Regionalizacao e Dinamica Politica Do Federalismo Sanitario Brasileiro

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Rev Saude Publica 2011;45(1):204-11 Comentários Daniel de Araujo Dourado I Paulo Eduardo Mangeon Elias II I Programa de Pós-Graduação em Medicina Preventiva. Faculdade de Medicina (FM). Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil II Departamento de Medicina Preventiva. FM - USP. São Paulo, SP, Brasil Correspondência | Correspondence: Daniel de Araujo Dourado Av. Dr. Arnaldo, 455, sala 2316 Cerqueira César 01246-903 São Paulo, SP, Brasil E-mail: [email protected] Recebido: 13/1/2010 Aprovado: 24/8/2010 Artigo disponível em português e inglês em: www.scielo.br/rsp Regionalização e dinâmica política do federalismo sanitário brasileiro Regionalization and political dynamics of Brazilian health federalism RESUMO Examinaram-se implicações da estrutura federativa brasileira no processo de regionalização de ações e serviços de saúde do Sistema Único de Saúde, considerando que o planejamento regional de saúde no Brasil deve realizar-se no contexto das relações intergovernamentais que expressam o federalismo cooperativo no âmbito sanitário. A análise foi baseada numa abordagem diacrônica do federalismo sanitário brasileiro, reconhecendo dois períodos de desenvolvimento, a descentralização e a regionalização. Explorou-se o planejamento regional do Sistema Único de Saúde à luz do referencial teórico do federalismo. Conclui-se que há necessidade de relativa centralização desse processo no nível das Comissões Intergestores Bipartite, para o exercício da coordenação federativa, e que é imprescindível formalizar espaços de dissenso nos Colegiados de Gestão Regional e nas próprias Comissões Intergestores, para efetivar a construção política consensual na regionalização da saúde. DESCRITORES: Sistema Único de Saúde, organização & administração. Regionalização. Planos Governamentais de Saúde. Descentralização. Sistemas Locais de Saúde.

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Regionalizacao e Dinamica Politica Do Federalismo Sanitario Brasileiro

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  • Rev Saude Publica 2011;45(1):204-11 Comentrios

    Daniel de Araujo DouradoI

    Paulo Eduardo Mangeon EliasII

    I Programa de Ps-Graduao em Medicina Preventiva. Faculdade de Medicina (FM). Universidade de So Paulo (USP). So Paulo, SP, Brasil

    II Departamento de Medicina Preventiva.FM - USP. So Paulo, SP, Brasil

    Correspondncia | Correspondence:Daniel de Araujo DouradoAv. Dr. Arnaldo, 455, sala 2316Cerqueira Csar01246-903 So Paulo, SP, BrasilE-mail: [email protected]

    Recebido: 13/1/2010Aprovado: 24/8/2010

    Artigo disponvel em portugus e ingls em: www.scielo.br/rsp

    Regionalizao e dinmica poltica do federalismo sanitrio brasileiro

    Regionalization and political dynamics of Brazilian health federalism

    RESUMO

    Examinaram-se implicaes da estrutura federativa brasileira no processo de regionalizao de aes e servios de sade do Sistema nico de Sade, considerando que o planejamento regional de sade no Brasil deve realizar-se no contexto das relaes intergovernamentais que expressam o federalismo cooperativo no mbito sanitrio. A anlise foi baseada numa abordagem diacrnica do federalismo sanitrio brasileiro, reconhecendo dois perodos de desenvolvimento, a descentralizao e a regionalizao. Explorou-se o planejamento regional do Sistema nico de Sade luz do referencial terico do federalismo. Conclui-se que h necessidade de relativa centralizao desse processo no nvel das Comisses Intergestores Bipartite, para o exerccio da coordenao federativa, e que imprescindvel formalizar espaos de dissenso nos Colegiados de Gesto Regional e nas prprias Comisses Intergestores, para efetivar a construo poltica consensual na regionalizao da sade.

    DESCRITORES: Sistema nico de Sade, organizao & administrao. Regionalizao. Planos Governamentais de Sade. Descentralizao. Sistemas Locais de Sade.

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    A estrutura federativa brasileira tem como principal particularidade a existncia de trs esferas autnomas de governo: federal, estadual e municipal. Essa situao consagrada pela Constituio Federal de 1988, que ala defi nitivamente os municpios condio de entes federados.

    A organizao institucional do Sistema nico de Sade (SUS) reproduz essa disposio trplice e legitima a autonomia dos trs nveis de governo na gesto de aes e servios de sade em seus territrios ao constituir o sistema nacional de sade. Compe, assim, o arcabouo do federalismo sanitrio brasileiro.

    A regionalizao uma diretriz do SUS que procede da necessidade basilar de integrar seus componentes para garantir a efetivao do direito sade no Pas. Pela natureza federativa do sistema, isso s pode ser realizado mediante arranjos institucionais estabelecidos entre entes federados. Portanto, para que se consolide a regionalizao de aes e servios de sade no Brasil, devem ser considerados os condicionantes derivados do modelo de federalismo e do desenvolvimento das relaes intergovernamentais, observando a insero de fi guras regionais como instncias administrativas no coincidentes com os entes federados.

    O presente trabalho objetiva examinar as implica-es da estrutura federativa brasileira no processo de regionalizao do SUS, concentrando-se na dinmica poltica atual do federalismo sanitrio brasileiro. Para isso, analisa o papel das instncias de gesto regional e dos colegiados de participao intergovernamental no estabelecimento de mecanismos de cooperao e

    ABSTRACT

    The implications from the Brazilian federal structure on the regionalization of health actions and services in the National Unifi ed Health System (SUS) were analyzed, considering that the regional health planning in Brazil takes place within the context of intergovernmental relations as an expression of cooperative federalism in health. The analysis was based on a historical approach to Brazilian health federalism, recognizing two development periods, decentralization and regionalization. Regional health planning of SUS was explored in light of the theoretical framework of federalism. It is concluded that relative centralization of the process is needed in intergovernmental committees to actualize federal coordination and that it is essential to consider formalizing opportunities for dissent, both in regional management boards and in the intergovernmental committees, so that the consensus decision-making can be accomplished in healthcare regionalization.

    DESCRIPTORS: Single Health System, organization & administration. Regional Health Planning. State Health Plans. Decentralization. Local Health Systems.

    INTRODUO

    coordenao federativa necessrios para efetivar essa diretriz organizativa do sistema.

    COORDENAO FEDERATIVA NO FEDERALISMO COOPERATIVO

    O federalismo uma forma de organizao do Estado contemporneo que nasceu do equilbrio dialtico entre a centralizao e a descentralizao do poder poltico. O sistema federal compatibiliza a coexistncia de unidades polticas autnomas que em conjunto consubs-tanciam um Estado soberano, representado pela Unio estabelecida na Constituio Federal.10

    O Estado federal , pois, aquele que melhor corresponde necessidade de manuteno da unidade na diversi-dade, sem concentrar o poder em um nico ncleo, nem tampouco pulveriz-lo. De sua inveno na sociedade estadunidense do sculo XVIII conformao assumida atualmente, o federalismo adquiriu diferentes contornos medida que o princpio federativo foi empregado com adaptaes particulares, conforme as circunstncias histricas, sociais, econmicas e polticas em que os Estados federais foram constitudos.16

    Na atual conjuntura histrica, em que os Estados tm o papel preponderante de promover o bem-estar social, a colaborao mtua entre as unidades federadas para a consecuo dos objetivos sociais e econmicos tem sido um dos principais instrumentos de ao das fede-raes. A idia de cooperao advm da identifi cao de que determinadas funes pblicas no podem ser de competncia exclusiva ou hegemnica de algum dos entes federados por implicarem interdependncia e

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    a A Lei Orgnica da Sade composta pelas Leis Federais n 8.080/90 e n 8.142/90.b Brasil. Lei n.8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispe sobre as condies para a promoo, proteo e recuperao da sade, a organizao e o funcionamento dos servios correspondentes e d outras providncias. Diario Ofi cial Uniao. 20 set 1990; Seo 1:018055.c Brasil. Lei n.8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispe sobre a participao da comunidade na gesto do Sistema nico de Sade (SUS) e sobre as transferncias intergovernamentais de recursos fi nanceiros na rea da sade e d outras providncias. Diario Ofi cial Uniao. 31 de dezembro de 1990; Seo 1:025694.

    interesses comuns. Esse modelo, atualmente predomi-nante, denominado federalismo cooperativo.6

    Pela prpria natureza do Estado federal, essa atuao conjunta dos entes federados nas polticas pblicas deve preservar a liberdade de cada integrante e, ao mesmo tempo, possibilitar a adoo de aes coordenadas e socialmente efetivas. Por isso, a dinmica poltica do federalismo est estreitamente vinculada ao estabeleci-mento de uma articulao harmnica entre a autonomia e a participao dos entes federados, como integrantes mutuamente dependentes e complementares.12 Tal objetivo s pode ser alcanado mediante um sistema de coordenao federativa.16

    Nesse contexto, a gesto de polticas pblicas nas federaes exige a construo de processos decisrios compartilhados para conduzir o planejamento e a execuo das aes no mbito socioeconmico em prol do bem-estar coletivo. Esses processos encontram-se geralmente entre dois tipos bsicos de mecanismos, que representam o inerente dilema entre a descentra-lizao e a centralizao: as negociaes diretas entre os governos locais e os incentivos promovidos pelas instncias centrais.

    As estruturas que promovem a negociao direta entre as autoridades locais privilegiam a autonomia dos entes federados e buscam construir arranjos de cooperao a partir da interao horizontal entre as instncias subnacionais. Parte-se da premissa de que, em sistemas descentralizados, os governos locais teriam condies mais favorveis de alcanar melhores resultados para seus cidados por meio da relao direta, por estarem mais bem informados de suas preferncias portanto, em melhor situao para decidir sobre a alocao dos recursos e mais suscetveis ao controle (accountabi-lity). Entretanto, a aplicao exclusiva desse modelo pressupe que os governos locais possam negociar diretamente em circunstncias tericas de difcil ocor-rncia simultnea, que incluem a concordncia de todos os entes envolvidos em relao diviso dos benefcios produzidos, a simetria de informaes e de condies de negociao, a representao perfeita dos interesses dos cidados e a ausncia de custos de transao e de implementao dos acordos.

    Os mecanismos que tencionam gerenciar as polticas pblicas por meio de incentivos federais para as esferas subnacionais, por sua vez, assumem que a coordenao federativa necessita de certo grau de centralizao decisria. A idia principal que a instncia central deve dispor de recursos institucionais para induzir as

    escolhas dos governos locais, considerando que a quali-dade da ao desses governos depende dos incentivos e controles a que esto submetidos. Esses instrumentos seriam a melhor alternativa para a introduo de pol-ticas pblicas de abrangncia nacional e possibilitariam maior estabilidade e comando sobre a execuo das aes. Contudo, a administrao pura desse modelo distancia o cidado benefi ciado da instncia decisria e presume que o agente central esteja sempre bem informado e socialmente interessado para propiciar os melhores resultados a todas as jurisdies de menor abrangncia.9

    FEDERALISMO SANITRIO BRASILEIRO

    A Federao brasileira surgiu da desagregao do Governo Imperial, concomitantemente instaurao da Repblica, e seguiu um caminho inverso ao da maior parte dos Estados federais at ento constitudos. No decurso de seu desenvolvimento, o federalismo brasileiro experimentou ciclos de centralizao e descentralizao relativamente bem defi nidos. Antes da Nova Repblica, os perodos de centralizao (19301945 e 19641985) associaram-se a governos de vocao autoritria e os de descentralizao (18891930 e 19461964) foram, em geral, caracterizados pela hegemonia das oligarquias regionais na conduo poltica da nao.1

    A Constituio de 1988 instituiu o federalismo coope-rativo no Brasil e trouxe a novidade do ingresso defi -nitivo dos municpios, compondo, com os estados e a Unio, a estrutura federativa trina particular do Pas. Consolidou-se, assim, a condio historicamente cons-truda do poder local na organizao do Estado brasi-leiro, propiciando a transferncia de encargos e recursos para os governos municipais responsabilizarem-se pelo provimento de bens e servios aos cidados.5

    O SUS foi criado nesse contexto, fruto do reconheci-mento do direito sade no Brasil, como instituio de carter federativo orientada pela descentralizao pol-tico-administrativa. A normatizao constitucional e a regulamentao disposta na Lei Orgnica da Sadea,b,c delimitam a expresso da estrutura federativa nacional na rea da sade ao determinarem o dever de todos os entes federados de atuar para a promoo, proteo e recuperao da sade, com autonomia de cada esfera de governo para a gesto do sistema nos limites do seu territrio.8 Estabelece-se, assim, uma forma de organi-zao poltica que pode ser adequadamente designada federalismo sanitrio brasileiro.

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    MUNICIPALIZAO DA SADE NA DCADA DAS NORMAS OPERACIONAIS BSICAS

    A descentralizao poltico-administrativa, com direo nica em cada esfera de governo, nos termos do Art. 7o da Lei no 8.080/90, foi concebida compreendendo a nfase na descentralizao dos servios para os muni-cpios, associada regionalizao e hierarquizao da rede de servios de sade. Todavia, a opo poltica do primeiro decnio da implantao do SUS seguiu o movimento que marcou a descentralizao das polticas sociais no Pas na dcada de 1990,2 de modo que a municipalizao da sade foi priorizada, enquanto a regionalizao foi praticamente desconsiderada.

    Com efeito, a primeira dcada do SUS foi marcada por um processo de intensa transferncia de competncias e recursos em direo aos municpios, orientado pelos instrumentos normativos emanados do Ministrio da Sade: as Normas Operacionais Bsicas (NOBs). Mediante a defi nio de critrios de habilitao e de incentivos operados pelo fi nanciamento, as sucessivas NOBs conduziram os municpios assuno progres-siva da gesto de aes e servios de sade em seus territrios.

    A primazia da dimenso municipalista da descentrali-zao trouxe avanos para o SUS, sobretudo relacio-nados responsabilizao e ampliao da capacidade de gesto em sade dos municpios.7 Alm disso, o esforo necessrio para seu cumprimento possibilitou a instituio de componentes importantes para o sistema, destacando-se a fi rmao dos Conselhos de Sade nas trs esferas de governo, a progressiva modifi cao dos critrios de fi nanciamento passando do pagamento por produo para a transferncia automtica per capita e a criao e consolidao dos colegiados intergoverna-mentais: a Comisso Intergestores Tripartite (CIT) no nvel federal e as Comisses Intergestores Bipartite (CIBs) no nvel estadual.14

    No entanto, a municipalizao da sade teve tambm alguns resultados colaterais que conformaram particu-laridades na dinmica poltica do federalismo sanitrio brasileiro. A descentralizao foi implantada nesse perodo com base numa prtica de relao direta entre as esferas federal e municipal, adotada desde o incio do processo.11 A fragilidade das relaes estabelecidas entre estados e municpios difi cultou as defi nies de responsabilidades e at mesmo do comando sobre os servios de sade quando se iniciaram as propostas para redefi nio desse quadro. Apesar da tentativa de fortalecimento do papel dos estados na conduo pol-tica do SUS, por meio da ampliao do funcionamento das CIBs e da instituio das Programaes Pactuadas e Integradas de Assistncia Sade (PPIs), a partir da NOB/96, isso no foi sufi ciente para a organizao de redes assistenciais organizadas com base nos preceitos da regionalizao. Um elemento complicador nesse

    sentido foi o fato de as instncias estaduais terem permanecido desprovidas de incentivos fi nanceiros para assumirem essas funes.15

    Dessa forma, a concentrao poltica do processo de descentralizao na esfera federal foi crucial para o alcance da municipalizao, mas criou obstculos para a conformao de mecanismos de coordenao federativa com incidncia sobre as relaes intermuni-cipais, funo que deveria ter sido desempenhada pelos governos estaduais. Esses fatores foram determinantes para a infl exo da conduo poltica do SUS na dcada seguinte, no sentido da regionalizao.

    REGIONALIZAO DA NORMA OPERACIONAL DA ASSISTNCIA SADE AO PACTO PELA SADE

    Depois de efetivada a descentralizao na primeira dcada do SUS, tornou-se evidente que a estrutura municipalizada no era capaz de oferecer as condies para a plena realizao dos objetivos do sistema nacional de sade no ambiente de extrema heterogeneidade que caracteriza a Federao brasileira. Identifi cava-se a necessidade de racionalizao do sistema para equa-cionar a fragmentao na proviso dos servios e as disparidades de escala e capacidade produtiva existentes entre os municpios, sob o risco de perda de efi cincia e, conseqentemente, de piores resultados. O reconhe-cimento dessa situao13 levou ao caminho da regio-nalizao no incio da dcada de 2000, com a Norma Operacional da Assistncia Sade (NOAS).

    Na NOAS, a regionalizao foi enfatizada como estratgia necessria para que o processo de descen-tralizao se aprofundasse pari passu organizao da rede de assistncia, dando melhor funcionalidade ao sistema e permitindo o provimento integral de servios populao. A esfera estadual passou a ordenar o processo de regionalizao sanitria com o Plano Diretor de Regionalizao, instrumento que traduziria o planejamento regional de acordo com as particularidades de cada estado (e do Distrito Federal), em consonncia com os recursos disponveis. Estes seriam alocados conforme a Programao Pactuada e Integrada, e com previses de necessidades de novos recursos expressas no Plano Diretor de Investimento. A partir desse planejamento regional, pretendia-se garantir acesso aos servios de sade em qualquer nvel de ateno a todos os cidados, fundamentando-se na confi gurao de sistemas funcionais e resolutivos, na organizao de redes hierarquizadas de servios e no estabelecimento de mecanismos e fl uxos de referncia e contra-referncia intermunicipais.

    Na prtica, a NOAS tentou reeditar o federalismo sanitrio brasileiro, incutindo nveis regionais (mdulos assistenciais, regies, macrorregies) entre estados e municpios, mas operando sobre a organizao poltico-

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    administrativa instituda, em que a gesto dos sistemas j estava descentralizada para os municpios.

    Por isso, embora se conjecturassem grandes potencia-lidades, a efetivao da orientao operativa engen-drada pela NOAS enfrentou importantes obstculos. A atribuio s secretarias estaduais de sade das competncias referentes ao planejamento regional sofreu resistncias por parte dos municpios que, j tendo adquirido autonomia na gesto da sade, iden-tifi caram uma perspectiva de (re)centralizao. Alm disso, a concentrao poltica e fi nanceira na esfera federal estabelecida durante a dcada de 1990 que serviu para que a induo operada pelo Ministrio da Sade por meio das NOBs obtivesse sucesso na munici-palizao criou constrangimentos para que se implan-tasse a regionalizao como diretriz organizativa do sistema. Em decorrncia da prvia relegao do papel da esfera estadual e da pouca prtica de mecanismos de cooperao federativa, a proposta da NOAS no foi bem-sucedida, justamente por ter-se deparado com a estrutura poltica instituda pela municipalizao. Em vez de cooperao, desencadearam-se disputas entre governos estaduais e municipais pela administrao de servios,3 e a ao indutora exercida pelo governo federal no foi sufi ciente para criar espaos de coorde-nao federativa nos nveis subnacionais.

    Nessas circunstncias, ganhou fora a idia, desen-volvida no Ministrio da Sade e na CIT, de que a efetiva responsabilizao dos gestores deveria surgir de um acordo de vontades a partir do qual os gestores sanitrios das trs esferas de governo assumiriam compromissos negociados e defi niriam metas a serem atingidas de forma cooperativa e solidria, fi xando um pacto de gesto. Essa proposta foi acatada e, aps sua aprovao na CIT e no Conselho Nacional de Sade (CNS), foi ratifi cada no instrumento normativo infra-legal denominado Pacto pela Sade 2006.

    No Pacto 2006, a direo nacional do SUS reafi rma a condio da regionalizao como elemento basilar do sistema e assume essa diretriz como o eixo estruturante do Pacto de Gesto, devendo orientar o processo de descentralizao e as relaes intergovernamentais. So mantidos os instrumentos operacionais institudos pela NOAS (Planos Diretores de Regionalizao e de Investimento e a Programao Pactuada e Integrada), cujas elaboraes so de responsabilidade comparti-lhada entre estados e municpios, sob a coordenao dos gestores estaduais. Enunciam-se os objetivos de melhorar o acesso e a qualidade da assistncia, redu-zindo as desigualdades existentes, de garantir a integrali-dade da ateno, de potencializar a capacidade de gesto das esferas estaduais e municipais e de racionalizar os gastos e o uso dos recursos, possibilitando ganho em

    escala nas aes e servios de sade de abrangncia regional. Pressupe-se que todos os municpios estejam capacitados para ofertar aes e servios da ateno bsica e as aes bsicas de vigilncia em sade. Todas as demais aes que o Pacto 2006 denomina complementares podem ser objeto de negociao entre os gestores municipais, a fi m de proporcionar a integralidade de acesso a suas populaes.

    Desse modo, espera-se que as regies de sade sejam delimitadas a partir do entendimento entre os gestores estaduais e municipais, legitimado nas deliberaes das CIBs (apenas para os casos em que os municpios estejam situados em fronteiras com outros pases, o Pacto 2006 prev a necessidade de deliberao na CIT, a fi m de delimitar regies fronteirias). No h ponto de corte predefi nido para o nvel assistencial a ser disponibilizado, de forma que as CIBs tm auto-nomia para defi nir as aes e os servios oferecidos em cada regio de sade, recomendando-se, somente, a sufi cincia em ateno bsica e parte da mdia complexidade.

    Para operacionalizar o planejamento e a gesto nessas regies de sade, o Pacto 2006 instituiu a fi gura do Colegiado de Gesto Regional (CGR). Os CGRs foram concebidos para funcionar como instncias deliberativas semelhantes s CIBs, diferenciando-se pela abrangncia, restrita s regies, e pela obrigatoriedade da partici-pao de todos os gestores municipais envolvidos nas regies. Identifi cando a existncia prvia de colegiados regionais, at ento no formalizados, funcionando por representao dos gestores municipais (nos mesmos moldes das CIBs), o Pacto de Gestod defi ne: Nas CIB regionais constitudas por representao, quando no for possvel a imediata incorporao de todos os gestores de sade dos municpios da Regio de sade, deve ser pactuado um cronograma de adequao, com o menor prazo possvel, para a incluso de todos os gestores nos respectivos colegiados de gesto regionais.

    A gesto e o processo decisrio referentes s regies de sade devem, portanto, ser realizados conjuntamente pelas esferas estaduais e municipais no mbito dos CGRs, exercidos, segundo o Ministrio da Sade, de forma solidria e cooperativa e sendo as suas decises sempre por consenso. Essa caracterizao muitas vezes encontrada em publicaes ofi ciais do Ministrio da Sade para designar o processo de planejamento regional.d

    ATUAL DINMICA POLTICA DA REGIONALIZAO

    A proposta de regionalizao do Pacto 2006 parte de uma conjuntura derivada do xito do processo

    d Ministrio da Sade. Portaria n. 399/GM de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Sade 2006-Consolidao do SUS e aprova as diretrizes operacionais do referido Pacto. Diario Ofi cial Uniao. 23 de fevereiro de 2006. Seo 1.

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    de descentralizao/municipalizao realizado na dcada de 1990 e de seus efeitos no desejados relacionados atomizao do sistema e pretende alcanar os resultados no obtidos pela NOAS a partir da modificao de alguns preceitos do modelo de gesto regional. A inteno geral dessa nova proposta reduzir o protagonismo do Ministrio da Sade na relao direta com os municpios em prol de uma maior participao dos estados. A maior liberdade dada aos governos subnacionais para conduzirem os processos de regionalizao revela a concretizao de um rear-ranjo poltico ocorrido no nvel nacional. A estratgia fl exibilizar a dimenso prescritiva, que vinha sendo priorizada na NOAS, para intensifi car o exerccio da negociao poltica, privilegiando os acordos constitu-dos no contexto estadual/regional. O desafi o posto , ento, como conceber mecanismos de gesto regional que possam ser utilizados nas mais diversas regies do Pas, considerando a atual concentrao poltica e fi nanceira na esfera federal e a necessidade de promover uma participao mais efetiva dos governos estaduais, com preservao da autonomia municipal na execuo de aes e servios de sade.

    No mbito das regies, os governos estaduais so responsveis por coordenar o processo de planejamento do qual os municpios fazem parte como entes polticos autnomos. Por isso, a regionalizao assume dupla perspectiva no contexto das relaes interfederativas: descentralizao para os estados e centralizao (ou recentralizao) para os municpios.

    Antes do Pacto 2006, os modelos de relacionamento interfederativo funcionavam sobre o SUS fragmentado e pouco articulado que proveio da era da municipali-zao. A proposta da NOAS apostou na capacidade de induo pela esfera federal, defi nindo o formato das polticas e esperando pela adeso dos governos municipais e pela colaborao dos governos estaduais. A resposta no foi satisfatria, pois o ambiente poltico no foi favorvel implantao da regionalizao de cima para baixo; alm disso, faltaram incentivos consistentes para a participao dos estados. Por outro lado, a experincia dos consrcios intermunicipais, que vinha desde a dcada de 1980, mostrava que a asso-ciao voluntria e a livre interao entre os municpios no eram sufi cientes para garantir acesso universal e igualitrio ao SUS no nvel regional.e

    Nesse sentido, a maior inovao trazida pelo Pacto 2006 foi a criao dos Colegiados de Gesto Regional (CGRs), instncias que institucionalizam o relacio-namento horizontal entre os governos municipais e

    o emprego dos processos decisrios compartilhados para a defi nio das polticas de sade de abrangncia regional. Diante dos objetivos formalizados pelo Pacto 2006 e da necessidade de operacionalizar o federalismo cooperativo, esses colegiados so instru-mentos polticos indispensveis para ultrapassar os constrangimentos intrnsecos ao federalismo sanitrio brasileiro, representando uma proposta de equilbrio entre os dois mecanismos bsicos de cooperao e coordenao federativa: negociaes diretas entre os governos locais (relao horizontal) e induo pelo ente central (relao vertical).

    Por serem desencadeados a partir do planejamento conduzido pelos estados e incorporarem a compulso-riedade da relao regional (todos os municpios so obrigados a participar), os CGRs aproximam-se dos mecanismos de induo empregados na NOAS, o que privilegia a dimenso da coordenao federativa. O fato de que toda atividade da esfera estadual relacionada regionalizao deve necessariamente ser pactuada nas CIBs limita possveis excessos do poder desse nvel, pelo prprio desenho institucional dessas instncias.

    Na dimenso de cooperao, a maior autonomia para deliberao sobre as polticas de interesse regional dada aos municpios aproxima os CGRs de um modelo de administrao pblica consensual semelhante aos consrcios pblicos com a essencial diferena de terem carter compulsrio. Opta-se, assim, pela construo de mecanismos de cogesto a partir da inte-rao horizontal entre as instncias municipais, porm mantendo a interao vertical, pela presena perma-nente da representao estadual (modelo de cogesto atualmente determinado pelo Ministrio da Sadef).

    Em razo da sua condio descentralizadora, a escolha do modelo de negociaes diretas entre os governos locais tem inegveis benefcios no que tange parti-cipao e conseqente aproximao dos cidados dos processos decisrios, mas traz alguns riscos que precisam ser observados.

    Em primeiro lugar, deve-se admitir que no h condies no federalismo brasileiro para que a livre negociao entre gestores municipais seja sufi ciente para conduzir as defi nies das polticas de sade nas regies observando os princpios do SUS, notadamente a universalidade e a igualdade. A enorme assimetria de informaes e de poder poltico existente entre os municpios brasileiros inviabiliza a aplicao exclusiva desse modelo, sob pena de agravar as desigualdades intra e inter-regionais e de criar barreiras de acesso ao sistema.

    e Machado JA. Polticas pblicas descentralizadas e problemas de coordenao: o caso do Sistema nico de Sade [tese de doutorado]. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofi a e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais; 2007.f Ministrio da Sade. Secretaria Executiva. Departamento de Apoio Descentralizao. Colegiado de gesto regional na regio de sade intraestadual: orientaes para organizao e funcionamento. Braslia, DF; 2009. (Srie B. Textos Bsicos em Sade) (Srie Pactos pela Sade 2006, 10).

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    Por conseguinte, a descentralizao da gesto regional para os CGRs demanda a redefi nio do papel das CIBs, que passam a ser o espao privilegiado para o exerccio da atividade de coordenao necessria ao adequado funcionamento das regies de sade. Isso porque a descentralizao do processo decisrio para essas instncias de cogesto regional no prescinde da ativi-dade de coordenao, que necessita de relativa centra-lizao. Os prprios acordos polticos, na prtica, tm levado a esse padro de arranjo intergovernamental.

    Outro ponto importante a ser considerado diz respeito pressuposio de que as deliberaes dos CGRs ocorram sempre por consenso. O consensualismo um tema tradicionalmente associado ao federalismo e vem ganhando espao no perfi l contemporneo da adminis-trao pblica. No entanto, vale notar que o emprego do conceito de consenso muitas vezes feito, de maneira imprpria, como sinonmia de unanimidade.

    No intuito de conferir maior consistncia conceitual ao termo, Barroso4 (1994) explana que se pode dizer que h consenso quando uma proporo signifi cativa de membros de determinada sociedade est de acordo em relao a decises sobre valores que poderiam criar confl itos e tem sentimentos de afi nidade uns com os outros e com a sociedade qual pertencem. Assim, o consenso atingido quando se chega a um acordo por razes outras que no o temor da coero. Isso quer dizer que, para haver consenso, o desacordo deve ser considerado uma possibilidade to natural quanto o acordo e isso o diferencia essencialmente da unanimidade. O autor argumenta que nas teorias da cincia poltica contempornea o consenso est diretamente relacionado com os ideais democrticos e que, por isso, no contrrio ao dissenso, e sim ao princpio da obedincia pura e simples. E conclui que a institucionalizao de oportunidades para divergncia condio indispensvel contra os efeitos perversos das teorias consensuais, pois a aceitao das diferenas princpio bsico da atitude federalista.

    A partir desses preceitos, convm fazer algumas refl e-xes acerca da consensualidade nos processos decis-rios compartilhados a serem desenvolvidos nos CGRs. Diante do carter extremamente assimtrico que, como notrio, caracteriza os entes federados no Brasil, de que maneira podem ser construdos esses consensos?

    importante reconhecer que os municpios que possuem maior poder poltico nas relaes regionais so, em regra, aqueles mais populosos e/ou mais inseridos economicamente, que so os detentores de maior capa-cidade instalada na rede assistencial. Nessas condies, os consensos dos CGRs podem se transformar numa forma velada (ou no) de concentrao da autoridade nos maiores municpios, uma vez que os demais no tero

    recursos nem fora poltica para divergir. Essa situao manifestamente subverteria a prpria concepo desses colegiados, pois, ante os diversos interesses em jogo na arena poltica, no se pode assumir que os municpios que exercem a funo de plos regionais estejam sempre socialmente interessados em oferecer as mesmas condi-es de acesso de seus muncipes a todos os habitantes das suas regies.

    Isso refora as necessidades de coordenao do processo de regionalizao por instncia central que, no caso, representada pela CIB e de formalizao de espaos de dissenso, tanto nos CGRs como nas prprias CIBs, para que os consensos possam verdadeiramente ser constru-dos nesses colegiados. Os confl itos federativos horizon-tais e verticais tm que primeiramente afl orar para que possam ser atenuados e at mesmo absorvidos.

    CONSIDERAES FINAIS

    A regionalizao de aes e servios de sade no SUS est essencialmente vinculada organizao federativa brasileira e s suas expresses no mbito sanitrio. Conseqentemente, a dinmica poltica desse processo requer a busca do equilbrio entre centralizao e descentralizao, que exprime a essncia mesma do federalismo.

    Nesse sentido, o Pacto pela Sade 2006 traz a possibi-lidade de importantes alteraes na dimenso poltica do planejamento regional do SUS a partir de um novo modelo de funcionamento das relaes intergoverna-mentais no campo da sade. Embora os instrumentos de induo pela esfera federal tenham sido mantidos, a atual orientao normativa oferece condies para que o processo tenda para uma descentralizao da coordenao para o nvel estadual, legitimada nas CIBs, de maneira mais determinante do que foi obtido pela NOAS. Ademais, a concepo institucional indica a plausibilidade do deslocamento da gesto regional para os CGRs, consolidando os processos decisrios compartilhados como mecanismos de expresso da cooperao interfederativa no mbito das regies.

    Essa atual proposta de regionalizao da assistncia sade resultado de duas dcadas de maturao pol-tica e institucional do SUS e, sem dvida, representa um dos mais engenhosos modelos concebidos para o exerccio do federalismo cooperativo no Brasil. A iden-tifi cao das tenses e potencialidades desse modelo deve contribuir para a superao da dicotomia entre centralizao e descentralizao, que fundamental para a construo de mecanismos de cooperao e coordenao federativa necessrios para efetivar essa diretriz que, em ltima instncia, visa garantia do direito sade no nosso Pas.

  • 211Rev Saude Publica 2011;45(1):204-11

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    REFERNCIAS

    Artigo baseado na dissertao de mestrado de Dourado DA, apresentada Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo em 2010.Os autores declaram no haver confl itos de interesses.