Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

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I PATRICIA REINHEIMER “A FORMA É A REGRA DO JOGO.” EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ENTRE UM MUSEU DE ARTE E UM GRUPO DE CLASSE POPULAR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 2002

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I

PATRICIA REINHEIMER

“A FORMA É A REGRA DO JOGO.” EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

ENTRE UM MUSEU DE ARTE E UM GRUPO DE CLASSE POPULAR

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

2002

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II

EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ENTRE O MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE NITERÓI

E UM GRUPO DE CLASSE POPULAR

PATRICIA REINHEIMER

Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGAS/MN Mestrado

Orientador

LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE

Rio de Janeiro

2002

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III

“A FORMA É A REGRA DO JOGO.”

EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ENTRE UM MUSEU DE ARTE E UM GRUPO DE CLASSE POPULAR

PATRICIA REINHEIMER

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre. Aprovada por: ___________________________________________ Prof. Luiz Fernando Dias Duarte – Orientador

___________________________________________ Prof. Gilberto Velho

___________________________________________ Prof. Antônio Carlos de Souza Lima

___________________________________________ Prof. Regina Abreu

Rio de Janeiro 2002

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IV

Reinheimer, Patricia. “A Forma É A Regra Do Jogo.” Educação Estética E Construção De Identidades Entre Um Museu De Arte E Um Grupo De Classe Popular / Patricia Reinheimer. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS, 2002 XIII, 108 p. il. Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGAS 1. Identidade. 2. Arte. 3. Dissertação (Mestr. – UFRJ/PPGAS). I. Título

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V

DEDICATÓRIA

À minha família

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VI

AGRADECIMENTOS

Para a realização desse trabalho contei com a cooperação de diversas pessoas que

contribuíram, às vezes indiretamente, para dar sentido às minhas opções de vida. Após

dois anos e meio de trocas, esse é o momento de rever o papel que as pessoas – e

instituições – tiveram nesse processo, tentando fazer justiça à contribuição de cada um.

Agradeço ao meu orientador, professor Luiz Fernando Dias Duarte, pela liberdade

concedida às minhas escolhas, além da tranqüilidade com que sempre se dispôs a me

ouvir e orientar. Aos participantes da banca examinadora pela possibilidade de ouvir seus

comentários, certamente proveitosos.

Agradeço à Universidade Federal do Rio de Janeiro e aos professores do Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social que contribuíram para o enriquecimento da

minha formação acadêmica, especialmente aqueles com quem tive contato direto, os

quais acredito se reconhecerão nesse trabalho. Agradeço principalmente ao professor

Antônio Carlos de Souza Lima pela atenção dedicada, mas, sobretudo, pela confiança que

sempre depositou em mim – espero não desaponta-lo.

Agradeço a convivência com os colegas de curso pelos debates e discussões dentro e fora

de sala de aula. Aos amigos com quem foi possível construir ou estreitar laços para além

do âmbito profissional, me colocando à vontade para compartilhar dúvidas e

inseguranças, criando uma dívida afetiva irredimível, pela qual sou imensamente grata:

João Paulo Macedo e Castro (Joca), José Gabriel Silveira Correia e Patrícia Maria Portela

Nunes. Em especial à Elisa Guaraná de Castro e Joana Bahia, cuja leitura atenta e

minuciosa dos textos contribuiu para a construção de uma segurança quanto às

interpretações dos dados coletados no trabalho de campo e para a organização do

pensamento.

Agradeço ao coordenador do projeto Arte em Ação Ambiental por ter aberto as portas do

projeto, assim como do museu para que eu realizasse essa pesquisa. A todos os

profissionais do projeto AAA e do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, pelo

acolhimento e, principalmente, aos jovens participantes do projeto, por tudo que me

ensinaram. A todos esses, agradeço pela boa vontade com que se dispuseram a conversar

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VII

e compartilhar suas percepções, fornecendo informações cruciais para a organização do

material da pesquisa.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, principalmente à Tânia Lúcia Ferreira da Silva, e

da Biblioteca Francisca Keller, especialmente, Cristina Coimbra e Carla Freitas pela

dedicação e simpatia com que fui sempre atendida em minhas dúvidas e necessidades,

oferecendo um exemplo de eficiência, bom senso e simpatia. Não gostaria de deixar de

citar, entretanto, o Sr. Edivaldo, que ilumina a portaria do museu, oferecendo um sorriso

sincero a todos que circulam pela instituição, tornando o espaço acadêmico mais

agradável.

À Capes pela concessão da bolsa de estudo para a realização do mestrado em

Antropologia Social.

Aos meus avós (in memoriam), por quem cultivo profunda admiração: Álvaro Vieira, por

ter estado sempre por perto, mesmo distante, e Olga Helene Reinheimer e Werner

Siegfried Reinheimer, por terem me mostrado beleza e alegria na vida.

À Ivone Vieira Reinheimer, mãe e amiga, sempre presente, cujo exemplo de coragem e

perseverança me serve como modelo. A meu pai Rene Renato Reinheimer, pelo apoio e

carinho com que sempre me incentivou a prosseguir com minhas escolhas. Agradeço a

ambos pelo apoio financeiro que me permitiu uma tranquilidade maior para me dedicar

aos estudos. E, sobretudo, agradeço por terem me querido muito, sempre.

A Felipe Reinheimer e Rodrigo Reinheimer, meus irmãos maravilhosos, por toda a

energia positiva que me enviaram de longe, assim como pelo apoio, inclusive material,

mas, principalmente, pelo amor e amizade que temos sabido cultivar, valorizar e fazer

crescer. À Renata Reinheimer, irmã e mulher maravilhosa, que descobrindo seu lugar no

mundo, tem construído comigo uma relação de amor, tendo acompanhado todas as

minhas dificuldades e realizações, muitas vezes intervenientes em nosso cotidiano, mas

superadas sempre com carinho e muita, muita compreensão.

A Fábio de Castro Gouveia, pela atenção e afeto com que lidou nos momentos de

ansiedade e tensão, pelo estímulo através das trocas intelectuais, assim como pelo

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VIII

respeito às nossas diferenças e às necessidades de espaço e tempo, sempre negociados,

entre a dedicação às atividades acadêmicas e aos momentos compartilhados.

À Alexandra Tsallis, presente em todos os momentos de dúvida e insegurança, sempre

me mostrando as reservas de força, escondidas em minhas entranhas, me insuflando com

novos ânimos para continuar, assim como me ajudando a optar pela difícil escolha de me

afastar das atividades acadêmicas sempre que necessário um distanciamento para renovar

as energias e perceber as coisas sob perspectivas diferentes.

À Eveline Bertino Algebaile, pelo incentivo amigo com que, mesmo à distância,

continuou contribuindo para meu crescimento intelectual, direta e indiretamente.

À Flávia do Rego Monteiro, pelo espaço de discussão que possibilitou a construção de

muitas hipóteses aqui empreendidas. À Elisa Guaraná de Castro (merecedora de dupla

citação), Iris de Faria e Patricia Cardoso, amigas e cúmplices, cujos encontros

intermitentemente frequentes foram um precioso espaço de trocas afetivas.

Agradeço também àqueles amigos, aos quais o sigilo deve resguardar, assim como a

muitos outros que contribuíram pelo simples fato de, em alguma medida, fazerem parte

de minha vida. E muito ao Nosferatu e à Perla, inseparáveis companheiros de estudo,

cujas felinas exigências de carícias e alimentação se transformaram em importantes

intervalos para espairecer nos momentos de maior tensão.

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IX

RESUMO

REINHEIMER, Patricia. “A forma é a regra do jogo.” Educação estética e construção de identidades entre um museu de arte e um grupo de classe popular. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS, 2002. Diss. Nesta dissertação tratei da relação entre uma instituição representante do campo artístico

erudito e um grupo de jovens de classe popular de uma comunidade do Rio de Janeiro

visando desvendar os processos sociais nos quais as artes visuais inscrevem-se dentro de

estratégias de alocação e distribuição de valor no processo de construção de identidades.

Descrevi as relações significativas que foram tecidas nesse processo, analisando as

categorias forjadas nas diversas dimensões influentes no fenômeno observado. A partir da

descrição de um caso particular, foi possível perceber a dimensão “civilizatória” de um

projeto de intervenção que atuou dentro de uma concepção de “desenvolvimento” social.

Nesse projeto, a arte foi utilizada na tentativa de produzir “cidadania” a partir de noções

partícipes da “ideologia individualista”: racionalização, individualização e

disciplinarização. O encontro de tradições de conhecimento e dimensões de mundo

diferenciadas permitiu perceber a distância entre esses valores e aqueles que presidem à

vida do grupo popular em questão. Foi possível, também, perceber como a relação do

campo artístico com o mercado, tanto propriamente de arte, quanto da cidadania, tem a

autonomia da linguagem comprometida por essas tradições de conhecimento e valores:

ao acionar relações de força entre locutores e receptores, a linguagem artística torna-se

instrumento nesse processo “civilizatório”. Por outro lado foi possível perceber a forma

pela qual o fenômeno artístico está relacionado com a totalidade da existência social,

explicitando dimensões de conflito, assim como estratégias de englobamento de valores

entre os distintos sistemas culturais dos grupos em questão. Assim, a polissemia da

linguagem permitiu ao grupo de jovens adotar uma relação mimética na qual os valores

transmitidos pelo projeto não eram rechaçados, mas tampouco integralmente acolhidos.

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X

ABSTRACT REINHEIMER, Patricia. “A forma é a regra do jogo.” Educação estética e construção de identidades entre um museu de arte e um grupo de classe popular. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS, 2002. Diss.

In this dissertation, I deal with the relationship between an institution representing the field of erudite art and a group of youths from a poor community of Rio de Janeiro. I attempt to unmask the social processes through which the visual arts are inscribed within strategies of allocation and distribution of value in the process of identity construction. I have described the significant relationships that were woven in these processes, analyzing the categories forged in the several influential dimensions observed. Starting with the description of one particular case, it was possible to perceive the “civilizing” dimensions of an intervention project constructed within the concept of social “development”. In this project, art was used in an attempt to produce “citizenship” based upon notions rooted in “individualist ideology”: rationalization, individualization and discipline. The encounter between traditions of knowledge and different dimensions of the world permitted perception of the distance between these values and those of the youths in question. It was also possible to perceive how the relationship of the artistic field with the market – both for art and citizenship – had its linguistic autonomy compromised by these traditions of knowledge and value. By enacting power relationships between speakers and listeners, the artistic language became an instrument of a civilizing process. Finally, it was possible to perceive the forms through which the artistic phenomenon is related with the totality of social existence, making explicit dimensions of conflict as well as strategies for the encompassing of the distinct cultural systems of the groups in question. In this way, the polysemic nature of the language used by the project permitted the youths to adopt a mimetic relationship in which the project’s values were neither rejected nor entirely absorbed.

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XI

LISTA DE ABREVIAÇÕES

AAA – Arte em Ação Ambiental AP – Projeto o Artista Pesquisador MAC – Museu de Arte Contemporânea de Niterói PCS – Programa de Capacitação Solidária

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XII

LISTA DE ANEXOS

1. Trabalho de Geraldo de Barros 2. Trabalho de Almir Mavignier 3. Trabalho de Hércules Barsotti 4. Trabalho de Aluísio Carvão 5. Trabalho de Lygia Pape 6. Trabalho de Mira Schendell 7. Trabalho de Sérgio Camargo 8. Revisão dos conceitos relacionados à obra de Sérgio Camargo 9. Produção dos jogos de sabão 10. Jogos de sabão 11. Oficina de jogos 12. Oficina de português 13. Oficina de papel 14. Oficina de papel 15. Rapazes do projeto em dia de trabalho no ponto de vendas 16. Papéis reciclados 17. Produtos produzidos na oficina de papel reciclado 18. Jogo Neoconcreto 19. Jogo Neoconcreto 20. Jogos Neoconcretos 21. Caixas de CDs produzidas na oficina de jogos 22. Jogo Neoconcreto 23. Jogo Neoconcreto 24. Ponto de vendas 25. Ponto de vendas

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XIII

SUMÁRIO

Página

1 INTRODUÇÃO 2 1.1 O CAMPO E A PESQUISADORA 6 2 A INSTITUIÇÃO NO CONTEXTO DA PESQUISA 13 2.1 O MUSEU DE ARTE E ALGUMAS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 18 2.2 MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE NITERÓI 23 2.3 O MAC E AS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÕES EM ARTE 27 3 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PROJETO ARTE EM AÇÃO AMBIENTAL 37 3.1 FINANCIAMENTO DO PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO SOLIDÁRIA 41 1.0 À ESPERA DO BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL 45 2.0 RECONHECIMENTO E REESTRUTURAÇÃO 50 3.0 A IDENTIDADE INSTITUCIONAL DO PROJETO 53 4 OS JOVENS E SUA RELAÇÃO COM O PROJETO 58 4.1 ESTIGMA: UMA RELAÇÃO ESTABELECIDOS E OUTSIDERS 64 4.2 CIVILIZAÇÃO DOS COSTUMES 70 4.3 ALGUMAS DIMENSÕES DE PRESTÍGIO QUE O PROJETO 74

E SUA RELAÇÃO COM O MUSEU IMPLICAM 4.4 LINGUAGEM E IDENTIDADE 83 5 CONCLUSÕES 88 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 93 7 ANEXOS 96

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1

“A procura de critérios ‘objetivos’ de identidade ‘regional’ ou ‘étnica’

não deve fazer esquecer que, na prática social, estes critérios são

objetos de representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e de

apreciação, de conhecimento e reconhecimento em que os agentes

investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representações

objetais, em coisas ou em atos, estratégias interessadas de manipulação

simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os

outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores”.

(Bourdieu; 2000: 112)

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2

1. INTRODUÇÃO

O tema dessa pesquisa surgiu como desdobramento da investigação sobre os projetos

educativos elaborados no interior de instituições de manipulação, conservação,

divulgação e legitimação cultural no Rio de Janeiro. A proposta inicial consistia em

observar a relação entre as artes plásticas, no âmbito dessas instituições, e a educação

artística formal e não-formal1. A intenção era examinar as ambiguidades e conflitos

encontrados entre essas duas tradições de conhecimento2: artes plásticas enquanto um

campo relativamente autônomo e a socialização do conhecimento em artes através de

uma educação artística que trabalha dentro de uma concepção de educação estética, não

tendo como finalidade a formação de artistas plásticos. Implicitamente pretendia-se

analisar a relação, muitas vezes, contraditória, entre a espontaneidade e o treinamento, o

formal versus o informal, a construção da experiência versus o “dom”.

O campo considerado para investigação empírica era o dos museus de arte. Instituições

nas quais poderia se encontrar ambas as tradições de conhecimento em relação de

reciprocidade3, apresentando-se, portanto, como campo privilegiado para se perceber as

relações de poder no interior das quais se dão os conflitos e manifestam-se as

ambiguidades.

Uma primeira incursão ao campo foi realizada tendo como objetivo investigar o Museu

de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM, considerando a possibilidade de uso desta

instituição como campo de pesquisa. Imaginando integrar uma parte da história da

1 Utilizamos a noção de educação não-formal para nos referirmos ao ensino em museus, espaços culturais,

Organizações não-governamentais, associações, igrejas etc. A noção educação não-formal surge como uma tentativa de abranger os processos educativos que não são formais, por não ocorrerem nas escolas, mas também não são informais, por disporem de toda uma estrutura que organiza os processos de ensino-aprendizagem.

2 Barth (1993) define tradições de conhecimento como os fenômenos, baseados em especialistas, que são utilizados para agir no mundo, seja para propósitos defensivos ou agressivos.

3 O museu é uma das instituições através das quais o Estado atualiza a noção de um compromisso com a educação de seus cidadãos. Existe uma idéia de missão civilizatória (cf. Duncan, 1995.) implícita nas instituições museais cuja ideologia remete à sua origem, no século XVIII, como instituição cunhada para corroborar e disseminar os ideais civilizadores. As divisões e departamentos de educação servem a esse ideal, cumprindo o papel de mediadores entre a instituição e os conceitos e noções internas ao campo da arte que fundamentam sua práxis e o público. Por sua vez, os museus constituem importante espaço de exploração, visualização e questionamento dos conceitos e convenções apresentados pelos professores de arte e os departamentos e divisões de educação apresentam-se como mediadores entre as escolas e a instituição museal.

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3

educação artística em museus no processo de pesquisa, o MAM parecia uma opção

interessante como campo de observação, haja vista a história dessa instituição.

Entre o final da década de 50 e início da década de 70 o MAM ofereceu cursos em

diversas áreas da produção e discussão artísticas para diversos tipos de público. Além de

cursos para crianças, a instituição teve, entre outras formas de atuação, participação

relevante na formação de grande parte da elite artística do Rio de janeiro. Entretanto,

após uma entrevista com a responsável pelos projetos educativos, a possibilidade de

efetivar uma pesquisa dentro dessa instituição mostrou-se inviável4.

A segunda opção vislumbrada como campo de pesquisa era o Museu de Arte

Contemporânea de Niterói – MAC. Formada em educação artística, eu havia trabalhado

nessa instituição em duas ocasiões diferentes. A primeira como estagiária da divisão de

educação, em 1998, e a segunda ministrando uma oficina informal5 de introdução à

linguagem gráfica em um projeto de intervenção denominado Arte em Ação Ambiental –

AAA, em 1999.

Após contactar o diretor da divisão de educação do MAC, questionando sobre a

possibilidade de realizar a pesquisa no interior daquela instituição, obtive, ao mesmo

tempo, uma resposta afirmativa e um convite para participar de uma reunião sobre um

novo projeto que estava sendo gestado.

A reunião aconteceu em um restaurante do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2001 e tinha

como pauta discutir a viabilidade de um projeto que articulasse diversos projetos

culturais, já em andamento, e que vinculasse esses projetos a duas instituições de

preservação e divulgação cultural específicas, o MAC e o Centro de Artes Hélio Oiticica.

Participaram dessa reunião, além do diretor da divisão de educação do MAC e eu, uma

4 A viabilização de uma pesquisa depende, em grande parte, das relações que o pesquisador mantém no

interior da estrutura de relações que conformam o campo a ser pesquisado. A recusa da diretora de Projetos Educativos do MAM em apoiar uma pesquisa dentro da instituição em que ela trabalha, realizada por uma pesquisadora que ela não conhece, pode, em grande medida, estar referida ao temor de ver decisões subjetivas serem analisadas sob uma ótica que ela desconhece.

5 Informal por não fazer parte oficial do projeto AAA, não ter horário definido, acontecendo esporadicamente dentro dos horários disponíveis, tendo sido inciada dois meses depois do início do projeto e terminado antes do fim desse.

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4

das responsáveis pelo projeto AfroReage, em Vigário Geral, uma psicóloga e uma

arquiteta6.

Nessa reunião, a responsável pelo projeto AfroReage colocou a “construção de

identidades” como o eixo central do projeto, “com vistas a uma melhoria das relações

do sujeito consigo mesmo, com a comunidade e com a sociedade mais ampla”. Sua

preocupação estava em encontrar uma forma de fazer as pessoas que participavam das

atividades compreenderem os objetivos mais abstratos do projeto: “identidade e

cidadania”.

Havia nessa colocação uma preocupação em passar a noção de que o AfroReage não é

somente um projeto de formação de músicos: “como fazê-los compreender que ser

convidado para tocar no Rock in Rio é pequeno em vista do que o projeto ambiciona e do

que eles podem obter, se essa conquista tem um caráter, muitas vezes, tão abstrato? O

AfroReage não é um fim, mas um meio. É processo, e não produto.” E então, “o que

propor para alguém que não vai ser artista?”

A questão da identidade surgia como uma linguagem para a luta política, uma moeda de

troca na justificativa dos dois projetos de intervenção, AfroReage e AAA, que não tinham

como finalidade oferecer aos jovens7 uma formação profissional em artes. As artes,

música lá e aqui artes plásticas, são os meios através dos quais os projetos propõem-se a

contribuir na construção dessas identidades sociais, sem entretanto, propor-se a formar

artistas plásticos e músicos.

A formação em educação artística da pesquisadora alimentava desde a graduação a

curiosidade em relação às artes plásticas como tema de pesquisa. O interesse pela questão

da construção de identidade surgiu como uma tentativa de desvendar os processos sociais

6 A pesquisa de mestrado dessa pessoa, à qual não tive acesso, esteve relacionada ao projeto das lonas

culturais. 7 A designação “jovem” foi adotada para referir-se aos participantes do projeto. O termo foi acionado como

categoria no discurso de todos os envolvidos com a implementação desse e de outros projetos de intervenção que atuavam na área ou estavam de alguma forma relacionados ao AAA, geralmente denotando um sentido político/comercial de pessoas autorizadas a participar, público alvo. “Jovem”, portanto, é parte constitutiva da identidade coletiva desses grupos, participando de uma hierarquia social que define um lugar na estrutura das relações de poder da malha social. Considerando que as posições são sempre relativas e devem ser consideradas à luz das outras posições na estrutura social, podemos perceber como essa categoria foi utilizada para denotar um determinado privilégio em relação a outras categorias excluídas de participar dos projetos oferecidos.

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5

nos quais as artes, no caso visuais, inscrevem-se dentro de estratégias de alocação e

distribuição de valor, no processo de construção de identidades.

O objeto empírico da pesquisa, portanto, voltava-se para o projeto de intervenção Arte

em Ação Ambiental – AAA, a partir do qual pretendia-se observar o processo de

construção de identidades dos jovens do Morro do Palácio. O projeto foi elaborado e

implementado pela divisão de educação do MAC, em colaboração com um grupo de

profissionais externos ao quadro de funcionários da instituição.

Entretanto, a escolha de um projeto cuja origem encontrava-se no interior de uma

instituição museal impunha algumas questões específicas. Sendo uma instituição situada

temporal e socialmente, a história particular daquele museu, assim como a história social

das instituições museais, deveriam ser levadas em consideração na intenção de localizá-la

no interior do campo intelectual8. Além disso, é preciso considerar o fato de que um

museu de arte, enquanto instituição de divulgação cultural, trabalha com a noção de arte

oficial. Nesse sentido, seria possível pensar o projeto de intervenção daí originário,

trabalhando com a idéia de arte enquanto expressão ou processo criativo? Ou a arte seria

apenas mais uma forma de “disciplinar” o grupo no qual pretendia intervir? Qual o papel

do museu de arte na construção da identidade das classes populares9? Em que medida

seria possível detectar ambigüidades já reconhecidas em outros projetos de intervenção10?

A intenção, então, estaria centrada nos processos de interação que levariam ao

estabelecimento de significados, contribuindo para a construção da identidade dos jovens

com os quais o projeto AAA trabalha, tendo em vista as artes, principalmente visuais,

como o meio utilizado para essa intervenção. Portanto, o tema inicialmente cogitado, isto

é, a relação entre artes plásticas e educação artística ficava restrito à dimensão de pano de

fundo, já que o projeto utilizava a educação artística, sendo ele mesmo originário de uma

instituição de conservação, divulgação e legitimação do campo das artes plásticas.

8 A noção de campo é definida por Bourdieu (2000: 29) como as “relações de força entre as posições

sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do poder”

9 Ver a discussão sobre a categoria “classes populares” em Duarte, 1986 10 Duarte (1993) define “classes populares” como os grupos componentes das sociedades modernas que se

caracterizam por portar valores e princípios culturais próprios e diferentes dos da cultura dominante, erudita ou oficial dessas sociedades. Para um breve resumo da noção de cultura no autor ver nota 152.

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6

1.1 O CAMPO E A PESQUISADORA

O campo da pesquisa não é uma entidade concreta, mas tampouco completamente

abstrata. Trata-se de um espaço de relações sociais no qual era preciso inserir-se,

estabelecendo novas relações e modificando as relações pré-existentes. Portanto, a

própria pesquisadora poderia trazer novos elementos para esse feixe de relações que

acarretaria uma reorganização dos significados anteriores e por isso deveria também ser

considerado ao longo da pesquisa. Torna-se importante então analisar as propriedades de

posição da pesquisadora dentro desse universo, assim como a forma utilizada para

conduzir a pesquisa e os padrões de relacionamento adotados com as pessoas inseridas

nesse feixe de relações que define e delimita o campo pesquisado.

Na intenção de contribuir para a localização da pesquisadora no interior da pesquisa é

importante ressaltar que minha inserção no campo, assim como a coleta de dados foram

empreendidas a partir de diferentes dimensões: como educadora artística, no estágio na

divisão de educação, em 1998 e na participação no projeto AAA, em 99 e como

pesquisadora em antropologia social, entre os meses de fevereiro de 2001 a janeiro de

2002. Destarte, meu relacionamento com as pessoas envolvidas no projeto foi

estabelecido em interações que extrapolaram o espaço/tempo da pesquisa, envolvendo

diferentes dimensões e níveis de proximidade, permitindo, muitas vezes posteriormente, a

reflexão e delimitação do objeto de estudo11.

A coleta de dados para a pesquisa foi efetuada de acordo com essas diferentes dimensões

e as constantes mediações que elas engendraram. Os métodos de coleta de dados

11 Velho (1980, 1981) discute as dificuldades em pesquisar o familiar. A relativização da origem do

antropólogo em relação ao seu campo de pesquisa e os efeitos da pesquisa, tanto sobre seu objeto de investigação empírica, quanto sobre o próprio pesquisador são importantes aspectos a serem considerados na antropologia urbana.

Ao trabalhar com espaços sociais familiares, o antropólogo precisa fazer um esforço para transcender suas limitações de origem, relativizando os discursos “nativos” para apreender os sistemas de classificação subjacentes à situação observada sob um ponto de vista diferenciado. Entretanto, a despeito de qualquer distanciamento e relativização, a subjetividade do pesquisador estará sempre presente na interpretação dos dados. Tendo sido bem sucedido nesta tarefa, é preciso ainda lidar – já que não houve um deslocamento físico do espaço social de convivência do pesquisador – com os efeitos da pesquisa tanto para o grupo pesquisado, quanto para seu próprio trabalho futuro, na medida em que o grupo ou situação pesquisada é partícipe de um campo que, na maioria das vezes, constitui a área de interesse específica daquele pesquisador.

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poderiam ser classificados como abordagens que variaram entre a observação-

participante e a participação-observante12.

As formas de participação no projeto, assim como minha trajetória acadêmica – da

graduação em educação artística, cursada em uma instituição particular, ao mestrado em

antropologia social cursado no Museu Nacional –, engendraram significados diversos que

tiveram reflexo direto na forma como fui recebida pelos diversos grupos envolvidos no

projeto (o quadro de pessoas envolvidas na articulação e implementação do projeto, os

jovens participantes e os funcionários do MAC13). Assim, a identidade da pesquisadora é

um elemento a ser considerado no jogo de identidades que constitui o próprio objeto da

pesquisa.

O campo de pesquisa poderia ser dividido em dois processos diferentes, mas

intrinsecamente ligados, de estabelecimento de relações e construção de identidade: um

processo envolveu a relação com os quadros do projeto e os funcionários do museu e

outro refere-se ao grupo de jovens participantes do projeto AAA. Deve-se enfatizar que

apesar de constituírem processos específicos, com ritmos e abordagens diferentes, ambos

estiveram, continua e indissociavelmente, relacionados.

Junto aos profissionais ligados ao museu a relação originou-se com o estágio de oito

meses na divisão de educação, três anos antes do início da pesquisa14. Durante esse

período, o espaço de atuação profissional foi construído diretamente junto ao pessoal da

divisão de educação, não havendo quase contato com as outras divisões do museu e

muito pouco com o próprio diretor da divisão de educação. A atuação da estagiária

restringiu-se a compreender e reproduzir as formas de abordagem educativa da arte

contemporânea empreendidas pela divisão. A relação, assim estabelecida, não

possibilitou a conquista de um espaço para a construção de uma identidade distinta

daquela de estudante de uma instituição de ensino com pouco prestígio social. Portanto, a

12 Em alguns momentos predominava uma atitude observadora e em outros uma atitude participativa. 13 Os nomes de todos os envolvidos na pesquisa foram omitidos ou modificados. Entretanto, por se entender

os agentes como mediadores das relações sociais, que, apesar de limitados em suas ações pela posição que ocupam na estrutura institucional, influenciam os próprios papéis sociais, definidos por essa estrutura, de acordo com seus interesses, procurou-se considera-los, não como categorias, relativas a sujeitos coletivos, mas como agentes circunstanciados, podendo-se nomeá-los.

14 Essa iniciativa havia partido exclusivamente da então graduanda em educação artística e não constituía um estágio oficial articulado entre instituições.

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8

identidade atribuída à então estagiária coincidia com uma identidade coletiva e, em certa

medida, estigmatizada15.

A oficina de introdução à linguagem gráfica, ministrada como parte do projeto AAA,

após o término da graduação em Educação Artística, como anteriormente mencionado,

também não integrava o projeto oficial. Entretanto, teve importantes contribuições na

construção de uma reputação individual junto aos quadros do projeto. A participação nas

reuniões do grupo, assim como a dedicação à oficina, possibilitou o estabelecimento de

um contato direto entre o grupo e a educadora, estreitando relações.

Entretanto, a não-oficialidade da oficina fazia com que lhe fosse reservado um espaço

que não estava articulado com os outros eventos do projeto, o que muitas vezes concorria

para que o espaço/tempo dessa oficina coincidisse com outras atividades. A

informalidade da oficina, assim como o tempo exíguo de minha participação no projeto,

em comparação com a dedicação dos outros profissionais16, dificultou a construção de

uma relação de prestígio junto aos jovens17.

Durante o período de atuação como educadora no projeto AAA houve também a

possibilidade de estreitar relações com o diretor da Divisão de Educação na realização de

um trabalho no Centro Cultural Banco do Brasil. O término dessas relações de trabalho,

no final do ano 1999, coincidiu com a mudança no rumo profissional que me levou ao

ingresso no mestrado em antropologia social e, mais tarde, na escolha da instituição como

espaço de pesquisa. A possibilidade de acesso ao MAC como campo de observação para

pesquisa foi um desdobramento do processo de construção dessas relações.

15 A faculdade na qual efetuei meus estudos de graduação não é uma instituição prestigiada no meio

acadêmico, nem artístico. Havia, entretanto, um processo de auto-atribuição, no qual, durante o período do estágio na Divisão de Educação, eu mesma me atribuía uma identidade de mera aluna de graduação em educação artística, disciplina que ocupa uma posição hierarquicamente inferior na estrutura de disciplinas acadêmicas, de uma faculdade relativamente sem prestígio. Quando voltei para ministrar a oficina de introdução à programação visual, eu já havia concluído a graduação, isto é, já era uma profissional devidamente instituída pela posse de um diploma. Essa modificação de estatuto contribuiu para uma transformação em minha auto-representação que, por sua vez, contribuiu para a modificação na minha relação com o diretor da Divisão de Educação do MAC e, consequentemente, com os outros funcionários da instituição.

16 A participação restringia-se ao contato de uma vez por semana com os jovens e uma vez por semana com o grupo de trabalho durante a reunião semanal, enquanto a grande parte dos outros profissionais estava em contato com os jovens e entre si, pelo menos, três a quatro dias por semana.

17 Essa dificuldade podia ser percebida pela forma distante com que fui tratada pela grande maioria do grupo e pelas brincadeiras, por parte, principalmente, daquele que parecia ser o líder do grupo, talvez como tentativa de aproximação que, no entanto, não se efetivou naquele momento.

Page 22: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

9

O início da pesquisa propriamente dita deu-se com a reunião em fevereiro de 2001. Nessa

reunião a postura assumida, já então como pesquisadora, restringiu-se quase

exclusivamente a observar e anotar o que estava sendo discutido e como se encaminhava

a discussão. Procurou-se estabelecer uma distância entre as atuações do passado, como

educadora, e do presente, como pesquisadora, privilegiando a observação em detrimento

da participação.

Na subsequente presença às reuniões do grupo de trabalho do projeto, a atitude adotada

foi novamente de observação, o que causou certa estranheza, haja vista o contraste entre

minha postura como pesquisadora e a participação durante a atuação como educadora18. A

partir da observação das reações suscitadas pelo comportamento adotado, uma nova

postura foi elaborada, a participação-observante.

Ao adotar uma conduta participativa, encontrei um lugar a partir do qual poderia

continuar a fazer observações, sem causar desconforto no grupo. A atitude de observação,

que se pretendia mais isenta, acabou causando uma interferência que podia ser percebida

pela preocupação das pessoas com o que estava sendo dito na reunião e anotado por mim.

O retorno à participação, mesmo que limitada, remetia a pesquisadora ao seu lugar

anterior de educadora, parceira do projeto e dos ideais em torno dos quais ele havia sido

elaborado. A partir daí estabeleceu-se uma relação na qual, mesmo não sendo chamada

diretamente a emitir opiniões, quando o assunto estava no âmbito de meus

conhecimentos, esses eram expressados de forma sucinta.

Junto ao grupo dos jovens a relação estabeleceu-se de forma diferente. Já então como

parte da pesquisa, apesar disso não ter sido explicitado para os jovens naquele momento,

surgiu o interesse em conhecer mais sobre o contexto social no qual o projeto estava

interferindo. Durante a observação de uma das atividades do projeto, foi levantada a

hipótese de ao menos um dos três jovens presentes me acompanharem em um passeio

para conhecer o lugar onde vivem: o Morro do Palácio. Os três pareceram receosos e,

coincidentemente ou não, todos tinham compromissos e não podiam fazê-lo no tempo

sugerido.

18 Há que se notar que na primeira reunião apenas um membro do grupo de trabalho do projeto encontrava-

se presente.

Page 23: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

10

Uma semana depois, houve a apresentação de uma peça de teatro na Praia de Icaraí como

parte de um projeto de intervenção do Estado do Rio de Janeiro, Jovens pela Paz, no qual

participam alguns dos rapazes do projeto AAA. A ida ao evento apresentava-se,

principalmente como uma oportunidade de entrar em contato com aquele que parecia ser

um dos líderes do grupo, Adauto. A peça19 encenada havia sido elaborada e dirigida por

ele.

A presença de alguém especialmente para assistir à peça causou certa comoção entre os

jovens. O futebol foi interrompido momentaneamente, as pessoas que deveriam encenar a

peça foram convocadas e formou-se um grupo de “atores”. Entretanto como seria

necessário aguardar a monitora do grupo e o supervisor geral do projeto para dar início à

apresentação, o grupo dispersou-se e o futebol recomeçou.

Em determinado momento, foi mencionado para o diretor da peça o interesse em

conhecer o morro. Questionando sobre a possibilidade de fazer a visita sozinha, Adauto

imediatamente colocou o grupo à disposição para me acompanhar, marcando

imediatamente o dia e a hora da visita. A presença dos outros componentes do grupo foi

confirmada através de uma troca de olhares com João que estava ao seu lado.

No dia da visita, compareceram cinco jovens, além de Adauto, para “dar um rolé na

comunidade”. A essa altura, o motivo do interesse já havia sido sumariamente

esclarecido. Ao que parece, os outros três rapazes além de João foram convocados por

Adauto sem muita explicação, pois alguns sequer sabiam o que estavam fazendo ali. Daí

para frente a proximidade com os jovens cresceu, podendo ser percebida claramente em

convites para participar de atividades e aproximações para conversas amenas.

O fato de estar fazendo uma pesquisa sobre o morro foi decisivo para essa aproximação.

Isso ficou evidente no interesse explícito em acompanhar minhas incursões pelo morro,

além do cuidado na fala e no comportamento de todos, a pedido discreto de Adauto, mas

que pode ser percebido em diversas ocasiões.

A cada nova relação que se estabelecia, todas as outras se modificavam. A proximidade

junto ao grupo de profissionais do projeto refletiu diretamente na minha relação com

funcionários de outras divisões do museu. A relação com Adauto permitiu uma

19 Discutiremos o conteúdo da peça mais adiante, devido à sua relevância no contexto da pesquisa.

Page 24: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

11

aproximação maior dos outros jovens do projeto, assim como minha relação com o grupo

do projeto, provavelmente refletiu na relação do grupo com outras pessoas do morro.

O estabelecimento de novas relações modificava a identidade atribuída às pessoas

envolvidas na relação, o que modificava, por sua vez, as relações com outros grupos e/ou

indivíduos, modificando também a identidade desses. Assim minha inserção no campo

foi, em si, um processo de construção de identidade e reputação junto aos indivíduos e

grupos, de alguma forma, envolvidos no projeto.

Page 25: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

12

2. A INSTITUIÇÃO NO CONTEXTO DA PESQUISA

A partir do século XVII, houve uma crescente institucionalização dos valores científicos

através da organização de um mercado simbólico, em torno dos cientistas, dos objetos

científicos e de uma linguagem científica, que “sustentavam – mesmo que não

linearmente – uma continuada progressão das inovações tecnológicas e das expectativas

de esclarecimento dos mistérios do mundo e de superação dos limites tradicionais da

intervenção sobre a natureza” (Duarte, 2001: 2). Os conhecimentos históricos e

científicos e os pressupostos ideológicos que elaboraram técnicas de investigação e

classificação configuraram importantes mecanismos de atribuição de valor. Esses

mecanismos traduziam os objetos em dinheiro e significado, sendo especialmente

interessantes para os grupos voltados para o crescimento da prática de colecionamento.

As coleções eram, em grande medida, fruto de novos grupos sociais e de sua busca pelo

domínio dos conhecimentos que se instituíam. Os museus que abrigaram essas coleções

foram essenciais no processo de constituição dos Estados-nações.

No processo de construção da identidade dos domínios coloniais três instituições foram

fundamentais: o censo, o mapa e o museu. Essas instituições “regulavam a natureza do

ser humano, a geografia de seus domínios e a legitimidade de sua ancestralidade”

(Anderson 1991: 164).

Se definirmos a nação como uma comunidade política imaginada, implicitamente

limitada e soberana, estaremos enfatizando a forma na qual a comunidade é ou não

imaginada, eliminando, assim, a questão da autenticidade ou falsidade (Anderson, 1991:

14). A memória, no que deveria ser preservado, mas também no que precisava ser

esquecido, foi importante mecanismo nesse processo de constituição das nações

modernas (Renan, 1990). Os museus, enquanto instituições de memória, estavam

preocupados com a preservação de um passado, muitas vezes forjado, a partir da idéia de

uma identidade coletiva.

O censo classificava arbitrariamente, utilizando categorias nativas relacionadas à sua

importância econômica, política ou ao espaço geográfico ocupado. Na medida em que o

Estado colonial multiplicou seu tamanho e funções, a topografia demográfica imaginada

pelos censos criou raízes sociais e institucionais. Instituições educativas, políticas de

Page 26: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

13

imigração, burocracias jurídicas e de saúde pública foram criadas com base nas

informações étnico-raciais construídas pelos censos. Essas instituições criaram hábitos de

trânsito que, aos poucos, “deram realidade àquela vida social fantasiada pelo Estado

nascente” (Anderson, 1991: 169). A representação ideológica da natureza dessas

sociedades permitiu elaborar um discurso legitimador de uma missão civilizadora e a

história dessas nações foi concretizada através de um processo de construção de memória

que redimensionava o legado dos povos.

A introdução dos mapas geográficos, por volta de 1870, possibilitou a sensação de

materialidade territorial ao delimitar espaços concretos através de fronteiras abstratas.

Esses mapas forneciam informações sobre habitantes, ruínas, templos etc., localizando

geograficamente as informações do censo e assim criando uma malha que permitia uma

“visão” do espaço e dos grupos sociais dominados. A idéia de Estado-nação como um

território espacialmente definido possibilitava também a utilização da “natureza

nacional” como um espaço de “simbolização natural” na construção da identidade.

(Duarte, 2001: 6).

Os mapas históricos, por sua vez, encenavam uma manipulação da história dos Estados

que se constituíam, desconsiderando, muitas vezes, a ligação dessa constituição com o

domínio colonial europeu. Ao ignorar essa relação através de um documento oficial,

criava-se a idéia da realidade do passado daquele território recentemente definido,

desvinculando-o de seu processo histórico de constituição. Essa manipulação histórica

apresentou a nação como a incorporação natural da história, do território e da sociedade.

As colônias foram, assim, representadas por uma série de fatos e eventos, cujos signos de

representação colonial foram, muitos deles, produzidos na metrópole e trazidos para as

colônias20.

Historicamente, o surgimento dos gabinetes de curiosidade, embriões dos museus,

constituíram-se como uma forma de classificar os mistérios do mundo representados pelo

20 No Brasil essa manipulação histórica apresentou-se, também, através de uma arte oficial que rompia com

as tradições artísticas desenvolvidas durante o período colonial, instaurando uma nova iconografia do poder que estabelecia relações diretas entre o processo político-social francês e o brasileiro. O neoclassicismo e sua simbologia, assim como os critérios de julgamento da produção artística implementados pela missão francesa representaram um processo de monopolização da produção imagética oficial, assim como a instauração de um sistema de arte altamente excludente no recém império. Cf. Schwarcs. 2000; Simioni. 2001.

Page 27: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

14

“outro”, o desconhecido, o antigo ou o original. Os museus tentavam criar uma visão

hegemônica de identidade através da manipulação dos significados culturais, na tentativa

de fortalecer os domínios coloniais. Esse jogo de poder não passava pela violência

explícita, mas principalmente por negociações em forma de técnicas e dispositivos. Nesse

sentido, o museu é, desde sua origem, uma instituição profundamente política, engajada

em um mercado de trocas simbólicas de dominação e legitimação de identidades.

A classificação dos grupos que uma coleção engendra é uma forma de objetificar e

manipular representações sociais, sendo um dispositivo de poder que define e legitima

identidades, servindo, portanto, a diferentes grupos como forma de instituição de

dimensões de poder. No domínio colonial essa prática servia inclusive aos propósitos do

controle social.

Vários atores estão envolvidos na organização dos museus e formação de coleções. Os

objetivos dessas instituições são, em grande parte, definidos pela interação entre os

profissionais que aí atuam e suas expectativas mútuas, tendo como parâmetro de atuação

a hierarquia de papéis previamente definidos e a função da instituição como uma

instituição de preservação, difusão e transformação de memória.

Se levarmos em consideração que as identidades são resultado de lutas de poder (Ortiz,

1985) – as coleções museográficas representam a identidade dos povos através de objetos

científicos, etnográficos ou artísticos –, podemos perceber as identidades imaginadas para

as populações coloniais entre os séculos XVI a XIX como significados definidos nas

lutas de poder e disputa por legitimidade21 entre as disciplinas científicas que se

formavam – história, geografia, antropologia, lingüística –, tanto quanto na necessidade

das metrópoles em definir seus domínios. Portanto, as identidades dos povos colonizados

foram, também, resultado da disputa pela definição da identidade profissional dos saberes

científicos ainda em processo de institucionalização.

O novo mercado de nacionalidades que então se formava criava a necessidade de objetos

que pudessem ser utilizados como bens simbólicos na troca de mercadorias, status e

21 A noção de legitimidade refere-se à uma pretensão de universalidade de reconhecimento na qual todo

indivíduo ou manifestação, querendo ou não, admitindo ou não, está inserido em um sistema de regras que permite qualifica-lo e hierarquiza-lo do ponto de vista da cultura (cf. Bourdieu 1968: 128). O campo artístico é delimitado por um conjunto específico de conceitos artísticos, temas, técnicas, agentes e agências considerados legítimos, isto é, reconhecidos socialmente.

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15

legitimidades22. Assim, a construção das identidades nacionais fez parte de um processo

de determinação, codificação, controle e representação social, no qual as diferentes

nações definiram suas identidades mutuamente. As artes foram importante mecanismo de

construção das representações sociais que serviram como instância de aferição do valor

dos objetos que veiculavam nesse mercado23.

Na segunda metade do século XIX e no começo do XX, as exposições mundiais foram

um locus privilegiado de construção de representações sobre as nações que surgiam,

assim como um lugar de proposição de gosto e definição de valores, a partir da

perspectiva eurocêntrica. O Brasil, por exemplo, foi representado no exterior pelos

objetos que expôs ou deixou de expor.

A segunda metade do século XIX foi marcada pela antropologia de gabinete, isto é, pelos

antropólogos que trabalhavam com as fontes e os objetos adquiridos pelos viajantes e

missionários. O resultado desses trabalhos orientou as montagens museológicas então. A

classificação passou a ser aplicada à uma linha evolutiva cronológica e os povos foram

representados nos museus de forma tipológica – os objetos eram dispostos de acordo com

sua utilidade em uma ordem evolutiva, dos mais simples para os mais complexos, sem

levar em consideração sua origem. Assim como os objetos, também as sociedades

passaram a ser classificadas em uma linha evolutiva24. A consagração dos estados-nação

22 Como o patrimônio nacional faz parte de um mercado mundial de bens simbólicos, a construção de novos

patrimônios – históricos, culturais, arquitetônicos etc. – redimensiona a inserção da nação nesse mercado. Nesse sentido, a escolha de grandes arquitetos para a idealização de projetos arquitetônicos de museus é uma estratégia que amplia o valor relativo do patrimônio ao aliar o significado da instituição à manifestação artística mais diretamente relacionada ao poder do Estado, a arquitetura.

23 Beluzzo discorre a respeito da alegoria dos quatro continentes: um gênero de pintura que foi se construindo ao longo dos séculos XVI e XVII e que interpretava alegoricamente o mundo recém conhecido. Segundo a autora,”o bom selvagem e o canibal, a visão paradisíaca e a visão infernal são efetivamente as metáforas mais freqüentes reproduzidas pelos europeus sobre o homem e a terra americana ao longo dos séculos XVI e XVII. O inferno é o título de uma pintura quinhentista portuguesa, na qual o índio aparece inscrito no universo da religião cristã. A tela pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa e é de autoria desconhecida, datando, provavelmente, da primeira metade do século XVI. A imagem do demônio personificada no índio brasileiro é uma operação simbólica condizente com o projeto missionário colonizador. (1998; 71)”

24 Essa teoria serviu como fundamento para uma teoria científica que estigmatizava categorias sociais, organizando-as hierarquicamente como “primitivas” ou “civilizadas”. Com a legitimação da posição hegemônica do “velho mundo” através da teoria evolucionista, “a superioridade da civilização européia tornava-se assim decorrente das leis naturais que orientariam a história dos povos” (Ortiz, 1985: 15). A teoria evolucionista foi incorporada à estratégia de planejamento da nação brasileira nas últimas décadas do séc. XIX: “um Brasil moderno, branqueado através do amplo incentivo à imigração européia” (Seyferth, 1995:179). Essa concepção serviu como justificativa do domínio de uma elite branca,

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16

fez com que, no final do século XIX e início do XX, os museus se multiplicassem como

instituição privilegiada para fornecer uma leitura de si e do “outro”.

No século XX, o contexto social foi incorporado às exposições como forma de

demonstrar a relatividade dos fenômenos, já que causas similares não necessariamente

produzem efeitos similares e causas diferentes podem ainda produzir efeitos similares.

Esse deslocamento foi possibilitado pelo surgimento de novas abordagens que pensavam

as culturas como resultado de conjuntos de fenômenos demarcadores de identidades. A

ênfase deslocou-se dos objetos para os fatos sociais e os processos socioculturais,

inseridos em seus contextos, mas considerados da perspectiva de quem os analisa.

“Com o fim do colonialismo político, os antropólogos traduziram seu passado colonial

em história e em um sítio para exploração crítica e epistemológica de sua própria

construção de conhecimento” (Cohn, 1996: 12), o que possibilitou pensar o processo de

construção das identidades dos povos colonizados25.

Os museus passaram a ser considerados categorias históricas, culturalmente relativas,

passíveis de serem influenciadas por disputas políticas, portanto, sujeitas a

transformações intelectuais e institucionais. Essa modificação no estatuto da instituição

permitiu perceber as exposições não como verdades inquestionáveis, mas como resultado

de classificações que estabelecem uma representação da realidade de acordo com as

disputas de poder em questão (a nação, o antropólogo, a direção do museu, o acervo,

instituição financiadora, o momento político no qual se encontram etc.). Como

participantes desse processo, os museus não apresentam ingenuamente seus acervos, mas

possuem uma linha política e ideológica subjacente.

transformando a raça em um instrumento explicativo da história e imaginando a estratificação social como resultado das diferenças raciais (Seyferth, 1995).

25 Em A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil, Regina Abreu partiu da doação de uma coleção ao Museu Histórico Nacional, em 1936, para analisar os processos culturais, simbólicos e políticos implícitos na aceitação, assim como na forma da doação e exposição dos objetos. A autora argumenta que os intelectuais do período acreditavam que a “coesão nacional de um povo podia ser medida pela intensidade de culto a datas históricas e vultos notáveis” (Abreu, 1996: 160). Abreu elabora sua argumentação, mostrando como o museu é um dispositivo de construção de versões específicas da história de um país.

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17

2.1 O MUSEU DE ARTE E ALGUMAS ESPECIFICIDADES NACIONAIS

O museu de arte tem origem no mesmo contexto dos museus de ciências e história. A

partir do século XVIII, no bojo do processo de separação entre ciência e religião, surge a

estética enquanto disciplina. Os museus de arte tiveram influência decisiva na mudança

de valores estéticos ao possibilitar o acesso a grupos sociais com valores diversificados a

coleções, antes reservadas a grupos restritos, portadores de valores relativamente

homogêneos.

O museu foi uma das instituições através das quais o Estado manipulava representações

sociais, instituindo valores e normas de comportamento e conduta relacionados às

ideologias vigentes. Duncan argumenta a respeito do caráter ritualístico dos museus de

arte que, através da experiência estética, apresentavam os valores e crenças que serviram,

no século XVIII, “às necessidades ideológicas do emergente estado-nação burguês,

proporcionando um novo tipo de ritual cívico” (1995: 2).

A arte foi, em relação aos domínios coloniais, um dos mecanismos de construção de

representações sociais, contribuindo para forjar identidades nas quais o caráter

“civilizado” do europeu contrapunha-se ao caráter “primitivo” dos povos dominados. A

classificação dos movimentos artísticos europeus tem sido a referência quase exclusiva a

partir da qual os movimentos estéticos brasileiros, principalmente até o século XIX e

princípio do XX, têm sido considerados como anacrônicos e enfraquecidos26.

Parte do processo de simbolização das identidades nacionais apresentava a arte culta, no

século XIX, como a arte neoclássica, critério a partir do qual a identidade artística

brasileira viria a ser aferida com a vinda da missão francesa para o Rio de Janeiro, em

1816. Com a criação de instâncias de legitimação – Escola Imperial de Belas Artes,

Salões oficiais, prêmios de viagem – instituiu-se um monopólio da produção imagética

oficial que desconsiderava todas as formas de manifestações artísticas que não

26 A classificação de qualquer manifestação artística como anacrônica é possível apenas se a análise for

realizada exclusivamente a partir de uma perspectiva interna ao campo artístico central, tido como único legítimo, desconsiderando-se aspectos importantes como o contexto social de produção da manifestação, o contexto histórico particular e geral no qual se insere, os modos de ver que a produzem, os usos sociais a que se destina etc. Considerando-se o fato de que arte é linguagem, expressão de sentimentos e pensamentos, o anacronismo não é uma qualificação apropriada para definir uma manifestação artística.

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18

partilhassem dos requisitos neoclássicos de composição e temática. A instituição da

Academia Imperial de Belas Artes, mais tarde Escola Nacional de Belas Artes, impedia

também o acesso de grupos sociais diversos à educação oficial, o que definia

participações diferenciadas para os diversos grupos da produção artística27.

No eixo Rio-São Paulo, a partir da década de 20, numa tentativa de romper com o

monopólio da produção artística legítima e instituir uma arte que fosse “verdadeiramente

brasileira”, as manifestações artísticas procuraram definir suas identidades em oposição

às manifestações européias. Essa mudança de foco, entretanto, mantinha a posição central

da arte oficial européia como critério em relação ao qual se definia a “identidade artística

brasileira”28. Esse movimento despertou o interesse comercial para as gerações anteriores

e suas pinturas históricas, mas a “arte moderna” brasileira somente passou a ser objeto de

disputa comercial a partir da década de 70.

Entre o final da Segunda Guerra Mundial e durante a década de 50, com a crise nos

países destruídos pela guerra e a consequente queda de preços, houve facilidade para

aquisição de obras de arte pelos países periféricos. No Brasil, empresários com Assis

Chateaubriand, aproveitaram a oportunidade para constituir as coleções que formariam

alguns dos principais museus de arte moderna brasileiros29.

Esses museus seguiram em grande parte a linha museológica em arte instituída,

principalmente, nos Estados Unidos, voltada especificamente para a exibição dos

movimentos “modernos”. Uma das características desses museus era o abandono de uma

linha expositiva que buscasse as origens da arte, consideradas pela história da arte oficial

como Grécia e Roma30, em prol da exposição de movimentos específicos. As rupturas que

a arte moderna havia efetuado com as tradições clássicas e com o academicismo, assim

como a crescente autonomização do campo artístico, com a expansão dos grupos sociais

relacionados à discussão, divulgação e financiamento de artistas e movimentos contribuiu

27 Cf. SIMIONI. 2001. 28 Tendo a Europa com centro formador de artistas brasileiros – os prêmios de viagem custeavam estágios

em ateliês europeus - , a forma na qual essa ruptura foi forjada assumia novos temas como “brasileiros”, mas adotava como linha estilística movimentos que já se encontravam institucionalizados na Europa: impressionismo, expressionismo, futurismo etc., critério quase exclusivo a partir dos quais as manifestações brasileiras eram classificadas.

29 Os primeiros museus de arte moderna e contemporânea no Brasil foram inaugurados nesse período. 30 Fez parte dessa nova concepção museológica a adoção de uma arquitetura “moderna”, cuja influência não

estava mais referida diretamente à arquitetura clássica, de origem greco-romanos.

Page 32: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

19

para o processo de surgimento dessa nova concepção museológica. O museu de arte

adquiria assim uma característica histórica, não necessariamente de conservação de um

passado, mas principalmente de construção de um presente31.

Essa nova concepção poderia ser interpretada como uma oportunidade dos países

“novos” para marcar a diferença entre uma noção de tradição, representada pela Europa e

os museus históricos, em contraste com uma representação de modernidade. Nesse

sentido, a instituição de museus de arte moderna e contemporânea no Brasil poderia ser

compreendida como a construção de uma representação da nação em processo de

construção – um “país do futuro” –, parte de uma estratégia política de inserção simbólica

do país em uma categoria específica de países “em desenvolvimento”.

Em 1951 a instituição da Bienal de São Paulo, constituiu a mais importante instância de

legitimação para os artistas brasileiros, assim como um eixo de atualização a respeito das

tendências européias e norte-americanas. A partir das décadas de 60 e 70, o campo

artístico contava com a participação da segunda ou terceira gerações de imigrantes

europeus na indústria do gosto, o que contribuía para um esforço de revisão da

representação inferiorizada que essa indústria se auto-atribuía. O regime autoritário desse

período com uma política econômica que favorecia a concentração de riqueza e a relação

dos intelectuais e artistas que tendia a uma oposição ao regime (Durand, 1990), favoreceu

o surgimento de um movimento artístico que questionava os espaços institucionais de

comércio e exibição de arte e uma linguagem que prezava pelo velado, não-revelado. A

arte conceitual brasileira inovou em relação aos movimentos norte-americano e europeu

ao incorporar à sua linguagem o conteúdo político. Pela primeira vez um movimento

artístico brasileiro foi consagrado interna e externamente.

Ao longo das décadas de 80 e 90, o experimentalismo estabeleceu-se como linguagem

dominante, destituindo os materiais e suportes “nobres” como estratégia de consagração.

Diversos artistas brasileiros32 passaram a integrar coleções de museus europeus e norte-

americanos, assim como tiveram retrospectivas em importantes instituições de

legitimação. Nesse mesmo período surgem no Brasil as primeiras versões da

31 Hobsbawm (1984) utiliza a noção de tradição inventada para pensar os processos de legitimação de novos

rituais como mecanismo de instituição de determinados projetos políticos. 32 Cildo Meireles, Lygia Clark e Hélio Oiticica são alguns dos artistas que tiveram suas obras expostas em

retrospectivas individuais no exterior.

Page 33: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

20

reformulação conceitual de museologia em arte que resultou numa nova instituição, o

centro cultural, além da transformação dos museus tradicionais em “shoppings culturais”,

incluindo, além das salas de exposição, restaurantes, lojas, cinemas, salas de teatro e de

concerto, entre outras possibilidades de entretenimento.

No momento em que novas disputas de poder colocaram em jogo noções como

multiculturalismo, transnacionalismo, pluralismo cultural etc., a homogeneidade

identitária representada na origem das instituições museais e, mais especificamente, a

centralidade dos países centrais como fornecedores únicos de nomes e obras consagradas

passou a ser questionada. Apesar de não existir ainda uma leitura da história dos

fenômenos artísticos ocorridos no Brasil que conjugue a perspectiva interna ao campo

artístico à perspectiva externa33, a legitimidade das manifestações eruditas

contemporâneas atingiu na última década dimensões antes não experimentadas. O papel

do museu enquanto preservador da memória através dos objetos artísticos tem sido

discutido e um novo paradigma de museus de arte voltados para processos, que pensem

as obras dos artistas como identidades em constante (trans)formação, tem orientado as

discussões internas ao campo. O Museu de Arte Contemporânea de Niterói, inaugurado

em 1996, tem esse horizonte de discussões como contexto de inserção.

2.2 MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE NITERÓI

Em 1991, com dificuldades para armazenar suas obras, o colecionador de arte João

Sattamini34 ofereceu seu acervo, na forma de comodato, ao município de Niterói35 em

33 Não se questiona a influência dos movimentos europeus e norte-americanos na produção artística no

Brasil e a necessidade de considerar essa influência ao organizar uma pesquisa sobre a história dessa produção. A crítica aqui esboçada refere-se à análise semiológica da produção desse campo apresentada nos compêndios de história da arte no Brasil. A grande maioria desses trabalhos resume-se a elencar nomes e estilos, referidos quase exclusivamente aos movimentos estrangeiros, sem traçar uma relação significativa entre essa produção e os contextos nos quais está inserida. Uma história social da produção artística no Brasil, que conjugasse a análise sócio-antropológica e semiológica, talvez nos permitisse perceber por que determinados estilos serviram de influência em detrimento de outros e quais as especificidades que essas influências adquiriram na produção realizada no Brasil. Uma pesquisa como essa ampliaria a compreensão da produção nacional e suas transformações específicas. Algumas análises desse tipo podem ser encontradas em trabalhos sociológicos, mas pouco desses trabalhos é aproveitado nas pesquisas históricas.

34 Vera Zolberg (1986) discorre sobre as formas pelas quais os colecionadores procuram ganhos simbólicos e materiais ao ter seus trabalhos expostos em instituições públicas de prestígio.

Page 34: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

21

troca de espaço para armazenamento, preservação, divulgação e produção de pesquisas a

respeito da coleção. A intenção inicial era utilizar para tal empreendimento um prédio

que estivesse fora de uso. Entretanto, o prefeito, vislumbrando uma possibilidade de

ampliar o significado da iniciativa, decidiu convidar o arquiteto Oscar Niemeyer para

criar um prédio específico que abrigaria a coleção, um museu de arte contemporânea.

A participação de um arquiteto consagrado como Niemeyer contribuiu em múltiplas

dimensões para legitimar o projeto de construção do novo museu. Oscar Niemeyer

inaugurou, na década de 50, através da intensa utilização das linhas curvas36, a

manifestação de uma arquitetura moderna com ‘identidade brasileira’, representação

condizente com a ideologia nacionalista então em vigor.

Além de uma arquitetura representante de ‘brasilidade’, o arquiteto adotou uma estratégia

ideológica de afirmação da irredutibilidade da invenção plástica a quaisquer outros

valores, reforçando essa postura através da negação de privilégios e de um discurso

político que o vinculava ao Partido Comunista Brasileiro. O projeto do MAC, assim

como diversos projetos para escolas, hospitais e instituições do gênero fez parte de uma

estratégia de consagração, que Niemeyer utilizou ao longo de sua trajetória profissional,

na qual negligenciava honorários, acumulando capital simbólico fundado no

reconhecimento da representação do artista “criador”37 (Durand, 1991). Segundo Ítalo

Campofiorito38, diretor geral do MAC, “a liberdade de concepção formal, e o abandono

de qualquer condicionamento racionalista ou funcionalista, como se dizia nas primeiras

35 Antes de ser oferecido a Niterói a coleção foi ofertada para o prefeito de Curitiba, Jaime Lerner, que

recusou a oferta. As relações pessoais entre a esposa de Sattamini e o então prefeito da cidade de Niterói, Jorge Roberto da Silveira, fizeram dessa cidade a segunda opção para negociação.

36 As curvas são associadas, em declaração do próprio arquiteto, às paisagens brasileiras, ao corpo de mulher e à teoria da relatividade de Einstein, signos de ‘brasilidade’ e modernidade.

37 A inversão de papéis que essa estratégia aciona modifica sua função de arquiteto para a de artista plástico de grandes dimensões, o que transforma seu papel no interior da estrutura de relações no campo da produção arquitetônica. As críticas a respeito da funcionalidade de seus prédios são resultado de um processo no qual a obra de Niemeyer é recebida por seus contratantes como uma escultura, e não como um projeto arquitetônico. Faz parte do ‘mito’ do MAC o fato de Niemeyer ter rabiscado rapidamente, em um guardanapo, a forma do museu, na primeira reunião sobre o projeto. Aceitar a forma em detrimento da função tem como resultado um museu que tem uma reserva técnica sub-dimensionada, não tem biblioteca, nem sala para projetos educativos – a sala da divisão de educação foi ‘improvisada’ a partir da subdivisão da sala de pesquisa. O MAC está mais próximo dos museus tradicionais do que dos “centros culturais” ou “shoppings culturais” que tem sido projetados para os museus contemporâneos. Apenas um auditório e espaço para um restaurante, ainda não foi ativado – parte do acordo de cessão do terreno para construção do museu –, foram incluídos no projeto original.

Page 35: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

22

décadas do século XX, foram diretrizes de criação que (Niemeyer) desenvolveu durante

toda sua vida.”

Portanto, o convite ao renomado arquiteto redimensiona o significado do museu através

de uma linguagem arquitetônica que foi definida como representante de uma

“modernidade tipicamente brasileira”, apresentando uma “obra de arte” para conter obras

de arte, aliado a um discurso ideológico condizente com a postura política do então

prefeito de Niterói39. A escolha de Niemeyer, diretamente relacionado à construção de

símbolos de poder, brasileiros e estrangeiros, gerou em torno do museu uma visibilidade

nacional e internacional, contribuindo para a transformação da dimensão simbólica da

instituição. Antes mesmo de sair do papel, a maquete do MAC foi exposta no Museu de

Arte Moderna de Nova York, concorrendo a um prêmio internacional de arquitetura, o

prêmio Pritzker, e o projeto foi publicado em revistas especializadas e periódicos

nacionais e estrangeiros.

A simbologia do museu adquiriu dimensões na cidade sem paralelo em outras instituições

museais brasileiras. Niemeyer trabalhou com o que havia de mais estigmatizante para

Niterói: a idéia de que Niterói só teria de interessante a paisagem e a proximidade com o

Rio de Janeiro. A escolha do terreno no Mirante da Boa Viagem e a forma, externa40 e

interna, do prédio com uma janela em todo seu redor, permitindo à paisagem da baía de

Guanabara invadir o interior da sala externa41, contribuíram, juntamente com a política

38 Texto de apresentação da exposição “Oscar Niemeyer: a arquitetura e a vida”, apresentada no MAC entre

dezembro de 97 e janeiro de 1998, retirado do endereço eletrônico do museu – http://www.macnit.com.br –, em julho de 2001.

39 A construção do MAC fez parte da estratégia de consagração de uma política social e cultural que teve na categoria abstrata “qualidade de vida” um slogan que se afirmou através de iniciativas como a construção do Museu, a implantação do programa Médico de Família, cuja origem foi associada à Cuba, e o patrocínio de diversos eventos artísticos.

40 O acesso ao interior do prédio é feito através de uma rampa que obriga o visitante dar uma volta de 360º, tendo a visão de um panorama que integra os prédios de Niterói `a paisagem da Baía de Guanabara. Simbolicamente, essa entrada apresenta Niterói como parte integrante da beleza da Baía, patrimônio natural que empresta ao Rio de Janeiro o apelido de cidade maravilhosa. Essa integração é explorada pela divisão de educação que começa a visita das turmas pela rampa de acesso, chamando a atenção para as fronteiras entre cultura e natureza. Um dos aspectos enfatizados é a angulação da estrutura do museu que é paralelo ao ângulo do morro Dois Irmãos. Essa mesma tensão entre natureza e cultura pode ser percebida no interior do prédio quando as obras expostas disputam a atenção dos visitantes com a paisagem vista pela janela do museu.

41 O prédio tem uma sala central e uma sala que contorna toda a extensão circular do prédio.

Page 36: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

23

cultural empreendida pelo município e o apoio da mídia, para uma transformação do

estigma em prestígio42.

A silhueta do museu transformou-se na logomarca da prefeitura e de várias empresas

niteroienses, tornando-se símbolo oficial da cidade. A transformação da estrutura

construtiva do prédio em uma logomarca modificou o sentido da entidade. O significado

ritualístico referente ao campo da produção artística43 de um museu de arte é minimizado

e a representação de emblema de cidade “moderna” é forjada a partir de sua forma

arquitetônica, sua forma é enfatizada em detrimento de seu conteúdo.

A instituição tem sido usada como espaço de manipulação de significados de diversas

maneiras, para além das exposições de arte: o prédio foi palco para a cerimônia de posse

do atual prefeito44; visitantes ilustres, hospedados em Niterói e no Rio, vão

frequentemente conhecer a instituição; encontros do partido político da prefeitura são aí

realizados; e o espaço museal tem servido como linguagem na troca simbólica de

prestígio45 com outras nações. As instituições museais participam de um mercado de bens

simbólicos que troca, além de mercadorias, prestígio. O Museu de Arte Contemporânea

42 Em diversos momentos durante a pesquisa, em conversas com pessoas de diferentes posições sociais, foi

possível perceber como a imagem de Niterói se apresentava de forma ‘positiva’. Cada um encontrou, dentro do feixe de programas implementados pela prefeitura e anunciados pela mídia, um que considerasse digno de ser enaltecido. A representação positiva expressa na fala dos moradores não eliminava críticas severas, inclusive ao slogan ‘qualidade de vida’ que foi questionado, principalmente por moradores do Morro do Palácio. Mas a visão geral era de que a imagem da cidade havia mudado entre os moradores.

43 O museu foi construído visando especificamente a atração turística, não esteve presente no discurso de exaltação do projeto a relação desse com o campo da produção artística. Segundo Roberto Dutra, diretor da Secretaria de Turismo, o MAC fez uma revolução no turismo de Niterói. Depois da construção do museu a visitação se multiplicou enormemente. Niterói é uma cidade de negócios – estaleiros, plataformas de petróleo etc. –, e sua visitação estava restrita a isso. Em virtude da divulgação que o museu acarretou os estrangeiros que vinham para trabalhar e ficavam hospedados no Rio de Janeiro passaram a se hospedar em Niterói, pois tomaram conhecimento de que existe aí uma infra-estrutura turística. É um turismo eminentemente profissional. O turismo profissional vincula-se aos estratos superiores de países estrangeiros para quem a instituição museal porta o significado de “civilização”, constituindo, portanto, importante estratégia de consagração de uma política cultural voltada para a adoção de padrões de comportamento condizentes com uma racionalidade profissional valorizada no mercado internacional.

44 Jorge Roberto Silveira, que teve a iniciativa de construir o museu, deixou seu cargo antes da inauguração. Após o mandato de seu sucessor, que inaugurou a instituição, foi novamente eleito. Esse dado mostra um índice relativamente alto de aprovação dos eleitores de Niterói quanto à sua estratégia política.

45 Em um intercâmbio com Cuba, o MAC expôs uma coleção de fotografias sobre a revolução cubana, entre junho e agosto de 1999. Não sendo esta uma exposição que se esperaria encontrar em outros museus de arte contemporânea, está, entretanto, de acordo com o papel social que esse museu específico representa no interior do campo burocrático do município.

Page 37: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

24

de Niterói representa importante papel social no mercado de prestígio da administração

do município.

A constituição de um Conselho Curador46, assim como o caráter do acervo nos parecem

relevantes para a discussão aqui empreendida. Os nomes que se mantiveram no Conselho

são: o ex-secretário de cultura, Ítalo Campofiorito, o dono do acervo, João Sattamini

Netto, a marchand Anna Maria Niemeyer e Victor Arruda, artista plástico e consultor do

colecionador.

O contrato de comodato, firmado entre o colecionador e a prefeitura, estipulou em cinco

anos, com possibilidade de interrupção e/ou extensão, o prazo no qual as obras estariam

sob responsabilidade do museu47. Esse acordo faz desse um museu peculiar, haja vista

que não tendo acervo próprio48 a propriedade no qual está pautada a instituição é a

memória produzida a respeito das obras emprestadas e das exposições montadas a partir

delas.

O caráter temporário do acervo e os interesses em jogo nas posições ocupadas pelos

agentes que constituem o Conselho Deliberativo no interior das relações que estruturam o

campo de produção intelectual tem influência direta na relação da instituição com sua

divisão de educação. Sendo todos os agentes do Conselho detentores de posições

privilegiadas dentro do sistema de produção intelectual, identificam-se com o campo e

procuram estreitar as relações constitutivas desse, num processo de legitimação mútua. A

educação, por sua vez, tem como ideologia a socialização do conhecimento em arte, seu

público é externo a essa estrutura de relações que conforma o campo intelectual, o que

contrasta com os interesses correntes dos agentes pertencentes à estrutura dessas relações.

Geograficamente o museu ocupa uma posição periférica, já que Niterói não é uma cidade

detentora de um reconhecimento quanto à sua influência artística e cultural. Essa periferia

46 Os nomes do Conselho Consultivo foram retirados do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, de 28

de fevereiro de 1992. Alguns dos membros iniciais não mais constituem parte do conselho, entretanto, alguns permanecem no agora denominado Conselho Deliberativo. A nova constituição não encerra modificações significativas para a análise aqui empreendida.

47 Tendo sido inaugurado em 1996, os cinco anos venceram em dezembro de 2001. No momento de redação da pesquisa o processo de renovação do contrato tramitava nas instâncias pertinentes.

48 Não há previsão no orçamento do museu de verbas destinadas à aquisição de obras, não existindo tampouco uma política de aquisição. O museu possui hoje, em torno de 40 obras doadas por artistas para constituição do acervo, além de um concurso de co-autoria do diretor da divisão de educação do museu – O Artista Pesquisador – no qual a obra premiada é integrada ao acervo do museu.

Page 38: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

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foi compensada tanto pela assinatura do projeto arquitetônico por um nome como o de

Niemeyer, como pela classificação da coleção Sattamini como contemporânea. Essa

coleção apresenta obras do período modernista e obras de artistas contemporâneos, assim

como a coleção Chateaubriand, ofertada, também em forma de comodato, ao MAM.

Entretanto, a classificação do museu de Niterói como moderno o colocaria em uma

situação desfavorável, já que, em termos de acervo moderno, o MAM ocupa uma posição

de prestígio, dificilmente alcançável por uma instituição detentora de uma coleção

relativamente singela como a coleção Sattamini. A utilização da categoria

“contemporâneo”, por outro lado, coloca o MAC em situação relativamente privilegiada

no interior da estrutura das instituições museais, haja vista não existir no Rio de Janeiro

outra instituição detentora de tal título.

2.3 O MAC E AS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÕES EM ARTE

O MAC poderia ser classificado como um museu estético. Quando de sua construção e

elaboração institucional, não foi prevista uma divisão de educação. Mesmo após sua

constituição, esta não foi vislumbrada no site oficial na Internet49. Segundo a direção da

instituição, a educação não é uma das prioridades do museu cujos principais objetivos

estão identificados com a produção de conhecimento sobre, a manutenção e a divulgação

do acervo disponível50.

Como o próprio campo da produção erudita que, por sua estrutura e funcionamento

internos, dissimula os processos sociais que subjazem à produção, distribuição,

apreciação e discussão sobre os fenômenos artísticos, a divisão de educação de um museu

de arte tende a adotar abordagens educativas que contribuam, de alguma maneira, para a

49 Pelo menos não até dezembro de 2001, cinco anos após a inauguração da instituição. 50 Em uma entrevista, um dos diretores expressou seu descrédito com relação à educação artística em

museus de arte contemporânea, considerando que a relação entre o visitante e a arte deveria ser direta, sem mediação. Essa concepção aponta para a relação conflituosa que constitui o pano de fundo da pesquisa: a relação entre a tradição de conhecimento em artes plásticas e a socialização desse conhecimento através da educação artística. Um museu de arte que trabalha com a concepção de espontaneidade, informalidade e “dom” está necessariamente excluindo do conhecimento em artes aqueles que não tem acesso ao capital simbólico necessário para construir um saber que os permita decodificar os signos do campo de produção erudita, sistema regido por leis próprias (cf. Bourdieu, 1996a).

Page 39: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

26

consagração dos agentes e dos sistemas de agentes, sem realizar uma discussão social do

fenômeno51.

Entretanto, a arte contemporânea é propícia à uma proposta de educação artística que

fuja, em certa medida, às convenções propostas para outros períodos da arte. Tendo tido a

história desses períodos sistematizada, a leitura de obras52 frequentemente utilizada

recorre à contextualização histórica, afim de localizar o artista ou movimento e assim,

relacionar o estilo ao seu tempo. A arte contemporânea53, no entanto, além de ainda não

ter uma história sistematizada, relaciona-se a um processo tão intrínseco às regras

internas do campo de produção artística e a pesquisas individuais que sua simbologia

tornou-se distante das práticas cotidianas, uma linguagem hermética que dificulta a

utilização de abordagens históricas.

Observando as práticas da divisão de educação, notamos que esta se permite abandonar

as concepções de apreensão da obra de arte através de uma perspectiva histórica em

detrimento de uma abordagem que privilegia “o sujeito se descrevendo, se inserindo no

processo”54. A divisão de educação do museu trabalha com o “estranhamento”55 que a

própria arte contemporânea suscita, o que possibilita ao visitante uma reação, legítima, de

51 O museu exibe um conjunto de obras de arte que são consagradas através de normas e convenções

arbitrárias, legitimadas através de mecanismos que apresentam a superioridade desses objetos como atributo intrínseco das próprias obras. Esses mecanismos que escondem a arbitrariedade das normas e convenções estão pautados no fato de que os agentes e agências que definem as normas e convenções do que é legítimo, são as próprias instâncias de legitimação. A legitimidade então se dá através do reconhecimento da superioridade dos objetos pelos agentes que determinam as normas e convenções por eles definidas para as legitimarem. A obliteração do sentido e da função das relações constitutivas do campo de posições culturais ocorre, pois segundo Bourdieu (1987: 169), “as tomadas de posição intelectuais ou artísticas constituem, via de regra, estratégias inconscientes ou semiconscientes em meio a um jogo cujo alvo é a conquista da legitimidade cultural, ou melhor, do monopólio da produção, da reprodução e da manipulação legítimas dos bens simbólicos e do poder correlato de violência simbólica legítima”.

52 A leitura de obra trata a imagem como um pensamento presentacional que se processa através de um vocabulário visual. A leitura dessas imagens seria a decodificação dos aspectos visuais que, parte de um leque expressivo amplo, possa ajudar a refletir acerca dos processos sociais de produção de seus significados. Parte dos aspectos a se considerar são a técnica utilizada, a relação entre tema, forma e conteúdo, os signos visuais, os modos de ver que produziram aquela imagem, os usos sociais daquela imagem em cada época e sociedade, os componentes históricos, entre outros. A história é assim um dos elemento importantes para o empreendimento desse tipo de leitura.

53 Parece importante mencionar que a arte contemporânea ainda não faz parte do currículo escolar, justamente por não ter sido ainda sistematizada na forma de estratégias e abordagens de ensino.

54 Palestra proferida pelo diretor da divisão de educação do MAC no seminário O Modernismo e as Artes do Ensino, no Paço Imperial, em 21 de março de 2001.

55 Algumas teorias sociológicas utilizam essa noção para pensar a relação do pesquisador com seu campo de pesquisa. Para Bourdieu (1989), por exemplo, o estranhamento do pesquisador frente a tradições culturais

Page 40: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

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não compreensão, de estranheza, traduzindo a percepção que o visitante tenha da obra,

seja ela qual for, em um saber a respeito desta. Essa abordagem educativa pretende inserir

o visitante no processo de atribuição de sentido à obra, transformando-o de observador

em participante da obra na medida em que contribui para a construção do sentido desta a

partir de suas interpretações. Essa abordagem educativa, baseada na percepção

fenomenológica, nas sensações do visitante, constitui a base para uma nova estratégia de

leitura de obras.

Ao eliminar o conhecimento histórico do processo de interação com a obra, a relação do

observador com a arte deixa de ser fundamentada nos conhecimentos e carências

intelectuais e passa a ser fundada, principalmente, na relação afetiva. Nesse sentido a

divisão de educação adota uma abordagem inclusiva do observador porque particulariza a

relação, em oposição a uma abordagem educativa que toma como ponto de partida

noções e conceitos pretensamente universais que, muitas vezes, não fazem parte do

capital cultural do visitante. A abordagem fenomenológica pretende desestimular o

observador intelectualizado, que pensa por meio de conceitos, para incentivar uma

observação a partir das experiências e percepções de cada um.

A proposta educativa dessa divisão tenta reinserir o público no jogo de interpretação da

obra. Sendo uma estratégia, em certa medida, legitimadora da percepção e do discurso

dos observadores-participantes e, portanto, uma forma de conceder maior liberdade de

interpretação, porque fundamentada na percepção individual e não em conceitos tidos

como universais, a abordagem fenomenológica tenta seduzir o visitante aproximando a

arte de seu mundo. Sendo auto-referente – o mundo existe em relação ao corpo que

observa – essa abordagem educativa permite múltiplas leituras, porque fundadas na

experiência de cada um, nas quais a história não é mais uma convenção, mas contextos

particularizados, a história de cada um.

Entretanto, devido precisamente às propriedades de posição de uma divisão de educação

de um museu de arte no campo da produção do discurso legítimo sobre a obra de arte56

distintas das suas resultaria na eliminação ou diminuição da ilusão da compreensão imediata do fenômeno observado.

56 A educação artística, disciplina oficial a partir da década de 70, mas só recentemente incluída obrigatoriamente nos currículos escolares, tem uma posição subordinada dentro da estrutura hierárquica de disciplinas, sendo os profissionais que a praticam estigmatizados por artistas e educadores de outras disciplinas. A posição hierárquica relativamente subordinada dos profissionais de educação artística

Page 41: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

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erudita, a interpretação da obra pelo observador individual estabelece um discurso de

significação que é autorizado apenas momentaneamente e somente para o próprio

intérprete e para o grupo de profissionais da divisão de educação. Apesar do público

tornar-se detentor de um discurso autorizado, esse discurso tem uma circulação restrita e

não concorre para uma reinterpretação da obra, ao contrário do “discurso do crítico, que o

criador reconhece por se sentir reconhecido e se reconhecer nele, [e que dizendo o projeto

criador] ... leva-o a existir segundo este dizer” (Bourdieu; 1968: 120).

A divisão de educação de um museu de arte é uma das agências internas à estrutura das

relações que compõem o campo intelectual, portanto partícipe dos processos de

legitimação dos agentes, agências e produtos do campo. A abordagem educativa

empreendida pela divisão de educação do MAC inova na transformação da relação do

visitante com a arte, mantendo-se, entretanto, fiel às normas e convenções que

reconhecem como superiores e dignos os agentes, agências e produtos legitimados pelo

campo intelectual, do qual ela também participa. Essa abordagem fenomenológica, de

certa forma, redefine o papel da educação artística que passa a ser o de sensibilizar para a

arte, sem no entanto fornecer os elementos para o discurso erudito, isto é, os conceitos e

regras internos ao campo. A percepção sensível da obra passa a ser legitimada como um

conhecimento específico sobre essa, eliminando a questão do “entender sobre” que,

tantas vezes, incomoda os apreciadores e dificulta a formação de novos públicos; e a

percepção conceitual que permite versar sobre a obra através das noções e conceitos

legitimados pelo campo continua sendo a forma de fruição legítima para os agentes

internos ao campo. As duas dimensões da apreciação estética passam a ser legítimas,

cada qual com seu público e forma de fruição distintas.

O projeto “O Artista Pesquisador” – AP – contribui para percebermos tanto a

participação direta da divisão de educação como agência de legitimação do campo

intelectual, como a outra dimensão de fruição que consagra o discurso erudito da obra de

arte. Em sua segunda edição, o projeto AP é uma parceria institucional entre o Museu de

Arte Contemporânea de Niterói e o Departamento de Arte da Universidade Federal

Fluminense. O Artista Pesquisador é um concurso que tem incentivo do programa

contribui para que haja, no interior das instituições museais, espaço no qual diversos grupos profissionais disputam pela legitimidade do discurso a respeito do campo da produção artística, pouco ou nenhum espaço para a participação daqueles profissionais na elaboração desses discursos.

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29

Petrobrás Artes Visuais, patrocinando os selecionados e concedendo ao vencedor um

prêmio denominado Aluísio Carvão. O diretor da divisão de educação foi um dos

idealizadores do projeto que “propõe-se a incentivar as mais novas e livres investigações

que venham animar as diversas poéticas contemporâneas da produção artística

brasileira”57.

Fica clara a participação efetiva do projeto AP no processo de consagração de artistas e

obras quando recorremos às observações etnográficas realizadas durante a pesquisa.

Tivemos chance de assistir a uma conversa na qual um grupo de curadores da mostra

tecia comentários sobre o crescimento profissional de determinado artista, após sua

participação na primeira edição do concurso. Em outra ocasião, quando do lançamento do

catálogo da mostra, houve uma mesa redonda, na qual os artistas falaram sobre seus

trabalhos, contando com a participação de três artistas consagrados, assim como a direção

do museu e os organizadores da mostra. Foram relatadas, depois do evento ao qual não

tive a oportunidade de assistir, críticas a respeito da superficialidade da maioria das

questões colocadas pelo público – um público constituído, em sua maioria, de artistas –

que pareciam ter sido elaboradas apenas com o intuito de permitir a apresentação de

quem elaborava a questão. Ao ser colocada, a pergunta vinha sempre acompanhada do

nome do artista que perguntava, assim como da instituição a que estava vinculado

naquele momento ou ao tipo de trabalho que fazia.

“O Artista Pesquisador” havia, até então, em suas duas edições – 2000 e 2001 –, sido

conduzido de forma a incentivar apenas aqueles artistas que tivessem uma obra concreta

que pudesse ser trazida para o museu, funcionando como um Salão58. Em outra

oportunidade tomou-se conhecimento da intenção de fazer do MAC, através do projeto

AP, um pólo gerador de pesquisa, não necessariamente com culminância em exposições

no local da instituição. Em sintonia com as discussões sobre arte contemporânea, essa

proposta desafia o museu enquanto instituição de conservação, pensando-o não mais

como um espaço concreto, mas como uma entidade capaz de estender suas influências

57 http://www.macnit.com.br, dezembro de 2001. 58 Os Salões foram importantes instâncias de consagração que funcionaram na Europa, a partir do século

XVIII, e no Brasil, a partir do XIX. Um dos Salões mais conhecidos foi o Salon des Refusés que alavancou a carreira do grupo de pintores impressionistas.

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30

para além de seus domínios físicos59, além de explicitar o papel do museu, enquanto

agência de consagração, definidor de critérios de classificação passíveis de fazer

reconhecer o que é ou não arte contemporânea.

Sendo uma associação entre a Universidade Federal Fluminense e o MAC, o projeto AP

incentiva a elaboração de um discurso sobre o processo artístico, parte das exigências

para inscrição no concurso. O edital apresentou como um dos objetivos do projeto

“investir na pesquisa e na reflexão teórica como partes integrantes das práticas artísticas

contemporâneas”, e teve como um dos critérios de seleção das obras a “relevância da

proposta para o debate estético na Arte e Cultura Contemporâneas”60 (sic). Os textos de

apresentação das obras, compostos pelos próprios artistas, estão cheios de referências a

conceitos e noções do campo da produção erudita, dentro de uma linguagem de difícil

acesso para agentes externos ao campo. Nesse sentido, a abordagem fenomenológica em

nada concorre para desafiar a intenção dos agentes e agências do campo em manter a

produção e o discurso sobre essa restrito a poucos privilegiados. A abordagem

fenomenológica sensibiliza para as questões estéticas sem entrar na discussão erudita que

tem definido o campo dessa produção contemporânea.

Os departamentos de educação de museus, em geral, não são instâncias autorizadas

dentro do campo da produção do discurso sobre arte. Entretanto, devido às propriedades

de posição do diretor da divisão de educação do MAC, esta encontra-se em posição

privilegiada em relação aos departamentos e projetos educativos de outros museus. As

condições de possibilidade das iniciativas61 dessa divisão estão relacionadas à posição

privilegiada que o diretor desta ocupa em relação ao campo de produção erudita. Tendo

como tema de pesquisa seu próprio trabalho estético, desenvolveu sua dissertação de

mestrado em artes plásticas, na New York University. Trabalhou no departamento de

educação do Metropolitan Museum of Modern Art, em Nova York, época na qual iniciou

seu doutorado, em artes plásticas, novamente na NYU, tendo como tema de sua tese o

59 O projeto AP teve em suas duas edições 80 e 384 inscritos, respectivamente. Descontando-se o fato de

que a primeira edição teve menos divulgação, por não ter patrocínio, percebemos o reconhecimento do mecanismo de legitimação que o museu aciona para aqueles que são selecionados para aí expor.

60 Edital do Projeto "O Artista pesquisador" objetivos, normas e critérios de inscrição, documento encontrado na Internet, www.macnit.com.br , dia 1º de dezembro de 2000.

61 Curadoria de exposições (a divisão de educação teve a oportunidade de elaborar uma exposição para o museu – “Dos materiais às diferenças internas”–, no ano de 2000), a proposta do projeto “O Artista

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31

desenvolvimento de abordagens educativas para a arte contemporânea, através da

fenomenologia. Além do cargo de direção da divisão no MAC, atua como professor

titular da Universidade Federal Fluminense, ministrando cursos de graduação

relacionados à produção cultural, história da arte e ensino em arte. Publicou artigos em

revistas qualificadas relacionadas ao campo da produção erudita e coordenou e produziu

seminários sobre assuntos diversos referidos à arte, inclusive práticas de museus.

Portanto, sua posição elevada, tem como prerrogativa uma formação acadêmica e

profissional consagradas, falando de educação a partir do campo da produção artística e

não vice-versa62.

O projeto de intervenção Arte em Ação Ambiental – AAA, objeto empírico dessa

pesquisa, foi elaborado e implementado pela divisão de educação do MAC. O AAA

surgiu da iniciativa do diretor da divisão de educação do MAC em realizar atividades

artísticas fora do espaço físico do museu, expandindo a atuação da instituição “junto às

comunidades marginalizadas dos processos educativos e da produção artística”. O projeto

AAA, o qual discutiremos no próximo capítulo, deve ser pensado no contexto dessa

divisão de educação e sua relação com a instituição e o campo da produção intelectual. A

identidade do grupo de jovens do Morro do Palácio participantes do projeto se constrói

para além do projeto e suas relações. Entretanto, foge ao escopo dessa pesquisa uma

investigação de todos os elementos influentes nessa construção.

É preciso considerar as contradições intrínsecas ao museu. Instância legítima e de

legitimação do campo de produção erudita, o MAC trabalha com uma concepção

museológica mais tradicional que privilegia o museu enquanto um espaço físico de

conservação, divulgação e produção de memória sobre seu próprio acervo. Essa

concepção se contrapõe à de alguns membros do quadro institucional que pensam o

museu enquanto entidade que transcende o espaço físico, não tendo necessariamente um

caráter de conservação. Nenhuma das duas concepções questiona a noção do museu

enquanto instituição de legitimação, mas ambas estão em contradição no que diz respeito

Pesquisador”, a adoção de uma metodologia educativa em arte diferente da abordagem convencional e a elaboração de um projeto social, tema central da pesquisa que será abordado no próximo capítulo.

62 O fato do diretor da divisão de educação ter sua formação em artes plásticas lhe confere prestígio, contribuindo, em grande medida, para sua inserção diferenciada dentro da instituição. Normalmente as divisões de educação não são agências autorizadas para elaborar exposições e concursos de artes plásticas, tendo uma participação restrita à educação e subordinada às outras atividades institucionais.

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32

ao papel do museu em relação à produção artística, aos artistas e a atuação da instituição

junto à sociedade mais ampla.

Em relação aos interesses dos diversos atores em jogo na constituição desse museu,

podemos delinear tendências também ambíguas, mas não necessariamente excludentes.

O Conselho Deliberativo, constituído não somente de agentes internos ao campo da

produção erudita, mas que também atuam dentro de uma concepção que trabalha com a

idéia de arte-objeto, tendem a prestigiar a concepção museológica mais tradicional. A

prefeitura municipal, por sua vez, utiliza o museu enquanto espaço de manipulação

simbólica, transcendendo sua atuação junto ao campo da produção erudita. Portanto, a

concepção museológica aí vigente – trabalhar com a coleção Sattamini e a noção de arte-

objeto, não tendo orçamento para aquisição de obras, ou incentivar a pesquisa de artistas

contemporâneos e ter o nome do museu veiculado por todo o território nacional –, pode

ser indiferente na medida em que não existe um real interesse na forma de atuação da

instituição dentro do campo de produção erudita e o aproveitamento do caráter

“civilizatório” que o museu emana está referido, principalmente ao turismo de negócios

interno ao município.

Para os artistas os interesses dependem do tipo de trabalho que realizam, não sendo

possível identificar um ideal para essa categoria. Aqueles que têm trabalhos concretos,

isto é, objetos que possam ser deixados no museu como legitimação de sua pesquisa,

provavelmente preferem uma concepção museológica mais tradicional. Enquanto aqueles

que possuem pesquisas mais abstratas ou de difícil locomoção, provavelmente preferem

que o papel da instituição seja repensado.

A divisão de educação parece ter encontrado uma fórmula que lhe permite trabalhar com

dimensões diferentes de educação, sem que uma exclua ou desafie a outra. O projeto

AAA foi gestado e está sendo implementado dentro desse horizonte de questões.

Passamos agora à sua etnografia e análise.

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33

3. A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PROJETO ARTE EM AÇÃO AMBIENTAL

Em 1997, como parte da estratégia do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, a

Divisão de Educação daquele museu decidiu expandir sua atuação para além do público

frequentador da instituição. O passo inicial para concretização dessa estratégia foi

estabelecer contato com profissionais de áreas diversas – comunicação, educação, artes,

biologia e ciências sociais – visando a troca de idéias a respeito de propostas que

pudessem servir de base para um projeto de promoção social a ser implementado em

áreas de baixa renda. Desses debates surgiu o projeto Arte em Ação Ambiental.

Na proposta inicial visava-se intervir concomitantemente em Jurujuba, bairro afastado do

museu que já contava com a atuação de um grupo de intervenção, e no Morro do Palácio,

em frente ao museu. Na prática, entretanto, o projeto foi implementado apenas no Morro

do Palácio63. Com dificuldades para definir a identidade do projeto AAA, o grupo de

profissionais responsável por sua articulação oscilou durante todo o período inicial de

elaboração da proposta de intervenção entre a possibilidade de estabelecer-se como uma

estratégia institucional do museu e os contornos de uma Organização Não-

Governamental – ONG, independente daquela instituição.

Com objetivos similares a outros projetos de promoção social, o projeto Arte em Ação

Ambiental visava a promoção da “cidadania”64 em bairros de classes populares. Esse

63 O Morro do Palácio situa-se entre o Museu do Ingá, antigo Palácio do Ingá, sede do governo no período

em que Niterói era a capital do Estado do Rio de Janeiro, no início do século XX, e o Museu de Arte Contemporânea. O nome oficial da região é Morro do Ingá, mas devido à sua proximidade com o palácio, os moradores do local e de Niterói em geral adotaram a denominação Morro do Palácio para referir-se à região. Essa denominação se relacionava, naquele período, ao prestígio de estar próximo ao Palácio. Com as transformações geo-políticas no Brasil – a transferência da capital para Brasília e a separação entre Rio e Niterói – a denominação Morro do Palácio perdeu essa característica de prestígio e tem sido motivo de disputa, por parte da associação de moradores local, com vistas a adoção da denominação oficial, Morro do Ingá. Com a perda do referencial que lhe conferiu a denominação Morro do Palácio, essa tem sido entendida pela associação de moradores local, mas não necessariamente por todos os moradores, como uma forma estigmatizante de referir-se ao local. Adotou-se na pesquisa a denominação Morro do Palácio de acordo com a utilização dos moradores de Niterói.

64 Nos documentos sobre o projeto AAA, o termo empregado é “cidadania cultural”, definido como a expansão da atuação do MAC “junto às comunidades marginalizadas dos processos educativos e da produção artística”. Aparentemente, o termo foi cunhado para aproximar a noção de cidadania da atuação específica da instituição na qual se originou o projeto. Na prática, entretanto, a noção está referida aos processos de responsabilização individual, racionalização e disciplinarização a partir de normas de conduta e comportamento específicos que definem aquele como um termo de conotações cívicas. A tensão entre os movimentos de universalização e particularização intrínsecos aos processos de modernização promovidos pelos projetos de intervenção social pode também ser percebida no projeto AAA que tenta, ao mesmo tempo, transmitir noções universalizantes e estreitar os vínculos comunitários.

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objetivo deveria ser alcançado através da formação de “centros de produção

comunitária”, isto é, espaços dentro das comunidades nos quais seriam oferecidas

oficinas artesanais de diversas espécies com vistas à produção de artigos que pudessem

ser comercializados, tornando o projeto “auto-sustentável”.

Esses “centros” seriam, inicialmente, implementados dentro das associações de

moradores65 ou em espaços alternativos existentes em cada comunidade66. Suas

finalidades específicas são assim definidas:

promover ações integradas entre cultura e desenvolvimento social; produzir, agregar e difundir informações sobre as questões e temas de interesse para os indivíduos e as organizações da comunidade; produzir trabalhos escritos e audiovisuais, seminários, cursos, workshops e debates sobre os assuntos pertinentes aos seus objetivos e; comercializar produtos, publicações, serviços, informações e dados produzidos nas oficinas oferecidas ... desde que o produto desta comercialização reverta-se para realização de novos trabalhos ou a continuação dos já existentes, com uma parcela sendo compartilhada pelos participantes dessas oficinas, segundo um modelo de cooperativa de produção e prestação de serviço em estudo67.

Em sua concepção inicial, em 1997, o projeto contava com quatro oficinas:

oficina de reaproveitamento/reciclagem de materiais visando a produção de objetos artísticos e/ou utilitários: papel artesanal (artigos de papelaria) e papel maché (jogos construtivos e lúdicos); oficina de sensibilização, percepção e diagnóstico ambiental, visando ações para a sustentabilidade ambiental; oficina de jogos neoconcretos68: trabalho

Uma discussão sobre os processos sociais de modernização no âmbito das classes populares pode ser encontrada em Duarte (1992, 1993).

65 O AAA e todas as propostas provenientes da Divisão de Educação do MAC têm sido pensados como projetos-piloto para serem, eventualmente, implementados em outras regiões administrativas. Essa idéia traz, implicitamente, a percepção de uma homogeneidade entre os bairros populares e as formas de intervir nesses locais que tem sido amplamente discutida na literatura socio-antropológica.

Lopes (1987) mostra ao longo do artigo que procura sintetizar a coletânea por ele organizada, os efeitos diferenciados que a história incorporada das classes populares produz nos grupos sociais, resultando em heterogeneidade, especificidade e diferenciação interna que enfatizam a importância da análise da experiência vivida como suporte à percepção da constituição das identidades sociais. O autor propõe também sobrepor essas circunstâncias específicas aos marcos da história política nacional para que não se caia em uma oposição hierárquica entre os conjuntos de classe e o grupo social, entre o geral e o particular.

66 “Morro” e “comunidade” foram as categorias utilizadas pelas pessoas para se referirem ao espaço social das relações de vizinhança. Essas classificações correntes, fundamentadas nas classificações eruditas que são introduzidas pelas diferentes agências que incidem sobre a realidade das pessoas, foram acionadas em diversos momentos com acepções diferenciadas. Procuramos manter, na análise, a categoria acionada pelas pessoas entrevistadas ou observadas no contexto do assunto em pauta, procurando, no entanto, explicitar a acepção específica que tal categoria parece ter para aquele determinado agente.

67 Projeto Arte em Ação Ambiental, 2000, documento n.º 55. 68 O Neoconcretismo foi o estilo artístico carioca que fez parte do movimento construtivo que caracterizou a

arte carioca e paulista, na década de 50. A arte construtiva no Brasil surgiu do debate entre os defensores

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com os centros de desenvolvimento de expressão poética e crítica, construção de identidade e percepção da realidade local, acompanhadas de visitas às exposições do MAC e; oficina de reciclagem de material orgânico objetivando nesta primeira etapa um programa de ‘paisagismo na comunidade’ com produção de adubo orgânico, cultivo de plantas (decorativas, medicinais e comestíveis).

da abstração – “arte pura”– e os defensores da arte figurativa – “arte engajada”. No que tange à questão cultural, concretos e neoconcretos formaram um par indissociável como estratégia cultural organizada em oposição às correntes artísticas que apoiavam o nacionalismo e o populismo. Até o início da década de 60, a vanguarda construtiva apresentou-se como “reação ao realismo regionalista”, “…soma de resíduos ideológicos camponeses e arcaísmos mais diversos do ponto de vista formal…” (BRITO: 1985; 2), que produziam uma arte de cunho social e político, frequentemente utilizada como apoio nas campanhas político-partidárias.

Na tentativa de retirar a função instrumental da arte, então atribuída ao caráter figurativo da expressão, o movimento construtivo rompeu com o espaço visual centrado na perspectiva renascentista e tentou adotar uma postura objetiva que possibilitasse o surgimento de novas leituras para os sistemas de significação da arte relacionados à sociedade industrial. Engajadas na ideologia do desenvolvimento tecnológico e na crença da racionalização das relações sociais, as tendências construtivas propuseram inaugurar o racionalismo na arte através da aproximação entre arte e ciência, radicalizando a linguagem geométrica. Ao propor a arte como meio de produção específico, o Concretismo deslocou a função social da arte da concepção expressiva para a de manipulação de conhecimentos objetivos de modo inventivo. “O artista tornou-se inventor de protótipos, um técnico que manipulava com competência os dados da informação visual…” (BRITO: 1985; 39) arte e matemática encontravam-se intimamente relacionados.

Com base na teoria da Gestalt, o grupo paulista propôs uma forma de arte centrada nas formas geométricas e nas cores primárias, pois “…qualquer outra cor parte de uma decisão subjetiva e, portanto, irracional…” (Manifesto Ruptura: 1999) O grupo carioca se opôs à idéia de arte impessoal e objetiva, proposta pelos concretos, e optou pela “máxima potencialização do ‘eu’ artístico” (ROELS: 1999), de maneira que a liberdade não estivesse cerceada pelos limites estritos da geometria e das cores primárias.

Em 1959 ocorreu uma cisão entre cariocas e paulistas, inaugurando-se a primeira exposição neoconcreta. No Manifesto do grupo, Ferreira Gullar propôs uma nova atitude que desse prevalência “…à obra sobre a teoria” (Manifesto Neoconcreto: 1999). O movimento neoconcreto veio como reação à exacerbação racionalista do movimento concreto. Segundo o crítico Frederico Morais (MORAIS, Frederico. Entrevista concedida em 1999, para pesquisa de graduação em Educação Artística pelas Faculdades Integradas Bennett) “Se é possível falar em uma metáfora, (para o concretismo) é a metáfora da máquina, da lógica, da coerência da máquina. Tudo deveria funcionar com a precisão e a clareza da máquina e a posição deles era muito mais ótica. Já a metáfora do neoconcretismo seria o corpo.”

Ronaldo Brito analisou o esforço do Neoconcretismo em romper as categorias tradicionais de belas-artes como uma resposta do grupo neoconcreto à “…necessidade de remobilizar as linguagens geométricas no sentido de um envolvimento mais efetivo e ‘completo’ com o sujeito. Contra o que supunham ser a esterilização da arte concreta – limitada às rígidas explorações das formas seriais e do tempo mecânico, limitada em última instância à experiência retiniana – estavam empenhados em transformar o trabalho em um feixe de relacionamentos complexos com o observador, a caminho de ser transformado em um participante…” (BRITO: 1985; 63).

Waldemar Cordeiro falou na tentativa de Franz Weissman em tornar a “geometria sensível” (BRITO: 1985; 42), valorização estética do sensível e do existencial. O Neoconcretismo propunha uma leitura dinâmica e envolvida por parte do observador, a partir de suas “vivências”. “Prescrevia de certo modo uma leitura ‘dramática’, existencial, daí o seu desejo de ‘sensibilizar’ a geometria, polemizá-la até” (BRITO: 1985; 70). Hélio Oiticica e Lygia Clark, duas figuras importantes do movimento Neoconcreto, propuseram em suas criações, um “…reencontro das dimensões entre arte e vida” (ZANINI: 1983; 672), em comunhão com o manifesto do movimento que concebia a arte como “…um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica” (Manifesto Neoconcreto: 1999). Ver anexos.

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Além dessas oficinas, previa-se ainda a participação de um outro projeto no interior do

projeto AAA, Bem TV, uma televisão comunitária que estaria empenhada no “resgate da

memória e construção da identidade cultural de cada comunidade” (grifos meus).

Em 1998, o Programa de Capacitação Solidária – PCS69 – financiou um curso de moldura

e vidraçaria no Morro do Palácio com a intermediação da Associação de Moradores do

local. Mais uma vez, à semelhança de outros projetos de promoção social, o AAA

resolveu sua entrada no bairro através da mediação da associação local. O curso de

moldura e vidraçaria, então em andamento, foi duplamente importante para a inserção do

museu no que viria a ser seu único campo de trabalho: por um lado estabeleceu-se um

contato com o próprio Programa de Capacitação Solidária que veio, mais tarde, a ser o

primeiro financiador do projeto AAA; por outro, os participantes do curso constituíram

potenciais interessados em participar do projeto ligado ao MAC, o que mais tarde veio a

se confirmar na participação de alguns deles na oficina inicial que foi instituída antes do

financiamento do PCS.

Essa oficina inicial, ministrada pelo diretor da Divisão de Educação e coordenador geral

do projeto AAA, trabalhou com os jovens do Palácio noções que constituíam a base da

oficina de jogos neoconcretos, um dos principais eixos do projeto e o mais diretamente

relacionado à instituição MAC. A partir do trabalho de alguns artistas presentes na

coleção Sattamini, diversos materiais – arame, sabão, papel etc. – foram utilizados para

experimentação plástica, tendo a noção de jogo70 como orientadora do processo.

Ainda em 1998, o projeto AAA foi apresentado para o Programa de Capacitação

Solidária. Na apresentação ao PCS o projeto de intervenção foi identificado como uma

69 O Programa de Capacitação Solidária é parte integrante do Programa Comunidade Solidária, instrumento

de ação do governo, instituído no ano 1995. 70 A noção de jogo está relacionada com os processos de racionalização, individualização e

disciplinarização, portando, em forma de brincadeira, a noção de regras necessária para a criação do jogo e a interação com esse. Os jogos neoconcretos trabalhados nessa oficina supõem dois níveis de regras: as regras intrínsecas à noção de jogo – variação, movimento, repetição – e as regras definidas pela obra do artista em questão – Lygia Clark, Sérgio Camargo, Abraham Palatnik, Hélio Oiticica, Ivan Serpa, Aluísio Carvão e Ione Saldanha. O produtor do jogo identifica as regras que, anteriormente definidas pelo artista, irão contê-lo, disciplina-lo na fabricação de seu artefato para, a partir daí, criar seu jogo. Os jogos produzidos na oficina assemelham-se a obras de arte neoconcretistas.

Essa noção servirá para tratar a relação entre os valores e projetos dos diversos agentes envolvidos direta ou indiretamente com o projeto AAA. Os jogos sociais envolvidos no processo de disciplinarização dos corpos e dos gostos possibilitam o uso dessa noção “nativa” para examinar os vários níveis nos quais a noção de jogo pode ser entendida como partícipe dos processos sociais que engendram o projeto e são engendrados por este.

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proposição da associação de moradores do morro, sendo o Museu de Arte

Contemporânea apenas mais um parceiro junto com outras agências municipais

(Secretaria de Saúde – Programa Médicos de Família, Secretaria de Educação –

Programa de Creches Comunitárias e a Secretaria do Meio Ambiente).

Os conceitos presentes no projeto – “demanda”, “qualidade de vida”, “sustentabilidade” e

“desenvolvimento social”71 –, emprestados dos campos econômico e da medicina,

poderiam ser percebidos como uma tentativa de elevar a posição hierárquica do projeto,

haja vista, que o campo cultural, de onde o AAA se origina e no qual pretende atuar, as

artes plásticas, situa-se em um patamar relativamente desvalorizado na estrutura da

hierarquia econômica. Esses conceitos relacionam a proposta das oficinas de artesanato

com os objetivos econômicos e ideológicos do Estado, aproximando-a da noção de

“modernização” que subentende uma mudança de comportamento e conduta racional da

vida. Trata-se de conceitos que, inscritos em uma dada estrutura de poder, podem acionar

relações de força entre o campo cultural e o campo econômico.

3.1 FINANCIAMENTO DO PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO SOLIDÁRIA

No início de 1999, o projeto foi aprovado para financiamento pelo PCS durante seis

meses, a contar de julho de 1999. A estrutura do projeto que contava anteriormente com

quatro oficinas – jogos neoconcretos, papel reciclado, educação ambiental e oficina da

terra – teve que incorporar, por exigência do PCS, aulas de (oficina de) português e

(oficina de) matemática. Todas as oficinas, parece que à exceção de matemática72,

estiveram relacionadas a questões artísticas. A oficina de educação ambiental usou o

teatro como meio de expressão para trabalhar questões ambientais, em grande parte,

71 O conceito de “desenvolvimento” parece ser compreendido no projeto e pelas instituições de fomento as

quais este foi apresentado no sentido que lhe conferem Wofgang Sachs (1999: 1), “uma percepção que modela a realidade” e que tem como função permitir “que qualquer intervenção seja santificada em nome de um objetivo maior” (1999: 4) e Gustavo Esteva (1999: 7), para quem o sub-desenvolvimento, como consequência da noção de desenvolvimento, é uma forma de pensar o outro não mais como ele é , mas como um “espelho invertido da realidade de outros: um espelho que os diminui e os manda para o fim da fila, um espelho que define sua identidade, a qual é realmente a de uma maioria heterogênea e diversa, simplesmente em termos de uma minoria estreita e homogênea”.

72 Não foi possível acompanhar essa oficina, por isso não posso afirmar com precisão os resultados e as abordagens utilizadas na mesma.

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próximas a realidade social experimentada pelos jovens73; a oficina de texto trabalhou

com poesia e leitura de autores consagrados; a oficina de jogos neoconcretos trabalhou a

concepção de jogos, a partir de noções relacionadas a obras de artistas neoconcretos; a

oficina de papel trabalhou a noção de reciclagem através da experimentação criativa de

materiais e técnicas de confecção de papel artesanal e; a oficina da terra trabalhou a idéia

de paisagismo74.

Ao ser aprovado para financiamento pelo Programa de Capacitação Solidária o projeto

AAA recorreu a associação de moradores do Morro do Palácio para que esta divulgasse a

proposta para potenciais interessados. Foram produzidos cartazes e folhetos para serem

distribuídos pelos jovens que já estavam participando da oficina de jogos desde 1998.

Dessa divulgação 70 jovens, entre 14 e 21 anos, se inscreveram, dos quais 40 foram

selecionados para participarem do projeto, 13 moças e 27 rapazes. Do total de

participantes, 26 tinham entre 14 e 16 anos. Durante o financiamento, entre julho e

dezembro de 1999, duas meninas engravidaram. Até o fim de 2001, todas as 13 meninas,

à exceção de uma, tiveram filhos75.

O financiamento incluía o pagamento dos instrutores, almoço e lanche para os 40 alunos

e R$50,00 mensais para aqueles que cumprissem 75% de presença nas oficinas e

atividades do projeto. A contrapartida do MAC era fornecer o material para as oficinas e

a parceria com a Secretaria de Saúde rendeu verbas para a compra de equipamentos

permanentes como os liquidificadores industriais para fazer a polpa de papel. Foram

organizados, além da carga horária das oficinas, idas a eventos culturais como teatro,

cinema, espetáculos de dança e exposições, assim como visitas a empresas relacionadas

ao ramo de papelaria como encadernação e produção de artefatos de papel reciclado. Em

73 Essa talvez tenha sido a oficina que esteve mais próxima das questões diretamente referidas à vida

cotidiana dos jovens. 74 Assim como a educação oferecida na instituição, as oficinas também trabalhavam com uma concepção de

educação não-formal, na qual tinham um projeto pedagógico central, não necessariamente vinculado ao currículo escolar, mas relacionado aos objetivos do projeto.

75 Fez parte das atividades do projeto, durante o financiamento do PCS, uma palestra sobre sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis. A gravidez na adolescência tem sido tratada pelos quadros do projeto como uma questão importante a ser discutida. Durante algum tempo questionou-se esse como um dos motivos pelos quais as moças estariam abandonando o projeto – após o término do financiamento do PCS, apenas uma moça continuou participando das oficinas. O tema tem sido abordado sob o ponto da precocidade da gravidez e não de gravidez indesejada, haja vista que as moças expressaram seu desejo em ser mães.

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uma parceria com a Universidade Federal Fluminense, o projeto AAA foi opção de

estágio para alunos de ciências sociais.

Ao ser implementado, em julho de 1999, toda a equipe da Divisão de Educação do MAC

foi envolvida no projeto. Uma oficina de textos, denominada “quem sou eu?” passou a

acontecer uma vez por semana, ministrada por uma das profissionais daquela divisão.

Nessa oficina os jovens trabalharam textos na forma de diários discorrendo sobre suas

atividades, concepções de mundo, desejos, relacionamentos afetivos etc. Ao fim da

oficina, em dezembro, fez-se uma compilação de fragmentos dos textos de cada jovem e

montou-se um livro. O mesmo resultou do trabalho da oficina de português, sendo que

esse foi distribuído entre os jovens, enquanto o livro da oficina de textos teve apenas

quatro cópias impressas76 para serem distribuídas para possíveis instituições de fomento

do projeto. Os outros dois profissionais da divisão de educação se envolveram na oficina

de jogos e os estagiários da divisão também foram, de uma ou outra forma, envolvidos

com o projeto.

Antes mesmo do início de implementação da proposta surgiram as primeiras dificuldades.

A associação de moradores do local não se apresentava propícia para a prática das

oficinas devido ao seu tamanho exíguo e a falta de segurança que colocaria os materiais e

equipamentos em risco. Outro espaço pensado para atuação do projeto seria o Centro

Social, prédio de três andares, de propriedade da Igreja, que se encontrava sub-utilizado

(um consultório odontológico foi montado no prédio e aulas de catecismo e capoeira

eram ministradas durante a semana, nos fins-de-semana o prédio ficava fechado).

Entretanto, uma disputa de poder entre a associação de moradores e o sacerdote local

inviabilizou a utilização desse prédio, já que a entrada do projeto no morro havia sido

efetuada através da mediação da associação. Infelizmente não foi possível verificar o

contexto dessa disputa, haja vista que todas as tentativas de contactar o sacerdote local

falharam. Com dificuldades para encontrar espaço físico para sua atuação dentro da

76 A qualidade da impressão tornava-a uma peça cara para que fossem produzidas para distribuição entre os

jovens.

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comunidade, as oficinas ocorreram, de modo precário, durante o período de julho a

dezembro de 1999, no subsolo do MAC77.

Na avaliação do projeto78 foi ressaltado o cuidado que os jovens passaram a ter com a

“aparência física”, o “controle emocional” que foi discutido em relação a situações

específicas, o desenvolvimento de um “sentimento de pertença daquela comunidade” e de

“responsabilidade de cada um para o bem estar coletivo”. Durante todo o projeto, mesmo

depois do final do financiamento do PCS, os jovens foram incentivados de várias formas

a retomarem seus estudos79. Ao final de 2001, todos os jovens que continuavam

participando do projeto, em torno de 10, voltaram a estudar como parte do pré-requisito

para continuar participando do projeto.

No final de 1999 um dos profissionais ligados ao projeto AAA estabeleceu contato com

um dos dirigentes do BNDES que expressou o interesse da instituição em projetos como

aquele. Após consultas a respeito dos departamentos e linhas de financiamentos

institucionais, optou-se por apresentar o projeto para a Área de Desenvolvimento

Regional e Social do BNDES: programa de apoio às crianças e jovens em situação de

risco social80.

77 Além do espaço estar vazio, dispondo de mesas e bancos improvisados, a acústica dificultava os

instrutores e o aluguel do espaço, junto com o auditório, para convenções fazia com que as oficinas fossem inviabilizadas durante os períodos desses eventos.

78 O Programa de Capacitação Solidária solicita uma avaliação por escrito sobre o projeto financiado pela instituição, do qual foram retirados esses trechos.

79 O assunto foi abordado diversas vezes por vários dos instrutores, ressaltando a importância da educação. O coordenador do projeto conseguiu bolsas de estudo para alguns deles em uma escola particular. Essas bolsas acabaram não se concretizando, pois os próprios jovens não compareceram no dia da matrícula, mas acabaram inscrevendo-se em escolas públicas.

80 Segundo Bourdieu “cada sociedade, em cada momento, elabora um corpo de problemas sociais tidos por legítimos, dignos de serem discutidos, públicos, por vezes oficializados e, de certo modo, garantidos pelo Estado” (Bourdieu; 2000: 35). Nesse caso a categoria “jovens em situação de risco” é uma forma de classificar grupos, imprimindo uma lógica de di-visão do mundo social que define os jovens de uma determinada localidade em relação a um padrão oficial não explicitado. Seria preciso examinar a história social dessa categoria, ou desse “problema social”, na tentativa de desvendar o “trabalho social de construção dos instrumentos de construção da realidade social” (Bourdieu; 2000: 36), isto é, como é que este veio a ser um problema legítimo, socialmente reconhecido, uma categoria? Para tanto é preciso também levar em consideração o papel que o campo político e o campo burocrático têm na consagração e constituição dessas realidades sociais. O fato do BNDES ter um departamento que trata especificamente da questão dos “jovens em situação de risco” é uma forma de tornar público e oficial ao menos duas categorias, cada uma tendo como contrapartida seu oposto: “jovens” e “situação de risco”.

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3.2 À ESPERA DO BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL

O projeto foi apresentado ao banco no início de 2000. Tendo tido dificuldades com o

espaço físico para viabilização do projeto e levando em consideração que o BNDES

apenas financia infra-estrutura, os termos da proposta para essa instituição estavam

pautados na construção e instrumentalização do “centro de produção comunitária”.

Interessada no projeto, a instituição impôs algumas exigências para aprovação de uma

verba de R$300.000,00 (trezentos mil reais) para a construção do “centro”: viabilização

de uma parceria com a prefeitura que garantisse uma verba mensal para manutenção do

centro e um terreno para a construção do mesmo81.

O período imediatamente anterior à apresentação do projeto ao BNDES sedimentou a

situação institucional do AAA na medida em que consultas a órgãos jurídicos e ONGs

constataram que a concessão de verbas para esse tipo de instituição pelo Banco somente

poderia ser efetuado após dois anos mínimos de existência da organização. Portanto, a

única forma de obter o financiamento seria através do Museu de Arte Contemporânea. A

partir de então o projeto assumiu a identidade de uma ação institucional do museu.

Depois do fim do financiamento do PCS a maioria dos jovens se afastou do projeto. Em

torno de dez rapazes82 continuaram frequentando as oficinas que restaram83: oficina de

81 A prefeitura cedeu um terreno, que havia sido inicialmente reservado para uma área verde no morro, para

a construção do centro e a Secretaria de Saúde, através do Programa Médico de Família se comprometeu a dar R$3.000,00 (três mil reais) – que seriam reajustados para R$4.000,00 (quatro mil reais) quando da aprovação do projeto pelo BNDES – para o pagamento das despesas básicas do Centro e dos responsáveis pelas oficinas.

82 Com o fim do financiamento do PCS somente rapazes continuaram participando das oficinas. Apenas em ocasiões especiais uma moça participava, por ser esposa de um dos rapazes. Existe uma percepção, por parte das moças, de que os rapazes retêm informações a respeito do projeto no MAC, impedindo que estas cheguem até elas.

Existe uma divisão de gênero na faixa etária dos participantes do projeto, entre 12 e 21 anos que merece ser examinada. Essa divisão de gênero no projeto é percebida tanto pelos participantes do projeto, rapazes e moças, como pelos organizadores do AAA: na visão dos rapazes do projeto as moças não participam porque o único interesse delas está em namorar e constituir família – segundo eles, “elas só pensam naquilo” – e na visão das moças, essas consideram que os rapazes desejam acumular todos os possíveis frutos do projeto – recompensas materiais e prestígio. De certa forma pareceu que ambas as explicações são complementares. As moças abordadas a respeito do assunto estavam todas grávidas. Quando questionadas se estavam trabalhando, todas foram unânimes em responder que ficavam em casa para cuidar das crianças. A impressão que ficou das conversas com essas moças foi de que a maternidade precoce – entre 15 e 17 anos – poderia ser um recurso de ingresso no “mundo adulto”.

Ao mesmo tempo, a retenção de informações a respeito do projeto por parte dos rapazes poderia estar relacionada à tentativa de manter os elementos de distinção, proporcionados pelo fato de participarem de um grupo restrito, “trabalhando” no museu. Entretanto, segundo o discurso de um desses rapazes, o “fechamento” do grupo se dava por uma questão de proteção, acontecendo não somente no grupo que participa do AAA, mas entre todos que normalmente inscrevem-se em projetos sociais oferecidos na

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jogos neoconcretos, oficina de papel reciclado e oficina de português. As outras oficinas

foram interrompidas84. A oficina de papel reciclado alugou um espaço em uma casa para

funcionar, pois a disponibilidade do subsolo no museu era inconstante e a quantidade de

material que a oficina empregava exigia que o material pudesse ficar armazenado no

local de uso, o que não era possível no museu, já que o subsolo não tem portas e,

consequentemente não tem segurança.

A oficina de jogos neoconcretos continuou acontecendo no subsolo do museu. Durante

algum tempo uma das educadoras da Divisão de Educação assumiu a frente dessa oficina

até que em 2001 os jovens passaram a produzir os jogos sozinhos e a oficina adquiriu um

caráter mais específico de produção artesanal e menos de criação artística85. Esse caráter

também foi impresso à oficina de papel reciclado, apesar da presença frequente da

instrutora que, em certa medida, interrompeu o processo de experimentação artística para

produzir papel para firmas de encadernação e artistas com os quais travou relações

comerciais. A oficina de português continuou ocorrendo no subsolo do museu e sua

importância cresceu dentro do projeto. Na medida em que as outras oficinas perderam seu

região. Segundo ele, no interior dos grupos há uma valorização dos esforços de cada um, enquanto fora dos grupos eles estão expostos ao escárnio. Foi possível perceber em algumas visitas ao morro, efetuadas, na maioria das vezes em companhia dos jovens do projeto, situações de confronto, disputas às vezes veladas, às vezes explícitas quanto ao prestígio e a participação desses no projeto.

A reclamação das moças quanto à falta de circulação de informações sobre o projeto é complementada pelo próprio desinteresse dessas em se informar. As reclamações são complementares no sentido de que os rapazes mantém discrição sobre os ocorridos no projeto, fonte de conhecimento, mas, principalmente, fonte de renda, enquanto as moças complementam a relação homem-provedor/mulher-reprodutora, não indo atrás das informações.

Infere-se que essa divisão de gênero seja uma característica específica da faixa etária devido à história das instituições presentes no morro – Associação de Moradores e a creche comunitária – que foram todas fundadas e têm sido dirigidas por mulheres.

83 O único momento em que podemos falar de um número exato de participantes foi durante o financiamento do PCS. Antes e depois disso as oficinas tiveram um caráter informal, convidando os novos participantes a ingressarem no curso a qualquer momento. O afastamento e ocasional retorno de rapazes que haviam participado do projeto durante o financiamento do PCS, esteve relacionado, muitas vezes, ao surgimento de encomendas comerciais para a confecção de papel artesanal.

84 A oficina da terra foi interrompida por não haver espaço permanente disponível para trabalhar da forma que o instrutor havia idealizado o curso. A oficina de educação ambiental continuou em outro formato, atendendo a necessidades variadas da Secretaria de Meio Ambiente e da Secretaria de Educação até que o instrutor afastou-se para concluir sua tese de mestrado, com possibilidade de retorno posterior.

85 É preciso ressaltar a atuação de um participante específico que tendo se entusiasmado com a possibilidade de exercer a profissão de artista e designer continuou sua exploração criativa por conta própria e foi amplamente incentivado pelos profissionais do projeto. O que deixou de ocorrer foi o investimento de tempo que a presença dos instrutores nas oficinas requeria e que significava importante incentivo à exploração criativa de novos materiais e novas formas. Sem a presença dos instrutores as oficinas ficaram quase completamente restritas à reprodução das formas anteriormente exploradas, em detrimento da produção de novas idéias.

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caráter experimental e, tendo os instrutores do projeto incentivado e conquistado a adesão

dos jovens ao projeto escolar, essa oficina passou a servir de apoio ao processo de

aprendizagem, usando, muitas vezes, as dificuldades na escola, em outras disciplinas,

para desenvolver seu trabalho, o que lhe conferiu prestígio junto aos rapazes86.

No período entre janeiro de 2000 e dezembro de 2001 o projeto foi sustentado com uma

verba proveniente da Secretaria de Saúde, através de uma parceria entre o AAA e o

Programa Médico de Família. Em documento oficial endereçado ao presidente da

Fundação Municipal de Saúde, a vice-presidente da Atenção Coletiva, Ambulatorial e da

Família – Programa Médico de Família ressalta

”o grande interesse do PMF em se articular intersetorialmente uma vez que metodologicamente trabalhamos com um conceito de saúde, que considera, além do aspecto biológico, os aspectos econômicos-ambientais e culturais como intervenientes no processo saúde e doença.”

A verba daí proveniente servia para pagar os instrutores – de português, de papel e um

assistente para a oficina de papel – e para o pagamento de aluguel e luz do local onde

acontecia a oficina. Além dessa verba, a FUNIARTE, Fundação Niteroiense de Arte,

custeou uma estagiária para atuar junto ao projeto. Os jovens deixaram de receber a

quantia mensal, mas o MAC assumiu os custos do fornecimento de almoço e de lanche

para aqueles que continuassem frequentando as oficinas.

Durante o ano de 2000 e 2001, organizadores e participantes ficaram na expectativa do

financiamento do BNDES. Em abril de 2001, foi inaugurado um ponto de vendas dentro

86 A importância que essa oficina adquiriu junto aos rapazes refere-se ao prestígio que esses conquistaram

em suas respectivas escolas por seus desempenhos, realçados por seus professores e diversas vezes enfatizados por eles. Durante o financiamento do PCS, a importância das oficinas de educação ambiental, jogos neoconcretos e papel reciclado suplantava a de português. O prestígio dessas oficinas junto aos jovens esteve relacionado ao reforço de sua identidade social, que se fortalecia, naquele momento, pela ênfase dada à sua capacidade de percepção, seja do mundo social (educação ambiental), seja das cores, formas e texturas (oficina de jogos neoconcretos e papel reciclado) e sua capacidade de produção, seja de peças teatrais abordando os temas das aulas de educação ambiental, seja de artefatos artesanais nas outras duas oficinas. O prestígio dessas oficinas esteve também relacionado à identidade social dos instrutores que além de serem os organizadores do projeto, tinham maior experiência (a instrutora de educação estava ainda em processo de graduação quando entrou para o projeto, enquanto todos os outros instrutores já contavam com larga experiência profissional), tinham maior liberdade de trânsito e melhor comunicação com as duas principais instituições envolvidas no projeto: o PCS e o MAC. No momento em que as oficinas de papel e jogos deixaram de lado a faceta mais experimental de seu processo e a oficina de educação ambiental deixou de acontecer, o reforço de sua identidade social passou a se constituir, principalmente, a partir do prestígio conquistado junto à escola, em grande medida auxiliado pela oficina de português.

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do museu, ao lado da loja de souvenirs, para comercialização dos produtos das oficinas.

A iniciativa partiu dos organizadores do projeto, solicitando o espaço junto à direção

executiva do museu. Para cuidar do ponto de vendas foram convocados os jovens

participantes do projeto, assim como qualquer outro, da comunidade, que se interessasse.

Os jovens, alguns participantes de oficinas e outros não, decidiram entre si seus turnos de

trabalho87.

Para que trabalhassem no ponto de vendas foi exigido que usassem a camiseta do museu

como uma forma de serem reconhecidos como funcionários da instituição88. O ponto de

vendas, entretanto, funcionou precariamente. O responsável, muitas vezes, não chegava

na hora e outras vezes faltava por motivos diversos: ir à praia em dia de sol, médico, ou

qualquer outra razão. Em maio, um mês depois de inaugurada, o coordenador do projeto

e diretor da divisão de educação encontrava-se ausente e a diretora executiva do museu

assumiu a frente da questão e convocou uma reunião com os jovens. Nessa reunião ela

87 O horário de funcionamento do ponto de vendas foi definido pelos participantes das oficinas que

decidiram que se revezariam todos os dias – de terça-feira à domingo – no cuidado do empreendimento. A partir de um curso de gestão empresarial, ministrado pelo SEBRAE, o dinheiro arrecadado na venda dos produtos era dividido entre os produtores dos artigos, isto é, os participantes das oficinas, e a compra de material para a produção de novos artigos. Não foi possível acompanhar o curso, mas o programa apresentava como conteúdo os seguintes ítens: funções administrativas, planejamento empresarial, controle financeiro, formação de preços e técnicas de vendas.

88 A venda dos produtos das oficinas podia render entre R15,00 e R$30,00 para cada um. O projeto Jovens Pela Paz, do Estado do Rio de Janeiro, no qual alguns dos rapazes do projeto AAA participavam rendia um R$239,00 por mês e um projeto de informática que estava sendo oferecido no Morro do Palácio e do qual alguns também participavam pagava R$50,00 por mês. Portanto, em termos financeiros, a renda das oficinas e do ponto de vendas não tinha muita relevância para o orçamento desses jovens. Entretanto, Bourdieu (2000) menciona a predisposição dos jovens em participarem do mundo do trabalho por sua identificação com o mundo dos adultos, o que torna o interesse no trabalho irredutível ao lucro monetário. Essa explicação faz sentido no caso do Morro do Palácio. A aceitação de um trabalho que rende pouco, seria, para Bourdieu, na realidade um desejo, reforçado pelas experiências e transformações de atitudes que ela implica. Durante incursão ao Morro do Palácio, foi possível perceber que o trabalho surge na fala dos moradores do morro, em referência aos jovens que participam do projeto, como uma forma de distinção. Esse signo torna-se ainda mais prestigioso pelo fato de referir-se ao museu, como orgulhosamente colocado por uma moradora: “o genro de seu Luiz trabalha no museu”. No depoimento de um dos participantes do projeto, sua mãe não queria que ele continuasse participando do AAA após o término da bolsa do Capacitação Solidária, até que o ponto de vendas foi instituído e ele começou a “trabalhar” no museu.

Bourdieu fala também da importância de considerarmos o processo de investimento do trabalhador que contribuiu para sua própria exploração, pois as liberdades, por menores e mais funcionais que sejam, lhes conferem um espaço profissional, inserindo-os na hierarquia de um campo profissional. É interessante notarmos a utilização da categoria artesão, adotada por um dos jovens participantes do projeto ao referir-se a sua atuação profissional. Ao apresentar-se para a inscrição no Projeto Jovens Pela Paz, esse rapaz que havia preenchido a ficha do AAA como estudante, agora adotava para si essa nova categoria.

Essa análise pode ajudar a pensar a questão da divisão de gêneros observada entre os participantes do projeto. Uma vez que as moças dispõe da maternidade para o ingresso no “mundo adulto”, os rapazes

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solicitou responsabilidade no trato com o ponto de vendas, pois como essa encontrava-se

dentro da instituição, deveria estar de acordo com as normas de conduta e a imagem de

profissionalismo através das quais a instituição desejava ser reconhecida. De acordo com

comentários da diretora, o resultado dessa reunião foi uma resposta, por parte dos jovens,

que adotava em seu discurso o jargão que a diretora havia utilizado para fazer suas

exigências com relação ao ponto de vendas: responsabilidade, disciplina e compromisso.

Com essa resposta eles conquistaram de volta a confiança da diretora, ao menos por mais

algum tempo. O ponto de vendas foi fechado, pela mesma razão que motivou a reunião

entre a diretora e os rapazes, em janeiro de 2002, no momento em que se iniciava o

processo de reestruturação do projeto. Não foi possível, entretanto, acompanhar o

impacto que isso acarretou entre os rapazes.

3.3 RECONHECIMENTO E REESTRUTURAÇÃO

Em dezembro de 2001 foi confirmado o financiamento do BNDES. Antes mesmo da

confirmação foi possível perceber o reconhecimento que este financiamento representava

na sua utilização para solicitação de recursos feita pelo Programa Médico de Família à

Fundação Municipal de Saúde:

Lembramos ainda que este projeto acabou de receber recursos de infra-estrutura provenientes do BNDES para ampliar sua atuação em nosso Município, o que também demonstra o reconhecimento deste trabalho.

A confirmação do financiamento trouxe novo estímulo para os profissionais envolvidos

no projeto. O coordenador convocou os rapazes para uma revisão de todos os artistas e

técnicas trabalhados desde o início, em 1998, com vistas a prepara-los para o papel de

multiplicadores, o qual se pretendia que eles viessem a desempenhar quando o “centro de

produção” estivesse pronto.

Junto com o reconhecimento que a confirmação do investimento do BNDES representou,

foi possível perceber as tensões provenientes da necessidade de reestruturar o projeto,

haja vista que essa reestruturação trazia implícita a necessidade de rediscutir as

pretensões, a identidade dessa iniciativa. Parecia haver uma duplicidade de objetivos que

reservam para si o projeto como conquista de uma capacitação profissional que lhes permita essa inserção.

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não encontrava síntese entre os idealizadores da proposta: um dizia respeito à formação

de cidadania e outro visava a formação de uma cooperativa que gerasse renda para os

participantes. A revisão dos conceitos subjacentes à oficina de jogos não encontrava

sentido na necessidade apontada pela instrutora de papel reciclado em aumentar a

produção para transformar a oficina em um centro produtor de papel artesanal e,

eventualmente, formar uma cooperativa de produtores na região. O coordenador do

projeto, representante da identidade institucional do AAA, parecia querer lidar com a

questão da cidadania através do desenvolvimento de uma forma de autonomia do

pensamento, que apresentava dificuldades em conciliar, no interior do projeto, uma outra

vertente que tinha como objetivo a noção de autonomia financeira.

Essa dificuldade em definir os objetivos do AAA e conciliar os diferentes objetivos, em

certa medida, encontrava eco no interior do grupo de jovens. A apatia dos rapazes em

relação às oficinas e o desinteresse deles quanto ao fato de se tornarem multiplicadores

gerava tensão no grupo de profissionais. A aprovação da verba do BNDES aumentava

significativamente a responsabilidade dos profissionais quanto ao andamento do projeto,

contribuindo para a necessidade de uma avaliação do AAA como um todo.

Concomitante à questão da apatia dos rapazes, havia a necessidade de trabalhar questões

concernentes ao comportamento social destes. O constante desaparecimento de dinheiro

relacionado à venda dos produtos no ponto de vendas e de material das oficinas trouxe de

volta a idéia de chamar um profissional da área de psicologia para lidar com essas

questões89.

A decisão para a convocação desse profissional partiu de uma reunião na qual foi

discutido o problema do desaparecimento de dinheiro e material. Na primeira visita da

psicóloga o conteúdo da conversa inicial com o coordenador do projeto girou em torno da

necessidade de definir a identidade do AAA. Essa questão parecia, para o coordenador,

estar relacionada, principalmente, aos jovens e suas expectativas quanto ao projeto. A

abordagem da psicóloga, entretanto, visava uma definição relacional que trabalhasse a

89 A convocação de uma psicóloga já havia sido cogitada anteriormente. Assim que o grupo começou a

trabalhar, em julho de 1999, a profissional foi convocada, mas por motivos pessoais não pôde levar o trabalho adiante. Somente com a nova convocação foi possível descobrir o motivo da presença de uma psicóloga naquele momento anterior. O problema de objetivos desconexos já era sentido então e a dificuldade de comunicação do grupo tornava a visualização do problema difícil para os integrantes do AAA, requerendo um olhar externo que desse conta de avaliar a situação e facilitar a comunicação.

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expectativa dos jovens em relação aos objetivos e dificuldades do grupo de profissionais

responsável pela implementação e administração do projeto.

A expectativa inicial entre os profissionais envolvidos no projeto em relação à conduta da

psicóloga era a de que fossem ser efetuados encontros, desde o início do trabalho, com os

rapazes. A primeira reunião havia sido agendada com esse intuito e os jovens haviam

sido avisados sobre esse encontro durante uma sessão da oficina de jogos90. A proposta da

psicóloga, entretanto, sugeria trabalhar primeiro com os profissionais para depois

trabalhar com os jovens, primeiro definir o que os profissionais pretendiam com o projeto

e como estavam lidando com as situações que surgiam para então trabalhar com as

expectativas e a conduta dos jovens.

Era necessário entender as expectativas e objetivos pessoais de cada profissional e as

dificuldades da própria equipe envolvida com a proposta para que fosse possível trabalhar

junto aos rapazes as expectativas desses em relação aos objetivos do AAA. Somente

podendo conciliar os interesses de todos, ajudando no estabelecimento de uma rede de

comunicação entre os profissionais, talvez fosse possível construir um sistema que

permitisse mediar entre os objetivos do projeto e do grupo de jovens.

A entrada da psicóloga parecia ser, nesse sentido, de extrema importância, haja vista que

até então o projeto havia sido idealizado e implementado sem consulta às expectativas e

desejos do público alvo da intervenção. Entretanto, devido ao término da pesquisa de

campo, não foi possível observar o processo de “terapia” institucional, assim como a

influência do trabalho dessa profissional no processo de construção das identidades.

3.4 A IDENTIDADE INSTITUCIONAL DO PROJETO

Poucos meses antes da confirmação do financiamento do BNDES, o coordenador do

projeto havia comentado a respeito da situação do AAA naquele momento: uma situação

“comercial, que tem que ser bem administrada”. Enquanto se esperava o financiamento,

90 Apenas um dos jovens mostrou-se reticente quanto à vinda de uma psicóloga para trabalhar com eles.

Entretanto, a conduta do coordenador, não dando atenção especial a sua reação hostil e mencionando calmamente a necessidade deles trabalharem a questão das relações de grupo parece ter minimizado a concepção estigmatizada que o rapaz tinha em relação à presença de tal profissional. No dia da primeira

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as oficinas adquiriram um caráter profissionalizante, tendo a oficina de papel reciclado

adotado, inclusive, mostruários para a venda de seus produtos. Essa oficina funcionava

em dois turnos de três horas cada, duas vezes por semana e produzia para suprir

encomendas diversas. Alguns workshops foram ministrados para grupos da Secretaria de

Meio Ambiente do município de São Gonçalo, nos quais os rapazes explicavam o

processo de confecção do papel como forma de sistematizar e exercitar a apresentação do

conhecimento adquirido91.

Na oficina de jogos, por sua vez, os jovens vinham trabalhando majoritariamente

sozinhos na produção dos objetos, que eram escoados exclusivamente na loja

estabelecida no museu. Um quadro com o nome de cada um e informações sobre a

produção controlava quem produzia o quê e os próprios jovens se organizavam para

comprar material para produção dos artefatos. A aprovação do BNDES, com o

consequente aumento de responsabilidade que o empréstimo acarretava, tornou

imperativo que se fizesse uma revisão no projeto. Houve uma mobilização em relação ao

AAA e reuniões em diversos níveis foram realizadas.

Além da identidade do AAA, identificada pelos instrutores com objetivos diferentes,

havia ainda a necessidade de esclarecer o interesse da instituição MAC no projeto. Desde

a primeira oficina em 1998, uma postura ambígua, por parte da instituição, foi adotada

face à iniciativa de intervenção. O AAA parecia, muitas vezes, não ser considerado um

projeto da instituição, apesar de ter sido sempre apresentado como uma iniciativa do

Museu de Arte Contemporânea de Niterói. Ao falar sobre o assunto em uma entrevista, a

diretora executiva do museu disse que esse era um empreendimento cujo mérito

exclusivo era do coordenador do projeto:

“Fico impressionada com a tenacidade do (diretor da Divisão de Educação). Ele insiste até conseguir o que quer. Sei que não podemos consertar o mundo, mas só de saber que estamos fazendo alguma coisa de boa para a comunidade ali em frente já fico mais feliz. Quando digo nós, quero dizer eles do projeto”.

reunião, quando comemorou-se, também, o aniversário de um deles, o rapaz que havia reagido ao trabalho da psicóloga estava presente.

91 Foi possível perceber, em diversas oportunidades, o orgulho, muitas vezes tímido, dos rapazes em expor seus conhecimentos. Pude acompanhar em uma ocasião a oficina de papel e a oficina de jogos sendo ministrada para os visitantes do museu. Seus olhos reluziam e os sorrisos estampados nos rostos não deixavam dúvida quanto ao prazer que tinham em estar mostrando o que haviam aprendido.

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O fato de creditar o mérito todo ao coordenador do projeto e sua equipe, não incluindo a

instituição como sujeito ativo no processo, é um indício de que a proposta, em algum

nível, não está vinculada à instituição, que, em caso contrário, estaria assumindo para si

parte da responsabilidade e do mérito pelo trabalho realizado.

Apesar da íntima relação da instituição com a política municipal92, e da aparente

adequação da proposta do AAA em relação à estratégia política93 do prefeito de Niterói, a

participação da direção no projeto, quando acontecia, era através da crítica ao que não

estava de acordo com os padrões de exigência da instituição. Foi enfatizado o temor de

que o projeto pudesse significar um envolvimento da instituição em disputas políticas94.

“Não quero entrar em disputas políticas, isso a gente faz aqui dentro do Museu. Não me

interessa quem gosta ou não de Dona Lúcia. O prefeito gosta muito dela e não quero

entrar em briga”.

O fato da diretora executiva ser parente do prefeito do município, acaba dificultando a

realização de um trabalho que esteja em contato direto com qualquer grupo social, já que

isso pode significar questionamentos ou reivindicações com respeito a atuação da

instituição em relação à administração municipal. Para outro membro da diretoria apesar

92 A diretora executiva do museu é irmã do prefeito de Niterói e ambos eram membros do Conselho

Deliberativo do museu até a data de redação deste trabalho. 93 O projeto apresenta como uma de suas finalidades “a expansão do conceito qualidade de vida, em uma

perspectiva de cidadania cultural, voltada para o desenvolvimento individual e coletivo”. O conceito “qualidade de vida” é condizente com a propaganda política do governo municipal. Entretanto, de alguma forma o projeto parece não ser suficientemente atraente para ser integrado à política de desenvolvimento sócio-cultural exaltada pela administração municipal como centro de suas preocupações políticas.

94 Em dois meses de incursões ao Morro do Palácio, com o intuito de conhecer um pouco a respeito do contexto social no qual o projeto AAA se propunha intervir, foi possível conhecer um pouco a respeito de uma disputa interna à comunidade que dizia respeito à fundação da Associação de Moradores e ao cargo de presidente da mesma.

A fundação da Associação apareceu como um marco, principalmente para as pessoas diretamente relacionadas ao evento. Surgiram aí também as mudanças referidas aos processos de interação entre os diversos grupos sociais assentados no local. Os cargos de presidente da Associação de Moradores e diretora da creche do Morro, eram motivo de disputa entre duas famílias de fundadoras das duas instituições. Além da disputa pelo prestígio conferido pela ocupação do cargo de presidente da Associação de Moradores, poucos anos depois da fundação da Associação, dona Lúcia, presidente dessa instituição, tornou-se assessora do prefeito do município, cargo que ocupava até o momento da pesquisa. A ocupação desses dois cargos colocava em jogo um duplo vínculo, pois como representante dos moradores, ao mesmo tempo em que participava da política municipal como assessora do prefeito, dona Lúcia ocupava papéis que podiam acionar, em situações específicas, interesses distintos ou mesmo opostos. A participação em esferas distintas de poder tornava-se explícita em sua fala, quando, por vezes, dona Lúcia não se incluía como membro do grupo que representava: “a gente trabalha pra melhorar as condições de vida, pra que eles tenham uma coisa ... que valha a pena pra eles, pra nós”.

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de enfatizar a necessidade de se levar em consideração a função social do museu, o

projeto, em sua concepção, é uma forma da instituição melhorar seu relacionamento com

a vizinhança.

Comparando duas situações diversas, foi possível perceber tanto o desinteresse manifesto

na afirmação do desconhecimento, após três anos de projeto, dos nomes de qualquer um

dos rapazes por parte da diretoria, como o orgulho do tom de voz da diretora executiva ao

mencionar a desenvoltura de um dos rapazes ao contesta-la, expressando sua opinião em

determinado assunto. Ao sugerir uma embalagem de papel para os produtos das oficinas

um dos rapazes teria dito: “não, não é bom porque vai esconder o trabalho. Melhor se for

de plástico transparente”.

Essa ambiguidade por parte da diretoria encontrava eco na forma como os funcionários –

recepcionistas, responsáveis pela loja do museu, funcionários de limpeza – lidavam com

as situações e os produtos do projeto. Um exemplo diz respeito à questão da cessão do

espaço do subsolo para as oficinas: cada vez que um evento ocorria naquele espaço95, os

funcionários tratavam os trabalhos e o material das oficinas de forma desleixada,

jogando, amassando e desorganizando tudo. Essa postura foi motivo de reclamações por

parte dos rapazes participantes e dos profissionais do projeto ao longo dos três anos em

que o AAA vinha ocorrendo, sem ter havido qualquer modificação na forma de lidar com

o material ao longo do tempo.

Em outro exemplo, quando a primeira oficina foi realizada em 1998, trabalhou-se a noção

de jogo a partir da obra de Sérgio Camargo, tendo o sabão de côco como veículo de

experimentação. O resultado da oficina foram pequenas esculturas de sabão que ficaram

armazenadas no subsolo96 do museu, junto com o resto do material da oficina. Em

determinada ocasião, os vigias do museu utilizaram as esculturas para seu banho. O fato

foi comentado várias vezes pelos jovens, com ressentimento.

Uma das disputas políticas que mencionava a diretora do museu dizia respeito diretamente às divisões

internas aos moradores com relação a seus representantes legítimos e aos cargos de poder disponíveis nas instituições locais: a Associação de Moradores e a creche comunitária.

95 O espaço é alugado eventualmente para cerimônias diversas. 96 Esse espaço foi a moeda de troca da prefeitura com o proprietário do terreno. O acordo prevê a

exploração do espaço pelo antigo proprietário por 20 anos, a partir da inauguração do museu, para a montagem de um restaurante. O subsolo é um espaço amplo que conta com um auditório, um espaço livre, onde os jovens trabalham, banheiros e um espaço que havia sido previsto como reserva técnica, mas que não pode ser usado porque é pequeno para conter a coleção do museu.

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Apesar da dificuldade em perceber a importância de atribuir valor aos produtos realizados

pelos rapazes, existe, por parte dos funcionários do museu, um reconhecimento com

relação a uma influência positiva do AAA junto aos jovens. Além da relação afetuosa

mantida com os rapazes, existe uma valorização dos princípios universalizantes de

responsabilidade e racionalização, através da noção de um projeto de vida que os faça

pensar no futuro e não somente no presente, e uma preocupação com a ocupação do

tempo ocioso desses jovens.

Uma funcionária de limpeza do museu comentou, com orgulho, ter visto um dos rapazes

pegando o ônibus, “todo arrumado”, para trabalhar como segurança de um evento. Essa

funcionária ressaltou a noção de responsabilidade que a participação no projeto havia

transmitido aos rapazes e complementou: “o melhor que aconteceu para esses meninos

foi esse projeto. Quem pensou o projeto fez muito bem”.

Ao longo do tempo, as diferentes agências que mostraram interesse no projeto – PCS,

BNDES, redes de televisão (TVE, TV Futura), diversos periódicos, além da possibilidade

de levar a idéia do projeto como parte integrante das propostas do museu para um

congresso de museus, em 1999 – contribuiu para construir uma relação de admiração da

diretoria pelo projeto, na qual esta se manteve, entretanto, tanto quanto possível, isenta

das responsabilidades que o empreendimento exigia.

Sendo assim qual seria a identidade institucional do projeto? Aquela que se define pela

representação feita pelos funcionários do museu, aquela feita pelos diretores, ou pelos

idealizadores e implementadores? Seria possível apontar uma identidade? Ou o projeto é

formado pelas múltiplas identidades a ele atribuídas pelos diversos agentes direta e

indiretamente envolvidos, em constante transformação de acordo com as situações

diversas? Nesse sentido a noção de identidade não pode ser definida de forma absoluta,

estando sempre relativa ao tempo e ao lugar do qual é percebida.

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4. OS JOVENS E SUA RELAÇÃO COM O PROJETO

Antoni Muntadas97

“O que em mim sente está pensando”

Fernando Pessoa

O projeto AAA não tem fronteiras definidas, confundindo-se com as atividades da

Divisão de Educação do MAC. Outras propostas daí originárias, como a atividade com a

creche comunitária do Morro do Palácio e com o grupo de terceira idade, articulado pelo

Programa Médico de Família na mesma comunidade, estão relacionadas ao projeto na

medida em que essas propostas também pretendem ser, mais tarde, oferecidas no Centro

de Produção Comunitária do AAA98. Apesar de ter tomado conhecimento dessas outras

propostas, não faziam parte do escopo da pesquisa as atividades colaterais da Divisão de

Educação. Portanto, me detive no acompanhamento do grupo de rapazes que continuou a

frequentar as oficinas após o término do financiamento do PCS.

Infelizmente não foi possível acompanhar o momento inicial de contato com os jovens do

Morro do Palácio, em 1998, já que nesse período meus objetivos no museu eram outros e

os espaços físicos ocupados pelos jovens e eu eram distintos. Entretanto, foi possível

resgatar da memória observações quanto ao comportamento dos jovens e o andamento

das oficinas que ocorreram em 1999. Portanto, as análises aqui empreendidas referem-se,

principalmente, ao período entre fevereiro de 2001 e janeiro de 2002, quando passei a

anotar sistematicamente minhas impressões, mas algumas observações estão referidas ao

período de minha participação no projeto como educadora, em 1999.

No início, em 1999, o grupo era bastante irrequieto e barulhento, falando muito alto, mas,

quando individualmente solicitados, mostravam-se bastante tímidos. Quando iniciei a

97 Muntadas é um artista conceitual, nascido na Espanha em 1942. “Desde a década de 70 e especialmente a

partir dos anos 80, alcançou visibilidade internacional graças à realização de obras mergulhadas em observações sociológicas e políticas. Seus temas prediletos são o efeito da comunicação de massas na sociedade, os jogos de poder que permeiam o espaço da cidade e os sistemas de controle social embutidos nos equipamentos urbanos” (Herkenhoff, 2002). Essa imagem é a reprodução da obra que faz parte do Projeto Inserções do Ensaio visual encartado no Caderno T, n.º 16, fevereiro de 2002. na revista Bravo!, ano 5, fevereiro de 2002, sob curadoria de Paulo Herkenhoff e Angélica Moraes.

98 Essas duas propostas visam intervir em outras faixas etárias do morro com o objetivo de trabalhar as relações intergeneracionais.

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pesquisa, em 2001, foi possível perceber algumas modificações no comportamento dos

rapazes que continuaram frequentando as oficinas. As mudanças, numérica e de gênero,

apresentadas pelo grupo durante e depois do financiamento do PCS constituem

importante diferencial a ser considerado na análise de comportamento: dos 40 jovens,

entre rapazes e moças, restaram em torno de 10 rapazes no período posterior, aos quais se

somaram mais 5 em 2001. A redução do grupo e a ausência de moças pode ter

contribuído para que os rapazes se sentissem mais à vontade para manifestar suas

opiniões, assim como, principalmente a ausência de moças, pode ter contribuído para que

se tornassem menos eufóricos. Não se deve, entretanto, desconsiderar o trabalho de

construção de afetos99 e reforço da identidade social dos jovens que o período de

convivência prolongada entre os rapazes e a equipe do projeto propiciou.

99 O estreitamento dos laços afetivos entre os jovens e os instrutores deu-se no espaço de um frequente

embaçamento das fronteiras entre o profissional/público e o pessoal/privado. Mais do que um projeto que propunha trabalhar com os jovens noções estéticas e uma profissão na área da artesania, o AAA apresentava como um de seus objetivos trabalhar o fortalecimento de sua identidade social através da noção de “auto-estima”. O trabalho da equipe, portanto, era interferir na construção de uma identidade referida, em grande medida, à forma com a qual os jovens lidavam consigo mesmos e seu cotidiano – família, profissão, escola, amigos etc. Assim a categoria abstrata “jovens em situação de risco”, público-alvo do projeto, especialmente na versão apresentada para o BNDES, tornava-se concreta no enfrentamento, por parte dos profissionais do AAA, de questões que eram percebidas pelos interventores como necessárias de serem discutidas: gravidez na adolescência, falta de perspectiva profissional, problemas familiares etc. O grupo de profissionais não parecia se propor resolver essas questões, mas em algumas situações, fornecer subsídios para que os jovens revissem suas posições em relação a elas. A gravidez na adolescência, por exemplo, foi trabalhada através da convocação de um grupo da secretaria de saúde para fazer uma palestra para os jovens sobre DST (doenças sexualmente transmissíveis) e métodos anti-concepcionais. Com relação aos estudos dos rapazes – muitos deles não estavam frequentando a escola no período do financiamento do PCS –, o coordenador do projeto conseguiu algumas bolsas de estudo em uma escola particular de Niterói. Não tendo tido sucesso com essa iniciativa, seguiu-se a exigência de que aqueles que quisessem continuar no projeto teriam que voltar a estudar. Sem entrar no mérito da questão em si e da forma como foi conduzida, essa foi uma atitude, em grande medida, paternal, que parece ter sido recebida positivamente pelos rapazes, haja vista que, sem incentivo financeiro – até a inauguração do ponto de vendas, em 2001, não havia retorno financeiro para os rapazes que continuaram a participar das oficinas –, alguns optaram por voltar a estudar e continuar participando do projeto.

Além dessa preocupação com questões tidas, por parte dos interventores, como “problemáticas” para os jovens, a própria persistência no projeto, por parte dos profissionais, funcionando precariamente há quase três anos, parece estreitar a confiança dos jovens em relação àqueles. Após o término do financiamento do PCS, o AAA manteve-se com dificuldades financeiras que, em alguns momentos, traduziram-se na utilização de recursos pessoais dos profissionais para que as oficinas pudessem se manter. O financiamento do BNDES prevê apenas a infra-estrutura, sendo que um orçamento mínimo para pagamento dos profissionais e, posteriormente, manutenção do espaço físico do projeto – o centro de produção – pleiteado junto à prefeitura, não tem sido suficiente para manter os vários profissionais envolvidos – instrutores de papel, jogos e português, um assistente para a oficina de papel e uma psicóloga –, compra de material e outros gastos como o aluguel do espaço para funcionamento da oficina de papel.

Em determinada ocasião, durante a incursão pela comunidade, afim de conhecer um pouco do contexto da intervenção, ouvi de uma moradora do morro: “Depois que terminar seu trabalho, vê se não desaparece”.

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Durante a oficina de introdução à programação visual100, foi possível presenciar a

dificuldade dos jovens em expressar suas idéias. Uma das atividades da oficina foi

confeccionar uma placa para a inauguração do jardim. No processo de confecção da

placa, quando perguntei sobre a opinião dos participantes em relação a um detalhe

específico não foi possível obter uma resposta definitiva de nenhum deles. Dos sete

rapazes que participavam da oficina, apenas um esboçou uma resposta dizendo que

preferia “o que a senhora preferir”. Apesar da insistência em querer ouvir a opinião

deles, não foi possível conseguir outra resposta101. Esse evento foi comentado pelo

instrutor da oficina de educação ambiental: “o importante nesse momento inicial é

concretizar alguma coisa, mesmo que a gente tenha que fazer por eles”. Nesse processo

de reforço da identidade social dos jovens parecia ser necessário realizar qualquer coisa

que pudesse, em alguma medida, ser creditada a eles, possibilitando que eles tivessem

algum tipo de reconhecimento quanto a suas capacidades produtivas.

Quando comecei a acompanhar o projeto, em 2001, foi possível perceber uma enorme

mudança na forma deles se expressarem102. Essas transformações tornaram-se ainda mais

A falta de continuidade e o interesse no assentamento como mero fornecedor de subsídios para pesquisas pessoais ou fonte de renda para projetos fugazes parece ser motivo de incomodo para os moradores – esse tema surgiu também na pergunta de outra moradora: “você está ganhando para fazer esse trabalho?”. O fato do AAA perseverar, mesmo com todas as dificuldades, parece contribuir para a construção do prestígio que os profissionais do projeto mantêm junto aos jovens.

Entretanto, essa questão financeira gera ambiguidade. A eventual apreciação por parte dos jovens pelo fato dos profissionais estarem trabalhando a despeito de disporem de pouca verba é o outro lado de uma moeda que apresenta o trabalho com as classes populares como algo de importância diminuta. Essa impressão se confirma, em certa medida, com a insatisfação dos profissionais que, sem recursos financeiros, precisam trabalhar em outros projetos profissionais, comprometendo sua atuação no AAA. A dificuldade surge da conciliação do tempo entre os trabalhos para o sustento e um trabalho que acaba por apresentar-se quase meramente filantrópico. Algebaile (1996) analisa a morosidade burocrática em relação à liberação de verbas e os constantes percalços de um trabalho cultural com as classes populares como uma pedagogia às avessas que desvaloriza e desestimula as práticas culturais junto a esses grupos.

100 Essa oficina teve apenas quatro encontros, durante os quais foram produzidos dois folhetos sobre meio ambiente e duas placas de inauguração do jardim, trabalho efetuado pela oficina da terra. Esse jardim, localizado em um espaço no morro, foi inaugurado como atividade de encerramento do projeto, em dezembro de 1999. Como a oficina de introdução à programação visual era informal, não havia obrigatoriedade de participação, ficando a cargo dos jovens optarem por frequentar ou não.

101 Sendo a dimensão estética uma das áreas nas quais existe uma relação de forças caracterizada pela distribuição diferenciada de capital cultural e econômico, na qual cada forma de capital ocupa posições distintas, de acordo com seu acúmulo, em esferas hierárquicas diversas, a abdicação de opiniões a respeito de um assunto da competência estética por agentes de uma fração dominada indica o reconhecimento de sua condição não autorizada para falar no assunto.

102 Um dos rapazes que, no início do projeto, quase não falava e quando o fazia era quase inaudível, mal articulando as palavras, tornando a compreensão quase impossível, estava, em 2001, mais extrovertido, emitindo suas opiniões, articulando as palavras de forma compreensível e falando em um volume

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contrastantes na medida em que pude comparar o comportamento desses rapazes com o

de novos participantes que haviam ingressado recentemente nas oficinas, apresentando

um comportamento, em grande medida, próximo ao apresentado pelos outros na época do

financiamento do PCS.

Em maio de 2001, durante a oficina de português, uma das atividades consistiu numa

dinâmica de grupo na qual foi possível perceber a diferença de comportamento entre os

rapazes que participavam do projeto desde 1998 e um rapaz que havia começado a

frequentar as oficinas há apenas seis meses. Os três rapazes que participavam há mais

tempo mostraram uma desenvoltura não encontrada no rapaz mais novo103.

Todos sentaram-se em cadeiras formando um círculo. A instrutora deu um rolo de

barbante para um deles e pediu que, cada um, ao seu turno, pegasse uma ponta com uma

mão, esticando os braços o máximo que pudessem, e segurassem a outra ponta com a

outra mão. O próximo seguraria onde acabasse o comprimento do anterior e assim por

diante, sem cortar o barbante. O comprimento resultante do tamanho dos braços de cada

um seria o material com o qual realizariam um trabalho posteriormente. Todos fizeram

como pedido.

Quando todos estavam “presos” um ao outro, o pedaço de barbante que havia cabido a

cada um foi designado como material com o qual cada um deveria executar um desenho,

criar uma forma, sobre uma folha de papel disposta no chão. Houve um momento de

agitação enquanto tentavam uma maneira de fazerem seus desenhos sem anular o

desenho do colega ao lado, pois ao mexer seu barbante, mexia-se o barbante do vizinho.

Até esse momento todos estavam participando da brincadeira. Ao fixarem uma forma no

papel a instrutora lhes deu uma caixa com giz de cera e pediu-lhes que desenhassem

sobre a folha onde já estava a forma feita pelo barbante. Nesse momento o rapaz novo

parou e ficou observando o trabalho dos outros, parecendo um pouco constrangido104.

perfeitamente audível. Mesmo sua postura corporal havia mudado: movimentava-se, dois anos depois, de forma mais solta, aproximando-se das pessoas para conversas amenas e brincadeiras carinhosas.

103 É preciso ressaltar que o processo de divulgação do projeto esteve restrito ao boca-a-boca feito pelos participantes. Portanto todos os recém integrantes do projeto faziam parte da mesma rede de relações dos integrantes mais antigos. Além disso a forma desse jovem específico em se relacionar com a instrutora de português e os outros rapazes indicava que ele estava à vontade na relação com todos.

104 Mesmo no momento de criar a forma com o barbante, não houve nenhuma tentativa sua de criar algo, ele simplesmente largou o barbante sobre a folha, sem experimentar com as possibilidades do material.

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Enquanto isso, os outros três divertiam-se: um contando a história de seu desenho a

medida em que este surgia – o roubo de uma maçã e a raiva do dono que atirava no

ladrão tomava forma no papel e na voz do rapaz –, outro fazendo formas abstratas em

silêncio compenetrado, enquanto o último falava de forma descompromissada a respeito

da imagem que se formava em sua folha. Os três pareciam seguros o suficiente para

transpor suas idéias para o papel.,

Os risos tensos do quarto rapaz ao longo do processo durante o qual os outros

desenhavam, pareceu encontrar um alívio no final da brincadeira quando a instrutora

concluiu o trabalho e começou a analisar o conceito do jogo que lidava com a noção de

limite e sua relação com o “Outro”105. Durante a oficina, quando o grupo efetuou leituras

dramatizadas de contos de Paulo Mendes Campos, provenientes de uma coleção

publicada pelo jornal O Dia, esse rapaz apenas assistiu, rindo, de forma zombeteira, da

participação dos outros106. Seis meses depois, isto é, um ano após esse rapaz ter

ingressado no projeto, ao assistir outra oficina de português, observei sua participação na

leitura dramatizada de um conto de Nelson Rodrigues, escolhido por ele. Apesar de sua

dificuldade com a leitura, havia claramente um enorme prazer em participar.

Outra situação que serve como exemplo do processo de conquista de uma certa

intimidade com o local, as obras de arte e os profissionais do projeto e do museu por

parte dos rapazes, um reforço de sua identidade social, aconteceu em dezembro de 2001.

Quando o instrutor de jogos neoconcretos resolveu fazer uma revisão dos conceitos e

materiais trabalhados desde 1998, ele não impôs restrições para que os rapazes novos

participassem dos encontros nos quais essas questões seriam discutidas. Isso permitiu

comparar a diferença de comportamento entre os integrantes mais recentes e os mais

antigos.

105 A noção de individualidade relacionada à idéia do contrato entre os indivíduos, aparece no projeto de

diversas formas. A noção de “comunidade” expressa-se no discurso do coordenador do projeto através da alusão a uma “formação de comunidade” que se remete à questão de uma sociatividade a posteriori, condizente com a noção de individualidade que permeia a idéia de um mercado da cidadania (cf. Duarte, 1992) referido à noção do contrato entre os sujeitos individuais.

106 É preciso considerar também minha presença – causando, talvez, timidez – como influente na relação do rapaz com a situação. Entretanto, a forma como a instrutora de português lidou com a situação – cada um foi dizendo a personagem que queria representar e, mesmo não tendo se manifestado, não foi cobrado do rapaz uma posição em relação à leitura –, parecia sugerir que, em outras situações o rapaz já havia se recusado a fazer a leitura e, portanto, estava sendo deixado à vontade para decidir quando participar da brincadeira.

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Cheguei atrasada para o primeiro encontro e o grupo já havia discutido a obra de Sérgio

Camargo107. Entretanto um rapaz, dos mais antigos, apareceu logo depois de mim e o

instrutor se prontificou a rever com ele o que havia sido visto com os outros. Fomos à

sala da diretora do museu, onde havia uma obra do artista. Nós três nos sentamos no chão

ao redor da peça e o instrutor começou a questionar a respeito das qualidades da obra: O

que você vê? Quais são as qualidades da obra? Etc. Esse rapaz chegou perto da

escultura, olhou, tocou, deu a volta na peça e comentou suas percepções com bastante

desenvoltura. A forma de expressar sua percepção e seus movimentos para ver e tocar a

peça eram transformados em perguntas que o faziam chegar às regras de construção que

aquela obra impunha para a criação dos jogos que nesse trabalho seriam feitos em sabão.

Assim que o instrutor acabou a exploração da obra com esse rapaz, apareceu na porta um

jovem que havia ingressado no projeto há apenas dois meses. Ele foi convidado a entrar.

O instrutor e eu continuávamos sentados e o rapaz colocou-se de pé, a uma certa

distância. O instrutor convidou-o a sentar e ele disse que estava bem, somente depois de

alguns minutos cedeu e sentou-se. Uma sequência de perguntas parecida com a anterior

foi feita. Inicialmente o rapaz não conseguiu falar, sua voz era quase inaudível. Quando

instigado a tocar na obra para perceber o material, preferiu olhar de longe:

– (instrutor) Pode tocar nela, é de mármore.

– (rapaz 14108) Eu tô vendo.

4.1 ESTIGMA: UMA RELAÇÃO ESTABELECIDOS E OUTSIDERS

A dificuldade que os jovens apresentaram inicialmente em se expressar não parecia estar

relacionada a uma característica intrínseca do grupo, mas ter sido o resultado do

confronto entre diferentes estilos de vida, gostos e regras de conduta e comportamento.

Esse confronto foi intensificado pelo espaço social da instituição que é, geralmente, um

107 Ver anexos. 108 Na intenção de localizar os rapazes, cada número estará referido sempre à mesma pessoa. Para melhor se

localizar o tempo de participação no projeto, do número 1 ao número 10 são os jovens que acompanham o projeto desde o início, em 1998, do 11 ao 15 são os integrantes mais recentes, tendo alguns ingressado no projeto no final de 2000 e outros no final de 2001, crescendo o número a medida que diminui o tempo de participação no projeto.

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espaço frequentados por pessoas e grupos que partilham estilos de vida, gostos e regras

de conduta e comportamento diferenciadas daquelas do grupo de jovens do projeto.

O museu de arte funciona como uma fonte de afirmação da identidade daqueles que

participam, de alguma forma, de um certa “comunidade” artística, predominantemente

constituída de pessoas provenientes das classes sociais dominantes, cultural ou

economicamente. Existem aí fronteiras tácitas, regras de conduta e comportamento

específicas, que delimitam o “lugar” de cada classe – social ou profissional. Essas

fronteiras quando extrapoladas geram conflitos que podem manifestar-se de diversas

formas. O museu apresentou-se, assim, como um espaço social constrangedor, no qual os

rapazes perceberam atitudes, muitas vezes, estigmatizantes por parte dos funcionários e

frequentadores, que podem ter contribuído para o processo de opressão da

expressividade, manifesto na dificuldade em apresentar suas opiniões109.

A presença dos jovens do morro no espaço físico do museu, diversos momentos, causou

constrangimentos aos próprios jovens e aos funcionários e frequentadores do museu. Os

processos estigmatizantes seriam, então, uma forma de classificar aqueles jovens de

acordo com seu pertencimento a um grupo cujas normas de comportamento diferia

daquelas instituídas pelo grupo estabelecido, os agentes do campo artístico110.

Os rapazes reclamaram de algumas situações em que sentiram-se discriminados: o

dinheiro da venda dos produtos no ponto de venda era depositado pelos rapazes em um

envelope que ficava guardado na sala da Divisão de Educação, em um armário sem

chave. Qualquer um podia ter acesso. Em inúmeras situações deu-se pela falta de

quantias que variaram entre R$2,00 e R$130,00. A cada desaparecimento de dinheiro os

rapazes sentiam-se sob suspeita.

109 A dimensão de participação no campo artístico define as possíveis posições artísticas, por outro lado a

posição ocupada pelo agente definirá uma maior ou menor competência artística, isto é, uma maior ou menor capacidade de reconhecer as questões em termos artísticos. “A competência no sentido técnico é correlata com a competência no sentido de uma capacidade socialmente reconhecida, instituída por e instituinte de status, cujo oposto é a impotência e a exclusão objetiva e subjetiva (‘isso não me diz respeito’, ‘isso não me interessa’)” (BOURDIEU, 1998; 399) A abstenção é uma forma de negar e, portanto, de reconhecer a restrição na participação artística. Assim, expressar uma opinião em arte estaria fora do campo de possibilidades desse grupo de jovens.

110 Hiller explica a categorização como uma forma de planejamento das relações sociais: a classificação de “estranhos” seria, assim, uma forma de pré-conceber estratégias de reciprocidade (Apud Mitchell 1968).

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Em determinada ocasião em que deu-se pela falta de R$2,00, um dos meninos decidiu

que sairia do projeto. Quando perguntei o motivo, ele disse: “tão chamando a gente de

ladrão”. Questionei essa afirmativa, pois não havia ouvido nada parecido com isso. Para

explicá-la mencionou um evento ocorrido dois dias antes: quando estavam na sala da

Divisão de Educação e uma das educadoras pediu-lhes que saíssem da sala para que ela

pudesse pegar o dinheiro no envelope, dizendo que “estava nervosa com a presença da

gente (dos rapazes)”. Uma outra funcionária, presente enquanto ele contava essa história,

tentou amenizar a situação dizendo que não era bem assim: “se a gente não tivesse

confiança em vocês, a gente não ía deixar as bolsas por aí, na sala”. O rapaz

imediatamente emendou: “e você acha que a gente não vê as pessoas esconderem as

bolsas quando a gente entra?”.

Nessa situação em que estão em jogo posições de prestígio, tornam-se explícitas as

dimensões de poder da vida social através de noções como superioridade social e moral,

autopercepção e reconhecimento, pertencimento e exclusão (cf. Elias: 2000). O estigma

é, em grande medida, proveniente de uma imagem pública construída através de

estereótipos, qualificando o grupo homogeneamente com base em adjetivos e

comportamentos específicos, geralmente referentes à uma minoria do grupo.

Uma pessoa estigmatizada é reconhecida apenas por sua identidade social, a qual

pertencem os sinais de estigma ou de prestígio. Essa relação ocorre quando existem

normas de identidade e conduta que não são cumpridas. A construção de identidades

sociais tem como participantes do processo marcos que indicam a identidade da pessoa

não somente como indivíduo, mas como parte de um grupo específico ao qual se

pertence111.

111 Ao tratar da identidade social do indivíduo como vinculada a estereótipos de grupo, não se desconsidera

a heterogeneidade desse universo, mas se ressalta a representação social que vincula os moradores de “favelas” a uma pretensa homogeneidade (de costumes, de padrão social, de ética, de religião, de ocupação, etc.) A redução à homogeneidade na elaboração de projetos sociais enfatiza a necessidade de intervenção através do consequente aumento quantitativo do público alvo: normas básicas definidas por critérios comuns facilitam a operacionalização do projeto. Entretanto esse processo de redução contribui para a criação de categorias abstratas que, principalmente, através dos meios de comunicação e das agências de intervenção concretizam-se na vivência cotidiana daqueles que são identificados com os padrões selecionados para definir tais categorias: todos os jovens participantes do projeto tornam-se assim “jovens em situação de risco”, categoria estigmatizante que acaba sendo transposta para a identidade pessoal de cada um.

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O papel da mídia é fundamental na construção da representação das “comunidades de

baixa renda” como constituídas de indivíduos violentos e moralmente repreensíveis112. Os

órgãos de imprensa apresentam uma imagem a respeito do mundo social que, na ausência

de informação e análises de qualidade, torna-se, muitas vezes, o prisma através do qual as

pessoas constróem seu entendimento dessa realidade (Sánchez-Jankowski, 1991:302).

A dimensão de exclusão que a estigmatização por parte dos funcionários do museu

comporta explicita processos de dominação simbólica que parecem, em alguns

momentos, fortalecer a ligação entre o grupo de jovens e “o morro”113: espaço social que

representa uma das dimensões do grupo abstrato, da rede de relações que é percebida

como a “comunidade”. Esse processo de fortalecimento das relações manifestou-se

através de um discurso em favor da urgência na construção do Centro de Produção

Comunitária, pois, segundo eles, a “comunidade é aonde a gente se sente bem e onde a

gente quer mostrar o que faz”.

A identidade é um fenômeno relacional que pode se estruturar em diversas dimensões

como identidade de gênero, de faixa etária, de classe, de etnia. A noção de estigma, assim

como a de identidade passa, em grande medida, pela idéia de convenções na qual o

processo de aquisição está relacionado a uma construção social. A identidade de classe

social, por exemplo, é parcialmente definida pela participação econômica no Estado. As

reclamações dos rapazes com relação às situações estigmatizantes poderiam ser

compreendidas como uma tentativa de opor sua identidade pessoal à identidade social, ou

à representação estigmatizada, que lhes tem sido, frequentemente, atribuída.

A construção da identidade pessoal passa por uma tentativa de superação das

representações sociais existentes em relação ao grupo a que se pertence. A identidade

social desses rapazes está parcialmente relacionada ao fato de morarem no morro. Um

112 Um conjunto de artigos de jornal a respeito do Morro do Palácio, arquivados pela presidente da

associação de moradores, confirma o papel da mídia na construção de uma representação estigmatizante em relação ao Morro do Palácio.

113 “Morro” e “comunidade” foram categorias utilizadas pelas pessoas para referirem-se ao espaço social das relações de vizinhança. Essas classificações correntes, fundamentadas nas classificações eruditas que são introduzidas pelas diferentes agências que incidem sobre a realidade das pessoas, foram acionadas em diversos momentos pelas pessoas contactadas na pesquisa de campo. Procurou-se manter, na análise, a categoria acionada pelas pessoas entrevistadas ou observadas no contexto do assunto em pauta, procurando explicitar a acepção específica que tal categoria parecia ter para aquele determinado agente.

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exemplo de como essa realidade se manifesta na vida cotidiana dos moradores114 do

morro do Palácio apareceu na entrevista com a diretora da creche do bairro115: Andréa tem

28 anos e mora no morro desde que nasceu. Seus pais foram para lá por volta da década

de 60. Andréa, que frequenta a faculdade de direito na Universidade Plínio Leite, diz que

alguns de seus amigos recusam-se a visitá-la porque têm medo de ir ao morro – “eles não

vêm aqui” –, enquanto outras pessoas sequer se aproximam dela por ser moradora do

morro116. Talvez como uma forma de atribuir prestígio a sua vizinhança, desmerecendo os

espaços sociais externos ao morro, Andréa terminou a entrevista afirmando que se sentia

mais segura no morro do que no resto da cidade – “não me sinto bem lá fora, aqui

conheço todo mundo” –, mesmo tendo afirmado antes que seu contato com as pessoas do

morro era bastante restrito.

A identidade comunitária é uma categoria abstrata, sociologicamente explicável em

termos das relações que se estabelecem entre os membros de um grupo com outros

grupos, não podendo ser reduzida a um valor intrínseco. A instituição de uma associação

de moradores117 é parte de um processo que aciona representações sociais a respeito dos

grupos de classes populares para construir uma identidade com a qual a associação irá se

apresentar em determinadas situações, representando a “comunidade”. A apropriação de

uma identidade comunitária é parte de um processo de aquisição de um poder de

reivindicação que se apresenta através de propostas, pretensamente consensuais no

interior do grupo. Implícita na categoria comunidade está a noção de unidade que disfarça

diferenças e conflitos presentes no interior dos grupos.

114 Adotou-se a designação morador para se referir aos habitantes da região administrativa na qual atua o

projeto. O termo foi acionado como categoria por alguns dos entrevistados, geralmente denotando um sentido político de pessoa autorizada para emitir opiniões acerca do assentamento. Morador, portanto, é parte da identidade coletiva do grupo, tendo sido acionada na relação que se estabeleceu com a pesquisadora, em determinados momentos da pesquisa de campo, como uma categoria hierárquica que instituía o morador de autoridade para discorrer sobre um assunto que eu, supostamente, desconhecia: o Morro do Palácio.

115 Essa categoria foi acionada por uma moradora ao referir-se às medidas de urbanização implementadas no morro nos últimos anos: “Isso aqui não é nem mais morro, isso aqui é bairro”.

116 O Morro do Palácio parece ter sido considerado, até pouco tempo atrás, um dos morros mais violentos de Niterói. Não foi possível compreender o que esteve em jogo na idéia de que essa representação pertencia ao passado e não ao presente.

117 A instituição de associações de moradores é uma das alternativas para que as classes populares tenham algum nível de participação no mercado da cidadania (Duarte, 1992). Constituindo-se como indivíduos coletivos, essas associações encontram na quantidade uma categoria que as potencializa para competir em um mercado dominado pelos poderes econômico e cultual. Para uma discussão a respeito das contradições presentes nas propostas de modernização das classes populares e no processo de conversão à cidadania ver Duarte, 1993 e 1992

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O caso de um dos rapazes participantes do AAA é significativo para se perceber como o

processo de estigmatização encontra eco dentro do próprio grupo estigmatizado. Nesse

processo estão em jogo tanto a atribuição por outros quanto a auto-atribuição. Adauto,

que participou do projeto a partir de julho de 1999, falou sobre seu descontentamento

com a forma como foi tratado pelo grupo em determinada situação. O rapaz destacou-se

por seu domínio da expressão verbal e das noções que estavam sendo transmitidas pelo

projeto, o que lhe reservou uma posição privilegiada no interior do grupo, atribuída pelos

próprios jovens e pelos instrutores do projeto.

Em novembro de 1999, houve um seminário sobre museus e sua relação com as

“comunidades”, na Bahia. O MAC se disponibilizou a financiar para que um dos jovens

do projeto fosse ao seminário para falar sobre o AAA. Houve uma votação entre os

jovens e Adauto foi escolhido para representá-los. Após a confirmação do prestígio de

Adauto junto ao grupo, o rapaz passou a ser alvo de implicâncias: – “eles ficavam me

zoando, quando eu fui escolhido para ir para a Bahia para aquele seminário. Todos

ficaram pegando no meu pé”.

Essa parece ter sido apenas uma das situações em que esse rapaz sentiu-se excluído do

grupo, apesar de ter sido escolhido como seu representante para o evento na Bahia. A

decisão de afastar-se do projeto, segundo ele, surgiu como consequência de uma ocasião

em que houve uma confusão a respeito da quantidade de jogos produzidos para venda, na

qual ficou a suspeita de que tivessem sido produzidos mais jogos do que o valor total do

dinheiro arrecadado supunha. Nesse evento, o grupo parece ter levantado forte suspeita

de que Adauto tivesse roubado dinheiro. Quando conversamos a respeito de seu

afastamento do projeto, o rapaz colocou esse evento como um dos motivos de sua

insatisfação:

– Então, seu problema não foi com o museu ou o projeto?

– (rapaz 5) Não, pelo contrário, me dei muito bem com a (diretora financeira, a diretora executiva e o coordenador do projeto). Meu problema foram os meus amigos. Não dava pra ficar lutando pela confiança dos próprios amigos.

O estigma, assim, é aceito pelo próprio grupo a quem a acusação se dirige, reconhecendo

os signos que lhes são atribuídos em um jogo que implica a noção de gerenciamento de

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impressões118. O grupo reclama de situações específicas de estigmatização, mas quando

entra em jogo a conquista de posições de status, o estigma é utilizado como estratégia de

afastamento daquele que parecia colocar em risco a possibilidade de distinção dos outros.

O afastamento do melhor colocado reintroduz na disputa os outros competidores: após a

saída de Adauto, outros jovens se destacaram no projeto.

4.2 CIVILIZAÇÃO DOS COSTUMES

O processo de construção da identidade, individual ou coletiva, não tem origem nem fim,

é um constante processo de negociação de valores, no qual as pessoas e os grupos se

definem e redefinem em relação uns aos outros. A inscrição no corpo de processos físicos

e mentais é parte dessa construção.

Assim que o grupo começou a frequentar o museu, seus costumes foram alvo de um

estranhamento que gerou comentários reprovadores por parte dos funcionários do museu.

As reprovações variavam desde a forma de se vestirem – “não apropriada” – até a

higiene pessoal, considerada precária119. Com o tempo, padrões de comportamento e

formas de vestir consideradas apropriadas para a instituição foram se tornando presentes

entre os jovens120 e inspiraram comentários, principalmente por parte da diretora do

museu: “Hoje fico feliz em vê-los todos arrumadíssimos vindo trabalhar na lojinha.

Quando tem coquetel eles vêm todos arrumados, tomam vinho conosco e se comportam

super bem.” E em outra ocasião, depois de ter reavaliado a questão da bebida alcoólica:

Hoje quando eles vêm às vernissages, eles vêm bem arrumados, botam sapato e tudo, e se comportam super bem. Eu inclusive conversei com eles sobre o fato deles terem que saber se comportar. Não deviam beber porque não caía bem irem conversar com alguém com bafo de

118 Essa noção de Goffman está sendo utilizada na forma apropriada por Barth, 1966. 119 Os shorts e blusas minúsculas das moças constituíam o principal alvo das reclamações, mas as bermudas

e chinelos de dedos dos meninos também eram motivo de incômodo. Com relação à higiene, reclamava-se da falta de uso de desodorantes.

120 Bourdieu (1987), analisa o sentimento de estar excluído da cultura legítima como a expressão mais sutil da dependência, implicando na impossibilidade de excluir o que exclui e apresentando a adoção das normas legítimas de conduta como um dos pólos contraditórios entre uma resistência alienante e uma submissão que poderia ser libertadora. Entretanto, como veremos adiante, parece existir uma terceira possibilidade que considera a relação mimética como uma forma de se relacionar com os padrões de conduta considerados legítimos, sem, contudo, abandonar completamente as normas de comportamento anteriores à intervenção.

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bebida. Não cai bem nem para eles nem para ninguém. Eles devem se comportar como qualquer outro funcionário do museu. (grifos meus)121

O processo de contenção das pulsões é um fator importante a ser considerado na relação

dos jovens com o MAC e o projeto AAA. A participação de diversas disciplinas no

processo de intervenção122 e a própria noção de intervenção traz consigo uma dimensão de

civilização dos costumes123 na qual pretende-se uma modificação na sensibilidade e

refinamento do comportamento dos rapazes que propiciariam o surgimento de novas

formas de relacionamentos sociais. A presença de diversas instituições124 é parte

integrante desse processo, sendo estas agentes sociais que modificam as relações entre os

indivíduos ao impor novas formas de convívio. Idealmente, as formas externas de

controle viriam a tornar-se, com o tempo, autocontrole.

Dentro dessa concepção de civilização de costumes está implícita a noção de

racionalização, que se torna explícita na fala de uma instrutora do projeto: “eles precisam

perceber que não vão ser jovens o resto da vida e que daqui há pouco esses projetos não

vão mais aceitar eles”. Surge na fala dessa instrutora a idéia de que esses jovens

devessem planejar sua vida, refletindo no presente as consequências futuras de seus atos.

Está implícito nessa forma de pensar a noção de uma atitude mais racional frente ao

mundo e as oportunidades que se apresentam.

Um bom exemplo da reação dos rapazes quanto a essa concepção racional da vida que os

profissionais do AAA portam foi a situação vivida em relação ao ponto de vendas. O

ponto foi concebido pelo coordenador do projeto, que imaginou a oportunidade de

comercializar os produtos produzidos pelas oficinas, gerando uma renda para os jovens e

difundindo os artefatos e o projeto para os visitantes do museu. A forma como os jovens

o conduziram parece sugerir que a noção de um planejamento da vida em função de um

futuro, quando os “projetos não vão mais aceitar eles”, é uma concepção que não está

121 Parece existir uma ambiguidade no papel social dos rapazes dentro da instituição. 122 Vários agentes representantes de diferentes áreas de saber, estão envolvidos, de alguma forma, no AAA:

medicina (Programa Médico de Família), educação (Secretaria de Educação), economia (BNDES, Petrobrás etc.), comunicação (Projeto BemTV, departamento de comunicação da UFF).

123 Na acepção que Elias (1995) confere ao termo. 124 Além do Museu de Arte Contemporânea, a própria transformação do projeto em uma instituição, com a

construção do Centro de Produção Comunitária, atuam como agentes sociais que complexificam a rede de interdependências que contribuiriam para uma modificação dos impulsos e emoções. A própria presença de uma Associação de moradores como intermediária no processo de implantação dos projetos de

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em consonância com sua conduta de vida. Investir seu tempo livre na venda dos produtos

e abrir mão da praia no sábado de sol, ou do futebol nos domingos, assim como cumprir

horários rígidos para abrir e fechar o ponto todos os dias, parece não constituir parte do

projeto que esses rapazes imaginam para si125.

Por outro lado, existe, por parte desses jovens, a assimilação dos discursos de

racionalização proferidos pelos quadros do projeto e funcionários do museu. Essa

assimilação, entretanto, não parece partir de uma interiorização das noções subjacentes a

esses discursos. Essa relação mimética talvez dificulte a percepção, por parte dos

profissionais do projeto, dos pontos nos quais o projeto parece fugir às necessidades,

desejos e concepções de mundo que fazem parte das representações sociais desses jovens.

No evento do ponto de vendas, por exemplo, podemos perceber essa relação mimética no

relato de um incidente com a diretora do museu:

Quando falaram na lojinha eu não quis, não achei que eles estavam prontos. Logo depois de abrir eles começaram a faltar e, como o (coordenador do projeto) tinha viajado, eu chamei todos para uma reunião. Eu acabo fazendo o papel de madrasta, porque o (coordenador) e o (instrutor da oficina de educação ambiental) são meio paizões. Chamei eles e passei um sermão de 40 minutos. Fui calma, mas dura. Falei muito em compromisso. Disse que se eles não estavam prontos para assumir aquele compromisso, que me trouxessem uma proposta que eu estudaria e decidiríamos juntos o que seria melhor. Ficaram

intervenção modificaria esse processo ao complexificar o jogo no qual estão inseridos os grupos de agentes interessados nessa implantação.

125 Bourdieu apresenta uma análise da atitude em relação ao tempo e da conduta econômica a partir de dois tipos ideais que são “as duas faces de uma mesma realidade” (1963; 44): a antecipação préperceptiva e a previsão racionalista. Segundo o autor, as categorias econômicas não devem ser tidas como universais e sim analisadas em relação às condições econômicas e sociais do grupo observado, pois “a adaptação a uma ordem econômica e social, qualquer que seja, supõe um conjunto de saberes empíricos, transmitidos pela educação … que permitem ao indivíduo agir de forma racional e com chances de sucesso no interior de sua própria sociedade” (1963; 26). A racionalidade econômica implica em previsibilidade e calculabilidade, isto é, uma atitude determinada em relação ao tempo e ao porvir. A antecipação préperceptiva, por sua vez, considera que “a antecipação nasce da lógica mesmo da situação e difere essencialmente de um plano exterior ao qual irá se conformar: ela não supõe como futuro o fim efetivamente visado pela ação empreendida, mas a apreende como um ‘porvir’ sinteticamente unido ao presente por um laço diretamente compreendido na experiência ou estabelecido pelas experiências anteriores” (1963; 29). “Ainda segundo o autor, cada sociedade encoraja e favorece, em função de suas escolhas fundamentais, uma modalidade particular de experiência de temporalidade” (1963; 38).

A polidez em relação aos horários seria, para Bourdieu, uma característica empírica das sociedades nas quais a consciência econômica exige uma conduta racional, na tentativa de assegurar a previsibilidade e a calculabilidade. Na pesquisa de campo, foi possível perceber como a racionalização do tempo e a antecipação préperceptiva coexistem no interior do mesmo grupo. Ao mesmo tempo que adotavam uma relação ambígua com a proposta do ponto de vendas, os rapazes reclamavam constantemente dos atrasos dos instrutores para os compromissos firmados com o grupo de jovens. Portanto, se, em determinado nível, o grupo de jovens compartilhava uma consciência temporal própria, em outro, partilhavam com os grupos englobantes as noções do racionalismo temporal.

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66

todos de cabeça baixa, um deles, não sei qual, não os conheço pelo nome126, só balançava a cabeça afirmativamente o tempo todo. Eu disse que se eles achavam melhor poderíamos montar a loja só nos fins-de-semana. Eles saíram e meia hora depois a (funcionária da divisão de educação) veio dizer que eles queriam falar comigo. Entraram todos e um deles fez a proposta: disse que queriam trabalhar todos os dias e que precisavam de um tempo para fazer o horário. Eu disse para eles que ficava feliz porque achava que eles tinham feito a melhor opção, porque optando por trabalhar a semana toda eles estavam mostrando que estavam dispostos a trabalhar, que aquilo não era só uma brincadeira. Usaram a palavra compromisso o tempo todo, como que respondendo ao meu sermão. (grifos meus)

Oito meses depois o ponto de vendas foi desmontado porque, apesar do discurso dos

rapazes corroborando a posição da diretora do museu em relação ao compromisso e à

responsabilidade assumida por eles, eles continuaram com a mesma relação com o ponto

de vendas: compareciam quando lhes era conveniente e frequentemente chegavam

atrasados.

O processo de civilização dos costumes implica uma transformação de cima para baixo.

Um processo de conversão para os padrões da cultura legítima, no qual esta deve fornecer

as normas de conduta e de comportamento para que os grupos se modifiquem. A noção

de jogo explorada pela oficina neoconcreta lida com a idéia de regras definidas pela arte

legítima que servem para conter, restringir a forma de criar e brincar dos rapazes:

– (instrutor) O que vocês responderiam se perguntassem o que é um jogo?

– (rapaz 5) Todo jogo tem uma regra. Serve para brincar e se divertir, mas tem que seguir a regra. Essa obra tem uma regra – apontando para uma obra de Sérgio Camargo.

– (profissional que trabalha no projeto) Ontem eles falaram que a forma é a regra do jogo.

A forma legítima e a regra que ela institui tornam-se assim o critério a partir do qual os

trabalhos desses rapazes são apreciados, conferindo-lhes prestígio em uma escala de

valores considerados legítimos: a forma (legítima) é a regra do jogo.

4.3 ALGUMAS DIMENSÕES DE PRESTÍGIO QUE O PROJETO E SUA RELAÇÃO COM O MUSEU IMPLICAM

126 Ver segundo capítulo, item 3.4, em relação à relação da instituição com o projeto e item 4.1, sobre

estigma e identidade social.

Page 80: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

67

Até o final do século XVIII, prestígio era usado no inglês, francês e alemão em seu

sentido original do latim de ilusão dos sentidos produzida pela magia. A partir de então o

sentido estendeu-se metaforicamente para significar os efeitos de uma influência que uma

pessoa exerce sobre outras. A distribuição das diferentes dimensões de prestígio

concedidas de acordo com padrões compartilhados de um grupo, ou parte dele, determina

o status, a posição da pessoa no que diz respeito à estrutura das relações sociais no

sistema.

Em situações diversas os jovens participantes do AAA puderam ministrar oficinas para

públicos variados: funcionários da secretaria de meio ambiente de São Gonçalo,

visitantes do MAC e como parte do programa Jovens pela Paz. Foi possível perceber,

através dessas interações, as relações diferenciadas que os rapazes mantiveram com as

diferentes oficinas – jogos e papel reciclado – e os diferentes sistemas de relações sociais.

O programa Jovens pela Paz foi organizado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro,

contratando jovens de bairros populares para ministrarem oficinas para grupos de suas

respectivas localidades. As oficinas foram definidas por aqueles que iriam ministra-las127.

No Morro do Palácio foram oferecidas oficinas de jogos neoconcretos, papel reciclado,

teatro128, música e futebol, ministradas, majoritariamente, por rapazes que participaram do

projeto AAA em 1999.

A oficina de papel reciclado ministrada para os funcionários da secretaria de meio

ambiente revelou nos rapazes uma atitude série e compenetrada, que denunciava o valor

atribuído por eles – em grande medida, como resultado da orientação dos instrutores do

projeto – ao fato de poder apresentar os conhecimentos adquiridos para aqueles

profissionais.

Observando um evento no MAC no qual os rapazes ofereceram as oficinas de papel

reciclado e de jogos neoconcretos para os visitantes, percebia-se que, enquanto os rapazes

que ofereciam a oficina de papel estavam sorridentes, falantes, eufóricos e solícitos, os

rapazes que estavam encarregados da oficina de jogos pareciam estar apenas satisfeitos

127 O projeto começou com uma pesquisa nos bairros vislumbrados para determinar quais conhecimentos

locais poderiam ser oferecidos. O programa durou em torno de um ano, tendo iniciado em 2001. 128 A oficina de teatro foi, segundo o rapaz que a ministrou, fruto do que ele aprendeu na oficina de

educação ambiental do projeto AAA.

Page 81: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

68

com sua tarefa. Em relação ao ensino da técnica do papel reciclado, a demonstração da

produção de jogos parecia esvaziada de entusiasmo.

Entretanto, os jogos como artefatos prontos pareciam ser motivo de orgulho para os

rapazes pelos elogios que os trabalhos arrancavam de grande parte dos visitantes do

museu que tiveram a oportunidade de vê-los no ponto de vendas, assim como dos

profissionais ligados ao projeto. Existe, portanto, um valor, atribuído por eles mesmos,

aos artefatos produzidos por eles, mas parece não haver conforto no ensino da feitura dos

mesmos talvez pela dificuldade em apresentar os conhecimentos subjacentes à noção de

jogo e ao saber artístico.

As oficinas permitem que eles comuniquem os conhecimentos adquiridos, contribuindo

para reforçar sua identidade social. Entretanto, cada oficina parece ter um

reconhecimento diferenciado nos diferentes espaços sociais em que são oferecidas,

acionando signos de prestígio relacionados a dimensões próprias a cada um desses

espaços. A oficina de português atua, majoritariamente, como estratégia de aquisição de

prestígio no espaço social da escola, sendo parte dessa estratégia a dissimulação do

reforço externo – a oficina de português – atribuindo-se as conquistas escolares

estritamente ao esforço individual.

A oficina de papel reciclado parece ter um espectro mais amplo, dificilmente delimitável

em termos de espaços sociais, parecendo acionar signos de distinção e prestígio junto às

relações de vizinhança do morro129, assim como funcionar como estratégia de afirmação

de identidade junto a grupos diversos: funcionários da secretaria de meio ambiente,

visitantes do MAC e, em certa medida, junto a públicos não necessariamente

relacionados ao museu130. Além de situar os rapazes em uma hierarquia profissional131, a

oficina propicia uma fonte de renda intermitente com as encomendas relativamente

frequentes de indústrias, eventos e indivíduos.

A oficina de jogos, por sua vez, parece atuar como signo de prestígio principalmente no

espaço social do museu. Em diversas situações ficou explícita a importância para os

rapazes em receber elogios com relação aos seus trabalhos, especialmente do

129 Ver nota 89 sobre a relação do morro com a noção de trabalho. 130 Os artefatos produzidos na oficina – papel reciclado e artefatos de papelaria – são vendidos sob

encomendas para artistas, papelarias e eventos diversos.

Page 82: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

69

coordenador do projeto e instrutor da oficina de jogos. Está em jogo aí o reconhecimento

da competência específica do coordenador, assim como das pessoas ligadas ao projeto e

ao MAC, na emissão de opiniões com relação à arte.

Em determinada ocasião, assistindo a um dos rapazes montar uma luminária com recortes

de papel, comentei que o que ele pretendia fazer parecia muito trabalhoso:

– Isso vai dar trabalho!

– (rapaz 1) Mas vai render elogio também! O (instrutor) vai ficar bolado.

Ainda em outra situação o instrutor questiona onde está o prazer em fazer os jogos e tem como resposta:

– (rapaz 6) Na admiração dos outros.

– (instrutor) Vocês passaram a se sentir orgulhosos depois do trabalho com a gente?

– (rapaz 2) Principalmente com seus UAUs!

E ainda durante um dos encontro dos rapazes com o instrutor de jogos para a revisão dos conceitos da oficina:

– (rapaz 7) O que houve com o Robson? – O rapaz estava muito falante, respondendo a todas as questões colocadas pelo instrutor.

– (rapaz 6) É que ele recebeu elogio hoje.

O fato do projeto estar inserido no contexto de uma instituição museal implica numa

dimensão simbólica de poder132 que torna o projeto reconhecido pelo simples fato de estar

associado a essa instituição. O museu legitima os trabalhos dos rapazes para o público,

quando apresentados fora do âmbito dessa instituição a dimensão de prestígio atribuída

ao trabalho dos rapazes se modifica, tornando-se difícil para eles lidarem com a reação do

público133.

131 Ver nota 89. 132 “O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de

confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.” (Bourdieu, 2000; 14)

133 As oficinas foram apresentadas em um evento em uma praça, na Tijuca, como parte de um outro projeto social sem a presença de qualquer referência ao MAC. A recepção precária dos transeuntes parece ter sido motivo de incômodo para os rapazes que, segundo comentários dos profissionais do projeto presentes na apresentação, ficaram indóceis e mau humorados.

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70

O projeto tem sido oferecido aos jovens do Morro do Palácio sem que haja a necessidade

de nenhum tipo de esforço por parte dos participantes, além da própria frequência nas

oficinas. Essa atitude torna o projeto um evento criado para os jovens pelo museu e, em

nenhuma medida, parece haver uma dimensão de ação dos jovens. O papel dos rapazes

parece ser reduzido ao de coadjuvantes, às vezes, como ficou explícito no discurso da

diretora do museu, ao de funcionários da instituição, com todas as responsabilidades e

deveres que essa posição acarreta. Essa situação parece contribuir para um

distanciamento dos rapazes que sequer são cogitados para tentar resolver os obstáculos

que surgem durante o processo de implementação do projeto. A relação adquire um

sentido estritamente vertical134.

Em termos institucionais, o fato de pertencer ao museu também parece trazer dificuldades

para a implementação do projeto. Quando questionada sobre a trajetória do AAA e sua

relação com a instituição, uma das instrutoras desabafou:

– (instrutora) Ah, isso vem desde 1997. Por isso que já estamos cansados. Inicialmente achei que o museu seria um facilitador para conseguirmos captar recursos, mas parece às vezes, que fica mais difícil.

– Porque você acha que isso acontece?

– (instrutora) Ah, a burocracia, a hierarquia também. Essa coisa de dependermos da Dôra para tudo. Ela mal consegue resolver os problemas do museu quanto mais os nossos. Da última vez que tivemos um problema de dinheiro como esses, o (instrutor de jogos) estava viajando e a (diretora financeira) me disse para resolver sozinha. Eu nem perguntei à (diretora executiva), fui lá e resolvi. Achamos 12 mil reais depositados na conta errada e nós sem recebermos há quatro meses. A (diretora executiva) ficou chateada, mas se ficarmos esperando por eles, não vamos conseguir nada. Tenho a impressão de que eles nos vêem mais como um problema, paradoxalmente esse projeto pode ser super legal para a imagem do museu.

– Mas você acha que eles valorizam isso?

– (instrutora) Não. A (diretora financeira) disse uma vez para o (instrutor de educação ambiental), que se nós não estávamos satisfeitos que saíssemos dali. O museu parece que já tem tantos problemas que eles vêem nosso projeto só como mais um.

134 Marcel Mauss examina o caráter moral da reciprocidade que implica na retribuição do que foi ofertado

como uma regra de obrigação mútua. As regras de obrigação mútua (dar, receber, retribuir) constituem uma manifestação de caráter simbólico cuja dimensão da oferta é uma manifestação de superioridade, assim, aceitar sem retribuir é subordinar-se, tornar-se cliente e servidor, rebaixar-se. Segundo Mauss, “a caridade fere ainda aquele que a aceita, e todo o esforço de nossa moral tende a suprimir a patronagem inconsciente e injuriosa do rico ‘caridoso’” (1974; 163).

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71

Outra dimensão da ligação do projeto com uma instituição de manipulação, conservação,

divulgação e legitimação cultural está na relação da oficina de jogos com o campo

artístico. A oficina de jogos é a que está mais diretamente relacionada ao papel social do

museu pela posição do instrutor, que é diretor da Divisão de Educação do MAC, e pelos

objetivos por ele estipulados: trabalhar artistas, técnicas e conceitos legitimados pelo

campo artístico. A oficina tem refletido uma certa dificuldade em conciliar esses

conceitos, artistas e obras legítimas com o que os rapazes trazem de sua realidade social.

A idéia de neoconcretismo que estrutura a oficina parece estar mais relacionada aos

temas e artistas que a própria abordagem fenomenológica, parte integrante do manifesto

do grupo neoconcreto.

Em um dos encontros entre os jovens e o instrutor de jogos neoconcretos a colocação de

um dos rapazes questionou uma das noções apresentadas pelo instrutor em relação a obra

de Sérgio Camargo: a noção de precisão, de esquadro, de geometria. Quando o instrutor

chamou a atenção para essa noção um dos rapazes questionou-a como critério de beleza –

“mas poderia não ser precisa e ainda assim ser bonita” – sua contestação não foi

comentada.

Observando a arquitetura do espaço social do Morro do Palácio, é tentador relacionar a

contestação do rapaz ao seu ambiente social135. A noção de esquadro, de precisão de

linhas, de geometria, poderia ser compreendida como um critério de beleza subjacente a

espaços de urbanização racional, divididos em norte, sul, leste, oeste, trabalhando com

paralelas, perpendiculares, curvas e contra curvas. A “geometria” da favela é

“sensível”136, as formas não são feitas com instrumentos de precisão, mas se desenvolvem

de maneira integrada às possibilidades e necessidades das pessoas e dos espaços físicos

que, não estando subordinados a demarcações institucionais, são reguladas pelas relações

de vizinhança. Essa “geometria” está menos preocupada com a precisão e a rigidez das

normas de arquitetura e geometria, parecendo levar em consideração, principalmente, as

relações interpessoais.

135 Ver anexos. 136 Ver nota 67.

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72

Ao não comentar o questionamento do rapaz, a oficina de jogos neoconcretos afastou-se

da concepção fenomenológica que pretenderia trabalhar com a percepção do observador,

tornando-o partícipe na construção de um novo significado para a obra137.

O campo artístico, em geral, trabalha com regras internas ao próprio campo,

subestimando as relações externas a esse. Se os artefatos produzidos nessa oficina

encontram algum espaço de prestígio no interior do sistema de relações sociais do Morro

do Palácio, o fazer artístico implícito na produção dos mesmos não parece ter significado

nesse sistema, daí, talvez, a relativa apatia dos rapazes em apresentar esses

conhecimentos.

Os jogos estão sendo produzidos por um grupo cuja competência técnica – os jogos têm

sido apreciados por suas qualidades estéticas – não condiz com sua competência social138.

Assim, a apresentação desses dentro do espaço social de um museu de arte parece muitas

vezes deslocada. Os rapazes relataram como algumas pessoas reagem de forma agressiva

ao verem expostos no ponto de vendas artefatos produzidos por jovens de classe popular.

Em outras ocasiões, os visitantes, depois de compreenderem que se trata de um projeto

social, não só ficam impressionados com os trabalhos, mas fazem questão de dar algum

dinheiro a mais pelas peças que levam. Ambas as reações refletem essa incompatibilidade

entre a competência social e técnica desses rapazes.

A dificuldade em transmitir o conhecimento sobre o processo de produção dos jogos não

parece estar relacionado à falta de entendimento desse processo. Em situações diversas

foi possível perceber que existe uma compreensão das noções e dos processos internos

vivenciados por eles na oficina de jogos:

– (instrutor) O que vocês aprenderam com essa oficina?

– (rapaz 1) A mudar o sentido das coisas. 137 Vianna comenta o trajeto de Hélio Oiticica, artista plástico “egresso dos embates intelectuais/estéticos

dos concretistas e neoconcretistas” (2001; 31), buscando na “diferença” os nutrientes para restabelecer uma certa “totalidade” por trás da divisão que perpassa categorias, tidas como opostas, como: Zona Norte e Zona Sul, asfalto e morro, erudito e popular. Oiticica parecia estabelecer um fluxo de baixo para cima que renovava os sinais de vida para o consumo das elites, dos segmentos dominantes (Duarte, 2001), movimento que parece o oposto do observado na conduta do projeto AAA.

138 “A relação entre a realidade e as representações sociais estabelece-se através das disposições que são formas internalizadas de probabilidades associadas com as dadas posições na divisão de trabalho. A competência técnica depende fundamentalmente da competência social e no correspondente sentido de estar intitulado e solicitado por seu status de exercitar essa capacidade específica, e portanto possuí-la.” (Bourdieu, 1984; 409)

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73

– (rapaz 4) A desafiar quem vê o trabalho.

A própria idéia do jogo e os processos subjacente à concepção desses parecem estar

claros para os jovens. Referindo-se aos jogos criados por eles, o instrutor questiona a

noção de jogo:

– (instrutor) todos os trabalhos usam a noção de movimento, não é?

– (todos) É.

– (rapaz 1) Movimento criativo.

– (instrutor) O que os trabalhos têm em comum? Essa e essa peça tem formas definitivas? Mostrando jogos de sabão feitos por eles com base na obra de Sérgio Camargo.

– (rapaz 6) Não.

– (rapaz 1) Você pode mudar a forma.

– (instrutor) O jogo então cria formas?

– (rapaz 6) É infinito.

– (rapaz 5) Essa peça é movimento puro.

– (instrutor) Então jogar é criar algo que possa se brincar, infinitamente.

– (instrutor) nós podemos até pensar em algo para colocar na peça: mude a peça de forma todo o dia e ao longo do tempo você vai ver que você também muda e que a criatividade depende de ser exercitada. No final do ano você verá que é mais fácil encontrar uma nova forma para a peça do que foi no começo. Sua criatividade vai estar mais acentuada. Como um rótulo.139

– (instrutor) Eu quero definir com vocês uma coisa que vocês nunca conseguiram definir antes. Nós podemos dizer que os jogos são peças infinitas? 139 Essa situação, brincar a respeito de um rótulo, apresentando um slogan para divulgar os jogos, é um

exemplo de como as coisas acabam sendo oferecidas para os jovens, apesar do discurso a respeito de deixá-los produzir suas próprias idéias expresso em diversas ocasiões por um dos instrutores. Talvez a falta de tempo dos profissionais, relacionada à falta de recursos, tenha influência direta no sentido de não haver espaço/tempo para trabalhar junto aos rapazes o incentivo para que eles mesmos desenvolvam suas idéias. Ao mesmo tempo, pressionados pela responsabilidade de viabilizar o projeto, os profissionais acabam, de certa forma, oferecendo suas próprias interpretações na expectativa de ver resultados concretos: a criação de rótulos explicativos além de estimular a venda do produto, seria uma forma de solidificar as noções de criatividade e jogo junto aos rapazes e facilitar a verbalização desses conceitos junto ao público visitante do museu e potencial comprador dos artefatos do projeto. Ver item 4.2, em relação ao ponto de vendas.

O vínculo entre o projeto AAA e o MAC é outra dimensão a ser contemplada nessa análise, haja vista que a instituição acaba impondo um ritmo estranho ao projeto já que, a despeito de não participar do processo, quer ver resultados. Esses resultados são idealizados dentro de uma determinada gama de possibilidades. Poderia se creditar a essa idealização do que seriam resultados positivos, isto é, o desenvolvimento do grupo, o estímulo para que os rapazes vistam-se e portem-se de determinada forma, assim como a própria “pressão” para que haja um desenvolvimento em sua capacidade de expressão das noções do projeto, funcionando, os rapazes, como a “prova viva” de que o projeto está sendo bem sucedido.

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– (rapaz 5) Sim.

– (instrutor) Vocês sabem que na filosofia o infinito é dificílimo de se definir? Pois vocês vivenciaram o infinito. Criaram jogos infinitos.

– (rapaz 4) O artista faz uma forma e prende ela.

– (instrutor) A diferença então do trabalho de vocês para o do artista é que o dele é fixo, enquanto o de vocês é infinito.

– (instrutor) Para ser multiplicador não basta só saber fazer o produto final, tem também que entender o processo.

O processo parece ter sido compreendido, entretanto, as noções acionadas pela oficina

parecem estar relacionadas à experiência vivida, mas não constituírem um valor para eles.

O discurso sobre arte, ao não incorporar noções condizentes com suas vivências

cotidianas, distancia a oficina de dos valores que subjazem sua realidade social,

mantendo-a restrita ao campo artístico legítimo. Esse parece ser um dos motivos pelos

quais percebe-se uma certa apatia dos rapazes em relação à idéia, por parte dos

profissionais do projeto, desses jovens se tornarem multiplicadores140 do projeto141.

Portanto não é suficiente para compreender a reação dos jovens frente aos conceitos

aprendidos na oficina de jogos, considerar a capacidade desses rapazes em entender,

reproduzir e mesmo produzir discursos sobre arte, conceitos do movimento vislumbrado

– neoconcretismo – e dos artistas específicos. É preciso também considerar o sentido,

socialmente intitulado e encorajado, de estar autorizado a produzir, ensinar e discutir arte.

É preciso também considerar o público para quem esses conhecimentos serão

transmitidos. Descolada das vivências cotidianas, a arte é um fenômeno complexo

mesmo para os grupos que atribuem ao fenômeno um valor relacionado à idéia de

ampliação dos horizontes internos. A transmissão desse conhecimento, distanciado das

140 Todas as vezes que presenciei essa noção ser apresentada aos rapazes, foi através do instrutor de jogos.

Portanto não poderia afirmar que a mesma reação de apatia se dá quando se apresenta essa noção relacionada à oficina de papel reciclado.

141 Segundo Bourdieu (1984; 413-4), a relação com a arte não se estabelece diretamente, mas através da mediação do inconsciente de classe. “O discurso autorizado da competência gerada pelo status, um discurso poderoso que ajuda a criar o que o discurso diz, é respondido pelo silêncio de um incompetência igualmente ligada a um status, que é experimentada como uma incapacidade técnica e não deixa outra escolha que a delegação – uma disposessão não-reconhecida do menos competente pelo mais competente, das mulheres pelo homens, dos menos educados pelos mais educados, daqueles que ‘não sabem faltar’ por aqueles que ‘falam bem’”. Assim, a dificuldade dos rapazes em lidar com a idéia de tornarem-se multiplicadores poderia estar relacionada ao reconhecimento de sua (in)competência social e, consequentemente, técnica em transmitir as noções de jogo e do saber em arte.

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75

referências do mundo social, para grupos que não vêem no fenômeno artístico um valor

específico, apresenta-se, assim, como um duplo desafio para esses rapazes: superar sua

“incompetência”, técnica e social, frente à sua rede de relações de vizinhança e ainda

convencer-se a si mesmos e aos outros do valor de estar ensinando e aprendendo aquelas

noções.

4.4 LINGUAGEM E IDENTIDADE142

A língua, durante as discussões a respeito da constituição dos Estados-nação, foi tida

como um dos elementos que, demarcando a identidade étnica ou nacional de um grupo,

se pressupunha homogênea, portanto passível de ser estudada como encerrando um

significado em si. Definidas essas instâncias políticas, pôde-se voltar a discussão em

direção às línguas em sua relação com a identidade dos grupos no interior de um mesmo

Estado: as línguas passaram a ser consideradas, então, imersas em suas condições sociais

de produção e utilização. Essa nova abordagem permitiu perceber como a ubiquidade e a

polissemia do código linguístico ocasiona interpretações equivocadas a respeito de uma

pretensa unidade interpretativa entre diferentes classes (sociais, de gênero, de geração,

assim como de profissões que portam terminologias e formas linguísticas específicas em

cada área de atuação).

Assim como a linguagem verbal, a decodificação da linguagem visual está relacionada à

singularidade da experiência constituindo-se em uma “relação socialmente caracterizada

na qual os receptores empregam a diversidade de seus instrumentos de apropriação

simbólica” (Bourdieu, 1996b; 25). As linguagens acionam metáforas relacionadas às

representações do mundo social por elas veiculadas. Apesar de serem meios comuns, a

comunicação, tanto verbal, como visual, não têm existência em si a não ser quando

imersas em situações.

142 Centrou-se a análise sobre as linguagens nas observações realizadas na oficina de jogos neoconcretos,

devido a sua vinculação mais diretamente à instituição. A oficina de jogos encarna a ambiguidade expressa entre as duas concepções teórico/práticas do projeto (ver item 3.3): enquanto a oficina de papel assume um papel estritamente mercantil, com uma organização semi-industrial – racionalização do tempo e matéria prima, controle de produção etc. – a oficina de jogos apresenta como objetivo o desenvolvimento da percepção e o estímulo à “expressão poética e crítica”, agindo de maneira ambígua no estímulo de tais qualidades.

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76

Sendo um instrumento de ação sobre o mundo social, a linguagem aciona relações de

força entre os locutores e os receptores. A hierarquização dessa relação e a imposição de

uma linguagem estranha ao ambiente social das pessoas pode ocasionar o mutismo

daqueles a quem se reserva uma posição subordinada, isto é, de incompetência técnica e

social de expressão. A desconsideração das disposições específicas que implicam uma

propensão a falar determinadas coisas, acaba impondo certas sanções e censuras que

contribuem para o tolhimento da expressão143.

Esse mutismo não passa necessariamente pelo silêncio, ele pode manifestar-se, também,

na forma ambígua da adoção de um comportamento mimético. Na produção artística dos

rapazes esse mimetismo pode estar relacionado à compreensão de uma linguagem que

satisfaça aos instrutores, ao invés do desenvolvimento de uma forma de expressão própria

através da linguagem visual.

Em uma conversa entre o instrutor de jogos e os rapazes, ficou explícita a preocupação

em trabalhar dentro dos cânones legítimos:

– (instrutor) Nós estamos fazendo com que vocês falem coisas em frente às obras de arte que vocês nunca falaram antes.

– (rapaz 2) Tamos ficando maluco.

– (instrutor) Olha, isso aqui é maluquice, – apontando para um trabalho que, reproduzindo a forma/regra da obra de Sérgio Camargo, formava um jogo de peças de sabão bastante parecido com a própria obra de Camargo – o negócio é que isso gera museu. O fato de estar vinculado a uma instituição museal e a um movimento artístico específico,

parece dificultar a inclusão de noções que não estejam diretamente relacionadas ao

movimento em questão. A oficina de jogos, parece estar presa às formas das obras dos

artistas neoconcretos.

A noção de precisão, abordada no item 4.3, ilustra a dificuldade em trabalhar com a

percepção dos rapazes e adapta-las à linguagem de jogos. O caminho acaba sendo

inverso, impondo noções subjacentes às obras para que eles produzam os jogos –

143 A própria forma do museu pode ilustrar o mutismo, nesse caso expresso pela insegurança, que pode se

impor ao se adotar uma linguagem que não faz parte do mundo social daqueles com quem se pretende trabalhar: a linguagem arquitetônica de Niemeyer, enaltecida por alguns grupos como moderna e inovadora e, por outros, como antiga e superada, surgiu como um empecilho para a ida da mãe de um dos rapazes ao museu. Quando perguntei se seus familiares já haviam ido ao museu ele respondeu que sua mãe tinha medo de ir, pois “ela acha que o museu vai cair”.

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pequenas obras móveis – dentro de uma linguagem definida pelo artista e legitimada pelo

museu. Nesse sentido, a precisão poderia ser percebida como uma agressão: uma arte que

exclui, já que o mundo desses rapazes não é preciso144.

A proposta da oficina acaba estando voltada mais para um processo de industrialização,

preocupado com a venda dos artefatos produzidos por um projeto social do Museu de

Arte Contemporânea de Niterói, do que um processo fenomenológico que traduza as

percepções de mundo dos rapazes em uma linguagem visual. A oficina poderia então ser

denominada “Oficina de jogos concretos”, já que a referência está mais voltada para a

indústria do que para a percepção145.

A mesma relação hierárquica que define uma determinada linguagem visual como

legítima, em oposição a noções que não o são, pode ser também encontrada na utilização

da linguagem verbal. Uma das primeiras visitas ao Morro do Palácio, acompanhada de

três rapazes do projeto, me permitiu presenciar uma conversa entre dois deles a respeito

da importância em se levar em conta o capital cultural daqueles a quem se pretende

ensinar algo e da importância em se prestar atenção na questão da linguagem como

instrumento hierárquico na implementação de atividades no local.

– (rapaz X146) Analfabeto é igual cavalo, você bota o cabresto e ele vai sempre em frente, sem olhar em outra direção.

– (rapaz 5) Mas é criativo, tem que aproveitar o que eles têm.

– (rapaz X) Mas não se expõe, tem medo de dar opinião.

– (rapaz 5) O problema é a linguagem, se você usar uma linguagem que eles entendam ajuda a interagir.

Quando perguntei sobre a importância do centro de produção147 novamente surgiu a questão da linguagem.

– (rapaz 5) É muito importante, pois queremos ocupar todos os espaços. O módulo vai ser muito bom, pois vai completar a ocupação espacial da comunidade. O módulo lá em baixo, a Casa da Criança no meio e o Centro Social aqui em cima. O módulo vai ser importante também porque vamos poder interagir com gente mais sábia. Todos

144 Parece significativo que o rapaz que fez o comentário sobre precisão esteja afastado da oficina de jogos. 145 Ver nota 66. 146 Esse rapaz participou do projeto apenas através do contato com o instrutor de educação ambiental para

aplicação dos questionários do SUS, sem ter contudo, participado de nenhuma das oficinas do AAA. 147 O Centro de produção foi inicialmente denominado módulo numa referência à expansão do projeto para

outras localidades.

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78

ensinando e aprendendo. O importante é trabalharmos a questão das linguagens diferentes. Estamos tentando vários caminhos. O Centro Social, por exemplo, está fechado nos fins-de-semana, o prédio sozinho não serve para nada.

Queremos ajudar as pessoas a crescerem, orientar os menos privilegiados. Nosso jeito de dar aula é no papo, sem impor regras, mas fazendo acordos, não estabelecendo uma relação de professor-aluno, mas de colegas.

O domínio de uma linguagem mais articulada coloca esse rapaz em uma posição

mediadora entre o grupo de jovens e os profissionais do projeto. A noção que o rapaz 5

tem da importância da linguagem não se apresenta de forma articulada nos outros

rapazes, mas a dificuldade em compreender certas colocações do instrutor de jogos indica

a hierarquização que esse instrumento pode impor à relação “professor-aluno”.

A utilização de palavras que os rapazes têm dificuldade em compreender148, de forma a

parecerem corriqueiras, coloca o falante, no caso o instrutor, como o detentor da

legitimidade contra a qual os rapazes só tem o que aprender. Não está excluído desse jogo

o reconhecimento, por parte dos rapazes, da legitimidade do instrutor149 explícita na

declaração dos jovens quando à expectativa de elogios por parte daquele. O

reconhecimento da legitimidade do instrutor supõe o reconhecimento de sua própria

incompetência em expressar-se já que não possuem o domínio dos códigos legítimos.

Talvez esse seja mais um dos motivos para a apatia dos rapazes: o medo em expressar

aquilo que eles não estão autorizados a dizer, seja com palavras, seja com cores, formas e

materiais.

148 Ao menos em duas situações específicas os rapazes demonstraram não compreenderem o que estava

sendo expresso. Em uma das situações um deles me perguntou o significado da palavra extrovertido e, em outra, o grupo demonstrou certo constrangimento ao não compreender uma pergunta do instrutor que usou na frase o termo insight.

149 Segundo Bourdieu (1996b; 45), “uma das propriedades genéricas dos campos é o fato de que a luta em torno do que está exatamente em jogo costuma dissimular ao mesmo tempo o conluio objetivo a respeito dos princípios do jogo. Ou melhor, essa luta tende continuamente a produzir e a reproduzir o jogo e tudo o mais que está em jogo, reproduzindo naqueles que se encontram diretamente envolvidos nele (mas não apenas entre eles) a adesão prática ao valor do jogo e do que está em jogo (móveis de concorrência), que define o reconhecimento da legitimidade.

Page 92: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

79

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção inicial da pesquisa estava centrada na compreensão do papel da arte na

construção da identidade social de um grupo de classes populares, através de um projeto

de intervenção. Questionou-se a influência que uma instituição de divulgação cultural

teria na utilização da arte como recurso/instrumento para essa construção.

Ao longo do trabalho de campo foi possível perceber que não existe um papel

abstratamente definível para a arte no processo de construção de identidades. A arte pode

ter diferentes papéis e ocupar diferentes posições dependo de quem a enuncia, da

instituição a qual está vinculada e do grupo social ao qual se destina. A própria noção de

arte não pode ser compreendida sem que se faça uma distinção entre as várias

classificações possíveis: artes plásticas, teatro, música, artes industriais etc., já que cada

espaço, com seus respectivos grupos sociais, atribui às diversas formas artísticas

dimensões de valor diferenciadas.

A arte como instrumento de intervenção vinculada a uma instituição de legitimação que

pretendia trabalhar a expressão artística com classes populares, tornou explícitas diversas

dimensões de conflito entre tradições de conhecimento e valores de grupos

diferenciados150. A relação hierárquica151 entre essas tradições de conhecimento e valores

parece dificultar uma distinção entre o “nós” e o “outros”, na medida em que alguns

valores são próprios e outros partícipes de uma “totalidade” englobante. Enquanto alguns

elementos da cultura152 do grupo são distintos e, às vezes, opostos, outros são parte de um

150 Magnani discute as diversas formas de lazer como possibilidades de acesso ao conhecimento dos valores,

da maneira de pensar e do modo de vida dos grupos sociais. Segundo o autor, “as artes e manifestações populares podem constituir, pois, uma realidade até mesmo privilegiada para entender alguns mecanismos dos processos ideológicos” (1979; 6). Foi possível perceber, ao longo da pesquisa de campo, que o contato das classes populares com o campo da arte erudita também explicita relações conflituosas, disputas e acusações que constituem fenômenos privilegiados para observar as classificações subjacentes às visões de mundo em jogo na interação entre os diferentes agentes sociais participantes do processo de intervenção.

151 A noção de hierarquia aqui utilizada está referida à teoria de Louis Dumont na forma apropriada por Duarte (1986). Duarte mostra que a oposição hierárquica se funda sobre a relação instituinte entre o conjunto e seus elementos, sendo essa uma relação complexa em níveis, em que prevalece a complementaridade ou reciprocidade entre termos. Essa proposição fere os princípios aristotélicos da identidade e da não-contradição na medida em que duas coisas podem ser assim, em um nível, idênticas e, em outro, opostas – o exemplo utilizado a título de ilustração é o do mito de Adão e Eva.

152 Duarte(1986) refere-se à cultura como um sistema simbólico, no sentido empregado por Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro, renunciando a um substantivismo que a define em termos de seus elementos (“traços”, “normas”, “atitudes” etc.) e privilegiando os modos contrastivos de articulação de sentido que permitem que os elementos existam como parte de uma totalidade simbólica por oposição a outras.

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conjunto de valores que engloba e disfarça as diferenças, exigindo um esforço de

distanciamento para que seja possível perceber esse “outro” como diferente, ao mesmo

tempo que igual. A relação mimética adotada pelo grupo pode ser uma evidência dessa

idéia de valores que são, em um nível, idênticos e, em outro, distintos.

Essa mesma relação hierárquica bidimensional parece estar presente na aparente

contradição entre a posição privilegiada da produção artística no interior do campo da

produção erudita e sua posição subordinada na relação entre os diversos campos que

estruturam a malha social, instituindo uma relação também contraditória entre os agentes

internos ao campo da produção artística e os agentes externos a ele. Essa relação

hierárquica que atua em níveis diferenciados parece acarretar conflitos tais como a

relação ambígua que a tradição de conhecimento em arte mantém com a educação

artística. A conquista de uma posição de prestígio junto aos agentes do campo

burocrático, mais precisamente no caso estudado, junto à administração municipal,

privilegia um trabalho em educação que investe na ampliação da atuação do museu junto

às classes populares. Entretanto, a utilização de um conceito substancialista de arte,

trabalhando com os cânones artísticos como uma linguagem em si, desvinculada das

vivências cotidianas do grupo no qual intervém, parece dificultar a tradução dessa

linguagem para uma outra que traduza as posições da estrutura de relações de prestígio

que compõem o campo da produção artística para o interior de uma estrutura social

distinta, aquela constituída pelo grupo no qual se está intervindo.

A proposta de uma abordagem fenomenológica que considera as disposições, o habitus,

dos observadores, contribuindo para que esses se sintam participantes do processo de

construção de seu conhecimento pode ser uma forma de ampliar esse público apreciador

de arte, possibilitando uma revisão dos conceitos e convenções na medida em que classes

à margem das discussões que permeiam o campo artístico tenham acesso ao campo,

legitimadas por suas percepções. Entretanto, a revisão dos cânones artísticos pelas classes

populares deslocaria as relações de prestígio no interior do campo artístico para uma

esfera social distinta, modificando as posições de status dos grupos que dominam o

campo153.

153 “Quanto menos formos, maior a nossa fração de honra”, Shakespeare, Henrique V.

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Assim, as dimensões educativas da Divisão de Educação se diferenciam de acordo com o

público a quem se dirige o trabalho: o público interno ao campo artístico, como no

trabalho de curadoria do evento O Artista Pesquisador e o público externo ao campo,

como o projeto Arte em Ação Ambiental. A proposta para o projeto O Artista

Pesquisador enfatiza a discussão sobre arte, enquanto a proposta para o AAA trabalha a

noção de arte como produção. Arte diferenciada para grupos distintos.

A arte e as relações que estiveram em jogo nesses jogos de força, cujos valores

considerados são subjetivos, serviram como instrumento na construção da identidade

social do grupo de jovens através das diversas noções154 que fizeram parte desse processo:

trabalho, distinção, prestígio, responsabilidade, criatividade, arte etc. Entretanto, o

processo de construção de identidade não se deu, somente, na aprendizagem e na

experimentação artística, mas também, e talvez, principalmente, no processo de

estabelecimento das relações sociais e vínculos afetivos. As artes surgiram, então, como o

fio condutor através do qual essas relações puderam se estabelecer, sendo que o prestígio

instituído pela participação em uma instituição de prestígio conferiu ao projeto AAA uma

dinâmica que lhe foi, às vezes, aliada, às vezes, inimiga.

Huizinga (1993; 33) compreende a noção de jogo como “uma atividade ou ocupação

voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço,

segundo regras livremente concedidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim

em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma

consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’.” Ao contrário da noção de jogo que esse

autor apresenta, o jogo social que se apresentou à observação em campo não parece

possuir regras rígidas, mas estratégias que estiveram referidas às formas de

relacionamento no interior das estruturas dos campos nos quais se inseriam os agentes

que participaram dos jogos. Assim, a noção de jogo social esteve aqui vinculada a um

conjunto de ações, imersas no cotidiano das pessoas, como uma forma de se relacionar

com as diferentes dimensões da vida cotidiana, não havendo uma separação espaço-

154 Esse termo, noção, foi utilizado como uma gíria pelos jovens durante o financiamento do PCS. “Noção”

parecia ter, então, um significado amplo relacionado a tudo que deveria ser compreendido, interiorizado, durante o trabalho com os profissionais do projeto. Era proferida como uma interjeição, solta, sem qualquer complemento: “noção!”. Ao final desse período, dezembro de 1999, a gíria já quase não era mais utilizada e, no início da pesquisa de campo, ela havia desaparecido.

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temporal do ambiente cotidiano. Nesses jogos havia sempre algum tipo de

prazer/finalidade reconhecido, mas não necessariamente conhecido.

A construção da identidade social do grupo de jovens ocorreu no interior de uma

estrutura na qual vários jogos se desenvolveram, contribuindo para a constante

modificação da própria estrutura na qual se desenrolaram os jogos. A ampliação da rede

de interdependências e a conseqüente modificação nos relacionamentos sociais através

das novas relações que o projeto Arte em Ação Ambiental colocou em jogo através de

diferentes linguagens e escalas de valores pôde ser observada durante o trabalho de

campo. O grupo de jovens que passou a freqüentar o projeto AAA passou também a ter

como influentes direta ou indiretamente em suas vidas e, conseqüentemente, na

construção de sua identidade social, diferentes redes de relações nas quais se

desenrolaram esses variados jogos com finalidades diferenciadas: a classificação da

coleção Sattamini como um jogo entre os agentes e agências do campo artístico para

tornar diferenciada a participação de um museu de periferia na estrutura das instituições

do gênero no Estado; a escolha de um arquiteto cuja representação social aciona imagens

de filantropia e preocupação social, colocando em evidência uma política municipal que

se pretendeu voltada para a cultura; a opção da Divisão de Educação por acionar um

programa educativo que pretendia trabalhar a identidade social de um grupo de jovens de

classes populares através da arte; a opção desse projeto por uma vinculação ao museu em

oposição à adoção de uma identidade relativamente independente de ONG (organização

não-governamental); a morosidade do Estado na concessão de financiamento para o

projeto contrapondo-se à persistência dos instrutores em trabalhar com o grupo de jovens

e; a construção de afetos de ambas as partes, dos instrutores em relação aos rapazes e dos

rapazes em relação aos instrutores.

Esses são alguns dos jogos em jogo no jogo da construção da identidade desse grupo de

jovens do Morro do Palácio. Por isso, a análise desse projeto de intervenção não poderia

ter estado resumida na análise dos objetivos e resultados, pois estando em jogo tantos

agentes e agências com objetivos tão diferenciados, foi preciso examinar como se deram

as relações em campo para perceber em que medida o sentido das ações escapava às

intenções, em que medida as ações de uns agentes interferiam nas ações de outros

oferecendo resultados diferentes dos pretendidos. Todos esses jogos fizeram com que a

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arte fosse apenas mais um dos elementos a serem considerados nesse processo/jogo, mas

justamente aquele que permitiu colocar em jogo as relações conflituosas entre os

interesses e as paixões em jogo em todo esse processo.

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84

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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7. ANEXOS

TRABALHOS CONCRETOS E NEOCONCRETOS

1.Geraldo de Barros Movimento contra movimento, 1952 Esmalte s/ kelnite 60 x 60 cm Col. do artista – SP

2. Almir Mavignier Sem Título, 1965 Serigrafia 60 x 60 cm Col. Adolpho Leirner – SP

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3. Hércules Barsotti Preto/branco, 1959/61 Areia e óleo s/ tela 50 x 100 cm Col. Rachel Arnaud – SP

4. Aluísio Carvão

Ritmo centrípeto-centrifugal, 1958 Óleo s/ tela 60 x 60 cm

Col. Ferreira Gullar – RJ

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6. Mira Schendell Sem título, Meados da década de 60

Técnica mista 50 x 45 cm

5. Lygia Pape S/ Título (série Tecelares), 1958 Xilogravura 29.8 x 29.8 cm Col. do artista – RJ

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11. Oficina de jogos

12. Oficina de português

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nexo s

15. Rapazes do projeto em dia de trabalho no ponto de vendas

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16. Papéis reciclados

17. Produtos produzidos na oficina de papel reciclado

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18. Jogo Neoconcreto

19. Jogo Neoconcreto

Page 107: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

20. Jogos Neoconcretos

21. Caixas de CDs produzidas na oficina de jogos

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22. Jogo Neoconcreto

23. Jogo Neoconcreto

Page 109: Reinheimer - A Forma e a Regra Do Jogo (Dissertacao)

24. Ponto de vendas

25. Ponto de vendas