Regressivo, texto publicado n'O Diário do Norte do Paraná

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Domingo, 28 de dezembro de 2014 CULTURA D4 TAVARES y - Sérgio Tavares O que eu sei do Ano Novo é que, para alguns, já chega tarde e, para outros, poderia nunca chegar. Nenhum ano respeita suas expectativas. Todo ano mente Regressivo O que eu sei do Ano Novo é que o relógio é um objeto supremo. É ele quem dita, com tirania napoleônica, a execução dos afazeres e a mar- cha rumo ao fim. Cabe, ao seu impossível des- canso, a equação entre lugar e hora, e todas as suas variações de certo e errado. Nunca o con- tradiga, pois um lapso pode converter-se num intervalo, o intervalo em demora, e a demora em ausência. Lembre-se: o tempo aqui não é elástico, é regressivo. Portanto, curve-se dian- te dos ponteiros, respeite-os. Não é para sua es- posa, seus filhos, o especial de tevê, mas para eles que irá olhar a todo instante. O relógio, sim, é quem comanda a festa, a despedida, as explosões celestes. O relógio é o dono, absolu- to, dessa noite; por uma só noite, registrando o contrário das horas. Depois a pulseira volta a incomodar. 4. O que eu sei do Ano Novo é que as uvas se vin- gam. Desprezadas num arranjo no centro da mesa, onde, coitadas, lutam por espaço com pêssegos, ameixas e mangas, assistem à pre- ferência pelo manjar, pelo pudim, pelas raba- nadas, pela surpresa de abacaxi. Elas quase choram seus caroços, mas sabem que a hora vai chegar. Então começa a agitação. Todos se aproximam do tampo e, minutos antes da con- tagem regressiva, começam a arrancar, dos ramos frágeis, três de cada, três desejos de sim- patia. Daí as uvas se vingam de todos os doces, das frutas parrudas que lhes espremiam. Es- magadas, entre dentes, sorriem, fazem careta para o arranjo que começa a azedar e atrair pontinhos voadores. 3. O que eu sei do Ano Novo é que as crianças pe- quenas não resistem ao sono. Antes da festa, já comemoram entre si, correndo pela casa, fo- guetes a um fio de acharem um acidente. Elas não param nunca. E é torturante convencê-las a comer, a tomar banho, a vestirem a roupa limpa. Quando isso finalmente acontece, elas voltam a correr, agora pelo quintal, onde as pessoas confraternizam, sem um pingo de cui- dado ou freio. Mas eis que, de repente, o com- bustível de uma acaba, depois de outra, de todas. No momento da contagem regressiva, elas dormem. E, ao fim dos segundos, basta afundar o nariz entre as mechas do cabelo, bem no couro entranhado de suor, e sentir o cheiro que é o melhor de todos nessa vida. 2. O que eu sei do Ano Novo é que, para alguns, já chega tarde e, para outros, poderia nunca che- gar. Nenhum ano respeita suas expectativas. Todo ano mente. De modo que não importa a rigidez de suas metas, os xis no calendário, sua determinação, pois todos os seus planos vão falhar, para o bem ou para o mal, e isso não é terrível. Viver é um jogo constante de sur- presas e de decepções, apenas viva-o. Feche os olhos e, em meio à algazarra, aceite o diminu- endo dos segundos em silêncio, depois explo- da antes de todos, antes de tudo dentro de si. O fim não é o fim, é sempre o começo. Nada pode ser ruim, se começa com abraços. Todo abraço é um pacto de lealdade; todo novo ano é uma aliança consigo. 1. Feliz 2015 para todos os leitores! 5 Morreu na quarta-feira, véspera do Natal, na cidade de Lucca, na Itália, o escritor brasileiro Julio Cesar Monteiro Martins. Radica- do na Itália há mais de 20 anos, ele passou a escrever obras em italiano, embora tenha obras pu- Agência Estado [email protected] y Martins parte sem dor ESCRITOR/MORTE O Morre na Itália o escritor brasileiro Julio Cesar Monteiro Martins, “um homem que voava” O De acordo com a mulher, Martins morreu “sem sofrimento”; autor passou a escrever e a publicar em italiano V OBRAS NO BRASIL Torpalium (contos, 1977, Ática) Sabe Quem Dançou? (contos, 1978, Codecri) Artérias e Becos (romance, 1978, Summus) Bárbara (romance, 1979, Codecri) A Oeste De Nada (contos, 1981, Civilização Brasileira) As Forças Desarmadas (contos, 1983, Anima) O Livro Das Diretas (ensaio político, 1984, Anima) Muamba (contos, 1985, Anima) O Espaço Imaginário (romance, 1987, Anima) NA ITÁLIA Il percorso dell’idea (pétits poèmes en prose, 1998, Baldecchi e Vivaldi) Racconti italiani (contos, 2000, Besa) La passione del vuoto (contos, 2003, Besa) madrelingua (romance, 2005, Besa) L’amore scritto (fragmentos narrativos e contos, 2007, Besa) ADVOGADO E PROFESSOR DE TRADUÇÃO LITERÁRIA Julio Cesar Monteiro Martins (Niterói, 1955 - Lucca, 24 de Dezembro de 2014) foi escritor, professor universitário e advogado de direitos humanos brasileiro. Escreveu a sua obra em língua portuguesa entre 1975 e 1994, e de 1998 em diante escreve e publica em italiano. Viveu em Lucca, na Toscana com a esposa e os filhos até sua morte em dezembro de 2014. Foi professor de Criação Literária no Goddard College, em Vermont, de 1979 a 1980; na Oficina Literária Afrânio Coutinho, no Rio, de 1982 a 1989; no Instituto Camões de Lisboa, em 1994; e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1995. Recebeu o título de Honorary Fellow in Writing da Universidade de Iowa (International Writing Program) em 1979. Foi um dos fundadores do Partido Verde brasileiro e do movimento ambientalista Os Verdes. Foi advogado de direitos humanos no Rio de Janeiro, responsável pela incolumidade física dos meninos de rua que testemunharam no tribunal sobre o massacre da Candelária. Ensinava língua portuguesa e tradução literária na Universidade de Pisa, na Itália, e dirigia o Laboratório de Narração, que é parte do master da Scuola Sagarana, em Pistóia. Foi o diretor da revista Sagarana. No final da década de 70, o es- critor se tornou um dos repre- sentantes mais promissores de uma geração de contistas for- mada por Domingos Pellegrini, Caio Fernando Abreu, Luiz Fer- nando Emediato e Antonio Bar- reto. Lançou o primeiro livro em 1977, “Torpalium” (Ática), ao qual se seguiram outros oito, quatro deles publicados pela edi- tora Ânima, fundada por ele pró- prio na década de 80. Processo Em 1994, após ter vendido sua editora para arcar com as cus- tas de um longo processo movi- do contra o cineasta Cacá Die- gues, acusado por Martins de ter se apropriado de um roteiro seu para “Um Trem pras Estrelas”, o escritor resolveu trocar o Brasil primeiro por Portugal e, em se- guida, pela Itália. Segundo Mon- teiro disse em entrevista ao jor- nal O Estado de S. Paulo em fe- vereiro de 2001, os danos morais causados pelo processo inviabili- zaram sua vida no Brasil. Na época da entrevista, ele di- rigia o centro de formação lite- rária Sagarana e tinha acabado de publicar seu segundo livro em italiano, “Racconti Italiani” (editora Besa), elogiado pela crí- tica italiana. “Escrever em uma língua que não é a sua enrique- ce consideravelmente uma cul- tura, porque há um modo de ver e pensar as coisas inteiramente diverso da produção dos escrito- res que escrevem na sua língua materna”, disse Monteiro ao Es- tado e à Agência Estado. blicadas em português no Brasil, entre elas, “Torpalium” (1977), “A Oeste de Nada” (1981) e “O Espaço Imaginário” (1987). A in- formação foi divulgada por sua esposa Alessandra. “Hoje, Julio decidiu nos deixar. Estava na hora, despediu-se tranquilo. Foi em paz, lúcido, protegido pelo amor da família e dos amigos, sem sofrimento. Decidiu ador- mecer, entrando devagarinho no sono eterno. Enfrentou a do- ença como guerreiro que era, com coragem, sem poupar for- ças, com fé. A sua fé laica sem- pre foi aquela das esperanças, porque ele era mesmo assim: um homem que sabia contar-se uma realidade mais feliz, um homem que voava e imaginava coisas bo- nitas”, diz a mensagem. MUITAS FACES. Monteiro Martins escritor e militante da causa dos direitos humanos ganhou prestígio na Itália: —FOTO: DIVULGAÇÃO

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Regressivo, de Sérgio Tavares, publicado n'O Diário do Norte do Paraná, em 28 de dezembro de 2014

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Domingo, 28 de dezembro de 2014CULTURAD4

TAVARES

y-

Sérgio Tavares

O que eu sei do Ano Novo é que, para alguns, já chega tarde e, para outros, poderia nunca chegar. Nenhum ano respeita suas expectativas. Todo ano mente

Regressivo

O que eu sei do Ano Novo é que o relógio é um objeto supremo. É ele quem dita, com tirania napoleônica, a execução dos afazeres e a mar-cha rumo ao fim. Cabe, ao seu impossível des-canso, a equação entre lugar e hora, e todas as suas variações de certo e errado. Nunca o con-tradiga, pois um lapso pode converter-se num intervalo, o intervalo em demora, e a demora em ausência. Lembre-se: o tempo aqui não é elástico, é regressivo. Portanto, curve-se dian-te dos ponteiros, respeite-os. Não é para sua es-posa, seus filhos, o especial de tevê, mas para eles que irá olhar a todo instante. O relógio, sim, é quem comanda a festa, a despedida, as explosões celestes. O relógio é o dono, absolu-to, dessa noite; por uma só noite, registrando o contrário das horas. Depois a pulseira volta a incomodar.

4.

O que eu sei do Ano Novo é que as uvas se vin-gam. Desprezadas num arranjo no centro da

mesa, onde, coitadas, lutam por espaço com pêssegos, ameixas e mangas, assistem à pre-ferência pelo manjar, pelo pudim, pelas raba-nadas, pela surpresa de abacaxi. Elas quase choram seus caroços, mas sabem que a hora vai chegar. Então começa a agitação. Todos se aproximam do tampo e, minutos antes da con-tagem regressiva, começam a arrancar, dos ramos frágeis, três de cada, três desejos de sim-patia. Daí as uvas se vingam de todos os doces, das frutas parrudas que lhes espremiam. Es-magadas, entre dentes, sorriem, fazem careta para o arranjo que começa a azedar e atrair pontinhos voadores. 3. O que eu sei do Ano Novo é que as crianças pe-quenas não resistem ao sono. Antes da festa, já comemoram entre si, correndo pela casa, fo-guetes a um fio de acharem um acidente. Elas não param nunca. E é torturante convencê-las a comer, a tomar banho, a vestirem a roupa limpa. Quando isso finalmente acontece, elas voltam a correr, agora pelo quintal, onde as pessoas confraternizam, sem um pingo de cui-dado ou freio. Mas eis que, de repente, o com-bustível de uma acaba, depois de outra, de

todas. No momento da contagem regressiva, elas dormem. E, ao fim dos segundos, basta afundar o nariz entre as mechas do cabelo, bem no couro entranhado de suor, e sentir o cheiro que é o melhor de todos nessa vida. 2. O que eu sei do Ano Novo é que, para alguns, jáchega tarde e, para outros, poderia nunca che-gar. Nenhum ano respeita suas expectativas.Todo ano mente. De modo que não importaa rigidez de suas metas, os xis no calendário,sua determinação, pois todos os seus planosvão falhar, para o bem ou para o mal, e issonão é terrível. Viver é um jogo constante de sur-presas e de decepções, apenas viva-o. Feche osolhos e, em meio à algazarra, aceite o diminu-endo dos segundos em silêncio, depois explo-da antes de todos, antes de tudo dentro de si. Ofim não é o fim, é sempre o começo. Nada podeser ruim, se começa com abraços. Todo abraçoé um pacto de lealdade; todo novo ano é umaaliança consigo. 1. Feliz 2015 para todos os leitores!

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Morreu na quarta-feira, véspera do Natal, na cidade de Lucca, na Itália, o escritor brasileiro Julio Cesar Monteiro Martins. Radica-do na Itália há mais de 20 anos, ele passou a escrever obras em italiano, embora tenha obras pu-

Agência Estado [email protected] y

Martins parte sem dor ESCRITOR/MORTE

Morre na Itália o escritor brasileiro Julio Cesar Monteiro Martins, “um homem que voava” De acordo com a mulher, Martins morreu “sem sofrimento”; autor passou a escrever e a publicar em italiano

V OBRAS

NO BRASILTorpalium (contos, 1977, Ática)Sabe Quem Dançou? (contos, 1978, Codecri)Artérias e Becos (romance, 1978, Summus)Bárbara (romance, 1979, Codecri)A Oeste De Nada (contos, 1981, Civilização Brasileira)As Forças Desarmadas (contos, 1983, Anima)O Livro Das Diretas (ensaio político, 1984, Anima)Muamba (contos, 1985, Anima)

O Espaço Imaginário (romance, 1987, Anima)NA ITÁLIAIl percorso dell’idea (pétits poèmes en prose, 1998, Baldecchi e Vivaldi)Racconti italiani (contos, 2000, Besa)La passione del vuoto (contos, 2003, Besa)madrelingua (romance, 2005, Besa)L’amore scritto (fragmentos narrativos e contos, 2007, Besa)

ADVOGADO E PROFESSOR DE TRADUÇÃO LITERÁRIA Julio Cesar Monteiro Martins (Niterói, 1955 - Lucca, 24 de Dezembro de 2014) foi escritor, professor universitário e advogado de direitos humanos brasileiro. Escreveu a sua obra em língua portuguesa entre 1975 e 1994, e de 1998 em diante escreve e publica em italiano. Viveu em Lucca, na Toscana com a esposa e os filhos até sua morte em dezembro de 2014. Foi professor de Criação Literária no Goddard College, em Vermont, de 1979 a 1980; na Oficina Literária Afrânio Coutinho, no Rio, de 1982 a 1989; no Instituto Camões de Lisboa, em 1994; e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1995.

Recebeu o título de Honorary Fellow in Writing da Universidade de Iowa (International Writing Program) em 1979. Foi um dos fundadores do Partido Verde brasileiro e do movimento ambientalista Os Verdes. Foi advogado de direitos humanos no Rio de Janeiro, responsável pela incolumidade física dos meninos de rua que testemunharam no tribunal sobre o massacre da Candelária. Ensinava língua portuguesa e tradução literária na Universidade de Pisa, na Itália, e dirigia o Laboratório de Narração, que é parte do master da Scuola Sagarana, em Pistóia. Foi o diretor da revista Sagarana.

No final da década de 70, o es-critor se tornou um dos repre-sentantes mais promissores de uma geração de contistas for-mada por Domingos Pellegrini, Caio Fernando Abreu, Luiz Fer-nando Emediato e Antonio Bar-reto. Lançou o primeiro livro em 1977, “Torpalium” (Ática), ao qual se seguiram outros oito, quatro deles publicados pela edi-tora Ânima, fundada por ele pró-prio na década de 80.

Processo Em 1994, após ter vendido sua editora para arcar com as cus-tas de um longo processo movi-do contra o cineasta Cacá Die-gues, acusado por Martins de ter se apropriado de um roteiro seu para “Um Trem pras Estrelas”, o escritor resolveu trocar o Brasil primeiro por Portugal e, em se-guida, pela Itália. Segundo Mon-teiro disse em entrevista ao jor-nal O Estado de S. Paulo em fe-vereiro de 2001, os danos morais causados pelo processo inviabili-zaram sua vida no Brasil.

Na época da entrevista, ele di-rigia o centro de formação lite-rária Sagarana e tinha acabado de publicar seu segundo livro em italiano, “Racconti Italiani” (editora Besa), elogiado pela crí-tica italiana. “Escrever em uma língua que não é a sua enrique-ce consideravelmente uma cul-tura, porque há um modo de ver e pensar as coisas inteiramente diverso da produção dos escrito-res que escrevem na sua língua materna”, disse Monteiro ao Es-tado e à Agência Estado.

blicadas em português no Brasil, entre elas, “Torpalium” (1977), “A Oeste de Nada” (1981) e “O Espaço Imaginário” (1987). A in-formação foi divulgada por sua esposa Alessandra. “Hoje, Julio decidiu nos deixar. Estava na hora, despediu-se tranquilo. Foi em paz, lúcido, protegido pelo amor da família e dos amigos, sem sofrimento. Decidiu ador-

mecer, entrando devagarinho no sono eterno. Enfrentou a do-ença como guerreiro que era, com coragem, sem poupar for-ças, com fé. A sua fé laica sem-pre foi aquela das esperanças, porque ele era mesmo assim: um homem que sabia contar-se uma realidade mais feliz, um homem que voava e imaginava coisas bo-nitas”, diz a mensagem.

MUITAS FACES. Monteiro Martins escritor e militante da causa dos direitos humanos ganhou prestígio na Itália: —FOTO: DIVULGAÇÃO