não é mais aceito falar em

um rural exclusivamente agrícola ou de um urbano que não inclua também

possibilidades de construção de identidades rurais”.

No Brasil, as situações urbana e rural são definidas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística), que considera como população urbana as pessoas e os

domicílios localizados nas cidades, nas vilas (sedes distritais) ou mesmo em áreas

urbanas isoladas. A população rural é aquela que se localiza em toda a área fora dos

limites urbanos, ou seja, fora do perímetro urbano, que é delimitado por uma lei

municipal, sendo adotada pelo IBGE para a delimitação dos setores censitários e o

processo de recenseamento.

Todavia, a análise baseada na posição do domicílio no município gera enormes

controvérsias. Vários estudos revelam que o urbano e o rural não podem ser

interpretados como simples categorias operatórias, mas precisam ser analisados à luz

dos conteúdos e significados das relações sociais, já que práticas tipicamente ligadas ao

modo de vida rural podem se manifestar em áreas consideradas urbanas e vice-versa.

Diante dos pressupostos de que há uma interação do urbano e do rural em um mesmo

local, de que as fronteiras entre eles são cada vez mais tênues e de que o significado

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dessas realidades deve ser buscado nas práticas sociais dos agentes, surgiu o interesse de

se estudar as manifestações do rural em áreas urbanas (sendo aqui consideradas as

cidades).

O recorte espacial - que compreende as cidades3 selecionadas para a pesquisa - é:

Araguari, Uberlândia e Uberaba. As três cidades se localizam no estado de Minas

Gerais, na mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba. De forma mais específica,

estão localizados, respectivamente, nas microrregiões de Uberlândia4 e de Uberaba5

(Figura 1).

A escolha do objeto de estudo é justificada pelo fato de que se pretende fazer uma

análise comparativa acerca da manifestação do rural em três cidades inseridas em

contextos agrícolas semelhantes. Essas, por estarem localizadas em área de cerrado,

foram beneficiadas pelos programas financiados pelo governo federal e estadual, os

quais possuíam como objetivo principal a incorporação de terras relativamente baratas

por meio da intensificação do uso de capital, da correção da acidez dos solos e da

mecanização da produção agrícola. Esta foi possibilitada pela elaboração e execução de

programas governamentais, que promoveram o desenvolvimento dessas áreas.

Figura 1 - Araguari, Uberlândia e Uberaba: localização dos municípios no estado de Minas Gerais (2012) Fonte: http://philgeo.club.fr/Index.html Adaptado por: ARAÚJO, F. A. V. (2012).

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Não obstante os benefícios advindos de tais programas, deve-se considerar que eles

foram estendidos a uma reduzida parcela da população, sendo destinados a produtores,

propriedades, produtos e regiões específicas.

Neste contexto, é importante considerar que o processo de modernização agrícola e a

inserção do capital agroindustrial nos municípios de Araguari, Uberlândia e Uberaba

não foram diferentes do restante do país, pois as políticas agrícolas foram direcionadas

ao financiamento do cultivo de produtos destinados a abastecer o mercado externo,

principalmente a soja, o milho e a cana-de-açúcar. A tabela 1 permite constatar os

principais produtos agrícolas cultivados nos três municípios, conforme dados da

Produção Agrícola Municipal (IBGE, 2010).

Tabela 1 - Araguari, Uberaba e Uberlândia (MG): produção agrícola municipal (2010)

Produto

Municípios Araguari Uberaba Uberlândia

Área colhida

(ha)

Produção (t)

Área colhida

(ha)

Produção (t)

Área colhida

(ha) Produção (t)

Café (beneficiado) 11.580 27.792 900 1.350 400 600

Cana-de-açúcar 4.000 600.000 46.000 4.370.000 900 72.000

Milho (em grão) 13.000 85.800 47.850 329.500 15.800 134.300

Soja (em grão) 17.500 56.700 80.000 240.000 47.000 143.820

Sorgo 350 438 450 1.170 1.520 3.666

Tomate 445 37.825 255 33.150 105 6.300

Trigo 335 961 773 2.149 - -

Total 47.210 809.516 176.228 4.977.319 65.725 360.686

Nota da tabela: (-) Conforme dados publicados no site do IBGE, o valor é indisponível para a variável Produção (quantidade produzida), pois as unidades de medida diferem para determinados produtos. Nesta tabela, o símbolo também indica ausência de produção no município analisado, para o período selecionado (2010). Fonte: IBGE - Produção Agrícola Municipal (2010). Org.: ARAÚJO, F. A. V. (2012).

A partir da tabela 1, nota-se que nos três municípios selecionados, a cana-de-açúcar, o

milho e a soja figuram como os produtos de maior destaque. Em termos de produção

total (quantidade produzida, em tonelada), nos municípios de Araguari e Uberaba, a

representatividade dos produtos aparece nesta ordem supracitada. No município de

Uberlândia, a soja ocupa o primeiro lugar na produção, acompanhada, sequencialmente,

pelo milho e a cana-de-açúcar.

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Na tabela 1, é possível observar que nos três municípios, a área colhida de cana-de-

açúcar é relativamente menor em comparação ao milho e à soja. Isto pode ser explicado

pelo fato de que a produção de cana-de-açúcar demanda uma área menos extensa.

Cumpre destacar que, nos três municípios selecionados, as grandes e médias

propriedades foram as principais beneficiadas pelos programas agrícolas, o que

contribuiu tanto para o aumento da desigualdade na distribuição de renda na agricultura,

quanto para a saída da população do campo (GRAZIANO DA SILVA, 1982).

A população rural, especialmente os pequenos produtores, não podendo atender à nova

demanda por trabalhadores qualificados e não tendo condições de implantar técnicas

modernas em sua produção, viram-se obrigados a vender suas propriedades aos grandes

proprietários e migrar em direção às cidades. Em busca de emprego e melhores

condições de vida, esse processo migratório contribuiu para intensificar o êxodo rural e

determinou não só o crescimento da população urbana, mas também da taxa de

desemprego e demais problemas na cidade.

Esta contextualização é importante, pois a partir dela, pode-se fazer o seguinte

questionamento: Essas pessoas, provenientes do campo e expropriadas pelo processo de

modernização agrícola, mesmo residindo, em sua maior parte, nas áreas periféricas da

cidade e consumindo seus bens e serviços, abandonaram as relações socioespaciais

herdadas do mundo rural?

É importante deixar claro que, nesta pesquisa, o rural será analisado como categoria

analítica, ou seja, a preocupação não é classificar ou designar determinado tipo de

espaço (rural ou urbano). Se o paradigma da classificação fosse considerado como

ponto de partida, o rural estaria sendo encarado como categoria operacional. Assim, o

objetivo é partir de uma definição já estabelecida (neste caso, o espaço urbano) e, no

interior desse espaço, identificar as relações sociais que estão associadas ao modo de

vida rural. Cumpre destacar que a distinção do rural como categoria analítica ou

categoria operacional constitui-se em uma tarefa de substancial importância, pois:

“Dessa ampla possibilidade de emprego resulta a confusão de significados e de estatuto

de categorias que ora designam um tipo de espaço, tal como aparecem no discurso do

senso comum, ora qualificam as relações sociais no interior desses espaços”

(MOREIRA, 2005, p. 8-9). Portanto, nossa análise se pautará em identificar e qualificar

as relações sociais ligadas ao rural no interior do espaço urbano.

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O aspecto motivador deste estudo é fruto de questionamentos que surgiram a partir da

observação empírica nas cidades selecionadas para estudo. Dentre esses, podem-se citar os

seguintes: de que forma o rural está presente no viver das pessoas que residem nessas

cidades, especialmente nas áreas periféricas, dada sua proximidade com o campo? E ainda,

como o urbano e o rural se interagem no viver dessas pessoas? A busca pela resposta destas

questões é, portanto, o elemento impulsionador para a realização desta pesquisa.

No que tange à sua relevância, considera-se que poderá trazer contribuições para a

discussão da relação urbano-rural no âmbito da Geografia, uma vez que as pesquisas

produzidas sobre esta temática no campo específico da Geografia Urbana são ainda

bastante incipientes, apesar da “curiosidade intelectual” que desperta. Sua importância

também se justifica pela contribuição que representa no entendimento da dinâmica

socioespacial das cidades selecionadas para estudo.

A manifestação do rural em áreas urbanas: algumas considerações

[...] os indivíduos podem expressar o seu vínculo com um determinado território (sua identidade territorial) mesmo estando fora de sua referência espacial. É o caso da manifestação de práticas culturais entendidas como rurais em espaços definidos como urbanos e vice-versa (MOREIRA, 2005, p. 11).

A partir das ideias de Moreira (2005), pode-se considerar que a classificação é

importante no processo de recenseamento, porém, deve-se considerar que, na

conceituação de uma localidade como rural ou urbana, é preciso atentar para a dinâmica

regional do lugar que se investiga, pois a diferenciação entre rural e urbano está no

conteúdo das relações sociais contidas em cada espaço, seja ele o campo ou a cidade.

Nesse sentido, reconhece-se a importância das palavras de Abramovay (2000, p. 27)

quando afirma que “o importante não é apenas saber se um distrito censitário é rural ou

urbano, mas qual é a dinâmica de uma certa região [...]”.

É imprescindível considerar que essa diferenciação é uma tarefa complexa, já que em

áreas periféricas das cidades, o rural e o urbano se interagem no viver das pessoas,

formando um espaço híbrido. O conceito de espaço híbrido, utilizado pela primeira vez

por Bruno Latour e apropriado por Rua (2006), é uma referência às relações

estabelecidas entre a sociedade e a natureza. Nesse sentido, esse autor considera o

espaço como uma variedade de híbridos, que não mais permite a percepção da distinção

pura entre o rural e o urbano, se é que essa “pureza” de distinção algum dia existiu.

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Essa ideia de hibridação é também considerada por Haesbaert (2001, p. 1.770), que

afirma: “o mais comum é que as pessoas e os grupos sociais desenvolvam,

concomitantemente, vínculos identitários com mais de um território ou com territórios

de características muito mais híbridas, multiterritorializando-se”.

A compreensão do espaço não pode ser dada apenas pelas tradicionais concepções de

urbano e rural, já que há uma combinação desigual de ambos em cada localidade, sem

que essa combinação leve à destruição do rural, que é visto como o espaço residual e

subalterno pela abordagem do continuum. Marques (2002, p. 100) deixa clara a

diferença entre as duas abordagens existentes acerca da análise do rural e urbano: De uma maneira geral, as definições elaboradas sobre o campo e a cidade podem ser relacionadas a duas grandes abordagens: a dicotômica e a de continuum. Na primeira, o campo é pensado como meio social distinto que se opõe à cidade. Ou seja, a ênfase recai sobre as diferenças existentes entre os espaços. Na segunda, defende-se que o avanço do processo de urbanização é responsável por mudanças significativas na sociedade em geral, atingindo também o espaço rural e aproximando-o da realidade urbana (grifos da autora).

No Brasil, a abordagem do continuum é compartilhada por alguns autores, que

conforme Rua (2005), defendem a ideia de “urbanização do rural”. O autor destaca

como principais representantes dessa corrente de pensamento Milton Santos, Octávio

Ianni e José Graziano da Silva. Lefebvre (1999, p. 17), mostrando-se favorável a essa

vertente, afirma que: “o tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos da vida

agrária”.

Há ainda a abordagem que enfatiza o rural, por meio da ideia de “novas ruralidades”.

Como adeptos dessa abordagem, podem-se destacar os estudos de Maria José Carneiro,

Roberto José Moreira, José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay, Sérgio Schneider e

Maria de Nazareth Baudel Wanderley (RUA, 2005).

É importante deixar claro que, nesta pesquisa, esta é a abordagem selecionada para

reflexão, pois considera-se que o rural não foi totalmente destruído pelo urbano e que,

mesmo no espaço urbano, pode haver a manifestação de ruralidades, ou seja, de práticas

ligadas ao modo de vida rural.

Outra questão que merece ser refletida é como as relações cotidianas são construídas

nas áreas periféricas das cidades. Portanto, é preciso investigar se tais relações são

baseadas em uma intensa ligação com a terra, pois, apesar dos moradores serem

contados como urbanos, suas relações podem estar fortemente atreladas aos espaços

rurais, nos quais:

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[...] as relações cotidianas são construídas tendo como base uma intensa ligação com a terra. O sustento da família é assegurado pelo trabalho sobre ela produzido, seja por intermédio dos produtos cultivados (para venda ou consumo), seja por intermédio da criação de animais (pastagem e outras fontes de alimento). A terra não é mero chão, mas a garantia de sobrevivência (BAGLI, 2006, p. 87).

Nos espaços urbanos a terra possui uma outra dimensão, já que não é nela que o

trabalho ocorre, mas sim sobre ela. Assim, as relações se realizam por intermédio

daquilo que sobre a terra está construído - como as casas, prédios, ruas, lojas, dentre

outros - e pela funcionalidade que possuem.

Considerando a diversidade e complexidade das relações, conforme nos aponta

Alentejano (2003), pode-se pensar na existência de quintais nas áreas periféricas das

cidades, onde há a plantação de alimentos de primeira necessidade e a criação de

animais utilizados na alimentação, conforme nos aponta Maia (2000), que realizou um

estudo sobre as permanências e transformações dos costumes rurais em João Pessoa/PB.

A autora aponta que: [...] “identificamos, nesse cenário urbano, resíduos de tempos

lentos atrelados ao tempo acelerado pela sociedade de consumo” (MAIA, 2000, p. 121).

Nesta pesquisa - ainda em andamento - considera-se necessário identificar esses

elementos. Os laços de vizinhança e o sentimento de pertencimento a uma comunidade

são características reconhecidas como sendo típicas do rural e podem estar presentes nas

relações das pessoas que residem nas cidades, especialmente daqueles que foram

expropriados do campo e residem em áreas periféricas. A maior proximidade entre as

pessoas a partir das relações de vizinhança é uma característica associada ao modo de

vida rural, o que não significa que essas relações estão ausentes nas cidades pequenas,

médias e até mesmo as grandes.

A identificação que as pessoas possuem com o local em que residem leva-nos a pensar

na territorialidade, a qual pode se tornar um fator de distinção entre o rural e o urbano,

já que essa territorialidade é mais intensa no modo de vida rural, conforme nos aponta

Alentejano (2003, p. 31), ao afirmar que “é a intensidade da territorialidade que

distingue o rural do urbano, podendo-se afirmar que o urbano representa relações mais

globais, mais descoladas do território, enquanto o rural reflete uma maior

territorialidade, uma vinculação local mais intensa”.

Essa territorialidade intensa, apesar de ser um atributo das áreas rurais pode também ser

encontrada no espaço urbano. A territorialidade presente na vida dos moradores das

cidades é um aspecto que nos permite identificar a presença de valores rurais nas relações

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sociais que estabelecem e, mais importante, um fator que nos permite relativizar a

classificação que os considera como urbanos, levando-nos a pensar na interação urbano-

rural presente na cidade. Ao deixarem seu território (do campo) e migrarem para a cidade,

eles podem (re)produzir territorialidades próprias de seu espaço de origem.

Apesar do reconhecimento da polarização exercida pela cidade, que concentra poder

político, capital, pessoas e informações e que projeta um modo de viver, pensar e agir

urbano, ela não consegue suprimir as práticas culturais ligadas ao modo de vida rural,

como as relações de proximidade, vizinhança e socialização reproduzidas na escala

local, discutidas por Santos (1996, p. 272). Em seu dizer, constata-se que: A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os modos de sua própria racionalidade [...]. A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são a razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contigüidade.

A partir da análise das ideias do autor, pode-se perceber que, apesar do processo de

globalização impor uma ordem e lógica dominantes, ele não consegue produzir uma

homogeneização dos espaços, pois há resistências por parte dos sujeitos sociais. Esses

procuram adotar estratégias de sobrevivência na ordem capitalista que se instaura em

todos os lugares.

Nesse sentido, deve-se reconhecer que, apesar das relações estabelecidas entre o rural e

o urbano, a intensidade e proximidade que marcam essas relações - proporcionadas pela

ordem capitalista global - não levam a uma necessária homogeneização desses espaços,

na qual o rural é descaracterizado e destruído pelo urbano. As características comuns

que, inegavelmente, existem entre essas duas espacialidades não significam a

constituição de realidades semelhantes, como acreditam os autores da abordagem

pautada na ideia de continuum. As diferenças existem e continuarão a existir, já que

tanto o rural quanto o urbano possuem suas especificidades. Todavia, essas diferenças

não podem ser utilizadas como um instrumento de dicotomização, pois as realidades

rural e urbana encontram-se cada vez mais próximas.

Considerações finais A pesquisa ainda encontra-se em andamento, porém, a partir das leituras já realizadas

sobre a temática, considera-se que acreditar que essas realidades estão distantes e

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opostas é tão arriscado quanto pensar que o urbano eliminou ou está por eliminar o

rural. O processo de globalização integrou o campo e a cidade e, conseqüentemente, o

rural e o urbano, trazendo um desafio aos pesquisadores que estudam a temática que

aborda a relação entre eles.

O desafio desta pesquisa - ainda em andamento - e de outras que abordam essa temática

consiste na tentativa de compreensão do processo de “criação de novas identidades

territoriais”, que se constituem em novas territorialidades dotadas de um hibridismo que

mescla o urbano e o rural.

Notas _________________ 1 É importante deixar claro que serão utilizadas as expressões relação cidade-campo e relação urbano-rural como respectivos sinônimos de relação campo-cidade e relação rural-urbano. Isso se justifica pelo fato de que alguns autores utilizam as primeiras expressões, enquanto outros as segundas. Não obstante essa diferença nas composições, a partir das leituras realizadas percebe-se que as expressões possuem os mesmos significados. Assim, as expressões relação cidade-campo e relação urbano-rural serão utilizadas por uma postura metodológica e pela opção de se privilegiar uma visão de análise que parte da cidade, destacando a visão da Geografia Urbana sobre o modo de vida rural presente nas cidades. Tal fato justifica-se pelo fato de que se percebe uma falta de análises acerca dessa temática por parte de pesquisadores da Geografia Urbana, já que a maior parte dos trabalhos produzidos são realizados por pesquisadores da Geografia Agrária/Geografia Rural, Sociologia, entre outros. 2 O presente artigo é parte das análises realizadas na pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Geografia, sob orientação da Profª. Drª. Beatriz Ribeiro Soares. A pesquisa encontra-se em andamento, por isso será realizada uma discussão teórica sobre a temática neste trabalho, já que ainda não há ainda resultados prontos a serem apresentados. 3 É importante destacar que o recorte espacial selecionado na pesquisa é a cidade. Todavia, para algumas análises será necessário considerar o município como um todo, como, por exemplo, quando ocorrer a contextualização das cidades selecionadas no âmbito do processo de modernização agrícola. Esse ocorreu na área rural dos municípios, porém, transformou as relações socioespaciais não apenas dessa área, mas também da cidade (sede do município). 4 Os municípios que compõem a microrregião de Uberlândia são: Araguari, Araporã, Canápolis, Cascalho Rico, Centralina, Indianópolis, Monte Alegre de Minas, Prata, Tupaciguara e Uberlândia (IBGE, 2012). 5 Os municípios que compõem a microrregião de Uberaba são: Água Comprida, Campo Florido, Conceição das Alagoas, Conquista, Delta, Uberaba e Veríssimo (IBGE, 2012).

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