Reificacao Da VIDA-MORTE

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Revista Mal-estar E Subjetividade ISSN: 1518-6148 [email protected] Universidade de Fortaleza Brasil Gomes da Silva, Sergio Eutanásia, Finitude e Biopolítica Revista Mal-estar E Subjetividade, vol. XIII, núm. 1-2, mayo-junio, 2013, pp. 331-368 Universidade de Fortaleza Fortaleza, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27131673013 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Reificacao Da VIDA-MORTE

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  • Revista Mal-estar E SubjetividadeISSN: [email protected] de FortalezaBrasil

    Gomes da Silva, SergioEutansia, Finitude e Biopoltica

    Revista Mal-estar E Subjetividade, vol. XIII, nm. 1-2, mayo-junio, 2013, pp. 331-368Universidade de Fortaleza

    Fortaleza, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27131673013

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    Projeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso Aberto

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    Eutansia, Finitude e Biopoltica1

    Sergio Gomes da Silva

    Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro; Mestre em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Psiclogo da Diviso de Psicologia Aplicada Profa. Isabel Adrados do Instituto de Psicologia da UFRJ; Membro Associado e Psicoterapeuta da Clnica Social do Instituto de Estudos da Complexidade (IEC). End.: Instituto de Psicologia da UFRJ - Diviso de Psicologia Aplicada Profa. Isabel Adrados Av. Pasteur, 250 Botafogo, Rio de Janeiro-RJ, Brasil, CEP: 22290-240. E-mail: [email protected]

    1 As ideias contidas na primeira parte desse trabalho, foram apresentadas sob forma de palestra no Crculo Brasileiro de Psicanlise (CBP-RJ), durante o evento Cinema e Psicanlise, em 2006 sob o ttulo de Vida e Morte em Mar Adentro e no evento Ciclo de Cinema 4x4: Polmicas Contemporneas na Tela, na Escola de Servio Social da UFRJ (ESS/UFRJ), em 2007, sob o ttulo de Para uma poltica de vida e morte em Agamben: notas para uma discusso a partir de Mar Adentro. As ideias contidas na segunda parte do trabalho, foram apresentadas sob forma de palestra sob o ttulo de Eutansia, finitude e vida nua, na Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia do Rio de Janeiro (SBGGRJ), em Maro de 2013. Agradeo a Suely Almeida Bellinello (CBP-RJ), a Sara Nigri (ESS/UFRJ e SBGGRJ) e Anelise Fonseca, Coordena-dora da Comisso de Cuidados Paliativos (SBGGRJ), pela oportunidade que me deram em compartilhar o conjunto de ideias contidas nesse artigo.

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    ResumoAtualmente nossa compreenso acerca do que denominamos vida e morte tem sido pautada por trs grandes sistemas de pensamentos. O primeiro, denominado de modelo mdico-biolgico, parte de trs perspectivas distintas, a saber: a perspectiva orgnica, a perspectiva neurosensitiva e a perspectiva singular, todos elas baseadas na doutrina do vitalismo. Na perspectiva vitalista, h uma fora ou impulso vital inerente prpria vida e atuando diretamente sobre a matria organizada, cuja fora ou impulso vital traria como consequncia a vida em si mesma no que se refere aos seres humanos ou animais. O segundo modelo, o religioso, pautado na ideia da sacralidade da vida e da vida indigna de ser vivida e so baseados nos preceitos judaico-cristos. Por fim, o terceiro modelo, o jurdico-poltico, legitima aes de preservao da vida e punio da morte, operando fraturas nos dois modelos anteriores. Vida e morte, neste modelo, passam a ser compreendidas a partir do dispositivo da lei e da ordem jurdica. Assim, o presente artigo objetiva analisar a questo da eutansia e da finitude, discutindo-os do ponto de vista terico-filosfico e tentando mostrar o lugar da negatividade na subjetividade humana. Apresentamos alguns dados atuais sobre a eutansia no Brasil e no mundo para, por fim, analisar a mudana de paradigma de biopoltica para tanatopoltica a partir dos referenciais de Giorgio Agamben. Conclumos que o avano da tecnologia mdica tem forado cada vez mais o sistema jurdico-poltico a converter a poltica sobre a vida (biopoltica) em uma poltica sobre a morte (tanatopoltica), trazendo como consequncia a necessidade de se pensar: a) o manejo dos cuidados paliativos (ortotansia); b) o apoio (psicolgico) a pacientes e seus familiares; c) a institucionalizao da doao de rgos e d) uma poltica que legalize a eutansia e a ortotansia.

    Palavras-chave: Eutansia, Vida, Morte, Finitude, Biopoltica, Tanatopoltica.

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    333Eutansia, FinitudE E Biopoltica

    Euthanasia, Finitude and BiopoliticAbstractTo understand life and death in current life, the author point out three major systems of thoughts. The first one, called medical-biological model, is pointed out from three different perspectives, namely: the organic, the neurosensitive and the singular perspective. All of them is based on the doctrine of vitalism. In vitalism perspective, there is a strength or inherent to life and vital impulse acting directly on organized matter which force or vital impulse would result in life itself in relation to humans or animals . The second one, the religious model, is founded on the idea of sacredness of life and unworthy of life and are based on Judeo-Christian precepts. Finally, the third model, the legal and political, legitimate actions preservation of life and penalty of death, operating fractures in the two previous models. Life and death in this model are understood from the device of law and legal system. Thus, this paper aims to analyze the issue of euthanasia and finitude, discussing them from a theoretical and philosophical view, trying to show the place of negativity in human subjectivity. It then presents some current data on euthanasia in Brazil and in the world to finally analyze the issue through the paradigm shift from biopolitics to tanatopolitic in Giorgio Agamben approuch. We conclude that the advancement of medical technology has forced more and more legal and political system to convert the policy on the life (biopolitics) in a policy on death (tanatopolitic), bringing as a result the need to think about: a) the management of palliative care (orthotanasia); b) psychological support to patients and their families; c) the institutionalization of organ donation and e) the policy to legalize euthanasia and orthotanasia.

    Keywords: Eutansia, Life, Death, Finitude, Biopolitic, Thanatopolitic.

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    Eutanasia, Finitud y BiopolticaResumen Actualmente nuestra comprensin acerca de lo que llamamos la vida y la muerte ha estado marcada por tres grandes sistemas de pensamientos. El primero, llamado el modelo biolgico, desde tres perspectivas diferentes, a saber: la perspectiva orgnica, la perspectiva neurosensitiva y perspectiva singular, todas ellas basadas en la doctrina del vitalismo. Perspectiva vitalista, existe una fuerza o impulso vital inherente a la propia vida y trabajar directamente sobre el tema organizado, cuya fuerza o impulso vital conducira a la vida misma en relacin con los seres humanos o animales. El segundo modelo, el religioso, se basa en la idea de la sacralidad de la vida y de la vida digna de vivir y se basan en principios Judeo-cristiana. Finalmente, el tercer modelo, el poltico y jurdico, legitima las acciones de preservacin de la vida y la pena de muerte, operando en los dos modelos anteriores de fracturas. Vida y muerte, en este modelo, deben ser entendidos desde el dispositivo de la ley y el ordenamiento jurdico. El presente artculo pretende analizar la cuestin de la eutanasia y finitud, discutiendo el punto de vista terico y filosfico y tratando de mostrar el lugar de la negatividad en la subjetividad humana. Presentamos algunos datos actuales sobre la eutanasia en Brasil y en el mundo para, finalmente, analizar el cambio de paradigma biopoltico de tanatopoltica de los referentes de Giorgio Agamben. Concluimos que el avance de la tecnologa mdica ha insistido cada vez ms el sistema poltico y legal para convertir la poltica en la vida (biopoltica) una poltica acerca de la muerte (tanatopoltica), trayendo como consecuencia la necesidad de pensar: a) la gestin de cuidados paliativos (ortotansia); b) soporte (psicologico) a los pacientes y sus familias; c) institucionalizacin de la donacin de rganos y d) una poltica de legalizacin de la eutanasia y ortotansia.

    Palabras-clave: Eutanasia, Vida, Muerte, Finitud, Biopoltica, Tanatopoltica.

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    335Eutansia, FinitudE E Biopoltica

    Euthanasie, Finitude et la Politique

    RsumActuellement, notre comprhension de ce que nous appelons la vie et la mort a t marque par trois grands systmes de penses. Le premier, appel le modle biologique, sous trois angles diffrents, savoir: le point de vue biologique, la perspective neurosensitiva et point de vue singulier, chacun d'eux bas sur la thorie du vitalisme. Perspective vitaliste, il y a une force ou une impulsion vitale inhrente la vie elle-mme et travailler directement sur la question organis, dont la force ou l'impulsion vitale conduirait la vie elle-mme en ce qui concerne la sant humaine ou animale. Le deuxime modle, le religieux, repose sur l'ide du caractre sacr de la vie et de la vie indigne de vivre et reposent sur des principes judo-chrtiens. Enfin, le troisime modle, le politique et juridique, lgitime les actions de prservation de la vie et des fractures de la peine de mort, oprant sur les deux modles prcdents. Vie et mort, dans ce modle, doivent tre compris entre l'appareil de droit et systme juridique. Le prsent article vise analyser la question de l'euthanasie et la finitude, discuter du point de vue thorique et philosophique et en essayant de montrer la place de la ngativit sur la subjectivit humaine. Nous prsentons des donnes actuelles sur l'euthanasie au Brsil et dans le monde pour, enfin, analysent le changement de paradigme biopolitique pour tanatopoltica des repres de Giorgio Agamben. Nous concluons que l'avance de la technologie mdicale a soulign plus en plus le systme politique et juridique pour convertir la politique sur la vie (biopolitique) une politique sur la mort (tanatopoltica), apportant ainsi la ncessit de penser : un) la gestion des soins palliatifs (ortotansia) ; b) soutien (psychologique) pour les patients et leurs familles ; c) institutionnalisation du don d'organes et d) une politique de lgalisation de l'euthanasie et ortotansia.

    Mots-cls: Euthanasie, Vie, Mort, Finitude, Biopolitique, Tanatopoltica.

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    No h maior solido do que aquela nos olhos de um homem morto; e no h maior desafio do que aquele que aparece no frio semblante de um falecido.

    Rosenzweig (1985, p. 72)

    IntroduoO avano da tecnologia mdica no prolongamento da vida

    introduziu, em nossa sociedade, novos questionamentos acerca do sentido e do conceito de vida e morte sem chegar a um consenso.

    Na atualidade, a medicina tem desconstrudo nossas certe-zas acerca dos limites do nosso corpo, ao manipular nossos genes e nossas clulas sexuais; ao exibir in loco as imagens cerebrais das nossas mais fortes e mais etreas emoes; ao trocar alguns dos nossos rgos prolongando a nossa vida, assim como possibilitar uma sobrevida maior para pessoas que se encontram em estados fsicos graves.

    A farmacologia, por sua vez, possibilitou a medicalizao de determinadas doenas crnicas proporcionando um melhoramento na vida das pessoas, ao passo que tambm aumentou as estima-tivas de vida da populao em geral. Hoje, j temos remdios para disfunes sexuais, problemas cardacos, presso arterial, dficits de memria, distrbios psiquitricos, entre tantos outros.

    Nesse novo cenrio, a vida biolgica ganha uma nova di-menso e um novo sentido o qual no podemos prever at onde podemos chegar. Mas tambm neste mesmo admirvel mundo novo que alguns questionamentos passam a emergir, tal como foi visto em fevereiro de 2009, atravs da guerra travada entre o governo conservador do ento primeiro ministro da Itlia, Silvio Berlusconi, de um lado (apoiado pelo Vaticano) e o judicirio italia-no de outro (apoiado pelo presidente da repblica), na deciso da continuidade da vida de Eluana Englaro que permanecia em esta-do vegetativo h 17 anos.

    Eluana Englaro sofreu um grave acidente em 1992 aos 20 anos de idade, permanecendo em coma irreversvel desde aque-la poca. Seus pais se recordam que aps a visita a um amigo que

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    estava em estado de coma, ela afirmara que se algo semelhante acontecesse com ela, no a deixassem vegetar em uma cama de hospital. Em julho de 2008, o tribunal da segunda instncia de Milo autorizou que os aparelhos que a mantinham viva fossem desliga-dos. Os juzes levaram em conta a vontade da paciente quando consciente, nove anos depois que seu pai, Beppino Englaro, ter en-trado na justia para por fim ao sofrimento da filha. Em entrevista aos jornais italianos, Beppino argumentou: Peo que os senhores libertem a pessoa mais maravilhosa que at hoje conheci. Minha filha est morta h 16 anos (Folha de So Paulo, 2008).

    O caso, como se sabe, dividiu os italianos pondo a hierar-quia catlica em oposio deciso judicial por meio do monsenhor Rino Fisichella, diretor da Academia Pontificial pela Vida. Fisichella afirmou que o estado de coma uma forma de vida e como tal, desligar os aparelhos que mantinham Eluana viva seria uma forma de assassinato. A promotoria italiana, em novembro de 2008, apre-sentou recurso ao Tribunal Constitucional da Itlia quanto deciso do tribunal de Milo, mas a famlia de Eluana ganhou em ltima instncia o direito de desligar os aparelhos que a alimentavam e a mantinham viva. preciso lembrar que a Itlia, a exemplo de ou-tros pases da Europa, no reconhece o direito eutansia, embora a jurisprudncia conceda o direito aos pacientes de no serem ali-mentados por nenhum meio artificial (Coutinho, 2009).

    O passo seguinte foi dado pelo ento primeiro ministro italia-no Silvio Berlusconi, desafiando o judicirio ao tentar interromper a eutansia de Eluana atravs de um decreto lei que proibia a in-terrupo da alimentao e hidratao da paciente, criando uma crise institucional. Berlusconi foi ainda mais longe, tentando apro-var o decreto lei sob forma de Projeto de Lei e, por fim, sugerindo uma mudana na prpria constituio da Itlia.

    Eluana Englaro morreu trs dias depois retirada da sonda que a hidratava e a alimentava, em 09 de fevereiro de 2009. Na atualidade, a despeito das dificuldades em se discutir um tema to polmico em meio a um forte sistema religioso tal como aquele en-contrado no Vaticano, o sistema legislativo italiano passou a discutir sobre a questo da eutansia fazendo com que o judicirio se pro-nunciasse quanto sua legalizao.

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    Um outro caso semelhante aconteceu com a americana Terry Schiavo em 2005 nos Estados Unidos.

    Terry faleceu aos 41 anos no dia 31 de maro de 2005 aps passar quinze anos em estado vegetativo. Ela sofreu um dano ir-reversvel no crebro por falta de oxigenao, resultante de uma parada cardiorrespiratria aps um pequeno acidente domstico. A batalha jurdica que se seguiu por nove dos quinze anos em que ela permaneceu em coma profundo entre o seu marido (seu tutor e defensor de que ela preferia morrer a ser mantida viva sob essas condies) e seus pais (que defendiam o direito de Terry conti-nuar sendo alimentada atravs da sonda gstrica), levou a corte norte-americana a se posicionar diante dos fatos, gerando uma dis-cusso em torno do valor da vida e levantando questes bioticas de difcil consenso (Schelp, 2005a, 2005b)2. O Caso Terry, como assim ficou conhecido atravs da mdia, foi amplamente divulga-do em todo o mundo. Nos Estados Unidos o caso provocou aquilo que os juristas denominaram A lei de Terry (Terrys Law), uma dis-cusso que chegou s raias da Suprema Corte Norte-Americana e prescindiu da interveno do presidente George W. Busch.

    Estes casos so exemplares para compreender como vista a eutansia hoje no que concerne ao direito vida e morte de pacientes que permanecem em estado vegetativo, em coma pro-fundo ou irreversvel, transformando o campo da biopoltica em tanatopoltica.

    Dito isto, este trabalho resultante de algumas reflexes que o autor vem fazendo acerca do tema, ao abordar questes chaves no mundo contemporneo tais como natalidade, mortalidade, fini-tude, morte cerebral, poltica de vida e poltica de morte, sobretudo quando a medicina, as tecnologias mdicas e as cincias jurdicas tm regulado nossos paradigmas a respeito da vida e da morte.

    2 O outro caso que se tem notcia tambm nos Estados Unidos foi aquele que ficou conhecido como o Caso Quilan na dcada de 70, onde a corte ameri-cana teve que se pronunciar pela primeira vez sobre a continuidade de inter-venes na sustentao da vida, gerando as primeiras discusses jurdicas e leis em torno do problema da biotica (Dresser, 2004).

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    Os Paradigmas da Vida e da Morte: Algumas Definies

    Como se define vida? A partir de quais parmetros podemos defini-la? Sobre quais aspectos ticos, morais, biolgicos, mdicos, jurdicos, psquicos, sociais ou religiosos podemos caracteriz-la?

    Na atualidade, h trs grandes modelos para se tentar apre-ender o conceito de vida e de morte: o primeiro deste modelo denominamos de modelo mdico-biolgico que define o que e o que no vida, o que e o que no morte.

    Partidrios do modelo mdico-biolgico defendem o concei-to de vida e morte a partir de aspectos puramente biolgicos, sejam eles genticos, fisiolgicos ou neurolgicos e todas as derivaes em seu aspecto legal ou jurdico tenta preservar os direitos do ser humano como um sistema ou organismo vivo.

    Dentro desse modelo, o conceito de vida como um sistema ou organismo vivo pode ser compreendido a partir de trs perspec-tivas nitidamente distintas, a saber:

    a) perspectiva orgnica - a vida comea a partir do momento em que o espermatozoide fecunda um vulo, ou seja, a partir do mo-mento em que h a fecundao das clulas sexuais e estas comeam a se dividir para formao do embrio. Ora, do mesmo modo pode-mos pensar que organismos celulares primrios, tais como amebas, bactrias e vrus tambm so organismos ou seres viventes. Outros organismos biolgicos superiores tais como insetos, anfbios, ani-mais peonhentos, etc, tambm o so. Elefantes, baleias, girafas, bfalos e pssaros estariam todos dentro dessa mesma classifica-o. Deteremos nossa anlise, no entanto, concepo de vida em relao aos seres humanos.

    b) perspectiva neuro sensitiva - a vida comea a partir do mo-mento em que o feto passa a experimentar sensaes, seja de prazer ou desprazer, ainda no tero materno. Nesse sentido podemos en-tender que a vida comea quando o sistema nervoso central do feto comea a se formar, tal como defendem os neurocientistas;

    c) perspectiva singular definida a partir da nossa natalidade,

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    a vida comea quando nascemos e a partir da, temos nossa aber-tura para o mundo; somos introduzidos numa corrente de emoes, sentimentos e vivncias e que faz de um pequeno ser um homem, um cidado, um sujeito, um indivduo, uma pessoa, ou seja, um or-ganismo vivo dotado de singularidades.

    Esse primeiro modelo mdico biolgico est pari passu a uma corrente de pensamento iluminista chamada doutrina vitalista.

    O vitalismo uma corrente de pensamento iniciado no Iluminismo e se tornou a base de toda a revoluo cientfica da era moderna. O vitalismo se opunha frontalmente s teorias do mecani-cismo cartesiano que defendia uma diviso entre a mente e a matria, concebendo o corpo humano tal qual uma mquina. Na perspectiva vitalista iluminista, cujas pesquisas referiam-se ao campo da qumica, da geologia e das cincias da vida tais como a medicina e a histria natural, h uma fora ou impulso vital inerente prpria vida atuan-do diretamente sobre a matria organizada. Essa fora ou impulso vital traria como consequncia a vida em si mesma no que se refere aos seres humanos ou aos animais, porm eram foras as quais no podiam ser vistas ou medidas, donde o corpo evoluiria atravs de es-tgios da criao, efetuado atravs da unio dos fluidos masculinos e femininos produzindo, assim, uma nova ontologia do ser (Reil, 2008).

    O segundo modelo iremos denomina-lo de modelo religioso que tenta pautar suas discusses a partir da ideia da sacralidade da vida. Consequentemente, o modelo religioso compreende a morte ora como uma penalidade para uma vida indigna de ser vivida, ora como uma forma de transcendncia do eu. Nesse segundo modelo, as doutrinas judaico crists so imperativas na sua forma de con-ceber a vida e a morte do homem. De acordo com Dufour (2005), o imperativo da igreja sempre foi o domnio intelectual e espiritual atra-vs da consequente dominao dos corpos. Tudo que dizia respeito ao Esprito, diz o autor, devia estar submetido ao imprimatur da Igreja (Catlica, bom que se recorde), ou dito de outro modo o discur-so religioso sempre visa o mais enrgico domnio sobre os corpos e sobre os espritos (Dufour, 2005, p. 62). Portanto, a partir de uma concepo de sacralidade da vida, ou seja, de que a vida em si con-tm algo de sagrado, inviolvel e de que nada, nem ningum podem extingui-la, que o discurso religioso se prontifica a definir vida e morte.

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    Por fim o terceiro e ltimo modelo denominado de modelo jurdico-poltico. Este modelo legitima, no mais das vezes, aes de preservao da vida e punio da morte, tais como em pases onde a pena de morte imputada e/ou a eutansia permitida ou proibi-da, operando uma fratura nos dois modelos anteriores. Vida e morte, neste modelo, passam a serem compreendidas a partir do dispositivo da lei e da ordem jurdica. A exemplo disso temos o direito do feto, do neonatal, das pessoas acometidas de morte enceflica (morte ce-rebral), dos bebs anenceflicos ou ainda de pessoas deficientes ou acometidas de alguma doena degenerativa e terminal.

    Se a vida pode ser definida a partir da nossa fecundao ou a partir do nosso nascimento, como que podemos definir a morte?

    Seguindo essa corrente de pensamento e ainda baseado na doutrina vitalista, a morte s poder ser definida em contraposio ao conceito de vida, ou seja, apesar do aparente reducionismo, a morte nada mais do que o fim da prpria vida, entenda-se, vida biolgica. Morrer definido ento quando o corpo para de viver, quando a vida biolgica chega a um fim, uma parada na continuida-de da nossa existncia.

    Mas como definir esse fim? O que diz que algum morreu para o mundo? O que diz que algum no faz mais parte deste mundo? Que perdeu-se o status de sujeito de direito, de dever, de indivduo, de pessoa? O que seria, afinal, a mortalidade?

    De acordo com Hannah Arendt,

    a mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, com uma histria identificvel desde o nasci-mento at a morte, advm da vida biolgica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso re-tilneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biolgica. isto a mortali-dade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cclico (Arendt, 1995, p. 27).

    Ora, a medicina tem nos colocado algumas questes sobre isso. Para a medicina, a morte ocorre quando o crebro para de funcionar. A entramos no campo da morte cerebral, a prova irrefu-

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    tvel de que nosso crebro parou e que dependemos de aparelhos e toda a tecnologia para nos mantermos vivos. Essa a definio mais aceita hoje e prova irrefutvel de que algum morreu3.

    A partir da, muitos desdobramentos da morte cerebral podem ocorrer. Podemos pedir para desligar os aparelhos, da a questo da eutansia e tambm podemos delegar o direito de doar os rgos do nosso familiar que acabara de morrer. De qualquer modo, a tecnologia mdica, como diz SantAnna (2001), transfor-mou a morte no sculo XX em uma misso hospitalar, onde morte e vida no mais so do que faces da mesma moeda.

    De acordo com Sfez (1996),1996 no existe doena na ps--modernidade! Se essa assertiva verdadeira, onde poderamos encaixar o drama de pessoas que foram diagnosticadas como tendo morte cerebral ou defendem a eutansia como sada para o sofri-mento humano, se a prpria cincia mdica se colocou no lugar de Deus como uma das grandes utopias da modernidade sob forma de um dualismo, qual seja, o dualismo entre o corpo e a alma? Quem

    3 Em 1959, Wertheimer e seus colaboradores publicaram suas ideias acerca do diagnstico de morte em um artigo intitulado propos du diagnostic de la mort du systme nerveux dans ls comas avec arrt respiratoire traits par respiration artificielle, mas s posteriormente, uma dcada depois, houve consenso geral acerca da definio de morte a partir da perda de funes cerebrais. Mais tarde, Mollaret e Goulon em um relatrio preliminar, de-screveram o que eles chamaram de coma profundo (coma dpass) baseado em 23 observaes de casos clnicos sem respirao artificial (ventilao) espontnea, sem reflexos, poliria, baixa presso sangunea e ausncia de atividade eletroencefalogrfica. No entanto, historiadores tm considerado o ano de 1968 como o ano em que o termo morte-cerebral foi definido por um comit mdico-cientfico estabelecendo critrios para a diagnose da morte, e consequentemente, definindo tambm o que seria vida. Esse comit ficou conhecido primeiramente como o Comit Ad Hoc da Escola de Medicina de Harvard para Exame da Definio de Morte Cerebral (The Ad Hoc Commit-tee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death), e posteriormente como o Comit de Morte-Cerebral de Harvard (Harvard Brain Death Committee), liderado pelo anestesista chefe do Hospital Geral de Massachusetts Henry Beecher e formado por 10 representantes da rea mdica, alm de um advogado, um historiador e um telogo, com vistas a dar um referencial no s para a diagnose da morte, mas tambm para ajudar a estabelecer critrios nos transplantes de rgos que j passavam a ser cor-rentes naquela poca. Para uma discusso sobre a historiografia do conceito de morte-cerebra, ver Settergren (2003) e Kind (2011).

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    pode afirmar, com toda a certeza, de que a alma j no pertence aquele corpo, a tal ponto de podermos propor cuidados paliativos e sugerir uma boa morte aquele que nem mesmo tem conscincia de si mesmo?

    Sfez (1996) 1996considera que uma das grandes questes que se conjura na atualidade com relao ao transplantes de r-gos, o que vai depender veementemente do que seja a definio de morte, uma questo que est posta, sobretudo, aos mdicos e aos comits de tica de todo o mundo. Mais do que isso, qual seria ento a relao do todo com a parte? Um rgo, por si s conte-ria a alma do seu doador? Se um rgo de um sujeito A colocado no sujeito B poderamos sugerir, como exerccio de pensamento, que A teria um novo corpo ou B teria um novo rgo? A mxima parece no fazer sentido, se o rgo em questo fosse um rim, um corao, uma crnea ou um pulmo, mas se somos definidos pela nossa cerebralidade (brainhood), ou dito de outro modo, se o crebro considerado o nico rgo que constitui nossa identida-de pessoal, qual o lugar do nosso self se nos fosse possvel fazer transplantes de crebros? Assim, continuando nosso exerccio de pensamento, se o crebro de C colocado no corpo de D, seria C quem teria um novo corpo ou D quem teria um novo crebro? No seria esta uma forma de propor ao doador a garantia da continui-dade da sua existncia e, por consequncia, da sua imortalidade, j que a morte poderia ser driblada atravs da particularidade da metafsica corporal?

    Estudos recentes tem se dedicado a problematizar a defi-nio do nosso eu, do nosso self, da nossa ipseidade diante do mundo a partir nica e exclusivamente do nosso crebro, apon-tando para isso a noo de sujeito cerebral (the cerebral subject) tal como formulado por Vidal (2005, 2009) e Ortega e Vidal (2007). Esse autores tem enfatizado nos ltimos anos o impacto das neu-rocincias em nossas vidas a partir da tecnologia mdica e das modernas tcnicas de imagem cerebral, que reforam cada vez mais que somos o nosso crebro refazendo a mxima penso, logo existo para tenho um crebro, logo, sou. Outros autores, tais como Ehrenberg (2004) tem discutido a influncia das neurocincias no s no campo das cincias da vida, mas tambm em outras reas das cincias humanas e sociais a partir da guerra travada entre aqui-

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    lo que ele denomina de sujeito cerebral (le sujet cerebral) e o sujeito falante (le sujet parlant). Por fim, Andrieu (2008) tem apontado a in-terpenetrao entre filosofia e neurocincia constituindo um novo campo do conhecimento, qual seja, a neurofilosofia (la neurophi-losophie). A prpria definio de morte cerebral se sustenta nas baterias de testes neurolgicos, na construo de critrios unifor-mes e na paulatina reificao da pessoa reduzida ao seu crebro, afirma Kind (2011, p. 98).

    Vejam que ao passo que a metafsica do corpo pode ser ex-plorada pela tecnologia mdica - que tem prolongado a vida at o seu limite, passamos a subsumir leis que pudessem dar suporte e legitimar essa cincia mdica que define o que vida e o que morte. Os desdobramentos dessa questo tm convocado respos-tas suficientemente vlidas para nortear o debate contemporneo sobre a eutansia e a finitude, seja nas cincias da sade, nas ci-ncias jurdicas e, sobretudo, nas cincias humanas e sociais de um modo geral.

    A Questo da Morte e da Finitude

    Tomemos a questo da finitude.

    Por que tememos tanto assim a morte? Por que tememos aquilo que no possvel controlar? Por que nossa cultura faz da morte, um tabu, algo do qual no podemos falar, como outro aspec-to normal da vida? Por que fazemos da morte um estado fronteirio, um limite ou a negao da prpria vida?

    Talvez porque como antevira Freud (1923/1996), a dimenso constitutiva do sujeito no admite pensar o prprio aniquilamento, a no ser pela via do trauma, pois como ele j havia alertado, o nosso eu essencialmente narcsico. Ele no suporta a sua destruio. E pensar nisso produz uma angstia terrvel: a angstia de no mais existir, ou melhor, a angstia de deixar de existir!

    Assim, pensar a morte como um limite, uma fronteira entre a vida e aquilo que desconhecemos implica em pensar que a morte

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    tambm pode ser transgredida, e essa possibilidade se conjura atravs da sua negatividade. A que isto se refere?

    Na tradio da filosofia ocidental, o homem figura tanto como um ser mortal quanto um ser falante, pois o nico animal que pos-sui a faculdade da linguagem e da morte. Tanto uma quanto a outra so pressupostas aos homens e jamais so colocadas em questo. A faculdade da linguagem e a faculdade da morte abrem ao homem a sua morada mais prpria e a desvelam como j sendo permeada pela negatividade (Agamben, 2006).

    Para Heidegger e Hegel, o lugar da negatividade na subjeti-vidade humana se daria atravs da interconexo entre linguagem e morte. O homem, uma vez que ao mesmo tempo falante e mor-tal, o ser negativo que o que no e no o que , ou seja, o lugar do nada (Agamben, 2006, p. 11).

    A possibilidade de transgredir a morte, a partir desse re-ferencial terico, s pode ser pensada a partir do conceito de ser-no-mundo, o Dasein de Heidegger (1996), visto que o ser-no--mundo sempre uma posio de superar essa fronteira, no sentido de um limite, um fim.

    O ser-no-mundo a transgresso desse limite, ou seja, sempre o seu no-mais e o seu no-ainda, seu fim um ser-para--o-fim e s nesse sentido que a morte pode ser considerada como um fenmeno que faz parte do prprio processo da vida (Chanter, 1998).

    De acordo com Agamben o Dasein , na sua prpria estru-tura, um ser-para-o-fim, ou seja, um ser-para-a-morte e como tal est desde sempre relacionado a ela, logo, a morte assim conce-bida no , obviamente, aquela do animal nem simplesmente um fato biolgico. O animal, o somente-vivente, no morre, mas cessa de viver (Agamben, 2006, p. 13).

    Para Heidegger o ser-no-mundo (Dasein) um ente que exis-te no mundo, e com tal, pode experimentar diversos aspectos da vida, inclusive a morte. Aceitar a sua condio de ser um ser huma-no tambm ter a capacidade de experimentar a morte enquanto morte. Apenas o homem morre, o animal perece. O animal no tem a morte nem diante nem atrs de si, diz Heidegger (1996), porque

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    o animal no possui o equipamento da linguagem e isso que o diferencia dos seres humanos, logo o animal no pode fazer um juzo de valor, no pode valorar a vida como tambm no pode va-lorar a morte, e ao no estabelecer nenhum tipo de juzo sobre a sua existncia, no pode pensar na sua finitude nem na sua con-dio de um ser mortal. S aos homens lhes foi permitido essa faculdade de pensar o ser mortal que . Ao comentar a Essncia da Linguagem em sua terceira conferncia sobre O Caminho da Linguagem, (Unterwegs zur Sprache), Heidegger afirma:

    Mortais so aqueles que podem fazer a experincia da morte como morte. O animal no capaz dessa experin-cia. O animal tambm no sabe falar. A relao essencial entre a morte e a linguagem lampeja, no obstante ainda de maneira impensada. Essa relao pode, contudo, nos dar um aceno para o modo em que a essncia da lingua-gem nos intima e alcana e, com isso, nos sustenta, se que a morte faz parte do que nos intima (Heidegger, 2003, p. 170-171).

    Assim, segundo Heidegger (2003), o ser humano um ente que tem a capacidade de experimentar seu ser mortal, enquanto sua possibilidade contnua e iminente de morrer. E ter essa capa-cidade modifica nossa relao com o mundo, com ns mesmos e com o outro. A morte, para ns, nos desestabiliza de todas as nossas certezas, desaloja os mortais de seus hbitos e relaes costumeiras com a vida. A morte nos isola, nos particulariza e, so-bretudo, nos singulariza. A partir disso, podemos compreender que a autntica antecipao da morte de algum consiste na compre-enso da nossa finitude.

    Retomo aqui as caractersticas ontolgicas do Dasein con-tidas no pensamento de Heidegger para compreender o nexo existente entre linguagem, morte e negatividade na subjetividade humana. De acordo com Heidegger, em sua metafsica do ser, o Dasein se constitui como um ser-a ou como um ser-o-a, o lugar em que o ente, a essncia do ser humano, se constitui essencial-mente atravs do ser-no-mundo, logo, o Dasein , antes de tudo, a abertura do ser humano para o mundo enquanto uma entidade que faz parte do prprio mundo. a partir da sua entrada no mundo

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    que o ser humano pode pensar na sua existncia, mas no antes de nascer, visto que a conscincia de existir ainda no est for-mada. Mas ele pode pensar o mundo sem a sua existncia (logo, antes do seu nascimento e aps sua morte), mas apenas como uma impossibilidade de existncia. Se olharmos para trs, podemos imaginar a historicidade do mundo sem a nossa presena. Se pro-jetarmos um futuro para o mundo, podemos imaginar que prdios, cidades, florestas, mares e oceanos possam ou no existir, inde-pendente da nossa presena no mundo. Logo, no somos parte do mundo apenas porque estamos nele como recm-chegados; para usar a expresso de Arendt. Ns podemos experiment-lo tanto como uma possibilidade quanto uma impossibilidade de nossa existncia4.

    Ns no podemos experimentar, sequer a antecipao da morte. No mximo, podemos projet-la como possibilidade onto-lgica do ser e testemunhada na sua mais concreta possibilidade existencial, na experincia da voz da conscincia e da culpa, diz Agamben (2006, p. 14).

    Com sua implacabilidade, a morte se apresenta como um assassino, ela nos vem como se fosse um outro a invadir nossa tranquilidade; ela nos surpreende e nos toma de assalto mas no podemos antecip-la, sequer no suicdio. Seu poder sua impredi-zibilidade ou o seu desconhecimento. Logo, a morte para o outro, no para mim. Ela um artifcio, ela brinca conosco, nos ridicula-riza, nos faz de tolo. O ltimo riso no o nosso. Eu no sou mestre de minha prpria morte. A morte aquela sobre a qual eu no tenho domnio. Tirar minha vida no morrer para mim mesmo, morrer para o outro visto que tenho em mente o efeito da minha morte nos outros, mas no da minha morte em todo o mundo e desse modo que Blanchot fala da impossibilidade do suicdio (Chanter, 1998).

    Ento, por que temer a morte?

    4 No cabe aqui discutir a ontologia do ser na fenomenologia e na metafsica de Heidegger. H uma srie de trabalhos no Brasil e no exterior que se limitam a comentar e a criticar seus trabalhos sobre o ser-no-mundo ou ser-a (Dasein). Remeto o leitor aos trabalhos de maior significncia para os meus propsitos, dentro da literatura pesquisada, a saber, Duarte (2005), Guerizoli (2005), Cohen (1993), Dahlstrom (2005), Dean (2004), Depraz (2002), Nunes (20022004), Reis (2004), Agamben (2006) e Sches (1997).

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    Diria que a morte , em essncia, uma evaso da nossa diver-sidade. Ela algo incompreensvel, ela nos desafia, nos impossvel dar conta dela. Ela invade o nosso ser tal qual um misterioso fo-rasteiro, pois no somos mais mestres de ns mesmos, como diria Freud. Abordar a morte no nada mais do que enfrentar o medo, qual seja, o medo de meu ser ou o medo do meu no-ser. O medo da morte, portanto, nada mais do que uma forma inautntica de compreender a nossa finitude (Guerizoli, 2005).

    Visto que a morte um fenmeno existencial, uma possibi-lidade ou uma angstia, a morte tambm pode ser compreendida como uma disposio afetiva que se abre para o ser humano como mortal e a compreenso deste como um ser finito. Portanto, a dico-tomia nascimento e finitude faz parte da nossa natureza humana. Ora, mas se tanto um quanto outro faz parte de ns mesmos, por-que no tememos o nosso nascimento, e sim a morte?

    Dado que ningum morreu e voltou da morte para nos con-tar a sua experincia para que possamos valoriz-la positiva ou negativamente, nossa angstia diante da morte reside no fato que pensamos nela como um fim em si mesmo, independente do nosso credo religioso. Essa a nossa incondicional dessimetria valorativa entre o viver e o morrer, entre o nascimento e o falecimento.

    Compreendendo a morte desse ponto de vista, podemos en-tender a eutansia e o direito de viver e morrer.

    A Eutansia Hoje

    A eutansia vem do grego, significa boa morte ou morte apro-priada e foi proposto por Francis Bacon em 1623 em sua obra Historia vitae et mortis como sendo um tratamento adequado s doenas incurveis. A palavra traz na sua construo semntica Eu (que significa boa ou bem) e thanatos ou thanasia (que signifi-ca morte), e no tem referncia ao modelo dos cuidados paliativos adotados por profissionais e tcnicos da sade em centros hospi-talares (Pessini, 2004; S, 2005).

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    De acordo com Menezes (2004) a proposta dos cuidados paliativos (Hospice em ingls), nasceu de um conjunto de prti-cas e discursos que surgiu inicialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos no final dos anos 50 e incio dos anos 60, atravs de uma assistncia aos pacientes diagnosticados como fora de possibilida-des teraputicas e em oposio a uma prtica mdica tecnologizada, institucionalizada, racionalizada na qual o doente excludo do processo de tomada de decises. Os cuidados paliativos so um conjunto de procedimentos aplicados no atendimento e acompa-nhamento no ltimo perodo de vida de pacientes com doenas crnicas ou degenerativas, composto em sua maioria por uma equipe multiprofissional (mdicos, enfermeiros, assistentes sociais, nutricionistas, psiclogos, farmacuticos, fisioterapeutas, etc.), pro-pondo na diminuio da dor e demais sintomas dos pacientes, o que tambm ficou conhecido como sendo a boa morte. Porm, os princpios da boa morte so inseridos conscientemente naqueles indivduos que sabem que vo morrer e que no tem possibilidade de cura, propondo um controle de sua situao, alvio da dor e es-colha sobre o seu local de morte, alm de acesso a informaes e das pessoas com quem deseja compartilhar o final da sua vida. Com essa proposta, procura-se, de certo modo, humanizar o ambien-te hospitalar para tornar aquele ambiente o mais agradvel para aqueles que vo morrer e depender daquele espao no final da vida.

    Diferentemente da proposta dos cuidados paliativos, no Brasil, segundo pesquisa da Data Folha publicada no Jornal Folha de So Paulo em 08 de abril de 2007 (Rtzsch, 2007), a eutansia reprovada por 57% da populao, e apenas 36% concordam com a sua prtica. Em nosso pas, assim como em muitos pases, a eu-tansia considerada crime apesar de tramitar no Senado Federal o Projeto de Lei N 125/96 que estabelece critrios para a morte sem dor. O projeto diz que pessoas com sofrimento fsico ou psquico possam solicitar procedimentos que visem sua morte. A autorizao se dar por uma junta mdica composta de 5 membros, sendo dois especialistas no problema do solicitante. Se o paciente for incapaz de expressar sua vontade, um familiar ou amigo podem solicitar na justia a autorizao (Rtzsch, 2007).

    A eutansia s permitida em alguns pases como o Uruguai (onde h a exonerao do castigo), na Holanda e na Blgica (que

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    no deixa de se caracterizar como homicdio, apesar de no culpar seus praticantes), e na Sua que tenta legalizar o suicdio assistido (Rtzsch, 2007)5.

    Bem sabido que na Holanda, 3,5% das mortes em hospitais so apressadas pelos mdicos. Em 1995, de 140.000 bitos, 3.600 foi por meio de eutansia autorizada pelo doente, dos quais 400 foram por suicdio assistido. Aqui entramos em um problema da Biotica. No Brasil, para ser mais especfico, no h diferena significativa de que essa prtica seja corrente nas UTIs dos hospitais. Aqui, a euta-nsia um modo de escolher as pessoas que tm mais chances de sobrevivncia dentro de uma UTI, envolto em uma bolha maior que um sistema de sade catico como o nosso (Burgierman, 2001; Alvarenga, 2005)6.

    S para se ter uma ideia, de acordo com pesquisas realizadas, 40% das pessoas morrem sentindo dores insuportveis; 80% enfren-tam fadiga extrema e 63% passam por grande sofrimento fsico e psquico ao deixar a vida, principalmente aquelas que se encontram em ambientes hospitalares e com doenas irreversveis (Burgierman, 2001). A morte para essas pessoas, na maioria dos casos, tem sido uma experincia dramtica e dolorosa. E morrer custa caro: definhar em um hospital sai, em mdia, mais de 4.000 reais ao dia, custando

    5 Recentemente o Reino Unido adotou um conjunto de diretrizes sobre o suic-dio assistido, aps um debate pblico que durou mais de cinco meses, gerou mais de cinco mil documentos, entre cartas e pareceres mdicos. Embora no tenha legalizado a prtica, foram listados seis atenuantes e 16 agravantes em caso de processos por eutansia (Coelho, 2010).

    6 No Brasil, em abril de 2010, entrou em vigor o novo Cdigo de tica Mdica, estabelecendo novos critrios em situaes clnicas irreversveis e terminais para a conduta do mdico. De acordo com o novo cdigo, o mdico deve evi-tar a realizao de procedimentos diagnsticos e teraputicos desnecessrios e deve favorecer todos os cuidados paliativos apropriados, cuja prtica denominada de ortotansia, explica o geriatra Franklin Santana Santos, professor visitante da Faculdade de Medicina da USP e um dos principais es-tudiosos no assunto no Brasil. A partir deste novo cdigo, os mdicos podem decidir, por exemplo, no usar procedimentos para pacientes sem chance de cura sem serem processados pelo Conselho Regional de Medicina, respalda-do pela perspectiva tica, mas continua sujeito s penalidades previstas das leis brasileiras, o que sugere que a ortotansia precisa ser aprovada por uma instncia maior, tal qual o projeto que se encontra no Congresso Nacional (Segatto, 2010).

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    seis vezes mais se for numa UTI (Alvarenga, 2005; Schelp, 2005a, 2005b; Toledo, 2005).

    Mas h outro problema em tratar da eutansia e da finitude: a barreira religiosa que concebeu vida e morte como tendo valores sagrados e fundamentais.

    A partir de que momento a vida e a morte passaram a serem tomadas como um valor fundamental? Para Arendt, foi a partir do momento que passamos a compreender a vida como tendo um valor, como um bem em si, passamos a compreender a sacralidade da vida.

    O motivo pelo qual a vida se afirmou como ponto ltimo de referncia na era moderna e permaneceu como bem supremo para a sociedade foi que a moderna inverso de posies ocorreu dentro da textura de uma sociedade cris-t, cuja crena fundamental na sacrossantidade da vida sobrevivera secularizao e ao declnio geral da f, que nem mesmo chegaram a abal-la (Arendt, 1995, p. 327).

    Se a vida passou a ser algo inviolvel, o que dizer das pes-soas que se encontram em estados limites, acometidas de doenas incurveis e de grande sofrimento fsico ou psquico? Por que dar direito s pessoas de decidirem sobre a sua prpria vida ou morte?

    Talvez a melhor resposta a essa pergunta est no dilogo entre Ramon e Julia, personagens do filme Mar Adentro (Amenbar, 2004).) O filme conta a histria real de Ramn Sampedro (Javier Bardem), que aps ficar tetraplgico, luta na justia para ter o direi-to de morrer. Ramon fica sem os movimentos do corpo do pescoo para baixo, precisando de ajuda para fazer todo e qualquer movimen-to, dos mais bsicos aos mais complexos. Seu processo defendido judicialmente por uma advogada chamada Jlia (Beln Rueda) que, por sua vez, tem uma doena degenerativa avanada. A certa altura do filme, vimos o seguinte dilogo entre eles:

    Julia: Por que quer morrer?

    Ramn: Eu quero morrer porque a vida pra mim, nesse estado, a vida assim no digna. Eu entendo que alguns

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    tetraplgicos possam se sentir ofendidos quando eu digo que viver assim no digno, mas eu no estou julgando ningum, quem sou eu para julgar quem quer viver? E por isso eu peo que no me julguem nem a pessoa que me presta ajuda necessria para morrer.

    Julia: E voc acha que algum vai ajudar voc?

    Ramn: Bom isso vai depender dos que controlam as coi-sas e de que eles superem seu medo. A morte sempre esteve conosco e sempre estar, pois o fim de todos ns, no , de todos? E ela faz parte da vida, ento, por que ficam escandalizados se eu digo que quero morrer, como se fosse uma coisa contagiosa?

    Julia: Por que recusa a cadeira de rodas?

    Ramn: Aceitar a cadeira de rodas seria aceitar migalhas da vida que j tive.

    Em um segundo momento, Julia pergunta:

    Jlia: Voc no gosta de pensar no passado, no ?

    Ramn: claro. Eu penso no futuro.

    Julia: E para voc, qual o futuro?

    Ramn: A morte. Assim como para voc. Ou voc no pensa na morte: Ser que eu sou o nico que pensa na morte?

    Julia: Claro que penso. S que eu tento no pensar ape-nas nela7.

    7 O tema da eutansia ou suicdio assistido tem sido mote de grandes filmes na histria do cinema. Na ltima dcada, alm de Mar Adentro, dois outros filmes merecem destaque especial: Invases Brbaras (The Barbarian Inva-sions, Arcand, 2003), que conta a histria de um professor universitrio que, ao se ver com cncer terminal, rene os amigos e tenta fazer as pazes com o

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    Ningum pensa na morte. Mas ela faz parte do nosso dia a dia. A cada milsimo de segundo, milhes de clulas do nosso corpo morrem e outros milhes nascem. A cada minuto, no mundo, algum tem que decidir entre a vida e a morte de uma pessoa sob condies irreversveis de doenas. Milhes so gastos dia a dia para manter viva uma pessoa em condio vegetativa, entuba-das ou dependentes de aparelhos para sobreviver sem que, no entanto, exista legislao suficiente para dar conta dessa realida-de no mundo.

    Ser que realmente precisamos de uma poltica de morte do mesmo modo como temos uma poltica de vida? Ser que a moderna tecnologia mdica, de fato, transformou a biopoltica em tanatopoltica?

    Biopoltica e Tanatopoltica: As Premissas de Giorgio Agamben

    Agamben (2000; 2002) parte das referncias gregas para si-tuar o campo da vida. Para ele, os gregos tinham duas formas semnticas e morfologicamente distintas para definir vida: zo, que dizia respeito a vida comum de todos os seres vivos (animais, ho-mens ou deuses), ao prprio fato de estar vivo; e bis, que seria a forma de viver a prpria vida organizada em torno de um grupo ou comunidade, com estatuto poltico e possibilidade de potencialida-de. Para ele, a zo grega nada mais seria do que viver livremente, fora das grades da poltica, da lei e dos clculos do poder.

    A isso ele se referiu como sendo vida nua. Vida nua refere-se, ento, a uma forma-de-vida na qual no se pode incidir nenhuma forma de controle, nenhum poder, nenhum direito, mas tambm nenhum dever.

    seu filho e Menina de Ouro (Million Dollar Baby, Eastwood, 2004), que conta a histria de uma lutadora de box que aps um acidente no ring, pede ao seu treinador para desligar os aparelhos que a mantm viva.

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    Por forma de vida (form-of-life) Agamben (2000) se refere a uma vida que no s pode ser separada da sua forma, mas tam-bm nunca impossvel de isolar alguma coisa tal qual uma vida nua a vida em si mesma, ou dito em outras palavras, uma vida humana em que sua forma, atos e processos no so apenas fatos, mas possibilidade de vida acima de todo e qualquer poder. uma forma de vida que vai alm da sua forma biolgica.

    Exemplos de vida nua podem ser encontrados em pessoas refugiadas, nos campos de concentrao, em cobaias humanas, em prisioneiros polticos, ou ainda em pessoas cuja autonomia sobre a prpria vida no mais possvel (pessoas em coma, em morte cere-bral, e grosso modo, condenados morte, estariam aqui includos).

    At ento, a organizao da vida dos seres humanos girava em torno dessa premissa, como um animal vivente capaz de exis-tncia poltica. Mas durante a histria da modernidade, houve um tempo em que a vida natural comeou a ser includa nos mecanis-mos e clculos do poder estatal e a poltica passou a se transformar naquilo que Michel Foucault denominou de biopoltica-, a qual, a vida biolgica passou a ocupar, passo a passo, o centro da cena poltica moderna (Foucault, 1977; 1988; 2002).

    O que Foucault chamou de biopoltica, foi implicao da vida natural do homem nos mecanismos e clculos do biopoder de modo a control-la. Primeiramente, quem passou a ter poder sobre a vida humana foi a medicina, com a preocupao de regras gerais de controle da natalidade, de conteno de doenas e en-demias, com a construo de hospitais e alocao dos doentes mentais em asilos para loucos e, como no poderia deixar de ser, com a sexualidade de um modo geral. A biopoltica se dava, principalmente, sobre um disciplinamento do corpo da populao atravs de uma medicalizao e normalizao dos cdigos que a regiam. Posteriormente, a biopoder vai dar conta de outros seto-res da populao, ele vai incidir mais ainda no controle dos corpos dos indivduos, prolongando seus tentculos nas escolas, nas f-bricas e nas prises. Em sua anlise, vemos como o poder passou a penetrar no prprio corpo dos sujeitos e nas suas diversas for-mas de vida.

    O corpo, para Foucault, era um corpo controlvel, dcil, su-

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    jeito aos ditames do biopoder e da biopoltica. A ideia de vida, para ele, s poderia ser pensada a partir da ideia de morte. A morte seria um momento de desalienao total, no qual nos tornamos singular.

    Mas nem sempre a morte foi pensada desse modo. Morrer ou matar era uma ddiva do rei ou do soberano, que detinha o poder de vida e de morte da populao. A mudana da noo de morte no ocidente, segundo Foucault, operou de modo a estabelecer um poder de morte sobre a vida, e essa fase de transio fez com que fosse inscrita nos mecanismos do biopoder.

    De acordo com Agamben (2002), a tese de Foucault, segun-do a qual o que est em jogo hoje a vida sob forma de poltica e transformada em biopoltica est correta. Porm, o que decisivo o modo pelo qual compreendemos essa transformao. O que precisa ser questionado o prprio conceito biolgico de vida e sua consequente transformao em biopoder8.

    Antes, o poder soberano se definia atravs do pensamento fazer morrer e deixar viver, agora, o Estado considera fazer viver e deixar morrer (Foucault, 2002). Esse poder sobre a vida e a morte, foi condicionado, em um primeiro momento, ao soberano, e muito pos-teriormente ao Estado atravs da medicina no campo da biopoltica.

    O soberano era aquele que podia decidir sobre a vida do povo sem que fosse submetido a qualquer sano, sem que fosse punido pela sua deciso. essa ideia de soberania e sacralidade da vida que Agamben vai reter para comear a pensar o conceito de vida tal como vida nua, ao pensar o fenmeno do Holocausto como o ltimo exemplo onde o biopoder e o homo sacer se mani-festaram vividamente.

    A figura do homo sacer se sustenta, no pensamento de Agamben, sob dois outros grandes pilares: o campo e o estado de

    8 Para Rabinow e Rose (2006, p. 09), o conceito de biopoder possui carac-tersticas singulares: estratgias individuais e configuraes que combinam a forma de discursos da verdade sobre os seres vivos; uma fora de autori-dades consideradas competentes para falar a verdade; estratgias de inter-veno sobre uma existncia coletiva em nome da vida e da morte; e modos de subjetivao, em que indivduos podem ser levados a trabalhar sobre si mesmos, alm de certas formas de autoridades, em relao a discursos da verdade, significando prticas de si, em nome da vida ou da morte, individuais ou coletivas.

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    exceo. O campo foi o lugar onde a vida nua surgiu na sua forma mais hedionda. Ele o espao que se abre quando o estado de ex-ceo comea a se tornar uma regra, na medida em que os seus habitantes so despidos de todo o estatuto poltico e reduzidos vida nua no seu mais alto grau, donde o espao biopoltico toma sua forma original. Por sua vez, o estado de exceo no um di-reito especial, mas a suspenso da prpria ordem jurdica atravs de uma zona de indiferena, em que o dentro e o fora no se ex-cluem, pelo contrrio, eles se indeterminam (Agamben, 2004; 2008).

    Para Agamben, homo sacer era aquele cuja vida podia ser matvel sem que estivesse na esfera do sacrifcio e sem que algum fosse punido pela sua morte. Sua vida era despida de qualquer valor. Em suas palavras, a especificidade do homo sacer a impu-nidade da sua morte e o veto de sacrifcio (Agamben, 2002, p. 81). O homo sacer excludo da comunidade na forma daquela pessoa que poder ser sacrificada o melhor exemplo disso foi encontrado nos campos de concentrao durante a Segunda Guerra Mundial atravs do nazismo. Toda vida insacrificvel e, todavia, matvel, descreve Agamben (2002, p. 91), vida sacra9.

    Para o autor, soberana a esfera na qual se pode matar sem cometer homicdio e sem celebrar um sacrifcio, e sacra, isto , matvel e insacrificvel, a vida que foi capturada nessa esfera. nesse sentido que o autorretm a ideia do bando soberano e a produo de vida nua como snteses do poder soberano, cuja sa-cralidade da vida exprimiria em sua origem a sujeio da vida a um poder de morte e sua irreparvel exposio na relao de abando-no (Agamben, 2002).

    preciso que se retenha isso em mente, para que possamos compreender como Agamben vai compreender a politizao da vida e, sobretudo, a politizao da morte, de modo a buscar formas de se tentar sair dessa armadilha e como isso se coaduna com o tema proposto. Caminhemos um pouco mais.

    9 H uma srie de discusses acerca da sacralidade da vida, sobretudo aps o advento do cristianismo e que por hora no nos cabe dar conta desta discusso no presente trabalho. Para uma discusso dessas perspectivas contidas em Foucault (biopoder), Carl Schimitt (estado de exceo), Walter Benjamin (soberania) e Agamben (homo sacer), remeto o leitor a Costa, (2010), Dean (2004) e Norris (2002).

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    357Eutansia, FinitudE E Biopoltica

    Nem sempre o direito vida foi um direito inerente a todos os cidados.

    De acordo com Arendt (1995, p. 329) somente quando a imortalidade da vida individual passou a ser o credo bsico da humanidade ocidental, isto , somente com o surgimento do cris-tianismo, a vida na Terra passou tambm a ser o bem supremo do homem. O cristianismo foi o responsvel pela ideia de inviolabi-lidade da vida, cuja era moderna passou a operar sob a premissa de que a vida seria um bem supremo, passando a valoriz-la e a conceder-lhe um valor tal qual um bem supremo.

    O processo de politizao da vida se deu quando passamos a compreender a vida biolgica do ser vivente e suas necessidades, como parte integrante da poltica, sendo o corpo o novo sujeito da poltica reivindicado pela democracia moderna. De acordo com Agamben, se verdade que a lei necessita, para a sua vigncia, de um corpo, se possvel falar, neste sentido, do desejo da lei de ter um corpo, a democracia respondeu ao seu desejo obrigando a lei a tomar sob seus cuidados este corpo (Agamben, 2004, p. 130).

    Dito de outro modo, o processo de politizao da vida se deu quando passamos a valorar a vida como um bem supremo e invio-lvel, e acreditar que seria necessrio defend-la a qualquer custo garantindo a autonomia de cada um, elegendo a materialidade do corpo como ferramenta a ser valorizada.

    Foi precisamente a vida individual que passou ento a ocupar a posio antes ocupada pela vida do corpo po-ltico; e as palavras de Paulo de que a morte o prmio do pecado, uma vez que a vida se deveria durar para sempre repete a afirmao de Ccero, de que a morte a recompensa dos pecados cometidos por comunida-des polticas que haviam sido construdas para durar por toda a eternidade (Arendt, 1995, p. 327-328).

    Pois bem, segundo Raz (2004) o valor da vida de uma pessoa s determinado pelo valor que concedemos s suas ocupaes, dos seus relacionamentos e de suas experincias, ou seja, pelo seu prprio contedo. Nesse caso, continuar vivo, diz o autor, depen-de muito mais do valor do contedo da vida de cada um de ns

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    para que passemos a acreditar que vale a pena permanecer vivo por mais tempo10.

    Raz (2004) faz algumas distines entre valorar ou no a vida. Para ele, h duas possibilidades, entre tantas. O valor da vida pas-sada, na qual podemos dizer se tivemos uma vida boa ou m, e o valor de sobrevivncia, na qual podemos no valorar de modo algum a vida que tivemos. importante observar que, apesar de no dia-logar diretamente com Agamben ou Arendt, Raz (2004) se coloca diante do valor que atribumos vida e morte de modo crtico. Diz que assim como valoramos a vida, tambm valoramos a morte. De fato, impossvel ter a experincia de morte para dizer se esta foi uma morte boa ou m, mas a mortalidade, diz ele, vital para a nossa existncia. Sem ela, no teramos como dizer se a vida que tivemos foi boa ou m. Termos como boa ou m vida, juvenilidade, longevidade, entre outros seriam impensveis sem a experincia da morte. Mas no seria esta, justamente a assimetria da vida e da morte a qual nos reportamos anteriormente? Como ter uma experi-ncia de existir sem passar pelo nascimento? S conseguimos ter o sentimento dessa materialidade corprea, porque j passamos pela experincia de existir. Ora, mas antes de nascermos, tambm no existamos, ento, por que no conseguimos pensar na vida como no existindo antes do nosso nascimento? Resposta simples: im-possvel! Este seria o ponto de vista de lugar nenhum referido por Nagel (2004) e retomado por Raz (2004) para suas anlises sobre o valor da vida e sobre o fenmeno da morte tais como na eutan-

    10 Vivemos com uma constante conscincia da ocorrncia da morte, mas no tomamos posse dessa conscincia a no ser quando algum prximo a ns morre. a proximidade com a morte do outro que passamos a contrapor a mortalidade imortalidade, elaborando estratgias para escapar dela. As estratgias para driblar a morte, so compreendidas na forma como defende Bauman (1992). De acordo com o autor, ns, seres humanos, somos os nicos a tentar elaborar formas de superar a morte seja atravs da continui-dade biolgica na gerao de filhos, ou atravs da tentativa de deixar aps a vida algo pelo qual seremos uma obra de arte, um livro, um feito, uma herana, etc., atingindo, assim, a imortalidade. A imortalidade conquistada a partir daquilo que deixamos no plano concreto ou de nossas aes para que jamais sejamos esquecidos. Um bom exemplo disso encontra-se nos astros e estrelas do cinema nacional ou internacional, em msicos, lderes polticos ou religiosos ou ainda pessoas que deixaram um patrimnio que perdurar por algumas geraes.

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    359Eutansia, FinitudE E Biopoltica

    sia, nas experincias de vida vegetativa e morte cerebral, ou seja, uma vida indigna e que no merece ser vivida.

    O conceito de vida sem valor (ou indigna de ser vivi-da) aplica-se antes de tudo aos indivduos que devem ser considerados incuravelmente perdidos em seguida a uma doena ou ferimento e que, em plena conscincia de sua condio, desejam absolutamente a liberao (ou a redeno) e tenham manifestado de algum modo este desejo (Agamben, 2002, p. 145).

    Para os nossos propsitos, o conceito de vida indigna de ser vivida essencial para compreendermos as questes jurdicas que subjazem aos sujeitos que a vivem. no momento em que defini-mos e avaliamos esse fenmeno subjetivo de valorar a vida a partir de determinados parmetros mdicos, biolgicos, religiosos, etc. que somos solicitados a nos posicionarmos sobre o destino de uma vida sem valor. Aqui caberiam muitos sujeitos de acordo com a crena popular: crianas anenceflicas, portadores de retardo mental, deficientes fsicos graves, portadores de doenas dege-nerativas em ltimo grau, entre outros, que s o campo jurdico de cada pas poderia se pronunciar sobre a validade ou no de uma vida indigna de ser vivida. De acordo com Agamben (2002), foi a biopoltica moderna quem trouxe tona a valorizao do corpo bio-lgico, convertendo-se em tanatopoltica.

    A vida indigna de ser vivida, para Agamben (2002), no um conceito tico, mas algo que concerne s expectativas e desejos do indivduo; tambm um conceito jurdico-poltico no qual o que est em questo a metamorfose da vida matvel e insacrificvel do homo sacer, sobre a qual se baseia o poder soberano.

    Se a eutansia se presta a esta troca, isto ocorre por-que nela um homem encontra-se na situao de dever separar em um outro homem a zo do bios e de isolar nele algo como uma vida nua, uma vida matvel. Mas, na perspectiva da biopoltica moderna, ela se coloca so-bretudo na interseco entre a deciso soberana sobre a vida matvel e a tarefa assumida de zelar pelo corpo bio-lgico da nao, e assinala o ponto em que a biopoltica converte-se necessariamente em tanatopoltica. [...] Na

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    biopoltica moderna, soberano aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal (neste caso, o poder mdico ou o poder judicirio) [acrscimo nosso] (Agamben, 2002, p. 148-149).

    O que se pode observar como a eutansia se transformou em um conceito jurdico-poltico. Compreendemos, portanto, que esse o mote pensado por Agamben (2002) para discutir as ques-tes ligadas vida que no merece ser vivida, no tocante s cobaias humanas, eutansia e morte cerebral.

    De acordo com Agamben (2000, 2002), o conceito de vida sem valor ou indigna de ser vivida aplica-se, substancialmente a todos os indivduos que devem ser considerados incuravelmente perdidos em decorrncia de uma doena ou ferimento grave e que tenham conscincia de sua condio, entrando em uma zona de indeterminao ou indiferena.

    Esta uma zona onde as palavras vida e morte perderam o seu significado diante do espao de exceo que habita a vida nua. Para Agamben, vida e morte passaram a ser conceitos polticos fa-zendo parte da redefinio de novas fronteiras biopolticas, as quais podemos observar o exerccio de um novo poder soberano, agora centrado nas cincias mdicas e biolgicas (Agamben, 2000, 2002).

    Agamben questiona o direito de termos autonomia diante de nossa prpria vida, ou porque no dizer, sobre nossa prpria morte. Se foi necessrio que toda uma conjuntura poltica requerida pela sociedade em estabelecer leis em prol do valor da vida, como de-vemos proceder em situaes onde deciso de continuar ou no vivendo deve ser posicionamento legal? A quem devemos conce-der o direito de estabelecer em que momento termina a vida e em que momento comea a morte?

    O que Agamben chama de politizao da morte foram todos os dispositivos que fizeram com que a medicina e o direito pas-sassem a se interpenetrar de modo a fazer com que a vida nua habitasse de modo definitivo o espao de exceo da qual fazia parte atravs do advento das novas tecnologias de prolongamento da vida, cuja morte se transformava, pouco a pouco, em um epife-nmeno da tecnologia do transplante.

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    A sala de reanimao onde flutuam entre a vida e a morte o neomort, o alm-comatoso e o faux vivant delimita um espao de exceo no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira vez integralmente controlada pelo homem e pela sua tecnologia. E visto que se trata, jus-tamente, no de um corpo natural, mas de uma extrema encarnao do homo sacer (o comatoso pde ser de-finido como um ser intermedirio entre o homem e o animal), a aposta em jogo , mais uma vez, a definio de uma vida que pode ser morta sem que se cometa ho-micdio (e que, como o homo sacer, insacrificvel, no sentido de que no poderia obviamente ser colocada morte em uma execuo de pena capital) (Agamben, 2002, p. 171).

    Como consequncia, o biopoder passou das mos do sobe-rano, para as mos do mdico-cientista, e destes, para as mos do Estado, que converteu a biopoltica em biopoder, e logo em seguida, em tanatopoltica, decidindo quem pode viver e quem deve morrer.

    Agora, o Estado quem deve decidir sobre o falso-vivo, o comatoso, o corpo cadver ou o cadver vivo, e assim, fazer crer que organismos vivos, de fato, pertencem ao poder pblico. Claro, no somos hipcritas em pensar que nas salas de susten-tao da vida, mdicos e enfermeiros decidem muito antes e nas surdinas quem deve e quem no deve viver. Uma prtica corrente que, vez ou outra, chega at ns atravs da mdia. Mas preciso compreender que o advento das novas tecnologias colocou dile-mas ticos cada vez mais impensveis h poucas dcadas, e que sem essa discusso sobre o que e o que no vida e morte, no podemos nos posicionar sobre a continuidade ou no da existn-cia de indivduos que esto submetidos a uma doena incurvel e encarcerados a um corpo que no atende s suas necessidades e esperanas de vida.

    Se nos fosse perguntado e se nos fosse dado o nus de es-colher a forma em que gostaramos de permanecer vivo, qual forma escolheramos? A vida imputada pelo cristianismo, pautada no so-frimento, na dor e na submisso de viver encerrado em um corpo que no mais responde s nossas expectativas de vida, ou nas

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    condies que nos faz ser um crebro descarnado e despersonifi-cado? Ser que mesmo assim, ainda teramos condies de decidir pela vida? Por outro lado, que garantia teramos de que a morte, nessas condies, seria a melhor resposta s nossas inquietaes diante da nossa incondicional onipotncia narcsica diante do que j fomos ou gostaramos de ser?

    A vida , em sntese, potencialidade, ou seja, todas as formas que o sujeito humano consciente pode criar para dirigir sua pulso de vida contra a pulso de morte. A potncia de vida s se coadu-na em ato, como modo de nossa prpria existncia.

    Com os avanos tecnolgicos da medicina, a biopoltica no teve outra sada a no ser converter-se, pouco a pouco, em tanato-poltica, trazendo como consequncia a necessidade de se legislar sobre uma nova realidade que antes no teramos como dar conta: o momento em que podemos decidir sobre a nossa vida, livran-do-nos das prises impostas pela medicina, pela tecnologia, pela cincia, e pela sacrossantidade da vida.

    Consideraes Finais

    A questo da eutansia nos dias atuais traz, entre outras, quatro questes fundamentais que norteiam todos os profissionais que lidam direta ou indiretamente com a perda de um ser humano em estado terminal, quais sejam: a) o manejo dos cuidados paliati-vos (ortotansia) ou boa morte dos pacientes em estado terminal; b) o apoio (psicolgico) a estes pacientes e seus familiares; c) a institucionalizao da doao de rgos e d) uma poltica que le-galize a eutansia e a ortotansia.

    No que se refere aos cuidados paliativos ou boa morte por parte da equipe que trabalha diretamente com o paciente termi-nal, alguns dados merecem ser observados: primeiro, objetiva-se a diminuio do sofrimento ou dor do paciente; segundo, possibi-litar que este possa estar cercado de amigos, parentes e pessoas com as quais tenham um sentimento afetivo e de amor. neces-srio que o paciente seja auxiliado no momento do seu sofrimento e que, ao ter a compreenso da dinmica da sua doena, possa

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    estar compartilhando seus medos e suas angustias com pessoas amadas. Terceiro, o paciente deve ter autonomia sobre sua doena e permitir que ela siga o seu curso com o auxlioauxlio ou no de medidas mdicas para aliviar o seu sofrimento. A beleza da morte que ela nos desnuda completamente, afirma o geriatra Franklin Santana Santos (Segatto, 2010).

    Como a morte ainda algo difcil de lidar, sobretudo para qualquer pessoa que faa parte de uma equipe multiprofissio-nal, e que trate diretamente com pacientes terminais no seu dia a dia, o apoio psicolgico deve ser enfatizado tanto para o pacien-te como para seus familiares. A importncia de se permitir morrer dignamente (se que isto possvel), sem incorrer em processos prolongados, cuja dor piora o sofrimento dos pacientes, resgata a dignidade destes no final da vida.

    A terceira questo refere-se institucionalizao da doa-o de rgos. De acordo com Kind (2007), no Brasil, a definio de morte cerebral foi convocada a partir do primeiro transplante cardaco entre humanos realizados em 26 de maio de 1968 pelo ci-rurgio Euryclides Jesus Zerbini. Muito tempo se esperou at que a nova prtica mdica fosse regulada pela Lei do Transplante de rgos Lei N. 9.434 de 04 de fevereiro de 1997, espelhada, sobre-tudo, pelos debates nacionais e internacionais sobre morte cerebral e transplantes de rgos nas ltimas dcadas. A lei dos transplan-tes de rgos no apenas uma conquista da cincia mdica, mas de todo aquele que depende de um rgo para permanecer vivo.

    Por fim, causa surpresa que ainda se encontre no Senado Federal o Projeto de Lei N 125/96 que estabelece critrios para legalizar a prtica da eutansia. Apesar de sabermos que essa pr-tica existe silenciosamente nas enfermarias e unidades de terapia intensiva de hospitais pblicos ou privados no Brasil ou no exterior, torna-se necessrio uma ampla discusso por parte da comunida-de mdico cientfica, da populao em geral e de profissionais que tratam diretamente com pacientes terminais, a exemplo do que j aconteceu em pases da Europa, ou mesmo da Amrica Latina.

    A morte, para os que sofrem, no precisa ser um preo pago por uma vida desregrada, sem prticas ascticas ou destituda de comiserao. A vida de cada ser humano , em si mesma, insofis-

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    mvel e pode ser uma vida digna de ser vivida.

    Talvez esses limites no estejam bem delimitados e precisem ficar mais claros, dado os avanos do campo mdico cientfico e o silncio em que se encontra o plano jurdico-poltico. Ou talvez, como diria Edgar Allan Poe no seu conto O enterro prematuro, os limites que separam a Vida da Morte so, quando muito, sombrios e vagos. Quem poder dizer onde um acaba e a outra comea? (Poe, 1850/2012).

    Quem poder um dia prever os limites da nossa finitude?

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    Recebido em 07 de abril de 2012Aceito em 11 de maio de 2012Revisado em 25 de outubro de 2012