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“T ex tos par a Dis cus s ão”, Refor ma Democr ática do E s tado, Planej amento & Ges tão, S CP, P. Alegr e, nov. 2002 1 Reforma Democrática do Estado, Planejamento & Gestão Jackson De Toni 1 Resumo Este texto problematiza a construção da administração pública no Brasil, em especial os problemas e deformações nos mecanismos democráticos de representação e reforma, gestão e planejamento do Estado Brasileiro contemporâneo com ênfase na gestão recente do Rio Grande do Sul. Faz uma retrospectiva dos avanços obtidos e dos problemas não resolvidos pela gestão do governo gaúcho no período 1999/2002 e aponta alternativas para construção de um novo modelo de planejamento e gestão pública fundado na modernização de procedimentos organizacionais, na melhoria da eficácia e eficiência técnica, bem como no aprofundamento do caráter participativo e democrático de suas instituições, em especial da política de planejamento. Introdução Na América Latina a maior parte dos governos tem baixa capacidade para governar. Os problemas são enfrentados somente quando se transformam em urgências na agenda, mas já é tarde... O processamento político dos problemas acontece sem profundidade técnica, enquanto os processos técnicos não têm viabilidade política. A perda crescente de governabilidade desvaloriza o processo democrático perante a população e a democracia padece pelos resultados que não alcança. O cidadão, através do voto, elege ou castiga os dirigentes políticos causadores da sua última frustração, mas não há debate de projetos, nem memória das frustrações passadas. As eleições tornam-se uma concorrência eleitoral entre atores com deficiências semelhantes, embora os discursos até possam ser diferentes e os “marketeiros” também. A capacidade de ganhar eleições resulta, assim, proporcionalmente, na perda de memória do eleitor sobre as últimas promessas de um candidato personalista. A pressão das circunstâncias é o limite, fatores fortuitos, emocionais e ocasionais pesam mais que debates de projetos. Os próprios partidos políticos acabam transferindo sua cultura interna – desprovida de planejamento e gestão eficaz - para o comando e o estilo dos governos. Muitos gestores públicos passam parte do tempo distraídos com problemas corriqueiros e se especializam no gerenciamento da micropolítica, se acomodando aos problemas imaginários, cercando-se de assessores que os protegem das frustrações do mundo exterior, como uma “jaula de cristal”. 1 T écnico em Planej amento da S ecr etar ia da Coor denação e Pl anej amento – R S ( Di r etor - Ger al no per íodo 1999/2002), Economista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR-UFRGS ), professor do cur s o de E s peciali z ação em Ges tão Públ ica Par ticipativa da UE R GS ( Planej amento E s tr atégico) e da Faculdade de E conomia da ULBRA. e-mail: [email protected] ou j ack s on@ por toweb. com. br

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“T extos para Discus são”, Reforma Democr ática do Es tado, Planej amento & Ges tão, S CP, P. Alegre, nov. 2002

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Reforma Democrática do Estado, Planejamento & Gestão

Jackson De Toni1

Resumo

Este texto problematiza a construção da administração pública no Brasil, em especial os problemas e deformações nos mecanismos democráticos de representação e reforma, gestão e planejamento do Estado Brasileiro contemporâneo com ênfase na gestão recente do Rio Grande do Sul. Faz uma retrospectiva dos avanços obtidos e dos problemas não resolvidos pela gestão do governo gaúcho no período 1999/2002 e aponta alternativas para construção de um novo modelo de planejamento e gestão pública fundado na modernização de procedimentos organizacionais, na melhoria da eficácia e eficiência técnica, bem como no aprofundamento do caráter participativo e democrático de suas instituições, em especial da política de planejamento.

Introdução

Na América Latina a maior parte dos governos tem baixa capacidade para governar. Os problemas são enfrentados somente quando se transformam em urgências na agenda, mas já é tarde... O processamento político dos problemas acontece sem profundidade técnica, enquanto os processos técnicos não têm viabilidade política.

A perda crescente de governabilidade desvaloriza o processo democrático perante a população e a democracia padece pelos resultados que não alcança. O cidadão, através do voto, elege ou castiga os dirigentes políticos causadores da sua última frustração, mas não há debate de projetos, nem memória das frustrações passadas. As eleições tornam-se uma concorrência eleitoral entre atores com deficiências semelhantes, embora os discursos até possam ser diferentes e os “marketeiros” também. A capacidade de ganhar eleições resulta, assim, proporcionalmente, na perda de memória do eleitor sobre as últimas promessas de um candidato personalista. A pressão das circunstâncias é o limite, fatores fortuitos, emocionais e ocasionais pesam mais que debates de projetos.

Os próprios partidos políticos acabam transferindo sua cultura interna – desprovida de planejamento e gestão eficaz - para o comando e o estilo dos governos. Muitos gestores públicos passam parte do tempo distraídos com problemas corriqueiros e se especializam no gerenciamento da micropolítica, se acomodando aos problemas imaginários, cercando-se de assessores que os protegem das frustrações do mundo exterior, como uma “jaula de cristal”.

1 T écnico em Planej amento da S ecretar ia da Coordenação e Planejamento – RS (Diretor -Geral no per íodo 1999/2002), Economis ta, Mes tre em Planej amento Urbano e Regional (PROPUR- UFRGS ), profes sor do cur so de Especialização em Ges tão Pública Par ticipativa da UERGS (Planej amento Es tratégico) e da Faculdade de Economia da ULBRA. e-mail: [email protected] s .gov.br ou j [email protected]

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Num sistema de direção de baixa responsabilidade, sem direção estratégica ou descentralização democrática, a agenda dos dirigentes é vitimada pela “lógica do carrossel”: muitas emergências do protocolo frio, dos ritos formais, das rotinas burocráticas ou do simples clientelismo eleitoral, problemas maiores e menores, todos ficam girando e concorrendo por um espaço improvável na agenda. Os burocratas de plantão conservam todo seu poder no controle deste acesso.

Trabalha-se muito, mas os resultados são pífios. A corrupção, o tecnocratismo, a incompetência administrativa não são mais do que subprodutos deste ambiente, sem controle social democrático nem gestão criativa dos problemas reais. Infelizmente esta é a realidade da média dos nossos governos latino-americanos, todos padecemos desta mesma história. Como superar a baixa capacidade para governar? Como conquistar viabilidade para projetos exigentes em recursos políticos? Como melhorar a governabilidade das instituições públicas? Como mudar a mentalidade tecnocrática e excludente da cultura organizacional tradicional? Como construir viabilidade estratégica para nossos projetos? Quais sistemas de gestão são menos vulneráveis?

A resposta a estas perguntas é muito difícil, mas há diversas experiências acumuladas na gestão estadual do período da 1999/2002, da “Frente Popular”, que devem ser objeto de reflexão profunda, debate, crítica e autocrítica para construir novas relações de gestão e planejamento no setor público capazes de responde ao seguinte questionamento: supondo que já não haja dúvida no campo político democrático sobre sua necessidade, a reforma democrática do Estado é realmente possível ?

A organização pública brasileira é impregnada de uma cultura avessa à criatividade e o modelo gerencial existente estimula o conformismo e a submissão aos paradigmas validados pela autoridade formal, pela ordem superior e burocrática do chefe. Nossas escolas universitárias não ensinam como governar e os métodos de planejamento na área pública não evoluíram da situação em que estavam nos anos cinqüenta. O modelo do "planejamento do desenvolvimento econômico e social" cepalino é um bom exemplo, pois em alguns casos a modelagem das técnicas econométricas só mascarou sua debilidade teórica e fragilidade prática. O contexto autoritário e a história de resultados medíocres produziram um senso-comum anti-planejamento, muito bem utilizado pelo main stream (neo)liberal e pela direita que se auto-nomeia “moderna e progressista” pernosticamente.

O objetivo deste número dos “Textos para Discussão” da Secretaria da Coordenação e Planejamento é provocar e estimular a reflexão sobre a trajetória da Frente Popular na direção do Estado do Rio Grande do Sul, seus acúmulos e desacúmulos, sistematizar suas principais conquistas e explicitar construtivamente suas principais deficiências no campo da gestão pública, do planejamento e do relacionamento mais geral com o aparelho de Estado. Nossa pretensão não foi a de resolver os dilemas da administração do Estado ou ensaiar uma nova “teoria participativa da gestão pública”, missão de pouca prioridade teórica para grande parte do pensamento social progressista brasileiro, infelizmente2. No meio acadêmico a reflexão sobre o Estado

2 Melo (1999) ao fazer uma retrospectiva do s tate building bras ileiro aponta o abandono progres s ivo de uma meta abordagem do Estado, generalis ta e monolítica, pela multipl icidade de abordagens “empir icamente referenciadas”, voltadas para a par ticular idade de políticas específicas . O “ocaso da era desenvolvimentis ta” e a “penetração e legitimidade intelectual do ideár io liberal” ser iam as causas centrais deste abandono (ou des is tência!). A qualidade

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“em ação” ainda é clivada pelo enfoque maximalista, dissociado da prática de governo e pouco útil para informar novos modelos de gestão e planejamento. Para piorar a alternativa mais abrangente e institucionalizada neste debate é largamente hegemonizada pela tradição anglo-saxônica e americana na teorização sobre a administração pública - fundamentada no anti-estatismo liberal e na noção universal do limited government. O debate que pretendemos realizar fica portanto a um meio caminho entre a produção “científica” da ciência política (e outras disciplinas) e as reflexões da experiência da gestão pública real, no universo da efetiva operação de projetos públicos na área de planejamento.

1. Trajetória do Estado no Brasil e o problema da democracia.

A trajetória do Estado Brasileiro3

A formação da estrutura estatal brasileira, até o advento do período varguista em 1930, decorre de um passado fundado na atividade agrária escravista, o Estado configura-se como um grande ator organizado que submete a estrutura social à sua força e vontade. Ou seja, o Estado constituiu, ao longo da formação da sociedade brasileira, uma relação desequilibrada, sendo aquele forte e esta subordinada. Com isso, a nação ficou entregue à prevalência do poder executivo, dominada por um sistema político enrijecido e incapaz de responder às demandas do conjunto social. O jogo político, nesse contexto, teve um sentido regionalista, oligárquico e excludente, criando um fosso entre o povo (não-resgatado para a cidadania) e o Estado, produzindo uma deformação em dois sentidos: no sistema de representação política e na federação. No tocante à configuração dos mecanismos de mediação dos interesses, tem-se uma estrutura derivada do passado colonial que alija ou submete o cidadão, seja através do clientelismo, seja do patrimonialismo.

É com esse cenário de fundo que a afirmação de Vargas, em direção à industrialização, emerge como produto não de movimentos autônomos articulados no seio da sociedade, mas em decorrência da intervenção estatal e do impacto de uma conjuntura internacional desfavorável e, nesse sentido, deve ser entendida como uma mudança produzida e articulada de cima. Em conseqüência, firmou-se um Estado com capacidade articuladora e potência política, que dirige a modernidade, sendo que esta fica com conteúdo incompleto e, ao mesmo tempo, conformando a sociedade, porém, delimitando e bloqueando a livre manifestação dos atores sociais. Diante desse quadro, tem-se um Estado bifronte. De um lado, garantidor da ordem capitalista, como ativo empreendedor no processo de acumulação, ao formular e implementar a base material da estrutura produtiva e, conseqüentemente, modernizante. De outro lado,

do artigo sugere, entretanto, uma conclusão equivocada ao apontar a proximidade da disciplina com os ór gãos de governo como um “r isco” de diluição do car áter analítico do exercício acadêmico, “...análises normativas e prescr itivas ...da agenda de pesquisa ser ‘pautada’ pela agenda de governo” (p 91). Aqui propugna- se precisamente o contrár io: é preciso (re)aproximar as pautas de pesquisa da academia com a agenda política de governo, qualificar a ação política e validar socialmente a legitimidade do trabalho acadêmico.

3 adaptado da par te inicial do documento “Es tado, ges tão e democracia no Rio Grande do S ul” (2002), elaborado pelo economis ta Jorge Vieira para o Fórum de Ges tão e Par ticipação (órgão colegiado do governo estadual gaúcho no per íodo 1999/2002).

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mantenedor da velha ordem oligárquica ao salvaguardar as práticas clientelistas e patrimonialistas daí decorrentes e na acomodação dos interesses agrários na nova ordem, bem como fortalecedor da regulação social, no incentivo à implantação da barganha corporativa. A grande conseqüência desse processo é a consolidação do triângulo de ferro da sociedade brasileira: o autoritarismo, o golpismo e o elitismo.

Já com a queda de Vargas, em 1945, se expressa um processo de transição política sem ruptura, visto que ela é muito mais um salto para frente, com o objetivo de resolver problemas decorrentes dos avanços no interior da sociedade brasileira do que possibilitar a acomodação política de novos atores sociais que exigiam espaço de expressão. A montagem de uma estrutura produtiva urbano-industrial provocou o surgimento de uma classe operária ativa, bem como a afirmação de setores médios, que passaram a ser regulados, na participação política, por mecanismos criados no Estado. Portanto, a livre manifestação desses novos atores sociais tornou-se um elemento complicador para as elites dominantes e é nesse processo que se dá a busca de uma inovação com continuidade. Um conjunto de medidas, particularmente durante o governo Dutra, buscou firmemente bloquear a livre movimentação desses novos agentes sociais na montagem e consolidação de uma agenda de interesses autônomos em relação ao Estado. Em termos gerais, tinha-se um aparato estatal do qual todos dependiam e que a todos buscava atender e conformar.

O arranjo político derivado do processo de destituição de Vargas expressa uma prática perversa e contínua das elites dominantes no comando do Estado, isto é, a limitação/regulação da livre movimentação societal, logo condicionadora do processo político. Com isso, o salto para frente mantém intacto, por exemplo, a questão agrária, significando que se havia o avanço da complexificação do social, com a atuação na cena política de novos atores, tinha-se, também, a presença, quase inatacável, das elites do campo rural, ainda agindo via o coronelismo, variante brasileira, do clientelismo.

É com esse viés que a administração pública brasileira vai se constituindo, pois se havia, de um lado, ilhas de excelência no estilo racional-legal, como postulava Weber, de outro vicejavam práticas com baixa distinção entre o público e o privado (patrimonialismo) para dar conta de inúmeras pressões advindas de variados setores (particularmente dos setores médios urbanos em busca de emprego). Não desejando romper esse aparente equilíbrio, os anos cinqüenta, no que diz respeito à ação governamental, significaram o aparecimento do planejamento como ferramenta importante na gestão do setor público estatal. Com isso, tem-se a montagem de um sistema paralelo, capaz de viabilizar ações estratégicas, enquanto o restante da administração pública ficou ancorada no tempo e nas velhas práticas. Cabe destacar que foi nesse período (o segundo governo de Vargas e o período de Juscelino), e com essas características, que se engendraram os grandes marcos do chamado “Estado Desenvolvimentista”.

O processo autoritário firmado a partir do golpe militar de 1964 caminhou nessa mesma direção de privilegiar alguns setores da administração, particularmente a chamada administração indireta, enquanto o restante fica entregue ao burocratismo e à defasagem. No tocante à formação da base material da nação, é um período de aprofundamento, com a expansão de um setor produtivo estatal e a consolidação de

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um setor industrial capaz de atender às expectativas de consumo de vários segmentos da população, especialmente das camadas médias. A combinação de investimentos estatais em infra-estrutura e a afirmação de um setor industrial privado, substituidor de importações, produz o chamado “milagre brasileiro”. Se, por um lado, em termos econômicos a nação experimentou um momento de auge, por outro, em termos políticos foi um momento em que o Estado deu as costas à cidadania. Não se pode esquecer o dramático controle político dos espaços de manifestação, através de censura na imprensa, de prisões de lideranças e assim por diante. Nesse momento, vê-se novamente a bifrontalidade do Estado que, de um lado, apresenta-se como o sustentáculo de uma impressionante expansão material da estrutura industrial (siderurgia, química, telecomunicações, etc.) e por outro, através de um forte aparato repressivo dos movimentos societais, viabiliza um extraordinário modelo concentrador da renda e promotor da exclusão social em larga escala, base mais política que econômica para transição posterior às promessas do neoliberalismo.

Porém, se os anos do milagre brasileiro produziram os perversos movimentos acima descritos, o campo da política por ser o locus da contradição e do debate permitiu que se aguçasse – via expansão das condições objetivas, inclusive - de mecanismos de fermentação da sociedade para a manifestação de suas divergências. Ampliou-se fortemente o meio universitário, enquanto segmentos do operariado buscaram afastar-se dos velhos controles corporativos da era Vargas, aprofundando o debate em torno da anistia política, só para citar alguns exemplos. Contudo foi o esgotamento do Estado desenvolvimentista e a conseqüente perda de legitimidade do regime militar que constituíram as condições objetivas para uma dramática recomposição do campo político. Ou seja, o Estado autoritário não podia mais ignorar a movimentação societal de vários segmentos políticos, ao mesmo tempo em que não podia sustentar mais os privilégios de sempre para os eternos “donos do poder”.

O esgotamento do Estado desenvolvimentista, nos anos setenta, aguçado nos anos oitenta a par com a afirmação de uma sociedade complexa, setorializada, com inúmeros atores políticos com elevado grau de maturidade para o jogo das relações sociais, recoloca, com firme direção, a necessidade de reforma do Estado. Fica evidente que a “balcanização” do Estado atingiu limites de governabilidade mesmo para larga parcela das classes dominantes. Cabe destacar que o foco central desse quadro estava na priorização da reconstitucionalização da nação brasileira. Ou seja, a agenda política do momento estava sobrecarregada e a questão da reforma administrativa não logrou prosperar. Além disso, havia um viés quantitativo no debate político de que o Estado era muito grande e pesado, sustentado basicamente pelo discurso neoliberal, que visava à constituição de um Estado mínimo. Se, de um lado, o diagnóstico da Nova República era consistente, por outro, a terapia foi escassa. Velhos problemas continuaram a existir, tanto na gestão administrativa do Estado (particularmente dificultada pelo processo inflacionário daquele momento), bem como nas relações desse com a cidadania, que apresentava (e continua a apresentar) enorme déficit de direitos.

Os anos noventa vão apresentar a “questão” do Estado, e, portanto, a necessidade de uma reforma numa dimensão enorme e ruidosa, pois era percebida como necessária e anterior a ação do governo. O nó górdio estava assentado na percepção de uma simplificação do cenário, pois bastava mexer na questão administrativa para serem

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criadas as condições gerais de desenvolvimento econômico da nação. Desse modo, a questão central a ser enfrentada dizia respeito unicamente ao Estado, como foco principal, e não às relações do Estado com a sociedade. A reforma do Estado girava em órbita separada da própria reforma social.

Na verdade, uma nova configuração do Estado, já desenhada desde o início dos anos oitenta, e implantada pelo governo de Collor e em boa medida de Fernando Henrique Cardoso, consolida-se com uma postura de atrelamento quase incondicional à hegemonia do capitalismo financeiro globalizado. O abandono de uma lógica interna de industrialização, um dos conteúdos desse novo Estado, se expressa de vários modos, tanto pela perda de dinamismo dos capitais brasileiros, como pela transferência expressiva de setores inteiros da economia à dominação estrangeira e, assim, a burguesia interna perde totalmente a capacidade de liderança. Este processo se completa com o desmantelamento do Estado iniciado no Governo Collor.

Ou seja, tanto o setor público quanto a burguesia nativa ficam fragilizados na capacidade de articular uma estratégia nacional diante da nova correlação de forças, decorrentes do aprofundamento da globalização. Cabe destacar que ao lado do movimento perverso da privatização do setor público (e o Rio Grande do Sul foi exemplo), têm-se os incansáveis movimentos corporativos a tornar mais complexa a gestão da estrutura estatal. Corporativismo esse que se expressa, não só internamente, nas estruturas estatais, através de alguns corpos burocráticos, mas também de modo externo, pela captura que setores empresariais executam na obtenção de privilégios fiscais. De outro modo, poder-se-ia afirmar que os últimos anos, como decorrência da hegemonia liberal, traduziram-se na propagação de um discurso político fundado na visão de que a solução para todos os problemas, inclusive aqueles de conteúdo social (educação, saúde, entre outros), passaria pela afirmação do mercado como mecanismo eficiente de regulação dos interesses e necessidades da cidadania. Deve-se atribuir à essa hegemonia liberal a construção e a difusão da idéia do Estado como elemento de entrave à livre movimentação das forças sociais, particularmente aqueles com capacidade para “gerar riqueza”, isto é, o empresariado. Somente o indivíduo livre da pressão do Estado seria capaz de criar as condições para o desenvolvimento material da nação.

Diante da ineficácia constante relação com a sociedade, é possível perceber um fio condutor presente ao longo do tempo. O elemento de continuidade está localizado na desconsideração da cidadania como núcleo fundamental nos processos de ruptura e recomposição da vida política da nação, tanto no que diz respeito aos processos de rupturas quanto ao tocante às proposições de transformação da gestão administrativa do Estado, bem como naqueles pontos relativos à representação política e ao aparato judicial. Não possui status político menor, a persistência das velhas práticas do passado, seja ela decorrente do escravismo, do patrimonialismo e/ou do clientelismo, seja a face externa mais evidente no nordeste brasileiro que compõe as alianças políticas desde os tempos mais remotos até o governo FHC, seja decorrente de elementos mais recentes, como o corporativismo implantado na era varguista. O resultado desta desconsideração crônica dos cidadãos, a trajetória de uma cidadania travada, desprovida de soberania ou sempre inacabada, é a complacência e por vezes a tolerância envergonhada de largas parcelas sociais com estes valores retrógados, dentro e fora do Estado.

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Em suma, a constituição de uma nova agenda de interesses – que ganhou espaço na agenda política com a falência do nacional-desenvolvimentismo - não foi acompanhada por uma ampla Reforma Democrática do Estado, tanto no Executivo, como no Legislativo e no Judiciário. Velhas práticas do passado ainda sobrevivem e necessitam ser extirpadas ao passo que – do nosso ponto de vista - somente uma nova correlação de forças, como a do campo popular e democrático, pode propor e encaminhar a passagem para o novo, quer dizer, para um allungamento da modernidade. Com isso, o que se impõe é o rompimento com o clientelismo e com patrimonialismo; a criação de uma nova agenda para o corporativismo (que não seja ancorado apenas no aspecto da reivindicação econômica); a democratização do acesso ao Estado para todos os segmentos sociais – historicamente a única forma de resolver os conflitos de forma pacífica; a integração e solidariedade com excluídos, com capacidade para diminuir a tensão social e reduzir a “dívida social” acumulada.

2. A construção da administração pública no Brasil: burocracia, insulamento e crise de legitimação.

A história da administração pública brasileira é a história de como as oligarquias regionais partilharam o aparelho de Estado para fazer dele um instrumento funcional ao processo de acumulação capitalista. Na fase do império a precária existência de uma sociedade civil independente das elites ilustradas, dos magistrados, dos clérigos e dos oficiais de um exército em formação não permitiu distinguir qualquer autonomia da administração pública dos grupos econômicos regionais. O poder central distante, o poder local entregue ao domínio dos clãs agrários, do coronelismo, a administração pública inexiste em grandes parcelas do território. Este quadro vai mudar só no fim da república velha com a entrada de novos atores no jogo democrático: os setores médios urbanos, o operariado em formação, setores militares modernizantes e uma conjuntura de crise internacional.

A revolução de trinta, empreendimento político de modernização do aparelho de Estado, apesar das contradições próprias do “Estado de compromisso” que manteve, produziu efeitos marcantes na administração pública brasileira: (a) consolida a intervenção estatal na economia, particularmente pela criação de políticas, agências e programas de proteção à renda dos setores do café, (b) centraliza politicamente o país, nacionaliza e concentra a tradição clientelista dos “coronéis” regionais, racionaliza e reforma o Estado, (c) redefine os padrões de relacionamento entre o governo central e os estados, repactuando a federação (quase “extinta” pela Lei dos Estados e Municípos de 1939). A criação do Departamento de Administração do Serviço Público, o DASP, em 1938, materializa e estabelecimento do sistema de mérito e o universalismo de procedimentos. A criação de uma burocracia moderna, estável, selecionada por concurso, recrutada nas fileiras dos setores dominantes e aparentemente imune às pressões clientelistas foi o principal resultado deste período. Este sincretismo político weberiano-patrimonialista é que marca a formação da administração federal, alguns poucos setores profissionalizados, empreguismo generalizado, corporativismos combinados com procedimentos universais, “lei” e “favor” convivendo em simbiose imperfeita.

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No regime autoritário o conhecido “Decreto-Lei 200/67” vai pelo mesmo caminho: tenta introduzir o espírito gerencial privado na lógica pública, via proliferação descontrolada de organizações da administração indireta, entre 1967 e 1975 são criadas 123 empresas estatais federais. Aliás, Juscelino no período 1956/61 já havia inaugurado um estilo de gerenciamento dos projetos do Plano de Metas “por fora” da estrutura (ineficaz) da burocracia federal, contornando a “máquina pública”. Na transição para a democracia a administração pública pouco muda4, exceto pela exacerbação do fisiologismo – que marca tristemente a retomada do parlamento como sujeito político do Estado de direito - durante o período Sarney e pelo desastre administrativo da gestão Collor, purgado pelo impeachment vitorioso.

No início da gestão 1995/1999, do presidente Fernando H. Cardoso, o Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), Bresser Pereira, elabora o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado cujos princípios teóricos e bases são comentados mais adiante. O MARE foi absorvido pelo Ministério do Planejamento (atualmente há uma Secretaria de Gestão) em janeiro de 1999 e a maioria dos projetos originais foi desativada. O processo de reformas estritamente gerenciais ainda continua, embora com ritmo desacelerado. A versão final dos seus méritos e o balanço ainda é matéria de debate teórico5. O Centro Latino Americano de Administração para o Desenvolvimento (CLAD) – um centro aglutinador do pensamento hegemônico em administração pública, reconheceu que a primeira geração das reformas do Estado, de caráter neoliberais, foram insuficientes para cumprir os objetivos básicos no contexto da América Latina (CLAD, 1998): desenvolvimento econômico, aprofundamento da democracia e combate às desigualdades sociais, seriam “...estas três especificidades que, em grande medida, colocam novas perspectivas à reforma do Estado na América Latina, constituindo uma perspectiva diferente da anterior, meramente financeira e tecnocrática” (grifos nossos) (p.3). Aqui fica mais evidente a ênfase revisionista e auto-crítica:

“a nova etapa de reformas precisa ser aprovada por sistemas políticos que saíram do ciclo autoritário, mas que, em sua maioria, não consolidaram imediatamente suas democracias. O fato é que a política latino-americana ainda é marcada por uma mistura de partidos fracos, clientelismo, corporativismo e lideranças personalistas. Mas as lições a respeito do significado nefasto dos regimes ditatoriais nas nações latino-americanas reforçam a idéia de que não basta a aprovação de reformas do Estado: é preciso realizá-las sob contexto democrático, aperfeiçoando ou criando novas instituições políticas... Sem resolver estes problemas específicos da América Latina, o atual projeto de reforma do Estado tende, no curto prazo, a perder legitimidade social. As reformas até então realizadas resolveram apenas a questão da estabilização

4 Durante o governo S arney foi cr iado um grupo de trabalho para estudar a reforma da adminis tração federal baseado na racionalização de procedimentos , foi cr iado o S is tema de Pes soal Civi l da Adminis tração Federal, es tabelecimento do regime j ur ídico único e cr iada a ENAP, apesar destas tentativas o modelo dualis ta continuou intacto.

5 No Congres so do CLAD realizado em Lisboa (outubro de 2002), vár ios ar tigos tentaram fazer um balanço do processo de refor mas no Bras il , três em especial: “Reforma do Aparelho de Es tado no Bras il : uma comparação entre as propos tas dos anos 60 e 90” (S heila Ribeiro), “A refor ma adminis trativa no B ras il : oito anos de implementação do Plano Diretor – 1995 – 2002” (Ciro Fernandes ) e “A Reforma do Es tado no Bras i l: es tratégias e resultados (Ângela S antana), podem ser obtidos em www.clad.org.ve.

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econômica, pois o desenvolvimento não foi retomado com firmeza, a concentração de renda não foi revertida e a democracia ainda não se consolidou.“ (p.4).

Sobre a adoção generalizada e muitas vezes a-crítica de princípios de gestão privada no setor público o documento pontua igualmente uma importante inflexão:

“A Reforma Gerencial do Estado também não busca a eficiência a qualquer custo. Primeiro porque a eficiência não pode ser descolada da efetividade, pois otimizar os recursos públicos sem oferecer bons serviços ou resolver os problemas sociais é incompatível com os valores que estamos defendendo. Além disso, o modelo gerencial deve subordinar a eficiência ou qualquer outro critério racional administrativo ao critério democrático, expresso na vontade popular. São os critérios definidos nos espaços públicos que devem prevalecer sobre qualquer racionalidade técnica, e por isso a Reforma Gerencial do Estado se afasta de qualquer visão tecnocrática de gestão (p.17).”

O fim da chamada “primeira fase” das reformas coincidiu no Brasil com a ênfase no novo modelo de Planejamento (PPA 2000) detalhado adiante. Entretanto a retomada da cultura de planejamento público seria feita em ambiente hostil, com insulamento burocrático e um Estado em permanente crise fiscal.

A trajetória do planejamento público: desmonte institucional

Nos anos setenta e oitenta o planejamento governamental brasileiro se consolida ainda que como atividade restrita ao uso e aplicação de modelos de desenvolvimento econômico, na sua absoluta maioria, desenvolvidos em centros universitários ou consultoras norte-americanas.

Nos anos oitenta fatores relacionados à conjuntura e às opções políticas dos setores hegemônicos aceleraram o processo de desmonte institucional e recuo dos sistemas de planejamento constituídos no ambiente macroeconômico anterior. Segundo Haddad (1997) o fracasso dos planos de ajuste recomendados pelo FMI nos anos oitenta teve impactos perversos sobre a capacidade de planejamento governamental. As disfunções na distribuição da renda, com redução drástica dos salários e crescimento dos juros e capital financeiro, o desmantelamento da máquina pública, desestímulos ao quadro funcional e desorganização dos serviços, resultado de sucessivas tentativas de reformas administrativas mal-sucedidas e as constantes mudanças nas regras do jogo econômico, como os confiscos ou mudanças no sistema de indexação compuseram uma conjuntura altamente desfavorável para a programação de investimentos e o planejamento público e privado de longo prazo.

A ortodoxia liberal justificou no mesmo período uma retirada quase total do Estado em setores tradicionalmente influenciados pelos investimentos públicos, como energia e infra-estrutura, e sedimentou um princípio de conduta ética e moral que fazia apologia ao viés mercantil de uma possível saída para a crise, não sem antes demonizar e culpar a influência do Estado como variável explicativa central.

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O planejamento para o desenvolvimento (de viés estruturalista) hegemônico nos países latino-americanos sofreu restrições de toda ordem (Garnier, 2000). A primeira ordem de obstáculos diz respeito aos problemas da crise fiscal, das restrições tipicamente financeiras do modelo desenvolvimentista adotado que implicou, como se sabe, em pesados déficits fiscais, sem geração de renda ou poupança capaz de sustentar o modelo no longo prazo. A “hipoteca” sobre o futuro destes países se fez cobrar no impacto negativo das dívidas externas e internas, nas crises internacionais do final dos anos setenta. A segunda ordem de problemas diz respeito ao enorme déficit social acumulado neste mesmo período. Produto de um sistema que gerou concentração fantástica da renda, a crise e os sucessivos processos de ajuste combinaram abertura externa com recessão interna, gerando ondas maciças de desemprego, queda da renda e do consumo. As políticas sociais já não compensaram a multidão de excluídos que incluiu também parcelas crescentes das camadas médias, antes a principal base de apoio para o modelo. Um terceiro conjunto de fatores está ligado ao esgotamento institucional de serviços públicos sem qualidade ou cobertura, de perda da capacidade de direção de governos, da gestão fiscal caótica ou da cultura institucional que se desagrega diante do clientelismo, da ineficiência e corrupção. A crise fiscal revelou de forma dramática um tipo de Estado prisioneiro de grupos de interesse, ineficaz para garantir o desenvolvimento social e incapaz de reconstituir um projeto nacional. No front externo a globalização diminui o espaço e a autonomia da esfera política, subordinando a governabilidade à estabilidade dos fluxos financeiros internacionais.

Este grande diagnóstico das causas do desmonte institucional do planejamento governamental latino-americano já estavam identificados em seminários sobre Planejamento e Gestão realizado pelo ILPES e CLAD em Agosto de 1989. Segundo Affonso (1989),

“A ‘crise do planejamento’ na América Latina aparece, assim, sobreposta à reversão do ciclo industrial interno, à ruptura do padrão de financiamento calcado no endividamento externo e à difícil transição democrática. Neste contexto, ante a dificuldade de se dirimir os conflitos e dividir as perdas entre os setores empresariais a resultante foi, de um lado, uma violenta compressão salarial e, de outro, um movimento de ‘privatização’ do Setor Público com os diferentes interesses privados lutando através do aparato estatal pela manutenção de suas margens de lucro e vantagens institucionais” (pág. 145).

O fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento nos últimos anos do governo Geisel (1978-80) teria sido, para este autor, a chancela para a incapacidade das elites nacionais no Brasil em constituir um projeto nacional de desenvolvimento. A ruptura do padrão de financiamento, através da deterioração da arrecadação fiscal, da política equivocada de preços públicos, do alto endividamento externo e da espiral inflacionária sepultaram as possibilidades de retomada do planejamento como vinha sendo praticado pelas agências públicas no período anterior.

Como bem sintetiza Garnier (2000) as transformações no equilíbrio político-ideológico das últimas décadas (o domínio das ideologias liberais) completaram um quadro onde as políticas públicas se distanciam dos objetivos de desenvolvimento sustentado e se concentram na lógica do curto prazo, para uma administração de resultados

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financeiros e econômicos, fortalecendo uma retórica anti-política que é sucedânea do discurso fundamentalista anti-estatal.

3. A reforma gerencial e o modelo federal de planejamento & gestão.

O contexto: as idéias fora do lugar

A base das transformações no modelo gerencial adotado pelo Governo Federal desde o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995/1999) está numa caracterização muito precisa sobre as transformações da função do Estado nacional nos últimos vinte anos6.

A primeira delas é o aumento brutal do desenvolvimento tecnológico. O progresso tecnológico que atingiu particularmente a informática e a biotecnologia implicou não apenas em mudanças quantitativas, mas sobretudo no ritmo das transformações científicas. Assim, vários setores se desenvolveram rapidamente gerando um padrão de consumo mais exigente e estimulando aumentos vertiginosos na produtividade do setor privado e do setor público. O aspecto notável deste primeiro foco da explicação sobre a crise do Estado é a associação entre a informática e as comunicações para produzir a telemática, novas tecnologias de informação em tempo real, acelerando o processo de globalização e revolucionando os métodos de trabalho.

Um segundo eixo é a própria globalização que tende a homogeneizar os processos de decisão em todo o planeta simultaneamente como uma grande rede de conexões econômicas, sociais, políticas e culturais. O resultado geral deste processo é a produção de um ambiente sócio-cultural de complexidade crescente das relações humanas, de incertezas e desequilíbrios já que os processos de decisão são cada vez menos governáveis em ambientes estritamente locais ou nacionais. Disto resulta que o processo gerencial no setor público está tremendamente questionado sobre sua capacidade de enfrentamento dos novos problemas, do acesso à informação, das alianças estratégicas, etc...

A democratização da sociedade é um terceiro fator de desajuste do aparelho de Estado herdado do regime militar e do desenvolvimentismo. Novos atores políticos e sociais, novas demandas e processos decisórios afloram na conjuntura nacional. A difusão de informações e novos padrões culturais ajudaram a disseminar uma nova cidadania. O Estado rigidamente hierárquico, centralizado, imune às demandas sociais e impermeável é praticamente inviabilizado nesta nova “era da participação”. O grau de descentralização pode ser aferido pelo aumento de governos locais na América Latina que elegem diretamente seus representantes, entre 1979 e 1997 saltou de 3 mil para 13 mil localidades (CLAD). No Brasil progressivamente, nos três níveis administrativos, proliferaram inúmeros conselhos gestores de políticas setoriais e sociais. Dezenas de municípios adotaram práticas participativas de gestão orçamentária e outros mecanismos de participação. A democratização da sociedade e do Estado traz

6 Baseado em Enap (2002), Curso de Formação de Multiplicadores no novo modelo de Planej amento.

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profundas implicações para a gestão pública: estimula a produção de um novo padrão de comportamento organizacional do servidor público e questiona a estrutura administrativa convencional.

A sociedade se democratiza e as desigualdades sociais aumentam. Este quarto aspecto aponta para o aprofundamento das disparidades pessoais, sociais e regionais da economia brasileira. Segmentação, marginalização, diferenciação, exclusão são palavras comuns nesta nova agenda social e econômica. É imperioso que se reforçe o Estado e seu papel de garantidor das demandas coletivas, na defesa dos direitos mais fundamentais dos cidadãos, entretanto para que esta função seja exercida plenamente será preciso, entretanto, uma verdadeira revolução gerencial em seu interior.

O estado da crise na crise do Estado

A crise do Estado apresenta pelo menos três dimensões distintas: (a) uma crise fiscal, (b) uma crise do modo de intervenção do Estado e (c) uma crise do modelo burocrático de gestão.

A crise fiscal se manifestou através do déficit público, resultado sistemático da tentativa de manutenção da política de substituição de importações e portanto do estímulo aos elos faltantes ou frágeis da cadeia produtiva. O alto custo de rolagem da dívida interna e externa , a poupança negativa do setor público e a resultante baixa capacidade de investimento e a baixa credibilidade do Estado, expressa na falta de confiança na moeda nacional e na rolagem da dívida pública foram outras manifestações importantes da crise fiscal.

A estratégia de crescimento econômico baseada exclusivamente na substituição de importações, gerando concessões cada vez maiores de subsídios para setores menos competitivos, e a excessiva regulamentação produziram como saldo líquido menores condições de competitividade e alocação ineficiente de recursos internos. Aliada à baixa capacidade de investimento esta crise acentuou a incapacidade do Estado em responder às demandas sociais crescentes, especialmente na ampliação dos serviços públicos essenciais.

Esta nova situação tornou o ambiente econômico muito mais sensível às mudanças de orientação dos Governos, reduzindo a soberania nacional e reforçando a articulação de blocos e espaços supra-nacionais de articulação entre Estados.

De um lado o Estado deve atender as demandas da sociedade, maiores e mais complexas, do outro, está integrado à economia internacional garantindo externalidades positivas para desenvolver ambientes nacionais competitivos ao desenvolvimento.

Por último a crise do modelo burocrático de gestão do Estado ficou evidente pela incapacidade do aparelho público se movimentar com agilidade, flexibilidade e voltado para os resultados segundo o formato tradicional de organização pública.

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As mudanças profundas de organização do capitalismo internacional desde os anos setenta produziram também efeitos consideráveis na organização empresarial e na dinâmica concorrencial. Alguns resultados destas transformações foram:

(a) a criação de sistemas de gestão flexíveis;

(b) a maior autonomia dos diferentes sub-sistemas da empresa que passa a adotar o conceito de rede;

(c) a circulação mais rápida, universal e abrangente das informações;

(d) a redução do nível de hierarquias internas com aumento de eficiência do processo de tomada de decisão interna.

A reforma (possível) do Estado

A organização burocrática baseada na rigidez de rotinas e padrões estáveis de conduta e disciplina funcional não responde mais com eficiência dentro deste novo quadro. Os elementos distintivos da falência do modelo burocrático são: privilégio às rotinas orientando-se para o excessivo formalismo e ritualismo; rigidez e verticalidade da estrutura hierárquica; criatividade limitada pela obediência rígida aos padrões pré-definidos; racionalidade técnica e processual reduzindo a autonomia e ausentando a responsabilidade com os resultados demandados pela sociedade.

A exacerbação da neutralidade diante dos desafios gerenciais, a impessoalidade que descompromissava os servidores com os resultados de sua ação e a racionalidade fria da burocracia além de criar uma onerosa estrutura administrativa, lerda e ineficaz, contribuiu para isolar os corpos técnicos da dinâmica política, do jogo democrático e do contato com as pressões reais da sociedade. Esta impermeabilidade às reivindicações sociais foi chamada de “insulamento burocrático” (ENAP, 2002), a formalização dos controles e a falta de transparência de procedimentos franqueou mais espaços para o surgimento de práticas de corrupção no aparelho estatal.

As reformas de primeira geração surgiram nos anos setenta principalmente nos países de tradição anglo-saxônica (Inglaterra, Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos, etc...). Centradas na demissão de funcionários, na transposição mecânica de técnicas e instrumentos empresariais para o setor público e da aplicação de uma lógica mercantil indiscriminada (privatizações, terceirização, agencificação, etc...) esta geração de reformas esgotou-se rapidamente produzindo severas seqüelas sociais e inviabilidades políticas.

Uma segunda geração de reformas tentaram recuperar o papel do Estado, porém dentro de um papel distinto do Estado keynesiano tradicional. O centro de sua intervenção no mercado passa a ser a atividade regulatória, com formatos flexíveis de interação com o mercado, atuando diretamente somente naquelas funções indelegáveis ao mercado pela sua natureza ou abrangência. O modelo de gestão

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orientada para resultados surge neste contexto, baseada no desempenho, na obtenção de resultados e na participação cidadã.

A Reforma no Brasil: entre o hiperativismo decisório e a paralisia crônica.

A primeira tentativa de implantação de princípios burocráticos ocorre com a formação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) em 1936, baseado nos princípios da centralização, hierarquia e impessoalidade. Apesar do caráter geral progressista desta iniciativa o contexto político e social do Governo Vargas não permitiu a consolidação definitiva destes valores. Um segundo marco importante foi o Decreto-lei 200 de 1967, durante o governo militar, com ênfase na racionalização administrativa via sistema de orçamento e planejamento, descentralização administrativa e controle de resultados. O reforço e autonomia excessiva da administração indireta, do setor produtivo estatal, acabou por enfraquecer o núcleo central da administração pública, criando “ilhas de excelência” num quadro geral de serviços, instituições e funcionários públicos desvalorizados e ineficientes.

A Constituição de 1988 retomou marcas importantes do modelo burocrático clássico: aumento os controles burocráticos sobre as empresas estatais, enrijeceu a ascensão funcional por carreira, criou um conjunto de dispositivos de proteção ao funcionalismo contra os interesses patrimonialistas que, segundo a visão predominante, resultou em privilégios e rigidez inadequada aos interesses públicos. A constituição também elegeu instrumentos e formas participativas da democracia, além de princípios para maior descentralização dos serviços e das políticas públicas entre União, Estados e Municípios.

Durante o Governo Collor a reforma administrativa adotou um princípio economicista, paralisante e desorganizador que destruiu o que restava da capacidade de governo (Garcia, 2000). Já no governo Fernando Henrique Cardoso (1994/1998) foi elaborado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (1995).

O plano anuncia sua base sobre três pilares:

(a) Conformar a Gestão do Estado aos novos padrões internacionais de relação política e econômica, integrando o Estado ao movimento de reestruturação internacional da gestão pública.

(b) Conformar o Estado às novas funções regulatórias e executivas do setor público, colocando o Estado como coordenador, estimulador, facilitador e fiscalizador sobre os princípios da flexibilidade, descentralização, pluralidade, cooperação e estratégia.

(c) Preparar o Estado para o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos, estimulando a parceria e a cooperação com a sociedade civil.

A reforma do Estado ganhou corpo a partir de 1998 quando o governo federal implementou mudanças metodológicas e institucionais na estrutura de gestão federal e

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na elaboração do Plano Plurianual. As diretrizes da reforma gerencial podem ser sintetizados nos seguintes:

(a) Orientação para o cidadão: é preciso voltar o funcionamento do aparelho de Estado para o cidadão, contrapondo-se à “captura” de organizações e procedimentos públicos por burocracias e agrupamentos específicos. A transparência interna e externa na definição de metas claras e resultados concretos a serem atingidos seriam pré-condições para este enfoque.

(b) Transparência das ações públicas. Além de pressuposto para a orientação ao cidadão é um antídoto para práticas paternalistas e clientelistas que permeiam setores tradicionais do Estado. Ela envolve os processos de tomada de decisão, foco de privilégios e favorecimentos ilícitos, bem como de execução dos projetos prioritários de um governo. O controle social é o resultado imediato da transparência, da circulação irrestrita de informações, o controle social se relaciona diretamente com a responsabilização social dos gestores e administradores, com a necessária prestação pública de contas.

(c) A responsabilização oportunizada pela fixação de resultados é uma das bases do novo modelo. O modelo burocrático cuida de normas, regulamentações e procedimentos enquanto que o modelo gerencial trabalha com foco nos resultados, por isso, permite avaliação de desempenho efetiva.

(d) A participação é outra base do novo modelo, implica em vencer o ritualismo de processos tradicionais de participação dos cidadãos na gestão pública e objetiva a criação de pactos, compromissos e acordos entre os diferentes grupos de pressão pela governabilidade. A participação é colocada nos termos da democratização do processo decisório.

Os requerimentos para promoção dos princípios da administração pública “orientada para resultados” implica na (a) profissionalização do serviço público, especialmente no desenvolvimento do empreendedorismo como padrão comportamental dos servidores, (b) na flexibilização administrativa, dotando a máquina governamental de estrutura organizacional capaz de respostas ágeis ao atendimento das demandas sociais, (c) descentralização de suas ações, aumento do controle social e participação na implementação das políticas e (d) modernização tecnológica, aparelhando a administração pública com ferramentas e instrumentos necessários.

A mudança no paradigma de planejamento

O modelo de planejamento adotado pelo setor público não ficou ileso diante da crise do Estado e da falência da administração burocrática. O modelo tradicional de planejamento foi marcado pelas seguintes características:

(a) Perspectiva determinística, adotando princípios metodológicos autoritários e ignorando a complexidade do tecido social e dos arranjos entre os vários grupos de pressão.

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(b) A projeção do futuro como mero prolongamento mecânico do passado, desconhecendo a possibilidade da incerteza, dos múltiplos cenários e atores com comportamentos criativos.

(c) A redução da complexidade social e econômica a visão setorial da economia ou da manipulação de poucas variáveis com perda da visão integrada, polissêmica da realidade.

(d) Rígida separação entre o processo de planejamento e o processo de gestão pública, dispensando a necessária e permanente correção do plano diante dos desafios da gestão.

As mudanças na realidade econômico e social características do final dos anos setenta e oitenta que atingiram o padrão de organização capitalista e provocaram a reestruturação do Estado nacional tornaram o modelo tradicional de planejamento público obsoleto, seus paradigmas teóricos não respondiam mais às novas demandas da sociedade.

No Brasil o novo modelo de planejamento envolveu centralmente uma nova articulação entre o planejamento, a elaboração do orçamento e uma concepção de gestão pública (foco nos resultados). A Constituição de 1988 elegeu o Plano Plurianual como forma privilegiada de planejamento público de médio prazo.

O primeiro PPA (1991/1995) foi tão ineficaz quanto emblemático do estágio final do planejamento na esfera pública, 94,6% dos investimentos foram paralisados durante o plano (Garcia, 2.000). O segundo PPA (1996/1999), segundo o mesmo autor “ alcança, quando muito, o caráter de um plano econômico normativo de médio prazo” (Garcia, op.cit., pág. 14), quando somente 20% dos programas atingem mais de 90% execução.

Alguns fatores conjunturais fizeram da elaboração do terceiro Plano Plurianual (2000-2003) da União um momento qualitativamente diferenciado7. As causas da renovação metodológica positiva podem ser identificadas nos seguintes fatores: (a) a formação de um Grupo de Trabalho no Ministério do Planejamento, em 1997, mais amplo e representativo envolvendo entidades não-governamentais como a Associação Brasileira de Orçamento Público (Abop) e o Instituto de Administração Municipal (Ibam), (b) a experiência recente do Executivo federal de melhoria da eficácia gerencial com o programa “Brasil em Ação” em 1996 (que pinçou 42 projetos especiais do PPA anterior), (c) uma conjuntura de estabilidade monetária favorecendo o uso gerencial do orçamento e da contabilidade pública, num governo que já acumulava quatro anos de mandato e - fator fundamental - (d) o uso de técnicas mais potentes e modernas de planejamento estratégico no setor público.

Entre as principais modificações conceituais e operacionais podemos listar (a) a categoria “programa” foi considerada o elo de vinculação entre plano e orçamento,

7 Pode-se consultar para maiores detalhes : “Manual de Elaboração e Gestão” e “Procedimento para Elaboração de Programas”, S ecretar ia de Planej amento e I nvestimentos Es tr atégica, Minis tér io do Orçamento e Gestão, Bras íl ia, 1.999.

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(b) desenho de programas a partir da identificação de problemas ,(c) aprofundamento da natureza gerencial do planejamento – simplificação da taxionomia orçamentária, flexibilidade na classificação funcional-programática, uso da categoria “função” e “sub-função” definindo políticas governamentais - e (d) identificação de produtos e metas por projetos e ações, com indicadores e gerentes específicos por programa8.

Além disso, na preparação do PPA foi produzido um estudo denominado “Estudo dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento” (parceria entre o MP e o BNDES) com o objetivo de orientar o planejamento estratégico federal. O objetivo deste estudo era produzir um grande portfólio para investimentos públicos e privados (obras estruturantes no valor de US$ 317 bilhões) em cinco grandes eixos (regiões de planejamento) nos quais o país foi dividido. Os eixos foram definidos com base no critério da acessibilidade (rede viária atual e potencial) e na presença de atividades econômicas marcantes. A inovação foi o uso de uma lógica de maior integração das economias regionais, ainda que o produto final tenha sido pouco debatido com Estados da federação e permanecer intacta a visão privatista9. O terceiro PPA nacional previu a execução de 365 Programas com gastos totais de R$ 1,11 trilhão em quatro anos.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias, a LDO10, teria o papel, neste arranjo institucional, de mediação entre a estratégia mais genérica do PPA e os orçamentos anuais. Estes passariam a ter maior vinculação com o Planejamento Governamental.

Os princípios que pautam o novo modelo são os seguintes:

(a) Planejamento de longo prazo de caráter indicativo baseado no território: isto pressupõe a construção de uma visão estratégica de desenvolvimento para um horizonte de 20 anos, um portfolio de oportunidades de investimentos públicos e privados para oito anos (chamado “Estudo dos Eixos de Desenvolvimento”). A convergência entre decisões públicas e investimentos privados é uma das intencionalidades declaradas do processo através das chamadas “parcerias público-privadas”, visando garantir recursos onde o Estado não pode assegurar em volume e ritmo suficiente. A referência territorial viabiliza integração das ações de acordo com as demandas locais e regionais.

(b) Plano, orçamento e gestão integrados: visa superar - de um lado – a falta de parâmetros estratégicos na elaboração do orçamento e de outro, a falta de

8 Coutinho Garcia (op. cit.) apesar de elogiar os avanços obtidos aponta algumas falhas deste proces so: condicionamento negativo do inventár io de obras pré-ex is tentes no início da elaboração do PPA, indefinição sobre o conceito de “problema”, viés fiscalis ta ao condicionar as dotações iniciais à média das executadas em anos anter iores , não apropr iação específica das despesas adminis trativas às atividades- fins e problemas no uso de indicadores .

9 Para uma descr ição maior da problemática espacial- regional envolvida no es tudo consultar o artigo de B ianca Nasser , “Economia Regional, des igualdade n o Bras i l e o Es tudo dos E ixos Nacionais de Desenvolvimento” in Revis ta do BNDES , Rio de Janeir o, v. 7, n. 14, 2.000.

10 A Lei de Diretr izes Orçamentár ias é o ins trumento de planej amento que estabelece as metas e pr ior idades da adminis tração, or ienta a elaboração da lei or çamentár ia anual e dispões sobre as alterações na legis lação tr ibutár ia.

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viabilidade orçamentária do plano, a ausência de uma base fiscal concreta para sua execução.

(c) O programa como unidade de gestão: é a categoria que orienta e unifica a implementação das ações de governo, suas parcerias e obtenção de resultados. O programa é o elemento de ligação entre plano e orçamento, é a referência básica para todas as etapas do ciclo de gestão: alocação de recursos, execução, monitoramento, avaliação, controle e prestação de contas à sociedade.

(d) Parcerias: realizadas entre o setor público e privado, entre órgãos públicos de vários níveis, dentro e fora do governo.

(e) Ênfase forte no gerenciamento: para atribuir responsabilidades e orientação na execução de programas, tem no Gerente do Programa o elemento humano essencial.

(f) Programas estratégicos: aplicação do princípio da seletividade ao plano ao destacar um conjunto de programas que demandam monitoramento especial e prioridade superior de gerenciamento e gestão de restrições.

(g) Avaliação permanente: o objetivo é assegurar o cumprimento contínuo do plano, correção sistemática da proa do planejamento, atualização de objetivos e metas em relação às demandas sociais e os resultados programados.

A Secretaria de Planejamento e Investimento Estratégico (SPI)11 do Ministério do Planejamento, identificando a tensão normal existente entre as antigas práticas e o novo modelo, aponta alguns desafios para consolidação desta concepção, certamente vislumbrando a elaboração do próximo PPA para o período 2004/2007.

(1) Prover informação gerencial: disponibilizar para a alta direção do governo as informações de desempenho físico e financeiro das ações de cada programa.

(2) Ajustar as organizações: a gestão por programa introduz um conflito entre a estrutura departamental e a gestão por resultados. A visão setorial entra em choque com o foco no objetivo, a tensão deve ser positivamente resolvida para compatibilizar as organizações ao novo modelo.

(3) Ampliar a capacidade gerencial: o novo modelo exige um novo tipo de gerente e servidor público. Motivado suficientemente para saber negociar, gerenciar equipes inter-disciplinares, interagir com o público-alvo do programa, dominar técnicas de gestão de projetos e programas. A capacitação é essencial para formação deste novo perfil.

11 “Gestão pública orientada para resultados no Brasil”, Ariel Pares e José Paulo Silveira, SPI, MP, texto apresentado na Conferência Internacional sobre gestão publica, Paris, 2002.

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(4) Generalizar a cultura de avaliação de desempenho: o desafio é sensibilizar os gestores para o aprendizado de novas metodologias de avaliação permanente, com transparência e participação dos avaliados.

(5) Flexibilizar procedimentos administrativos de execução orçamentária: além do ambiente de ajuste fiscal quase-permanente o problema mais grave é a rigidez formal dos procedimentos de execução orçamentária. Dada a contingencialidade do novo modelo, a receptividade necessária para imprevistos e correções permanentes de rumo, a falta de flexibilidade dos contratos, a necessidade de aprovação legislativa, lenta e truncada, representam obstáculos à eficácia do plano.

(6) Estabelecer comunicação com a sociedade: a interação com o público-alvo é o maior fator de motivação gerencial, ajuda também a neutralizar a aparente “perda de poder” das estruturas organizativas não adaptadas à transparência e circulação de informações. Além disso, ela é fator crítico no relacionamento com o legislativo (federal, neste caso) para neutralizar resistências e ganhar adesões ao novo modelo (ampliar a governabilidade no parlamento).

(7) Imprimir sentido estratégico ao plano e ao orçamento: imprimir à plurianualidade da projeção de gastos e estimação de receitas a capacidade de construção do futuro desejado, efetividade do orçamento.

(8) Adotar as parcerias na gestão pública: aprofundar o sentido de parcerias com setores privados dispostos a investir.

As críticas ao novo modelo de gestão

Diversos autores tem criticado o gerencialismo (managerialism) e a escola da “nova gestão pública” desde o início de sua implementação nos países anglo-saxões. Uma das críticas mais contundentes12 afirma que o movimento de reestruturação da administração pública nada mais foi que a manifestação dentro do Estado do movimento mais geral de diminuição da influência do Estado. A nova gestão pública pode ser resumida numa palavra: endoprivatização do Estado, que se reflete basicamente na transposição linear de técnicas e instrumentos de gestão empresarial privada para o setor público como se não houvesse mediações e diferenças radicais de escopo, lógica e funcionamento. Uma das vertentes teóricas deste movimento, a chamada “Escola de Virgínia” ou da “escolha pública” (public choice) durante os anos sessenta já teria assentado, através do seus maiores expoentes (Buchanan, Tullock, Ostrom, Olsen e Coleman) as bases da New Public Management:

(a) Os indivíduos agem unicamente em função de seu próprio interesse (rent-seeking), basicamente racional com habilidade para hierarquizar escolhas

12 T oda a segunda parte (“Los ancestros intelectuales de la “nueva” gerencia pública” e “La “nueva” gerencia publica”, do livro “Del Es tado Gerencial al Es tado Cívico”, Omar Guerrero, UAEM, México, 1999.

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entre alternativas conhecidas, maximizando estratégias de maior benefício e menor custo.

(b) O mecanismo de mercado (sistema de preços) é proposto como modelo de relação social para analisar mecanismos políticos como os processos eleitorais, o comportamento da burocracia pública ou o provimento de serviços e bens públicos indivisíveis.

(c) As interações sociais podem ser estudadas como se fossem, de fato, interações mercantis (individualismo metodológico).

Com base nestes princípios a nova escola confundiria o papel de “clientes” com o de “cidadãos”, introduzindo inadequadamente os conceitos de “rivalidade”, “concorrência” entre organizações públicas, semi-públicas e privadas. Ao substituir a formulação de “políticas públicas” pelo “gerenciamento de resultados” o movimento da “nova gestão pública” coloca em marcha uma espécie de “despolitização” do Estado, supondo inadvertidamente a ausência de conflitos, de arenas de debates, ou uma homogeneização artificial de interesses e grupos de pressão, portanto, uma visão utópica e virtual da realidade social contemporânea.

Ao confundir meios com fins a “administração de resultados” converteria a busca obsessiva por indicadores, resultados e metas como fins em si mesmos, perdendo o foco no debate sobre o papel e a função do Estado e do serviço público13. A função do Estado é garantir eqüidade na prestação dos serviços, isto seria impossível se critérios mercantis fossem adotados, além disso “cidadãos” são muito mais que “clientes”, pois são sujeitos de direitos em escala muito maior, ligados não à “contratos comerciais” mas à “contratos sociais e políticos” que fundamentam o próprio Estado de direito e a soberania da democracia moderna.

Um estudo realizado pelo Public Management Committee (PUMA/OCDE)14 revela alguns pressupostos necessários identificados para os países do leste europeu como fatores restritivos do sucesso do novo modelo: fragmentação vertical e horizontal das estruturas administrativas, com ineficiência e duplicação na elaboração dos programas, elevada rotatividade de funcionários gerando instabilidade nos processos, pouca capacidade na elaboração de políticas públicas, falta de treinamento e estímulo à função pública, debilidade do sistema de responsabilização (accountability). O novo modelo poderia inclusive, “incrementar o nível de corrupção” em sistemas “imaturos” de administração, leia-se, em sociedades cuja tradição de controle social e participação democrática é pequena ou inexistente. A semelhança com a realidade nacional é evidente15.

13 “Los problemas de la implantación de la nueva gestión pública en las adminis traciones públicas latinas : modelo de Es tado y Cultura ins titucional”, Car les Ramió Matas , Barcelona, s .d.

14 em “Nova Gerência Pública: o que aproveitar e o que rejeitar ?”, em Ações para uma nova Adminis tração Pública, ENAP, Modulo 3, 2000.

15 O BI D em documento recente (“La nueva es tratégia del B I D para la modernización del Es tado”, Barcelona, 2002, s ite web) afirma taxativamente que uma das lições apreendidas nos projetos de reforma do Es tado foi “. ..a reforma del Es tado requiere de um sólido consenso y respaldo político em el conj unto de la sociedad y no solamente dentro de las ins tituciones objeto de reforma”.

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Alguns autores16 chegam a dizer que o modelo da “nova gestão” ou “nova administração pública” (outros termos utilizados seriam: “neo-públicas”,“neo-empresariais”, “administração gerencial”, etc...) ao pretender “desideologizar” ou retirar do problema de governo a possibilidade do conflito e da disputa de interesses contraditórios, este movimento seria um “conservadorismo disfarçado”. Estes autores analisam o discurso do ex-ministro Bresser-Pereira como sendo um caso de uso deliberado de uma terminologia de uma tradição ideológica (progressista) diferente do conteúdo do que está se propondo (conservadora). Por exemlo, a defesa de propostas conservadoras (como a adoção linear de princípios mercantis na gestão pública) estaria sendo feita de modo disfarçado, daí a autodenominação de “centro-esquerda” e “modernizante”, na tentativa de tornar palatável o novo “pacote” conceitual. Sem falar na confusão estimulada pela filiação intelectual do ex-ministro, auto denominada de “social-liberal”.

A crítica ao managerialism aponta para uma escolha indevida da eficiência econômica como determinante, em troca e “no lugar do”, o critério da justiça social. Assumir o critério da eficiência como determinante (Misoczky, 2001), assim como a superioridade do mercado implicaria em fixar práticas de gestão em que os membros da burocracia se tornam agentes em competição por fundos e por contratos. Já assumir o critério da justiça social como determinante implicaria encontrar formas inovadoras de gerenciar e organizar que expressem claramente compromissos como setores excluídos nos diferentes contextos sociais. Em ambos critérios a burocracia jamais seria neutra.

A reforma gerencialista iniciada em 1995, especialmente aquela patrocinada pelos organismos multilateriais (BID e BIRD) chamadas de “primeira geração”, tem pouca conexão com a renovação metodológica implementada a partir de 2000 no planejamento federal. Há um evidente descompasso, por exemplo, entre a completa ausência da valorização da capacidade de planejamento público - como atributo a ser reconstituído, naquelas experiências e o chamado “novo modelo” do PPA 2000. A concepção do “gerente” neste último (a despeito de toda polêmica que envolve a escolha desta estratégia para gestão de programas) como protagonista de um plano de trabalho - que é simultaneamente técnico e político, que é responsabilizado pelos seus resultados e que deve assumir transparência e coordenação colegiada de equipes (sempre tensionando a estrutura pré-existente) - está léguas distante da concepção tradicional do burocrata público, racional e autoritário. Uma leitura mais otimista deste processo poderia indicar que a renovação do planejamento federal não é um processo isento de contradições, um conceito ainda inconcluso e sob disputa. Ele vem ocorrendo apesar dos erros cometidos pelo “fundamentalismo gerencialista” dos primeiros anos17. Seu aprofundamento acaba estimulando questionamentos e contradições internas sobre problemas que ainda insistem em permanecer, como as indefinições sobre as

16 Andews, C. e Kouzmin, A. em “Dando nome a Rosa: o discur so da nova Adminis tração Pública no Contexto Bras i leiro” (1998) em “Rees truturação e Reforma do Es tado: Bras il e Amér ica Latina no Proces so de Globalização”, FEA/FI A/US P.

17 Não conseguindo modernizar -se a s i mesma, a “reforma gerencial” teve o mesmo des tino de outras reformas pas sadas , formalizou-se, foi absorvida pela entr opia adminis trativa, pela ausência de estratégia e defensores . Afinal, mais impor tante do que difundir no setor público uma parafernália de “novas tecnologias gerenciais ”, tomadas de empréstimo do mundo dos negócios e levemente adaptadas, é fazer com que se consolide uma nova perspectiva, quer dizer , uma nova maneira de compreender o Es tado e de atuar no e com o Es tado nes se momento da his tór ia e em um país como o nosso, ver a cr ítica de Nogueira (1998).

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chamadas “parcerias público-privado”, a autonomia das agências reguladoras, a adoção de métodos mais participativos dentro e fora do governo federal, etc...

Porém é inegável que o modelo de planejamento adotado a partir do PPA 2000 propõe avanços metodológicos fundamentais: vincular plano, orçamento e gestão, construir o plano a partir da categoria programas, estruturar programas a partir da análise de problemas, produtos e foco nos resultados, estimular criatividade dos gerentes e promover capacitação permanente do núcleo estratégico. Há entretanto pontos ainda polêmicos: qual a equação correta para as chamadas “parcerias-público-privado” ? Como evitar que os programas estratégicos do PPA sejam capturados pelo (neo) clientelismo político ? Como fazer a sintonia fina entre gerentes de programas e gestores da estrutura convencional ? Entre todos os questionamentos talvez o mais complexo e importante seja a introdução de formas cada vez mais participativas e democráticas na elaboração do planejamento governamental. Na escala federal, por exemplo, a prática de um planejamento de novo tipo poderia ser resultado provável de um grande pacto ou acordo nacional entre governadores, sindicatos patronais e de trabalhadores, igrejas, intelectuais, etc., em torno dos objetivos mais fundamentais do desenvolvimento econômico, da consolidação democrática e do combate à pobreza. Esta possibilidade permanece sendo o grande desafio para o próximo PPA e o governo responsável pela sua elaboração.

4. A gestão pública no Rio Grande do Sul, trajetória recente e contemporaneidade: tópicos para um balanço não-definitivo.

O programa de privatizações do governo do Estado do Rio Grande do Sul repassou para o setor privado nacional e estrangeiro, nos últimos anos da gestão 1995/1998, mais de R$ 5 bilhões de patrimônio estatal, dentre eles a Companhia Riograndense de Telecomunicação (R$ 1,8 bilhão) e parte da Companhia Estadual de Energia Elétrica (R$ 3,2 bilhões). Desses recursos, apenas uma pequena parte foi utilizada para investimentos ou para abater o estoque da dívida pública. Eles foram fundamentalmente utilizados para compensar insuficiências de caixa, como gastos correntes de pessoal, custeio, etc. Ou seja, as receitas de privatizações foram utilizadas de forma diferente do propósito original da lei que instituiu o Fundo de Reforma do Estado18.

Nenhum saldo relevante remanesceu dos recursos decorrentes das privatizações. Fica evidente que a venda do patrimônio contribuiu muito pouco para a solução do desequilíbrio estrutural entre receitas e despesas do Estado do Rio Grande do Sul e também não melhorou substancialmente a qualidade dos serviços públicos.

18 O Es tado havia contratado um emprés timo internacional junto ao B I RD para financiar “. ..(a) políticas do tomador referentes a despesas públicas , (b) melhor ias na adminis tração fazendár ia, empréstimos públicos e uso de recur sos de pr ivatizações , (b) alienação de 35 % das ações ordinár ias da CRT , (c) conces são dos ter minais de contêineres e do terminal de trigo e soja, (d) concessão de três pólos rodoviários, (e) es tudo sobre o setor de água e saneamento, (f) cr iação de um órgão regulador responsável pela s upervisão dos serviços públicos ...”. (Projeto de Refroma do Es tado, Empréstimo B ird n º 4139 – BR Relatór io de Conclusão da I mplementação, S CP, 1999).

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Apesar do ingresso de recursos extraordinários no Tesouro do Estado por conta dessas alienações, a gestão 1999/2002 assumiu o governo, em 31.12.98, com uma diferença entre o ativo financeiro existente e o passivo financeiro ajustado, que configuraram uma situação líquida financeira ajustada negativa de R$ 1,173 bilhão. Esse valor representa o montante de despesas encontradas pelo novo Governo e para as quais não havia recursos disponíveis. Dentre as despesas não pagas encontravam-se R$ 130 milhões de precatórios, R$ 136 milhões de despesas com pessoal, transferências a municípios, além de fornecedores, empreiteiros, etc. Esta situação de déficit estrutural, apesar dos esforços da administração, remanesceu como um dos grandes gargalos do aparelho de Estado gaúcho. O resultado primário em 2001 foi de R$ 96 milhões, contra mais de um bi em 1998 (exclui as despesas com dívidas e receitas decorrentes de empréstimos ou privatizações).

O Resultado Operacional refere-se à diferença entre a Receita Total, deduzidas as operações de crédito e as alienações de bens, e a Despesa Total, excluídos os serviços da dívida. Em relação ao ano de 1998, o ingresso excepcional de recursos oriundos do financiamento do PROES para reestruturação e saneamento das instituições financeiras estaduais, no valor de R$ 2.379,9 bilhões, gera uma distorção na análise histórica do Resultado Operacional. Portanto, exclui-se também a despesa dela derivada do conjunto das despesas envolvidas no cálculo desse indicador. Em 1995, o déficit foi de R$ 200 milhões; em 1996, de R$ 800 milhões; em 1997, de R$ 1,2 bilhão e de R$ 1,1 bilhão em 1998. O estoque da dívida do Estado é aproximadamente R$ 8 bilhões o que sinaliza a dimensão da pressão sobre o caixa, somente em 2001 foram pagos ao governo federal R$ 13,3% da receita líquida real do estado (R$ 0,968 bilhão).

A dívida pública aumentou, a receita caiu e a despesa não foi contida. A demissão de 15 mil servidores através de um Plano de Demissões Voluntárias (PDV), trouxe como conseqüência um aumento ainda maior nos gastos. A maior parte dos demitidos com o PDV eram oriundos de duas áreas carentes de pessoal: Educação e Segurança. Como conseqüência, após a saída daqueles servidores, o Estado, dada a necessidade incontornável de pessoal, precisou realizar novas contratações emergenciais e concursos públicos para cobrir as necessidades de prestação dos serviços estaduais (educação, saúde e segurança).

A situação financeira no início desta gestão foi de tal dramaticidade que não foram poucas as opiniões difundidas na sociedade gaúcha no início do período apontando um horizonte de colapso total dos serviços públicos, caso o ciclo de privatizações não fosse concluído.

O sucateamento dos órgãos públicos vinha ao encontro da lógica geral de desativação do Estado, de privatização de unidades inteiras ou tercearização de serviços essenciais, enfim, de implementação de uma agenda intimamente relacionada aos preceitos da new public management. Aquelas unidades administrativas encarregadas da gestão, controle interno ou planejamento nas diversas Secretarias da administração direta simplesmente não existiam ou estavam confinadas a um papel meramente formal, burocrático e sem vida. Para citar um exemplo singelo, a Secretaria da Administração e Recursos Humanos - uma das unidades-meio mais importante para assegurar capacidade crescente de governo – apresentou inúmeros problemas de

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ingovernabilidade. Não havia registros, por exemplo, sobre a frota pública estadual, suas condições de funcionamento, nem mesmo o número de veículos existentes. A ausência de métodos e técnicas na gestão de almoxarifados, móveis e imóveis era total. O retrabalho, o desperdício de recursos púbicos e a péssima qualidade das relações entre equipes dirigentes e funcionários do quadro permanente foram marcas de uma infeliz tradição administrativa caótica e desorganizada, só parcialmente resolvida na gestão atual.

A adesão incondicional e o alinhamento automático da direção do Estado do Rio Grande do Sul ao projeto federal a partir de 1995 até o final de 1998 fez com que setores da estrutura pública, construídos ao longo de muitos anos com os recursos do povo gaúcho, fosse repassada ao setor privado, ou simplesmente sucatados. Entre elas, uma empresa capaz de suprir a área de energia elétrica (CEEE); uma empresa capaz de suprir a área de telecomunicação (CRT); uma infra-estrutura de transportes (DAER, CINTEA, DEPREC, DAE); uma infra-estrutura tecnológica de ponta (CIENTEC, FAPERGS, PROCERGS); um sistema estatal financeiro e de fomento ao desenvolvimento forte (BANRISUL, CEE, BADESUL e BRDE); um sistema de seguros (CIA UNIÃO), bem como um sistema de apoio à agricultura (EMATER, IRGA, CESA).

A mesma opção política fez com que o Estado do Rio Grande do Sul aderisse à guerra fiscal, concedendo privilégios de grande monta, e que corroborasse os benefícios fiscais concedidos pela União. O resultado foi uma queda na participação do ICMS do Rio Grande do Sul no total arrecadado com este tributo no País, de 8,3% em 1994, para 6,9%, em 1998. A arrecadação de ICMS em 2001 correspondeu a R$ 6,7 bilhões, 58% maior que o valor arrecadado no último ano do governo anterior, em parte devido à (lenta mas firme) retomada das exportações pós-desvalorização cambial em fevereiro de 1999.

Além disso, a diminuição do tamanho do Estado, e a desoneração de empresas através de benefícios fiscais, além de diminuírem a capacidade do Setor Público de promover o crescimento do emprego, da renda e a sua distribuição, de forma a reduzir a exclusão social e os desequilíbrios regionais, foram incapazes de gerar os resultados almejados.

Essas considerações globais contextualizam a situação recebida das finanças públicas estaduais que impingiram, e continuam a causar, perdas à arrecadação estadual e crescimento da despesa pública, de tal forma que, sem uma forte estratégia de ação politicamente comprometida com os interesses de quem mais necessita da prestação de serviços públicos no cotidiano de suas vidas, o Estado não recuperará sua capacidade de investimento.

A tentativa de reconstrução da administração pública

O modelo participativo e democrático que se pretendeu construir durante o mandato 1999/2002 teve seu cerne na democracia participativa, onde a população se envolve e compromete com a administração pública apontando caminhos a serem seguidos pelo gestor estadual. O Estado se legitima nos espaços de debate e deliberação

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coletivos, a discussão pública garante a quebra do monopólio de informações e da centralização autoritária do poder. Neste padrão pretendido de relacionamentos com a população os agentes políticos constituídos dialogam e se comunicam intensamente para constituir acordos e consensos cada vez mais profundos sobre a necessidade de democratizar a gestão pública. Em outras palavras, poderia situar-se que, na concepção democrática e popular, o cidadão posiciona-se em três instâncias, na participação perante as estruturas do Estado: no amplo processo de decisão do gasto público; na fiscalização das ações de governo e como beneficiário de um serviço ou ação do Estado.

O objetivo seria demonstrar a viabilidade de uma alternativa democrática e popular, na contramão da variante liberal, na organização do Estado e da administração pública. Deve-se ter a clareza de que se tratava de um embate, não só em conjuntura politicamente desfavorável, a partir de uma concepção que retira poderes do Estado e fortalece as mediações via o mercado, somado ao fato de que se situava em uma esfera regional do Estado nacional e com baixa governabilidade, decorrente da estreita margem para dialogar com outras esferas da institucionalidade, ou seja, o judiciário e o legislativo. Não há a ilusão de uma reforma total e imediata do Estado nacional, mas da possibilidade de um reposicionamento do ato de governar, ou das práticas de gestão pública, dando foco e centralidade para a cidadania e as falhas do mercado, o que significa apontar para uma nova estrutura estatal. Pretendeu-se a partir da legitimidade, derivada da sólida experiência no âmbito municipal, para estabelecer um novo sentido e conteúdo para o ato de governar, ao criar uma intensa, forte e ampla rede de comunicação com diversos setores da sociedade, dando voz e espaço de manifestação para segmentos até então alijados da cena política.

Definir a reforma do Estado como prioridade de ação governamental significa, também, atribuir centralidade política às ações do servidor público. É um imperativo atribuir ao funcionário público elemento de relevância nesse processo, na medida em que ele é parte e ator formulador (e tradutor/divulgador) dessa reforma. Ao situar a cidadania como foco fundamental e o servidor como ator, demarca-se que a proposta em debate não tem um caráter quantitativo ou subordinado às técnicas e modelos de gestão alinhados acriticamente ao modelo empresarial-privado, mas que representa – na sua essência ontológica - um resgate das possibilidades ilimitadas da política como realização última do homem em sociedade. O orçamento participativo, por exemplo, foi um elemento mais visível e contundente desta nova forma de organização do Estado, ao colocar de fora para dentro a prática da cidadania, da democracia e da participação na gestão. Este processo progressivamente supera os limites do debate orçamentário e entra na gestão da complexa “inversão de prioridades” e a inclusão de novos atores sociais, que os governos promovem, a despeito de todos problemas e desafios ainda por superar neste processo, comentados adiante. Como subproduto dessas práticas – do nosso ponto de vista - revolucionárias e transformadoras para a sociedade brasileira, tem-se uma luta de erradicação da tutela patrimonialista, bem como a possibilidade de abrandamento e neutralização dos movimentos corporativos ao dar mais visibilidade aos interesses sociais.

Cabe situar, também, que esse processo de recomposição das estruturas estatais exige o domínio de novas técnicas e ferramentas de gestão. Se, de um lado, tem-se a necessidade da potencializar recursos escassos com a adoção das tecnologias de

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informação, por outro, deve-se disseminar às práticas administrativas que envolvam o conjunto dos servidores, particularmente os métodos de planejamento estratégico participativo (em especial do tipo matusiano19).

A recomposição necessária do pacto federativo20

O federalismo, no seu conceito amplo, se refere aos laços constitutivos de um povo e de suas instituições construídos através de consentimento mútuo e voltados para objetivos específicos, sem, contudo, significar a perda de identidades individuais. E é através da repartição de competências, que evita a concentração de poder em um só foco, que o Estado federal encontra um dos meios mais positivos para impedir a opressão e incentivar a liberdade.

No caso brasileiro, o regime federativo, adotado desde a implantação da República, pautou-se, nos seus primórdios, por uma certa hipertrofia, consubstanciada por uma exagerada autonomia conferida aos Estados-membros. Tal situação tendeu a modificar-se através do tempo, convergindo crescentemente para uma sensível ampliação da órbita de ação peculiar à União. Entretanto, mesmo tendo detido, em determinado período, um considerável poder político, os Estados, nem sempre tiveram a oportunidade de alcançar os correspondentes recursos financeiros.

Convivendo, em sua trajetória histórica, com fases intermitentes, de maior ou menor concentração de poder nas mãos do Governo Central, as experiências brasileiras, no sentido de descentralização tributária e política, têm favorecido a consolidação da democracia através da emergência de novos atores no cenário político e da existência de vários centros de poder que competem entre si. A razão de ser do federalismo brasileiro não pode ser uma forma de acomodação das demandas de elites com objetivos conflitantes, nem tampouco um meio para amortecer as enormes disparidades regionais. Ela deve ser pautada por valores, atitudes, crenças e interesses que se articulem no sentido de fazer com que ações dos diferentes entes políticos sejam apoiadas em propósitos e compromissos.

A Constituição Federal de 1988 consagrou a Federação brasileira, promovendo a descentralização dos encargos e das receitas da União em favor de Estados e Municípios e preservando a autonomia dessas esferas de governo. Porém, além da descentralização ter ocorrido muito mais por conta dos encargos que das receitas, as alterações posteriores na legislação promoveram uma reconcentração destas na esfera Federal, acompanhada de um aprofundamento da descentralização dos encargos.

A conquista de recursos adicionais pelos Estados e Municípios na Constituição de 1988 foi em parte neutralizada pelas alterações realizadas, seja através de Emendas Constitucionais ou Leis Complementares, no intuito de adequá-la ao ajuste fiscal

19 Refere- se à Mat us Romo, Car los (1931/1998), economis ta chileno, ex-minis tro do governo Allende (1970-1973 ), consultor do I PES /CEPAL, formulador do método conhecido no Bras i l por Planej amento Es tratégico e S ituacional (PES ), teve suas obras publicadas no B ras il pelo I PEA e pela FUNDAP/S P.

20 Baseado no diagnóstico apresentado pelo atual PPA-RS .

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buscado pelo Governo Federal. Exemplo disso foi a Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) que isenta de ICMS as exportações de produtos semi-elaborados e concede crédito fiscal na aquisição de bens destinados ao ativo fixo das empresas. As perdas anuais de receitas de Estados e Municípios apontam para uma cifra de R$ 2 bilhões. Também o Fundo de Estabilização Fiscal transferiu recursos do Fundo de Participação dos Estados – (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios – (FPM) à União, desvinculando parte dos recursos do IPI e do IR. Estima-se que os Estados e Municípios percam, anualmente, em torno de R$ 1,5 bilhão.

O avanço da União sobre as rendas dos demais entes da Federação é melhor percebido quando se considera o montante das receitas disponíveis após as transferências constitucionais. Em 1991, a receita disponível para a União correspondia à cerca de 12,9% do PIB nacional; a dos Estados, era de 8,1% e a dos Municípios, de 4,3% do PIB, totalizando uma receita líquida disponível para os três entes federativos em conjunto, de 24,4% do PIB. Nos anos seguintes, a situação modifica-se substancialmente. Enquanto a receita disponível para o conjunto dos Estados caiu de 8,1% do PIB, em 1991, para 7,7%, em 1997, a receita dos Municípios passou de 3,4 para 4,6% e a receita da União cresceu 21,4%, atingindo 15,7% do PIB nacional.

O ajuste fiscal aplicado no País no último período fez também com que a União se omitisse ou pudesse agir com isenção da responsabilidade com encargos que antes eram de sua competência. As esferas subnacionais, seja por determinação legal ou pela proximidade com os problemas sociais, assumiram vários desses encargos.

A desigualdade na distribuição de recursos e encargos entre as três esferas de governo por si só já ameaça o equilíbrio federativo. Porém, os contratos de renegociação das dívidas dos Estados com a União, assinados no último período, estão a agravar essa situação. Primeiro, as elevadas taxas de juros aumentaram o estoque das dívidas estaduais a níveis bastante altos. Quando da renegociação, esse estoque sofreu uma pequena redução que, de qualquer forma, não compensou os crescimentos decorrentes das elevadas taxas de juros anteriores. A partir do acordo, ao contrário do mecanismo de rolagem sistemática dos valores, os Estados passariam a pagá-los integralmente. Além de elevarem os, já insustentáveis, encargos dos Estados, o Contrato de Confissão, Promessa de Assunção, Consolidação e Refinanciamento de Dívidas contém cláusulas que induzem a privatizações e permitem a retenção, por parte do Governo Federal, das receitas próprias dos Estados em caso de inadimplência. Esse Contrato estabelece compromissos de gestão, sob fiscalização da União, que também ferem o pacto federativo ao transferir à União itens que são da gestão administrativa dos Estados.

Embora não seja - nem remotamente - de temer-se a transformação da República Federativa brasileira em uma República unitária, é necessário que sejam mantidas as suas linhas essenciais, evitando os desvios verificados ultimamente. Impõe-se a recusa de um padrão de competição não cooperativo entre os Estados e a defesa de uma Reforma Tributária que redistribua os recursos entre as três esferas de Governo e a restauração da autonomia dos entes federados, representada pela capacidade dos mesmos de administrar os interesses das suas comunidades, seja na esfera estadual ou municipal.

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Os saldos políticos e organizativos da gestão 1999/2002

Desde o início desta administração e seguindo uma tradição já consolidada nos governos recentes de Porto Alegre (governada pela mesma coalisão), a atual direção do Estado optou por um modelo coletivo de direção baseado na pluralidade e riqueza das forças expressadas na aliança política que sustenta o governo21. A Coordenação de Governo, dirigida pelo Governador constitui-se como instância executiva do Secretariado, ambas instâncias com reuniões regulares. Além disso há instâncias de integração horizontal e temáticas, capazes de assegurarem mais unidade à ação política e qualidade na elaboração dos projetos e sua estratégia de implementação. Um exemplo é o funcionamento da “Junta Financeira e de Pessoal” que centraliza politicamente as decisões financeiras como aquelas que garantem a execução do Plano de Investimentos do OP.

Sobre o funcionamento da denominada “junta financeira” (Decreto 40.955/2001) há que se ressaltar as condições peculiares de seu funcionamento. Composta pelas Secretarias do Planejamento, da Fazenda, da Administração e Geral de Governo, este órgão colegiado cumpriu o papel de um “tribunal de exceção” para liberações financeiras e alocações de pessoal. Esta imagem de arbítrio e autoridade desmedida, resultante do grau de centralismo impingido aos gestores pode ser explicada por dois fatores, um deles relaciona-se ao óbvio contexto de aperto fiscal vivido pelo Estado, o outro não tão óbvio, relaciona-se à ausência sistemática de métodos de planejamento e gestão que assegurassem, por exemplo, transparência de critérios para contingenciamentos financeiros, avaliação de resultados cotejados com metas e objetivos anteriormente definidos, legitimidade decisória baseada também em argumentos técnicos e não exclusivamente políticos, maior clareza sobre os limites da (pequena) autonomia dos ordenadores de despesa em cada órgão, etc. Gerenciar o fluxo-de-caixa através de instâncias colegiadas é muito melhor do que submeter-se à clarividência auto-referida do eventual ocupante da Secretaria da Fazenda, porém métodos e regras estáveis e pactuadas para o processo decisório são imprescindíveis.

Os “Fóruns Setoriais” conformaram outras instâncias colegiadas, cuja função era articular as diversas secretarias para produzir políticas específicas: Fórum das Políticas de Desenvolvimento, Fórum das Políticas Sociais, Fórum de Gestão e assim por diante. Além destes o funcionamento de Grupos de Trabalho com prazos e metas para desenho e execução de projetos estratégicos ajudou a neutralizar o efeito da cultura clientelística e autoritária, bem como o cartorialismo e o corporativismo presentes em nossas instituições. Também foram promovidos diretamente pelo governo ou em parceria vários processos de planejamento democrático e participativo das políticas públicas com amplo envolvimento e compromisso dos servidores, como demonstram os exemplos da “Constituinte Escolar”, das conferências sobre meio-ambiente organizadas pela recém criada SEMA, da “Conferência Estadual da Habitação” e de várias experiências positivas de planejamento na administração indireta (PROCERGS), e direta (SARH, no último ano), ainda que um ou outro processo possa ter contado com participação mais limitada do corpo funcional. 21 A coor denação de governo é uma combinação política entre (a) representação funcional envolvendo as áreas meios mais cr íticas (fazenda, adminis tração, planejamento, etc... ) e (b) par tidos da base do gover no: PS B, PC do B e PDT (até 2000).

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A despeito destes avanços concretos o governo não logrou vencer completamente o excessivo setorialismo e fragmentação das ações, derivados, tanto da cultura organizacional e comportamental como da estrutura administrativa pré-existente. O problema da fragmentação da ação administrativa pode ter várias explicações, de ordem técnica e política. As primeiras estão relacionadas às metodologias e práticas de trabalho que planejam setorialmente ao invés de focalizar projetos a partir da identificação, seleção e explicação situacional de problemas (que permite por sua vez organizar a gestão por programas), uma categoria analítica e projetual que estimula a adoção de uma visão interdisciplinar, horizontal e mais democrática. Os problemas políticos que reforçam o viés setorializado se relacionam à dinâmica interna de poder entre os vários grupos de pressão que compõe a base de sustentação do governo e que reproduzem – a partir da lógica de disputa partidária – pequenos “nichos” de poder, impermeáveis ao diálogo para dentro e para fora do governo – fazendo de cada organização uma “trincheira” de resistência e opacidade à integração das políticas. O efeito evidente desta situação não é outro senão o retrabalho, o desperdício, a perda de sinergias e a despotencialização de resultados sobre os públicos-alvos de cada programa. O gerenciamento de projetos integrados demanda a pré-existência de uma espécie de “capital social” no ambiente político interno cuja base de legitimação – assim como na teoria regional – também deveria ser a fidúcia entre os pares, gestores, dirigentes e funcionários.

Processo de participação popular: a experiência do orçamento participativo

O desafio maior foi superar a escala municipal, construindo este mecanismo estratégico de democratização do Estado a nível regional e estadual. No Rio Grande do Sul a participação popular vinha crescendo em termos quantitativos à taxas surpreendentes: 48,4% em 2000 e 33,5% em 2001, se for comparado este ano com o primeiro ano (1999) o crescimento do número de participantes foi de 98,1% chegando a 376.340 participantes em 735 Assembléias com a eleição de 18.601 delegados.

Na escala regional onde existem atores sociais constituídos com legitimidade – as prefeituras, por exemplo –, ou quando o Estado sub-nacional atua muitas vezes como repassador de verbas para execução local o OP adquire mais importância e complexidade, inclusive para a gestão democrática. Um impacto imediato foi o choque entre estruturas administrativas burocratizadas e desaparelhadas e as demandas decididas pelo processo. Num primeiro momento a estrutura administrativa colocada não foi capaz de acompanhar o ritmo imposto pela dinâmica do OP, colocando na ordem-do-dia uma recomposição dos órgãos que elaboram projetos, executam o processo licitatório ou acompanham a execução de obras públicas no Estado. O Plano de Investimentos anual gerado no OP tornou-se a base de uma importante revisão dos protocolos internos de funcionamento e gerenciamento para viabilizar maior eficiência, mais eficácia e maior compromisso do corpo funcional com as prioridades do processo participativo.

Apesar dos enormes avanços que o Orçamento Participativo representa para uma nova governança democrática, muitos desafios políticos e metodológicos estão a exigir maior reflexão teórica e inovações para o próximo período. Mais adiante estes desafios estão comentados à luz dos novos paradigmas de planejamento e gestão.

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Sistemas de informação: apoio à decisão e transparência

Um dos aspectos mais críticos para o processo decisório das equipes dirigentes do governo é a qualidade e a confiabilidade da informação. Isto ganha importância a partir dos contextos de forte incerteza, da multiplicidade de variáveis técnicas e políticas em jogo e da disponibilidade de tempo para processar as informações. Foram elaborados dois tipos de sistemas informatizados para tentar preencher esta lacuna. O primeiro foi um sistema de monitoramento de projetos estratégicos capaz de possibilitar à Coordenação de Governo acesso on line às informações mais necessárias para avaliação tecno-política da alta direção (usando a internet como plataforma), denominado “Monitoramento das Ações Estratégicas do Governo” (MAG).

O segundo foi um outro sistema focado no monitoramento do desempenho da administração indireta é denominado “Acompanhamento e Avaliação da Gestão” (AGE) e visa o desenvolvimento e implantação de um instrumento de gestão cujo principal objetivo é aumentar a capacidade de coordenação interna do Governo. O AGE estabelece relações entre fins (objetivos, metas, resultados) e meios para as diversas entidades da administração indireta envolvendo os diversos agentes responsáveis pelas formulações e definições políticas bem como pela administração dos recursos. Sua vantagem é fornecer de maneira clara, sintética e objetiva (através de indicadores) a evolução do desempenho político-administrativo dos órgãos da administração indireta. Estas informações seriam úteis aos diversos setores dirigentes, desde os participantes da Coordenação de Governo, aos Secretários de Estado dos setores afins até as direções das instituições da administração indireta. Este instrumento propunha-se, assim, a facilitar a tomada de decisões de caráter gerencial em relação à administração indireta. Não se trata, ao contrário dos antigos “Contratos de Gestão”, de preparar as empresas para futura privatização ou da fixação arbitrária e centralizada de metas e resultados. O AGE não retiraria qualquer competência de nenhum órgão ou instância de governo. Eles seriam formalizados em documentos assinados, chamados “Termos de Acompanhamento da Gestão” (TAG), pelos dirigentes dos órgãos da administração indireta, dos Secretários de Estado a que cada órgão esteja vinculado e pelo Secretário da Coordenação e Planejamento.

Em relação aos sistemas de informação algumas regras devem ser observadas considerando a experiência concreta: (a) só há produção efetiva de informação se há demanda efetiva, um dos maiores problemas do sistema MAG foi a demanda eventual da alta direção do governo, o que gera desmotivação na base, (b) os produtores de informação só valorizam o processo se podem utilizar o mesmo sistema para seu próprio gerenciamento, no nível em que operam, (c) o sistema se mantém atualizado somente se for usado como base efetiva para avaliação de desempenho, controle de resultados, feedback para atualização das metas planejadas (eventualmente para sistema de incentivos) e, principalmente, para controle social, divulgação pública de desempenho e (d) a informação em demasia, não processada e fora do timing necessário para o ritmo de governo é o mesmo que desinformação, só atrapalha e gera confusão.

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O governo eletrônico e inclusão digital

O uso da tecnologia de informações deverá ser significativamente ampliado com novas possibilidades de financiamento internacional para a área de gestão e planejamento. A web é hoje a possibilidade mais concreta e imediata de disponibilização universal de acesso à informação, prestação de serviços, ouvidoria, comunicação corporativa e infindáveis possibilidades já que a melhoria das redes e aumento significativo da velocidade de transmissão possibilita rápidas transferências de sons e imagens também.

A implantação progressiva do “governo eletrônico” deve trabalhar com os seguintes objetivos:

(a) Racionalização dos processos de trabalho e comunicação interna no governo através do uso intensivo da informática e da rede com instrumentos de correio eletrônico, gerenciamento de documentos e processos (sistemas de protocolo, memorando inter-secretarias, documentos diversos, etc...).

(b) Tornar mais transparente e efetiva a relação entre o Governo e os servidores estaduais, com disponibilização de portais para internet, informações úteis, prestação interna de serviços e ferramentas de comunicação. (o portal www.servidor.rs.gov.br pelo pioneirismo representou uma importante iniciativa).

(c) Racionalizar a relação do governo com empresas e pessoas jurídicas em geral através da modernização dos registros na Junta Comercial do Estado, envolvendo o recolhimento de tributos estaduais, com sistemas de auto-atendimento.

(d) Tornar mais efetivo e transparente o processo de compras públicas com a implantação de portais de compras eletrônicas, modalidade leilão, como as experiências positivas de São Paulo têm demonstrado (compras eletrônicas).

(e) Modernizar e democratizar o acesso dos cidadãos aos processos de atendimento e prestação de serviços suportados pela rede já instalada no RS (mantida pela PROCERGS).

Cabe destaque ainda no plano da TI à serviço da informação e da transparência os esforços desenvolvidos nesta administração para a expansão da cultura do “software livre” . Além da liberdade de manipular, desenvolver, adaptar e distribuir o projeto tem impactos financeiros notáveis. A socialização do conhecimento, base para seu aperfeiçoamento e uso coletivo também representa uma economia de recursos públicos. Só em 1999, o governo estadual gastou aproximadamente R$ 18 milhões na aquisição de softwares proprietários para atualizar a estrutura de informática que herdou da gestão anterior. Desde o lançamento do Projeto, inúmeros laboratórios surgiram e hoje um conjunto de ações estão em andamento nos Laboratórios da PROCERGS, Procempa, Banrisul, Univates, UFRGS, Ulbra, Unisinos, Feevale e PUC-RS. Em novembro de 2002 foi assinado convênio de cooperação entre a PROCERGS, o Metrô de São Paulo e o SERPRO para desenvolvimento de projetos neste ambiente.

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A Política de Recursos Humanos

O servidor público representa em qualquer estratégia de modernização do aparelho de Estado a variável chave para o sucesso ou fracasso do projeto. Pode-se situar a problemática apontando que mais de 80% do gasto público foi historicamente comprometido com os servidores públicos, sendo que desse total quase a metade destinado a funcionários inativos e pensionistas. Deve-se lembrar ainda que, consideradas as premissas do governo anterior em relação ao processo de extinção de vários órgãos públicos, havia uma lembrança coletiva impregnada de um dramático quadro de passividade e medo, combinado com o processo traumático de demissões, realocações de equipes, transferências de pessoal, etc... Além do represamento da questão salarial, que se traduzia na não concessão de aumentos e promoções, tudo isso produziu um enorme passivo a ser resgatado.

O poder executivo têm registradas 256 mil matrículas (funcionários) - das quais 115 mil correspondem aos inativos - 1,9 mil na Assembléia Legislativa, e 1,2 mil no Tribunal de Contas. O executivo consome aproximadamente 80% da receita em pessoal. Apesar das inúmeras e estruturais dificuldades de caixa do tesouro estadual (observe-se que não houve atrasos em salários na atual gestão), diversos movimentos de recomposição salarial foram negociados com os servidores, tanto em termos de acréscimos salariais, como no tocante a efetivação de inúmeras promoções não realizadas no governo anterior. Cabe destacar, como exemplo, os reajustes feitos ao magistério estadual e aos segmentos de menor remuneração da área da segurança pública. Inúmeros concursos públicos, em várias áreas com carências de pessoal, explicitando uma diretriz de governo de ampliar a oferta de serviços públicos à população, especialmente na área da educação. Cabe lembrar sempre que os pressupostos da política salarial foram:

• Dar coerência a matriz salarial, ao eliminar as grandes diferenças entre o maior e o menor salário, com isso situando que os aumentos não podem ser lineares.

• Impossibilidade de dar reajustes vinculados à receita.

• Centralidade na definição de um teto salarial.

• Enfrentamento da questão previdenciária.

• Implantação do inciso 14 do artigo 37 da Constituição Federal – (vedação de acúmulos salariais).

• Necessidade de articular a questão salarial com: fortalecimento dos espaços de participação, construção/implementação de programas de formação e realização de concursos e nomeações.

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Diante desse quadro a proposta desenvolvida pela gestão 1999/2002 foi baseada nas seguintes diretrizes:

• Contemplar os quadros com menor remuneração (magistério, quadro geral, funcionários de escola, nível médio da saúde e a área da segurança).

• Estabelecer uma remuneração mínima.

• Dar atenção ao conjunto de promoções em atraso, bem como o fim das sobreposições de níveis salariais, no caso do magistério.

• Construir um espaço permanente para estabelecer a relação mais direta com o funcionalismo.

• Ampliar o horizonte da definição de uma política de salários para dois anos.

Cabe lembrar sempre que a recuperação dos salários e os ajustes necessários deverão ser feitos num quadro de absolutas desigualdades. Apenas 1,5% dos servidores do executivo ganham mais de R$ 7 mil/mês, e consomem 14,% da folha do executivo (uma média de R$ 9,8 mil) enquanto que 46,9% das matrículas ganham até R$ 600 consumindo 19,9% da folha do executivo. A distância entre o maior e o menor salário varia em torno de cem vezes. Mas as distorções aumentam na comparação com o Judiciário com médias salariais de R$ 4,3 mil/mês e o Legislativo estadual beirando R$ 5 mil/mês.

Outro ponto importante, diz respeito a questão das carreiras dos funcionários. O contingente dos servidores se expressa na presença de 46 quadros de carreiras, que não se articulam entre si, regulamentadas pelo emaranhado legal de 1,5 mil leis e decretos ao longo das últimas décadas. Funções iguais possuem remunerações diferentes, assim como no tocante aos métodos de promoções e avaliações de desempenho. A racionalização de tais quadros é uma tarefa gigantesca que necessita de tempo e muita negociação, tarefa que fica inconclusa nesta administração (ausência de base de dados confiáveis, disponibilidade de equipes técnicas especializadas, rotinas informatizadas e integradas na folha de pagamentos, etc...), mas que deve ser posta permanentemente na agenda a ser resolvida, a fim de que se possa complementar, minimamente, uma política de RH consistente e democrática. Deve-se repetir à exaustão: só um sistemático, organizado e permanente processo negocial com cada carreira – informado previamente por uma concepção estratégica de política de recursos humanos com respaldo social – pode conferir legitimidade ao combate das distorções salariais, carreiras mal estruturadas e problemas similares que são sempre polêmicos, sensíveis à opinião pública e de difícil solução no curto prazo, inclusive pela inflexibilidade geral do nosso direito administrativo.

Na qualificação dos serviços públicos e do atendimento ao cidadão o Governo desenvolveu várias iniciativas estruturantes para qualificar, universalizar e democratizar o acesso dos cidadãos aos serviços. Algumas medidas têm incidência maior na racionalização e democratização de processos e outra propõe diretamente a

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recomposição de estruturas desmanteladas por programas de demissão voluntária, privatizações ou simples desinvestimento prolongado.

Uma política de Recursos Humanos não deve ser limitada apenas pela definição de diretrizes salariais e estratégias de negociação. Apesar da orientação correta das diretrizes, a política de recursos humanos não respondeu satisfatoriamente a duas questões fundamentais à capacitação sistemática dos servidores. A primeira delas é a insuficiência da estratégia de capacitação dos servidores. Considerando a ausência de disponibilidades orçamentárias (que limitaram a área de manobra da FDRH) e o contexto de fragmentação da formação específica em “escolas” setoriais daquelas carreiras mais organizadas (fazendários, jurídicas, de segurança, etc...) fica evidente a ausência de resultados mais efetivos, coerentes e sistemáticos de formação pública. Um dos elementos vitais para recuperação da capacidade de intervenção pública, para retomada do planejamento e da gestão será a implantação efetiva, por exemplo, do projeto de uma Escola de Governo, prioritária para os servidores, obrigatória em alguns cursos ou módulos, mas também aberta à participação das outras esferas públicas estaduais, governos municipais, outros poderes e inclusive com vagas para formação de gestores vinculados aos partidos políticos com atuação no Estado22.

A segunda lacuna, mais ou menos grave, da política de recursos humanos implementada foi a fragilidade das práticas participativas na gestão das organizações públicas. Com exceção de algumas experiências pontuais não houve a determinação política suficiente, nem a adoção de metodologias e instrumentos necessários para disseminar de forma sistemática, universal e definitiva ambientes participativos nas várias secretarias. Na maioria delas o processo decisório iniciava e terminava em restritos “conselhos políticos” e as tentativas de gestão colegiada não subsistiram por falta de persistência e determinação. Uma parte da explicação tem origem na cultura política que separa artificialmente o “mundo da política e dos políticos” do “mundo dos técnicos e funcionários”, há mútuas desconfianças e criam-se a partir de processos decisórios elitizados verdadeiras barreiras à inclusão maciça dos funcionários na gestão pública. Há que se lembrar de fatores intervenientes igualmente graves para superar o “problema da participação dos funcionários”: a fragilidade de comunicação interna, a dificuldade de atribuir maior transparência aos atos de gestão, a grande heterogeneidade de formação cultural e capacitação entre as várias carreiras (incluindo diferenças salariais absurdamente altas), a valorização diferenciada do tema participativo conforme os juízos singulares de cada Secretário ou Diretor, a fobia às críticas, a estrutura departamentalizada e rigidamente hierarquizada da administração pública e a ausência de metodologias de planejamento & gestão mais participativas e democráticas.

22 Um poss ível embr ião desta idéia foi o cur so de especialização em Ges tão Pública Participativa da Univers idade Es tadual do Rio Grande do S ul de 405 h/aula iniciado em 2002, ainda que, para cumpr ir es te obj etivo deva ser s ignificativamente ampliado em abrangência, es trutura e compos ição.

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Recomposição da máquina administrativa

Um dos objetivos estratégicos de uma perspectiva que pretenda-se alternativa à agenda liberal é a recomposição da máquina administrativa com a devida retomada da capacidade de intervenção e organização do Estado. Neste sentido o atual governo tentou promover a recuperação de importantes unidades administrativas capazes de gerar políticas ativas em cada setor, coerente com seu modelo de desenvolvimento e concepção de governo. Foram criados os seguintes órgãos públicos na administração direta: Secretaria Estadual do Meio-Ambiente, Secretaria Estadual da Habitação, Secretaria Extraordinária do Interior e Secretaria Extraordinária da Reforma Agrária. Além disso – na administração indireta - foi criada a Fundação Estadual dos Esportes, a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul e a Fundação de Proteção Especial (sucessoras da antiga FEBEM e reivindicação histórica dos profissionais desta área). Cabe destaque também a criação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, a UERGS, preenchendo importante lacuna no serviço público de educação do Estado, vinculada diretamente às demandas das cadeias produtivas e sistemas locais de produção. Neste período foram contratados quase trinta mil novos servidores nas áreas de educação, saúde e segurança pública, serviços fundamentais para assegurar a qualidade de vida, prestados de forma indelegável pelo Estado.

As condições de trabalho, o apoio administrativo e a logística geral do serviço público são imprescindíveis para modernização da gestão. O Estado conta com aproximadamente 12,3 mil imóveis cujo cadastro atualizado permitiria uso mais racional e redução de custos. O centro administrativo, por exemplo, que reúne dezenas de órgãos da administração direta deve ser qualificado com sistemas de racionalização gerencial (protocolos, serviços de apoio, distribuição racional do espaço) e suporte de comunicações em muito maior escala.

Aqui cabe uma observação pontual e precisa: a reestruturação de organogramas administrativos (vinculações entre órgãos, mudanças de hierarquia, composição da governadoria, etc...) deve ser informada pela estratégia de governo, por um programa de condução política do governo e não o contrário. A cada eleição os gestores propõe a extinção, fusão, criação de órgãos públicos e o debate é feito como se o formato organizacional do Estado fosse inerte, neutro, com capacidade de modelagem infinita aos compromissos eleitorais, quando não resultados do mais puro clientelismo e tráfico de influência para acomodar interesses ocasionais de apoiadores. Temas transversais a toda estrutura ou típicos de áreas-meio prestam-se para este debate. Criar ou não uma secretaria de meio ambiente ? O tema do desenvolvimento regional e agrícola é competência de uma secretaria de desenvolvimento, agricultura ou outra qualquer ? Porque não criar uma secretaria de infra-estrutura, otimizando setores e unificando pautas políticas ? Qual é o ponto da combinação entre as competências de uma secretaria geral de governo e uma secretaria de coordenação (e planejamento) ? Qual o grau de autonomia entre empresas, autarquias e fundações e a administração direta ? E o sistema financeiro ? O BRDE, a Agência de Fomento e o Banrisul não deveriam operar a partir de grandes acordos operacionais, pelo menos em algumas áreas prioritárias ou projetos ?

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A (des)organização regional da prestação dos serviços públicos

A necessidade de estruturação regional de cada órgão do Governo a partir de uma Regionalização de Referência foi rapidamente identificada pela administração. Esta Regionalização de Referência está baseada na divisão regional utilizada pelos COREDES das 22 regiões do Estado23. A compatibilização de cada órgão pode se dar a partir de múltiplos ou submúltiplos, sem um número fixo de unidades regionais (órgãos). Trata-se portanto num primeiro momento, da adequação dos limites de cada divisão setorial à Regionalização de Referência, guardadas as devidas margens para as particularidades e especificidades de cada órgão. A otimização de todos os recursos (materiais, financeiros, funcionais e políticos) e a racionalização na prestação dos serviços são a base deste trabalho e a maior justificativa para este projeto.

A estratégia adotada optou pelo incrementalismo, considerado o alto grau de conflito de interesses entre burocracias regionais, grupos de pressão municipais e rivalidades regionais e locais. Talvez uma outra estratégia, após vários avanços obtidos (unificação e racionalização da divisão regional de várias secretarias) a melhor opção seja o enfoque mais global e direto como a revisão completa de todo o delineamento regional do Estado, incluindo neste processo, com evidência necessária a participação dos COREDES.

O monitoramento e avaliação da qualidade do serviço público

A gestão 1999/2002 desenvolveu iniciativas para acompanhamento do serviço público a partir da crítica aos instrumentos existentes. Estes visam à construção de novas metodologias para organização e atuação dos serviços públicos em busca de uma maior qualidade na sua prestação, tendo em vista maiores níveis de eficiência, eficácia e efetividade. Um dos eixos de discussão parte dos trabalhos relativos ao Código Estadual da Qualidade dos Serviços Públicos (Lei 11.075/98). O Código, aprovado por unanimidade pela Assembléia Legislativa do Estado, buscava a elevação do padrão dos serviços prestados pelos órgãos públicos através da formulação de indicadores, e metas, que propiciassem medir e avaliar a qualidade dos serviços públicos.

A partir de 1999 o governo iniciou um processo de análise para definir critérios e constituir metodologia cientificamente sustentável para tal avaliação, aprimorando os instrumentos do Código. Ele apresentava indicadores sociais, e não institucionais, para avaliar a atuação dos órgãos do Estado; estes indicadores, bem como suas metas, foram estabelecidos de forma descolada da realidade das entidades prestadoras de serviço público - os indicadores e metas não captavam a ótica do usuário com a abrangência necessária. Além disso, a participação popular - mediante um cadastro de 23 Os Conselhos Regionais de Desenvolvimento foram cr iados pela Lei nº 10.283, de 17/10/94 e regulamentados pelo Decreto nº 35.764, de 28/12/94. Conforme o estabelecido na lei, eles têm por obj etivo ins titucionais : a promoção do desenvolvimento regional har mônico e sus tentável, a integração dos recur sos e das ações do governo na região, a melhor ia da qualidade de vida da população, a dis tr ibuição equitativa da r iqueza pr oduzida, o es tímulo à per manência do homem em sua região e a preser vação e recuperação do meio ambiente.

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usuários voluntários - poderia não representar de modo adequado a opinião da população gaúcha. Havia o risco de reduzir a pesquisa e o cadastro como simples instrumento legitimador da política conduzida.

A proposta previa a construção de indicadores de qualidade institucionais que avaliem a atuação dos órgãos prestadores de serviços públicos (em especial Segurança Pública, Saúde, Educação e Proteção ao Meio Ambiente); criação de indicadores que contemplem a visão do usuário; transformação do cadastro em um canal de comunicação de onde se coletem reclamações e sugestões, e através do qual se forneçam informações; captar a satisfação da população com relação aos serviços recebidos via pesquisa de opinião, efetuada com amostra estatisticamente representativa (survey), com metodologia científica. Essa proposta apresenta a vantagem de utilizar instrumentos de acompanhamento como auxiliares à gestão, ao mesmo tempo em que democratiza a gestão dos serviços públicos prestados pelo Estado.

Cabe aqui uma observação adicional sobre o controle da administração indireta. O Estado deve avançar muito no controle sobre as estatais, muito além do controle econômico-financeiro (que é feito formalmente pela SCP/DADE sem maiores repercussões), este tema merece maior profissionalismo. Não se trata de controle burocrático-formal, mas de um tipo de avaliação de desempenho – que incorpora os avanços do Código Estadual de Qualidade – centrada na performance das estatais para contribuir com os resultados do planejamento de governo. Por exemplo, para o desenho de projetos de desenvolvimento regional é imprescindível o debate sobre a oferta de energia (CEEE), o tema do saneamento (CORSAN) ou o problema do crédito (Banrisul, AF, BRDE), estes setores não podem ser agregados a posteriori, sob pena de inviabilizar os instrumentos que realizam as políticas. Não se pode avaliar seriamente sem que antes tenha-se estabelecido a necessidade de planejar a ação pública, não se trata tampouco de limitar a avaliação aos controles burocráticos próprios da contabilidade pública e da área fazendária.

Avaliar bem o resultado de projetos integrados só é possível se no seu desenho original a possibilidade de avaliação estiver presente (uso de indicadores, estrutura por programas, estratégia definida, atores envolvidos, etc...).

Os programas de qualidade resultantes das teorias da total quality management não podem ser descartados de plano, pois de fato não representam em si um argumento teórico “contra” o caráter público do Estado ou “a favor” da visão mercantil e privatista. Na verdade representam um conjunto de instrumentos de organização de processos que surgiram da experiência privada e que podem – sob certas circunstâncias controladas – serem aplicados na organização pública. Por exemplo, o instrumento conhecido como “PDCA” (Plan, Do, Check and Action), pode ser utilizado sem problemas no gerenciamento de processos simples de administração pública, o erro seria tomar instrumentos e técnicas da “qualidade total” por profundas teorias sobre o Estado e a administração pública. Cabe retomar o conceito de qualidade como uma construção social não-subordinada estritamente ao fim mercantil, pois o princípio da universalidade dos serviços públicos e do atendimento indiscriminado à cidadania choca-se frontalmente com o padrão de acesso do mercado que é ditado, como se sabe, pela capacidade aquisitiva e não pelo estatuto da cidadania.

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Os serviços públicos e a Agência de Regulação

Em janeiro de 1997 o Legislativo gaúcho aprovou a lei que autorizou a criação da Agência de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Estado do Rio Grande do Sul, a AGERGS (Lei 10.931). Na época o governo estadual concluía processo de privatização na área de telecomunicações, energia elétrica e montava os processos de privatização na área de processamento de dados, saneamento, mineração e exploração privada das rodovias. O marco teórico inicial (pós tatcherismo) ocorreu na Inglaterra com a publicação do documento Next Steps Report (Improving Managemente in Government: the next steps) por Robin Ibbs, diretor da Efficiency Unit. O centro da argumentação apontava para o Civil Service britânico reduzido a um grupo pequeno e bem pago de policymakers enquanto que os demais serviços seriam transferidos para agências ditas “executivas”, autônomas e flexíveis, a meta era transferir até 95% dos funcionários para 174 executive agencies. Com Tony Blair a ênfase na separação entre formulação de políticas (Gabinete e Ministérios) e a execução gerencial (agências) foi relativisada pela maior preocupação com a performance e efetividade das políticas (Santos, 2000).

O governo brasileiro, em colaboração com o BIRD, adotou e disseminou o modelo britânico, porém diferentemente daquele país não temos aqui a mesma tradição de administração privada, nem a mesma trajetória do Estado na ancoragem de um projeto de desenvolvimento. A transferibilidade da tecnologia de gestão publica é um tema ainda inexplorado e polêmico, embora haja atualmente consenso sobre a impossibilidade de fórmulas de aplicação universal neste campo, desconsiderando contextos e trajetórias políticas distintas daquelas de origem dos modelos.24

Teoricamente a agência traduz a ação do poder público para regular serviços delegados, sendo que a regulação seria a garantia da extensão, qualidade e continuidade dos serviços delegados com adequação tarifária. A AGERGS atuaria dentro do chamado “tripé regulatório” num ponto eqüidistante entre usuários, empresas e Estado. Seu caráter é multisetorial regulando serviços tão diferenciados como energia, inspeção veicular, irrigação ou distribuição de gás. Além disso atuaria de forma conveniada com as agências setoriais nacionais (ANEEL, ANATEL, ANP, etc...) para serviços delegados da União. A característica mais polêmica é a independência do poder executivo: conselho superior com mandato independente indicado pelo executivo e aprovado pelo legislativo, com período não coincidente com o calendário eleitoral, profissionalização e quadro próprio de servidores e autonomia financeira vinculada às taxas.

O Estado pode e deve exercer a regulação da prestação de serviços, isto é, a mediação entre os interesses da cidadania e os prestadores privados, isto se for admitido que o Estado não pode (ou não deve) realizar o fornecimento direto de vários

24 Chr is topher Pollitt, pesquisador br itânico, é taxativo: “…é muito comum o pressuposto s ilencioso de que gestão é, no momento, um campo com tantas cer tezas e conhecimentos invar iáveis que ele pode ser intercambiado em praticamente todo tipo de fronteiras . ..os pár a-quedis tas do Banco Mundial ou da Ar thur Andersen ou ainda o Gabinete do pr imeiro Minis tro do Reino Unido vão correr o mundo aj udando os governo importadores de tecnologia. ..os especialis tas internacionais podem conhecer a técnica, mas eles , geralmente, sabem pouco do contexto local e das funções específicas envolvidas ...”(p. 12 e 13), em “Reformas da ges tão pública: a exper iência internacional pode ser trans fer ida ?”, S eminár ios I nternacionais , ENAP, novembro de 2002.

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bens públicos. Cabe então localizar o debate sobre a autonomia da agências e as competências do poder concedente (o poder executivo) sobre quais seriam as melhores estratégias para aperfeiçoar o controle social sobre os serviços. É fato que as agências surgem no Brasil longe do contexto de participação comunitária no controle de serviços públicos e onde as funções de regulação são extensões típicas do poder executivo, dos governos, surgem portanto, em ambiente hostil. Em alguns serviços onde o monopólio natural é parte da essencialidade, a regulação assume relevo especial na determinação das tarifas e taxas, na proteção dos usuários-cidadãos, o elo mais fraco do “tripé regulatório”.

A relação entre governo e a agência passou por dois momentos distintos. Uma primeira fase de tensão, conflito e disputas judiciais (duas ações diretas de inconstitucionalidades) na área de transportes e rodovias pedagiadas e um segundo momento - de conflito negociado - aberto com a nomeação de conselheiros ligados à base do governo no início de 2002. A AGERGS – uma autarquia pública - ainda não achou o “ponto de equilíbrio” ajustado entre pólos muito desiguais25, o habitus da convivência entre posições políticas antagônicas na gestão de temas tão delicados quanto à regulação de serviços, a tradicional confusão de competências e o baixíssimo grau de controle social e participação soberana da população nas políticas públicas contribuem para um longo período de adaptação institucional, lenta, porém inevitável.

O Desafio Previdenciário26

O Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – IPERGS, foi instituído pelo Decreto n.º 4.484, de 08 de agosto de 1931, como entidade autônoma que objetiva promover e desenvolver a previdência e a assistência social dos servidores públicos do Estado. O Decreto-Lei n.º 30, de 06 de setembro de 1940 e a Lei n.º 7.672, de 18 de junho de 1982, estruturam formalmente o IPERGS como entidade autárquica, com personalidade jurídica de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, e integrante da Administração Indireta do Estado, sob supervisão da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. As Leis n.º 5.255/66 e 6.617/73 estabelecem as fontes de recursos para custeio do IPERGS, a ser descontado dos vencimentos dos servidores públicos integrantes do sistema nos seguintes termos: 5,4% à pensão e 3,6% para a assistência à saúde. No que diz respeito aos proventos de aposentadoria, há um desconto de 2%, conforme Lei n.º 10.588. Portanto, os servidores descontam para o sistema previdenciário estadual gaúcho um total de 11% do total de vencimentos.

Um elemento de conteúdo dramático foram as alterações da Constituição Federal de 1988, particularmente no tocante a determinação de revisão das pensões em sua correspondência à totalidade dos vencimentos do cargo que exercia o servidor, considerados, inclusive, benefícios, vantagens e reajustes concedidos aos ativos por categoria, provocando acréscimos significativos no montante das pensões. A

25 Em pesquisa feita pela UFRGS em Dezembro de 2001 (LABORS /I FCH) constatou- se, por exemplo, que dos entrevis tados (14.530 entrevis tas), 25,3% tinham uma imagem negativa da agência e 19,3% não sabiam opinar .

26 baseado no texto j á citado “Es tado, gestão e democracia no Rio Grande do S ul” (2002).

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implantação dessa nova realidade – a integralidade das pensões - tem sido efetivada, até o presente momento, via decisões judiciais. As pensões, na modalidade anterior à Constituição de 1988, eram distribuídas no seguintes termos: 45% e mais 5% por dependente do salário do segurado.

Contudo, esse tema não deve ficar restrito à situação financeira do IPERGS, em particular à questão das pensões integrais e na assistência médica. Há um contexto que urge ser debatido e divulgado: a inexistência de um sistema previdenciário capaz de dar conta, também, das despesas dos inativos. Assim que a questão previdenciária envolve o gasto com os inativos, as pensões e a assistência médica. A prática dos governos foi transferir ao encargo do Tesouro Estadual o custeio do sistema como um todo e adiar uma solução consistente. Um debate muito bem articulado que permitisse o diálogo entre os atores envolvidos e a busca de uma alternativa consistente (e politicamente sustentável) para dotar o Estado gaúcho de um sistema previdenciário financeiramente viável e socialmente justo, parece ser a única saída para o impasse.

Em termos gerais a situação financeira da previdência do Estado é grave. Considerando o ano de 2000 como simples exemplo ilustrativo, tem-se um déficit de R$ 2,505 bilhões, coberto pelo Tesouro do Estado, uma vez que as despesas previdenciárias totalizaram R$ 2.793 bilhões e as receitas correspondentes foram de apenas R$ 288 milhões. Para que se tenha a dimensão da gravidade do problema, cabe destacar que a despesa total com pessoal (incluindo ativos e inativos) alcançou o montante de R$ 5,028 bilhões. Importante também apontar que o percentual de matrículas de servidores ativos (administração direta e indireta) sobre o total (servidores ativos, inativos e pensionistas) caiu de 63% em dezembro de 1993, para 52,3%, em dezembro de 2000.

Deve-se chamar a atenção para diversas distorções que pressionam duramente os recursos a disposição do IPERGS, quais sejam: filhas solteiras; designados; ex-combatentes. Diversas ações já foram efetuadas para correção destes pontos especialmente no tocante as filhas solteiras, que resultaram na diminuição de pensões.

Uma distorção recentemente sanada diz respeito aos Juizes, Desembargadores e Conselheiros do Tribunal de Contas, que contribuíam apenas sob o salário básico, ao contrário do conjunto dos servidores que recolhiam sob o total dos vencimentos. Tal ato decorreu de uma ação do executivo junto à instância máxima da nação – o Supremo Tribunal Federal.

Este movimento de recuperação da previdência poderá garantir o pagamento integral de aposentadorias e pensões; cumpre a determinação federal que exige um sistema previdenciário contributivo, com equilíbrio financeiro e atuarial, deixando o Estado apto a continuar recebendo repasses do Governo Federal; permite a criação de um Conselho Estadual da Previdência que democratiza a gestão, permitindo a participação de todos os poderes; evita a formação de passivos judiciais; concentra os recursos em um único ambiente, atualmente dividido entre o IPERGS e Secretaria da Fazenda.

Esta proposta formatada e resultante de uma Comissão Mista constituída por integrantes do Executivo, Legislativo e Judiciário, contando com a participação de

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representantes do Tribunal de Contas e Ministério Público, em linhas gerais criaria o “Regime de Previdência do Estado do RS”, com os seguintes objetivos: colher os titulares de cargos efetivos e os servidores não abrigados pelo regime geral de previdência; responder por aposentadorias e pensões; atender aos requisitos impostos pela legislação federal, particularmente no tocante ao caráter contributivo do regime; criar um Conselho Estadual de Previdência, encarregado de estabelecer as linhas básicas e o gerenciamento dos fundos; garantir a pensão integral; extinguir a contribuição de 2% à aposentadoria.

Para viabilizar esses objetivos a proposta sugere a formação de dois Fundos, destinados à provisão de recursos: (1) “Fundo Estadual da Previdência” formado a partir das seguintes contribuições: Inativos e Pensionistas em 5,4% (os quais já contribuem nesse patamar); Ativos em 11% (já contribuem com 5,4% e passariam para mais 5,6%); o Estado contribuiria com 22%; e as reservas do IPERGS com patrimônio, rendas e créditos e (2) “Fundo Transitório”: Contribuição de 3% dos Ativos, Inativos e Pensionistas pelo prazo de 12 anos; os saldos excedentes seriam de responsabilidade do Tesouro Estadual. A implementação e mesmo o debate interno desta proposta, entretanto, não progrediu politicamente.

5. Trajetória e possibilidades do planejamento no Rio Grande do Sul

O Rio Grande do Sul é o estado mais meridional do Brasil, fazendo fronteira a sudoeste com o Uruguai e a Noroeste com a Argentina. Com dez milhões de habitantes (2000) distribuídos em 497 municipalidades e uma taxa de urbanização de 81,6% 27, o estado tem uma formação sócio-econômica peculiar. Há - grosso modo - três grandes macro-regiões com dinâmicas urbano-regionais diferenciadas. A primeira compreende a porção nordeste do território que foi originariamente industrializada e vinculada às conexões com os maiores centros produtores e consumidores nacionais, esta região compreende um eixo regional de polarização industrial entre as cidades de Caxias do Sul (360 mil habitantes) e a capital do Estado, Porto Alegre (1,2 milhão de habitantes). A segunda parte é representada pela região mais ao sul cuja dinâmica econômica é menor e há predomínio da pecuária, culltivo do arroz e grande concentração fundiária. A terceira parte da região mais ao norte do Estado tem base econômica mais diversificada com alguns pólos industriais (máquinas agricolas), presença dominante do setor primário em pequenas propriedades, com cultivo da soja em propriedades maiores. Ao longo das últimas quatro décadas verifica-se um movimento de “desconcentração concentrada” ou “transbordamento” do crescimento industrial a partir do pólo influenciado pela capital, que rapidamente se converte em centro de serviços.28

27 Os dados quantitativos sobre a s ituação do Rio Grande do S ul podem ser encontrado no s ite www.fee.tche.br da Fundação de Economia e Es tatís tica vinculada à S ecretar ia de Es tado da Coor denação e Planejamento, S CP.

28 S obre o processo de des indus tr ialização de Por to Alegre e a relação entre a dinâmica ur bano-regional e o crescimento econômico há referências importantes que podem ser consultadas especialmente em Alonso, J. e Bandeira, P. (1988) A des industr ial ização de Porto Alegre: causas e per spectivas , Ensaios , FEE, v9, n.1, p.3-28 e Bandeira, P. (1988) O Rio Grande do S ul e as tendências geogr áficas do crescimento da economia bras ileira, FEE, Porto Alegre e o texto de Paiva, C. nos textos para discus são da S CP (2002).

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A identidade econômica do Estado fundamenta-se, no decorrer do século XIX, na exportação do charque (carne salgada para alimentação de escravos) para os centros cafeeiros e açucareiros da economia brasileira. Esta atividade, com fraca demanda e poucos efeitos externos, não logrou estabelecer forte integração com os mercados nacionais. A região, mesmo assim, conseguiu colocar-se como o quarto Estado no ranking nacional até o início do século passado. Entre os fatores potencialmente explicativos desta trajetória certamente encontram-se a disseminação de uma cultura de “proprietários livres”, formalizada pelas sucessivas levas de imigrantes (desde 1820) que criaram uma cultura produtiva de pequenas propriedades agrícolas na parte nordeste e depois norte do estado, estímulo a um pequeno mercado interno, com fortes taxas de escolarização e identidade sócio-cultural.

Um fato importante que marca um aspecto notável da cultura política regional foi o domínio - a partir do conflito armado de 1893-1895 (chamada “Revolução Federalista”, transição para o período republicano) – do Partido Republicano Rio-Grandense. Um partido burocratizado, disciplinado, com nítida opção positivista, agregava desde setores da pecuária dominante até parte do colonato e camadas médias urbanas. Sob o governo de Borges e Castilhos o Estado regional intervém ativamente na constituição de infra-estrutura básica para assegurar a reprodução do capital e a integração aos mercados nacionais.

O Estado positivista – regulador da atividade econômica de “interesse social” - promoverá, de fato, as primeiras experiências de planejamento governamental: o Plano Geral de Viação do Estado, de 1913. O resultado de sucessivas encampações da rede ferroviária (1920) e do porto de Rio Grande (1919), vitais para circulação do produto da pecuária e integração com outros mercados consumidores. Com o fim da chamada “República Velha”, a partir da reorganização política-econonômica forjada pela “Revolução de 30” o Estado do Rio Grande do Sul será progressiva e inexoravelmente reativo aos ciclos de expansão e crise da economia nacional, particularmente do centro mais dinâmico no sudeste (economia paulista), ainda que este vínculo com os mercados nacionais não seja homogêneo nem linear29.

Esta integração como fornecedor de produtos agro-industriais semi-processados – subordinada à decisão de investimento do centro comprador paulista – não impediu, mas ao contrário, estimulou um certo grau de especialização regional (couro-calçado, máquinas agrícolas, indústria fumageira, terceário especilizado, etc...) fortemente estimulado pelo ação planejada do Estado. Este tipo de planejamento cumpriu essencialmente um papel articulador e organizador da acumulação capitalista regional, isto é, serviu como mediação política-institucional entre os setores da oligarquia regional mais tradicionais ligadas à pecuária sulista-extensiva e os setores urbano-industriais vinculados aos interesses externos à economia regional.

Conforme Dalmazo (1992) no período imediatamente posterior ao da consolidação do movimento de trinta o planejamento não foi efetivado por um órgão centralizado dentro 29 S egundo Accurso (2002)”...a economia gaúcha em termos de Bras il é uma economia complexa, com uma es trutura econômica semelhante com uma produtividade um pouco maior . S eu moviment o s egue pr óximo ao do P aís , mesmo na presença de conjunturas diferentes , como é o caso de uma safra .. .não é o caso,... , de regiões menos complexas , de abertura de fronteira, de forte imigração, centrada em poucos produtos ,... ”(p. 341, gr ifos nos sos ) em “Ensaios FEE”, Vol. 23, Número Especial, 2002, Porto Alegre.

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da estrutura estatal. A setorialidade do planejamento público pode ser constatada pela atuação do DAER (1937) responsável pelo Plano Rodoviário Estadual de 1938 e da Comissão de Coordenação de Transporte (1953) encarregada do Plano Rodoviário ou – por exemplo - da Comissão Estadual de Energia Elétrica (1947) encarregada de gerenciar os planos de eletrificação. Na verdade o aparelho institucional regional para o planejamento do desenvolvimento começou a ser montado ainda na fase final da República Velha como a Diretoria de Agricultura, Indústria e Comércio criada em 1928 por Getúlio Vargas (1928/1930) que desdobrou-se mais tarde (1936) na Secretaria da Agricultura do Estado.30 Alguns exemplos significativos do planejamento setorial deste período estão elencados na tabela seguinte:

Plano setorial Finalidade Instituição

Plano Rodoviário Estadual

(1938)

Consolidou uma malha de 7.400 Km de estradas (3.900 Km não pavimentadas) e consumiu 22% das receitas tributárias

entre 1938/43

Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem e DNER a partir de 1945.

Plano de Eletrificação do Rio Grande do

Sul

(1945)

Permitiu subir de 2.300 kw em 1947 para 127.237 kw em 1956. Executado com

recursos do tesouro do estado, federais (DNOS) com estatização de geradoras e

distribuidoras locais privadas.

CEEE, parcerias federais com o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS).

Plano de Desenvolvimento

Agrícola

(1936)

Fomento agrícola, melhoramento de espécies, incentivo à mecanização, defesa sanitária animal e vegetal e

incentivos à colonização das fronteiras agrícolas do Estado.

Secretaria da Agricultura e Ministério da

Agricultura (federal)

Plano de Saneamento

Urbano

(1943)

Executar serviços de abastecimento de água e esgoto. Em 1943 somente 21

cidades possuíam abastecimento regular de água.

Secretaria de Obras

Uma tentativa de sintetizar um conjunto de planos setoriais foi representada pelo I Plano de Obras, Serviços e Equipamentos durante o governo de Ernesto Dornelles em 1954. Neste plano surge pela primeira vez na história do planejamento gaúcho uma visão de conjunto dos serviços públicos, um esforço racionalizador do gerenciamento do aparelho de Estado e intensa articulação com o planejamento nacional.

30 É verdadeiramente notável a proliferação de organismos es tatais para organizar /ar ticular pres sões de agentes econômicos tradicionais no per íodo inicial de industr ialização gaúcha e unificação de um mer cado nacional: I ns tituto de Carnes (1934), I ns tituto do Ar roz (1934), I ns tituto da Banha (1936), I ns tituto do Vinho, do Fumo, do Mate (1936), Associação de crédito e ass is tência rural (1955), Comis são de S ilos e Armazéns (1952).

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A organização formal do sistema de planejamento do Estado iniciou num segundo período marcado pelo intenso debate político-ideológico das duas grandes correntes: a inserção mais subordinada do Estado como fornecedor de matérias primas (bloco PSD/UDN) e a outra de uma inserção mais autônoma, reivindicatória, advogando a diversificação produtiva a partir das pontencialidades locais (bloco PTB/PRP/PSP). Em 1959 foi criado o Gabinete de Administração e Planejamento (GAP) e o Conselho de Desenvolvimento do Estado (CDE), como instâncias básicas de centralização de informações financeiras, fiscais e acompanhamento do processo de industrialização. O GAP e o CDE gerenciaram a execução de dois planos importantes na época: o II Plano de Obras, Serviços e Equipamentos (1959 – 1962) e o Plano de Investimentos e Serviços Públicos (1964 – 1966), este último representou uma “... proposição mais ousada e complexa de planejamento global da economia gaúcha “ (Dalmazo, 1992,pág. 110).

É interessante registrar que, segundo Lenz (1980), a perda progressiva de autoridade do gabinete de planejamento na época esteve relacionada aos conflitos entre a esfera técnica e os gestores políticos dos órgãos setoriais, com a predominância destes últimos na decisão final. A autora identifica neste processo a existência de dois estilos de planejamento: um do tipo “incremental” – relacionado diretamente à conveniência política dominante e outro “globalista” mais relacionado à racionalidade técnica.

Esta assertiva revela, de um lado, uma crítica sadia às estratégias políticas que nem sempre são pensadas como demandantes de viabilidade técnica, mas por outro lado, revela uma separação ilusória entre a sempre “boa técnica” e a eterna “má” política, na verdade os processos de planejamento governamental possuem natureza técno-política, como será visto na renovação metodológica do planejamento público, adiante.

A implantação pioneira no Brasil do orçamento-programa (1962) permitiu a consolidação da vinculação entre planejamento e orçamento, e como resultante, maior eficácia na alocação dos recursos públicos. A influência positiva dos resultados do Plano de Metas a nível nacional (embora este pouco tenha alavancando a economia gaúcha) impactaram positivamente na credibilidade do planejamento regional. Em 1967 foi criada a Comissão Central de Planejamento centrada na elaboração do orçamento estadual, sob influência da nova legislação federal (Lei 4.320 de 1964). A necessidade de estabelecer os Orçamentos Plurianuais de Investimento para períodos de três anos (o primeiro foi para o período 1968 –1970, segundo a Lei Complementar n. 3/67), a complexidade crescente das variáveis envolvidas nos diversos planos setoriais e na atuação da administração indireta fez com que em 1969 fosse criada a Secretaria de Coordenação e Planejamento (SCP), unificando os organismos anteriores e centralizando toda ação de planejamento estadual. Para formação de quadros técnicos e gerentes capazes de sustentar o processo de planejamento foi criada a Fundação de Economia e Estatística, em 1973, e o Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos (atual FDRH), em 1972, vinculados à SCP.

A experiência estadual de planejamento mais global no período 1959 –1974 foi reveladora “...do abismo existente entre a definição de um plano com objetivos e metas e as ações planificadas, quando não se controlam os instrumentos e as variáveis básicas (política econômica e recursos). A dimensão de tais fatores conduziu à simplificação na forma do planejamento estadual, centrando-se na capacidade latente

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de negociação e de articulação com o Governo Federal, através da gestão política, da formulação de diagnósticos e da organização e do controle das finanças estaduais para drenar e atrair recursos e investimentos do Estado e de capitas privados” (Dalmazo, 1992, pág. 134).

Nos anos noventa o formato institucional do planejamento de governo em âmbito estadual foi definido pela Constituição de 1988 que estabeleceu a confecção dos Planos Plurianuais (PPA) com duração de quatro anos, iniciando no início do segundo ano do mandato executivo, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com a função de fixar os parâmetros gerais de gestão orçamentária, fiscal e tributária para o ano seguinte e a Lei de Orçamento Anual (LOA).

O atual PPA 2000/2003 em vigor no Estado do Rio Grande do Sul estabelece três grandes diretrizes31: (a) desenvolvimento econômico com ênfase nos aspectos redistributivos, geração de emprego e renda e diversificação produtiva a partir dos sistemas locais de produção; (b) qualidade de vida para todos que focaliza na afirmação de direitos, garantias de inclusão social e políticas sociais universais e (c) a democratização da gestão pública com a implantação do orçamento participativo, transparência administrativa e qualificação das relações de trabalho com o funcionalismo público estadual. O plano é estruturado em 113 Programas totalizando um total de R$ 19 bilhões de recursos (preços de março de 1999) para sua execução de fonte tributária (55,7%) e empréstimos ou receitas da administração indireta.

A base metodológica para elaboração do PPA foi construída considerando três elementos centrais : (a) a ênfase fortemente regionalizada (conforme art. 165 da CF/1988 e lei complementar estadual 10.336/1994), considerando a tradição dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento – COREDES (criados pela Lei nº 10.283, de 17/10/94 ); (b) a combinação com a tradição setorial de planejamento que é historicamente muito forte, as secretarias de Estado surgiram da execução de planos setoriais e (c) o envolvimento direto do centro de governo no acompanhamento e decisão sobre eventuais ajustes ao longo do processo

A execução do PPA 2000 está ainda em curso, mas é possível afirmar desde já algumas conclusões críticas que devem pautar – entre outros aspectos ainda não aprofundados – a reformulação futura do planejamento no Estado: (a) apesar da flexibilização das categorias da classificação funcional-programática (lei 4.320) em 1998 pelo governo federal, não houve integração entre o PPA e o Orçamento estadual, (b) a elaboração do PPA 2000, considerando inclusive o prazo legal de entrega (três meses após a posse), não refletiu claramente o programa de governo, nem critérios de aplicação efetivamente regionalizada de recursos (c) resultado disto é o desencontro completo da classificação entre o PPA, a LOA e o próprio Plano de Investimentos produzido pelo orçamento participativo, impedindo análises comparativas, (d) considerando a formalidade dos programas do PPA32 e a impossibilidade de integração orçamentária, nenhum sistema de monitoramento, 31 O documento integral pode ser obtido no s itio www.scp.r s .gov.br 32 sobre o grau de formalidade na aplicação da legislação referente ao planejamento pode-se tomar como exemplo simbólico o projeto de lei da LDO (lei de diretrizes orçamentárias) enviado ao Parlamento em 2003. A LDO deve definir a hierarquia e prioridades do próximo orçamento, em seu artigo 14 estavam elencadas 203 prioridades do poder executivo para 2003!

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avaliação de desempenho ou controle de resultados pode ser montado com base nos objetivos, sumarizando, o PPA 2000-2003 em quase nada pode contribuir para modernização do planejamento de médio e longo prazo no Rio Grande do Sul. A oportunidade de um novo ciclo com o próximo PPA (2004-2007) é a única oportunidade para implantação de um novo modelo no próximo período.

O desafio da construção de um novo modelo de planejamento e gestão.

Possibilidades de democratização do planejamento público33

Recentemente várias organizações públicas brasileiras tem desenvolvido experiências positivas de participação na gestão pública, particularmente na esfera local, em especial, a conhecida como “Orçamento Participativo”34. É um processo de democracia direta, voluntário e universal combinado com a democracia representativa, na definição dos orçamentos públicos anuais. Representa uma resposta contemporânea à crise de legitimidade política e fiscal do Estado brasileiro. A auto-regulamentação seria responsável pelo caráter “dialético” do processo, permitindo a modernização do mecanismo de participação popular. Este desenvolvimento a partir do debate puramente orçamentário, permitiria crescente complexidade, por exemplo, a formação de plenárias temáticas e regionais, a criação de comissões (para analisar a política de recursos humanos, por exemplo), para análise e proposição de temáticas setoriais, processos de prestação de contas do governo com participação de setores sociais heterogêneos, etc.

Um dos avanços mais importantes originados a partir das insuficiências das experiências de Porto Alegre, por exemplo, foi a realização de “Congressos da Cidade”. Estes fóruns tentam superar a fragmentação das reivindicações de caráter pontual ou as demandas isoladas, criando um ambiente societal mais complexo e universal que desempenha o papel de gerar grandes consensos ou pactos racionalizantes na relação Estado-Sociedade. No “III Congresso da Cidade de Porto Alegre - Construindo a Cidade do Futuro” (Resoluções, 2000), por exemplo, pode-se ler claramente esta intenção política deliberada.

“O III Congresso representou, assim, um esforço em realizar reflexões estratégicas, de longo prazo, que conseguissem articular globalmente a cidade, através de seus vários interesses e visões, que a cada dia se manifestam com maior intensidade, pluralidade e riqueza, complementando o processo de democracia participativa da cidade que combina o conjunto diverso de demandas localizadas de bairros e regiões da cidade com as iniciativas gerais integradoras, que são estruturantes de uma cidade que 33 esta parte está baseada em trabalho apresentado pelo autor no VI Congresso do Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo, CLAD, Buenos Aires, em 2001. 34 O processo “participativo” pode ter vários conteúdos, inclusive o do Banco Mundial, por exemplo, no Livro de Consulta para estratégias de combate à pobreza (www.worldbank.org/poverty/) define participação “ como um processo mediante o qual os interessados influenciam e controlam conjuntamente iniciativas de desenvolvimento e as decisões e recursos que os afetam...o processo provavelmente abrangerá um ciclo de diálogo, análise, ações e reações participativas no âmbito das estruturas, políticas e de governo, a fim de incorporar as opiniões de todos os níveis da sociedade civil, desde as comunidades até os setores público e privado, na formulação de po´´iticas e na implementação de programas governamentais “ (p.3), a participação, para o Banco, habilita os formuladores de políticas a incor porar as pr ior idades dos pobres , gera par cer ias baseadas na confiança e no consenso, promove a transparência e a responsabilidade coletivas , promove a sus tentabilidade do proj eto e a inclusão social.

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quer ter um planejamento urbano participativo e não-tecnicista” (Resoluções, 2000, grifos meus).35

Outra experiência localizada, mas que testa inovações metodológicas importantes no “orçamento participativo” é a cidade de Belém no estado do Pará. Conforme Rodrigues e Novaes (2002) o “Orçamento Participativo” é um processo virtuoso que busca atender demandas sociais (dívida social) há tempos represadas, mas acaba tornando-se limitado quando não consegue avançar nos debates a respeito das dívidas sociais existentes, enfim daquilo que mobiliza imediatamente. Segundo estes autores “...o povo deve planejar, decidir e executar o futuro da cidade, discutir políticas de inclusão social, de mudança cultural e da construção da cidade que queremos” (p.52). Fica manifestada claramente a compreensão de que mecanismos participativos de amplo alcance, mas restritos ao campo decisório do orçamento anual se auto-limitam no universo de escolhas que se subordinam à um tipo de “agenda de curto prazo”, enquanto a formação de uma opinião coletiva estratégica (que deveria se organizar ex-ante o processo de escolhas pontuais) permanece oculta no processo.

A participação ampla dos setores populares (o “empoderamento” dos stakeholders) na discussão do orçamento (onde as experiências municipais são as mais conhecidas) representa um esforço para criar condições institucionais favoráveis à emergência da cidadania em novas formas de gestão sócio-estatal onde a sistemática “partilha de poder” baseada em critérios objetivos, impessoais e universais são os elementos mais fundamentais. Segundo Fedozzi (1997), este processo estabelece um novo tipo de “contratualidade”, uma “despatrimonialização” do Estado, uma ruptura com as práticas clientelistas, segundo ele “...uma esfera pública ativa de co-gestão do fundo público municipal expressa-se através de um sistema de racionalização política, baseado, fundamentalmente, em regras de participação e regras de distribuição dos recursos de investimentos que são pactuadas entre o Executivo e as comunidades e apoiadas em critérios previsíveis, objetivos, impessoais e universais. A sua dinâmica instaura uma lógica contratual favorável à diferenciação entre o “público” e o “privado” e, portanto, contraporia às práticas clientelistas que caracterizam o exercício patrimonialista do poder” (Fedozzi, 1997, p. 199).

Outros autores têm uma visão mais crítica, Pires (2001), por exemplo, classifica as várias experiências de “orçamento participativo” em stricto sensu - quando o processo é deliberativo - e lato sensu, nas demais formas de participação que criam algum tipo de constrangimento à completa liberdade do Poder Executivo, tais como conselhos ou audiências públicas. Este autor problematiza alguns aspectos: (a) dificuldade de estabelecer legitimidades permanentes e pactuadas no processo de escolha entre as regiões da cidade que “ganham” e as que “perdem”, (b) dificuldade em demonstrar que o OP melhora a distribuição de renda e as condições de vida das camadas mais pobres dada a ausência de indicadores e séries históricas confiáveis para avaliação da eficácia, eficiência e efetividade das políticas públicas, (c) tensão constante entre as

35 O I Congres so foi realizado em 1993 com 1.500 participantes , o I I Congres so, em 1995, com 2.700 participantes e o I I I Congresso em 2000 com 7.000 par ticipantes , sob forma delegada. Es te último Congres so consolidou as propostas bás icas para elaboração do Plano Plur ianual da cidade, conforme determina a Constituição Federal. Por to Alegre tem cerca de 1,3 milhão de habitantes e um Í ndice de Desenvolvimento Humano Municipal ( I DH-M) de 0,825 (1991), (fonte: PNUD/I PEA/FJP, 1998).

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estruturas legislativas convencionais e os novos procedimentos de decisão direta, (d) o processo está restrito à alocação da prestação de serviços públicos básicos, há uma tendência para a não-participação de todos os setores já razoavelmente atendidos por serviços estatais ou com acesso mínimo ao mercado, (e) visão fragmentada e de “curto prazo” das populações envolvidas , não incidindo, por exemplo, sobre o PPA (Plano Plurianual) ou a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) outras de menor expressão.

A experiência do Rio Grande do Sul é uma das mais amplas em número de participantes. Na primeira etapa são realizadas plenárias regionais para debater diretrizes gerais de desenvolvimento, depois são feitas assembléias regionais para escolha dos programas prioritários e, em seguida, assembléias municipais para priorizar obras e serviços. Na segunda etapa os fóruns regionais e municipais elegem delegados, estes escolhem os membros para um Conselho Estadual. Um conselho compatibiliza o conjunto de demandas priorizadas com o total de recursos disponível, definindo a hierarquia pela ponderação de critérios previamente acertados. A distribuição de recursos entre as regiões atende aos critérios da (a) prioridade temática escolhida (b) população total da região e (c) carência de infra-estrutura pública ou serviços.

As premissas de recuperação da capacidade de planejamento do Estado, como agente indutor e regulador do desenvolvimento, a partir de uma opção ideológica pela democracia e participação, são organizadas por um conceito central: o processo de criação/construção de uma nova consciência coletiva sobre governo e governança. A tarefa de criar consciência de governo na população, situação em que as necessidades se convertem em demandas propositivas de longo prazo e não apenas reivindicatórias e os movimentos sociais em atores sociais organizados, excede em muito as melhores promessas da experiência do “orçamento participativo” atual. O aprofundamento do caráter legitimatório de governos populares e de construção de cidadania não-regulada acaba gerando vários tensionamentos que apontam – muitas vezes, de forma autônoma ao aparelho de Estado – para a radicalização do controle social. As observações sobre as limitações do “Orçamento Participativo” como processo de influência crescente da população na gestão do Estado são sinteticamente descritas a seguir. Cada uma delas pode representar um macro-problema a ser explicado e resolvido pela perspectiva da crítica ao planejamento público convencional e re-construção do planejamento com participação ampla de todos agentes envolvidos.

Há limites concretos e materiais na natureza qualitativa do processo de participação. A maioria deles surge simplesmente da completa ausência de tradição das populações envolvidas no debate destas questões, fator absolutamente previsível considerando-se a cultura autoritária, o fazer político excludente e a imaturidade da cidadania regulada e concedida no Brasil. Tais aspectos ganham dramaticidade em escala regional e estadual. Partindo-se do realismo desta conjuntura, deve-se possuir absoluta ciência destas limitações e dos ritmos deste processo de aprendizagem para não criar um fetiche ou “canonizar” seus resultados, independentemente de qualquer outra racionalidade, por exemplo, a viabilidade técnica ou política ou os diferentes ritmos de crescimento da cidadania.

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Em outras palavras, não é crível supor que os “Planos de Investimentos e Serviços”36 anuais (principal “produto” do processo participativo), por mais representativos ou “bem votados” que possam ser, tenham a propriedade ou capacidade de substituir o planejamento estratégico das ações de um Governo em escala regional ou sub-nacional (como a viabilidade de participação massiva na elaboração de Planos Regionais de Desenvolvimento, por exemplo). Na verdade o dilema colocado nos termos de uma escolha entre o “Orçamento Participativo” versus Planejamento Estratégico, soaria absolutamente falso. Trata-se de buscar a melhor equação técnica e construção política para estabelecer uma relação de complementariedade, de continuidade sinérgica e mútua potencialização entre os dois processos. A assimetria de informações, a influência de corporativismos de vários tipos, as pressões da mídia e a participação ativa de agentes governamentais no processo também contribuem, em alguns casos, para retirar coerência interna global aos resultados finais. Na escala regional ou estadual as relações sociais e econômicas são suficientemente complexas para agregar à racionalidade da escolha popular e demandar dos gestores públicos, outros critérios de seleção de problemas, desenho de operações, construção de estratégias de viabilidade ou sistemas de gestão. Este é limite da viabilidade técno-política do processo decisório.

O processo de participação não é isento de marchas e contra-marchas, não ocorre linearmente, nem é homogêneo. No caso particular da experiência realizada no Rio Grande do Sul pode-se identificar pontos críticos relacionados aos critérios utilizados. Considerado o nível de degradação da rede de serviços públicos por um longo período (a chamada “dívida social”), o conjunto de demandas é dominado por reivindicações nas áreas de educação, segurança pública, serviços de saúde ou obras localizadas. O conjunturalismo e a fragmentação, normais neste processo alocativo poderia produzir um tipo de “paroquialismo reivindicatório”, limitando seriamente reflexões mais profundas sobre os modelos e concepções de desenvolvimento, de caráter regional ou estadual, o que exige visão de conjunto, identificação das dependências e identidades regionais, priorização de obras de grande impacto, construção de cenários de desenvolvimento, etc. Existe um conjunto de projetos públicos estruturantes que ultrapassam (fisicamente inclusive) o contorno de uma ou mais regiões ou que tem efeitos difusos sobre várias comunidades cuja participação popular requer mecanismos mais profundos e complexos. Projetos viários de transporte (que cruzam várias regiões), o desenvolvimento integrado de bacias hidrográficas, projetos relativos à reforma agrária, o desenvolvimento integrado de regiões menos desenvolvidas ou implantação de equipamentos públicos de grande polarização na rede urbana regional (hospitais regionais ou escolas técnicas de larga amplitude), são alguns exemplos.

Uma alternativa encontrada na experiência regional comentada foi - para organizar e orientar os debates sobre desenvolvimento – a criação de “Plenárias Temáticas Regionais” específicas. Nestes eventos os agentes políticos vinculados ao governo apresentam as denominadas “listas-tipo”, com a relação dos programas e serviços prestados pelo governo. Sua utilidade operacional é evidente: ao simplificar o

36 o “Plano de I nvestimentos e S erviços ” é um documento ofic ial, do governo, que formaliza as decisões do processo par ticipativo. Nele es tão contidos os pr ogramas, as obras e serviços escolhidos , os municípios onde serão executados e os valores financeiros previs tos .

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entendimento das competências de cada nível estatal e submeter os projetos à hierarquização do voto popular, facilitam o protocolo decisório, a rotina de escolha. Porém, não permitem estabelecer um conceito de desenvolvimento, não representam, por exemplo, a necessidade de integração permanente das políticas de ciência e tecnologia com a política geral de desenvolvimento ou as políticas de assistência social com políticas de geração de emprego e renda. Além de definirem ex ante o espaço de possibilidades para a participação, a “lista-tipo” não deixa de reproduzir a fragmentação da própria administração pública, fracionada em departamentos, secretarias ou empresas.

Um último viés de decisão pode ser atribuído – essencialmente na escala regional - ao arranjo complexo entre as decisões centradas no âmbito municipal e aquelas centradas no âmbito da região. Quando persistem no tempo direções diferentes entre as prioridades de um município e sua região, o processo participativo não objetiva resultados e provoca uma forma de stress na participação que lentamente sofre uma erosão de legitimidade. O pano de fundo deste problema está mais uma vez, na relação entre comunidades independentes e poderes municipais autônomos, em regiões heterogêneas na sua formação sócio-econômica interna com critérios decisores invariantes e fixos para todas regiões. Este é o limite da racionalidade plebicitária e da universalidade dos critérios de escolha. As diferenças inter-regionais talvez justificassem, por exemplo, listas-tipo de obras e serviços diferenciadas, talvez, critérios diferentes para realidades desiguais.

Outro problema reside na suposição de que é possível a transposição (automática) de métodos e conceitos de participação no orçamento municipal para a realidade estadual e regional. As escalas geopolíticas não são indiferentes em relação às opções metodológicas. A multiplicidade de atores sociais, a complexidade das relações políticas que estes atores estabelecem entre si, a grande diversidade de representações políticas e econômicas cria uma teia muito complexa de representações sociais. Entre elas estão, evidentemente, organizações sociais, populares, sindicatos, clubes sociais, organizações profissionais, sindicatos patronais, ONGs, Igrejas, associações esportivas e culturais, etc.

A tendência deste processo se tornar o único legitimado pela política governamental para estabelecer a interlocução social é empiricamente observada. Como um meio quase exclusivo de representação política da sociedade junto ao Estado, e mesmo em relação ao Governo, corre-se o risco de anular o papel de representação e interlocução política destes múltiplos setores junto ao Estado, no consenso e na divergência. Observa-se que a tradição política do Estado brasileiro é permeada pela lógica do clientelismo parlamentar ou do “Estado-Balcão”, o Estado prisioneiro de interesses particularistas. A possibilidade de incorporar processos participativos amplos como base para um novo tipo de planejamento público implica na radicalização do controle social, em reconhecer e estimular diversas formas de participação – pluralismo, diversidade e heterogeneidade de interesses - não só em relação ao orçamento, mas também nas diversas formas de produção das políticas públicas e “concertação social”. Seria metodologicamente equivocado atribuir uma certa trivialidade (ou indiferença) à multiplicidade de agentes políticos existentes como as associações de municípios, entidades filantrópicas, associações de classe, conselhos

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regionais de desenvolvimento, ONGs, sindicatos, etc., em nome de uma suposta e auto-proclamada “universalidade” de procedimentos.

Quais os horizontes da reflexão crítica sobre o Planejamento Público a partir da “âncora“ ou inspiração fundamental dos processos participativos de montagem do orçamento ? Como fazer, enfim, para que este novo tipo de Planejamento Público - organizado pelo princípio ético-moral da democracia – seja o fio condutor de um novo paradigma de gestão participativa e de eficiência gerencial ? Estas são as perguntas fundamentais que devem ser respondidas – teórica e praticamente - para avançar no processo de democratização do Estado e da sociedade. Aperfeiçoar seu caráter democrático e consolidar sua natureza decisória poderão torná-lo ainda mais indispensável e imprescindível para uma nova governabilidade, mais próxima da cidadania.

O sistema orçamentário formaliza a alocação de recursos para as diversas ações e operações de um Plano de Governo específico e determinado. Ele permite realizar a análise de “eficiência econômica” na relação “recurso/produto” de cada proj eto. O desafio teórico e prático está em estender o processo de participação dos cidadãos no processo de planejamento das políticas públicas, dos programas de governo e de projetos estratégicos. Este momento é metodologicamente anterior ao debate da estratégica financeira, portanto, trata-se aqui de uma instância decisória que se realiza previamente ao orçamento. O processo participativo deve ocorrer no momento da seleção de problemas, desenho das grandes operações e definição da situação-objetivo (que fixa uma “imagem de futuro” para o conjunto do Estado, por exemplo, um modelo de desenvolvimento), durante o processo de viabilidade estratégica do plano (que inclui a discussão pública do orçamento anualmente) e depois, no monitoramento da performance dos projetos (obras ou serviços).

A viabilidade estritamente política do “Orçamento Participativo” reside na sua capacidade de agregar meios e capacidades permanentes de mobilização e acesso público aos processos decisórios do Governo, particularmente, a proposta orçamentária. Esta generalização do processo (um processo que tensiona o Estado para ir além do próprio orçamento) será possível na medida em que as demandas pontuais de investimentos localizados (como novas salas de aula, viaturas policiais, trechos de estradas ou término de redes de esgoto, por exemplo) constituírem conjuntos coerentes e sustentáveis de demandas regionais conformadoras de um projeto de desenvolvimento mais complexo e viável. Tentar democratizar o orçamento público sem planejamento prévio é correr o risco da ineficiência generalizada, democratizar o planejamento público sem repercutir no orçamento é apostar na ineficácia do plano.

Isto significa que os “Planos de Investimentos e Serviços” podem ser embriões, junto com outras formas e canais de construção das políticas públicas, de “Planos de Desenvolvimento Regionais”. Tais planos podem integrar as várias políticas públicas, concentrar regionalmente os investimentos e qualificar a prestação de serviços capazes de induzir o dinamismo e a criatividade do setor privado na geração de emprego e renda, por exemplo, recuperando a capacidade de catálise produtiva gerada a partir do espaço estatal. As denominadas “plenárias temáticas” podem progressivamente evoluir para plenárias temáticas centradas na identificação, seleção

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e processamento técno-político de problemas relacionados à produção destes projetos de longo prazo, baseados no processamento de cenários mais amplos, com maior complexidade técnica. Um arranjo metodológico desta natureza representaria um patamar superior de consciência de governo para as populações envolvidas e de sustentabilidade para o processo de desenvolvimento regional, particularmente das regiões menos desenvolvidas, exatamente aquelas que se situam subordinadamente nas relações de poder inter-regional.

A concentração metodológica do planejamento estratégico público no tema de um modelo de desenvolvimento de um governo (incluindo também determinações macro-econômicas genéricas) permite, com base em diretrizes estratégicas e macro-objetivos, o estabelecimento de programas prioritários, sistemas de gestão e agendas específicas com diversos setores sociais, do grande capital produtivo aos pequenos e médios produtores rurais e urbanos. A construção democrática e participativa deste modelo, sua gestão e monitoramento ao longo do governo, implicaria desenvolver um conjunto de eventos ou momentos articulados que envolvessem o conjunto da sociedade nas suas mais diversas formas de organização e representação. Nesta estratégia, processos de participação maciça como o “Orçamento Participativo”, poderiam ser determinantes para construção de um grande consenso entre atores sociais regional sobre marcos referenciais e conceituais básicos sobre os temas típicos de um projeto de desenvolvimento mais amplo: políticas de geração de emprego, distribuição de renda, desenvolvimento equilibrado, ciência e tecnologia, política educacional, da saúde, etc. Um processo desta envergadura poderia ser também constituinte de uma ampla governabilidade e estabilidade institucional, particularmente no processo tentativo de regulamentação político-moral do campo democrático das disputas entre atores sociais com projetos antagônicos ou parcialmente competitivos37. Este processo de Planejamento Público, estratégico e participativo, seria metodolgicamente capaz de construir uma visão de futuro pactuada por amplos setores sociais, síntese de múltiplas racionalidades decisórias (o que define, aliás, o raciocínio “técnico-político”).

Princípios para uma (nova) concepção de planejamento

De tudo o que aqui foi comentado, uma síntese importante não poderia prescindir de alguns postulados teóricos deste enfoque metodológico, bem formulados por Matus (1997), esta síntese enfatiza os seguintes princípios sobre o que é a natureza do planejamento no setor público:

a. Mediação entre o presente e o futuro: todas as decisões que tomamos hoje tem múltiplos efeitos sobre o futuro porque dependem não só da minha avaliação sobre fatos presentes, mas da evolução futura de processos que não controlamos, fatos

37 Algumas propostas específicas para melhorar o Orçamento Participativo poder iam ser , por exemplo,(a) a elaboração das l is tas - tipo conforme cr itér ios regionais e não setor iais , compatibilizando os ins trumentos de participação no or çamento com a metodologia de planej amento de governo, em particular o Plano Plur ianual, (b) a realização de As sembléia Regionais preparatór ias oficiais prévias às Assembléias T emáticas Regionais para melhor concatenação das demandas populares e as demandas de governo,(c) a integração neces sár ia - via Programa como elemento central - entre o Or çamento, o Planej amento e Gestão de Governo e (d) realizar Assembléias de Avaliação de Resultados das propostas aprovadas e executadas pelo Plano de I nvestimento a cada dois anos .

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que ainda não conhecemos. Portanto os critérios que utilizamos para decidir as ações na atualidade serão mais ou menos eficazes se antecipadamente pudermos analisar sua eficácia futura, para nós mesmos e para os outros. Qual o custo da postergação de problemas complexos ? Que tipo de efeitos futuros determinada política pública resultará ? Estes impactos futuros aumentarão ou diminuirão a eficácia do nosso projeto de governo ? Tais perguntas dizem respeito ao necessário exercício de simulação e previsão sobre o futuro, quando devemos adotar múltiplos critérios de avaliação e decisão.

b. É necessário prever possibilidades quando a predição é impossível: na produção de fatos sociais, que envolvem múltiplos atores criativos que também planejam, a capacidade de previsão situacional e suas técnicas devem substituir a previsão determinística, normativa e tradicional que observa o futuro como mera conseqüência do passado. Decorre desta percepção a necessidade de elaborar estratégias e desenhar operações para cenários alternativos e surpresas, muitas vezes, não imagináveis.

c. Capacidade para lidar com surpresas: o futuro sempre será incerto e nebuloso, não existe a hipótese de governabilidade absoluta sobre sistemas sociais, mesmo próximo desta condição há sempre um componente imponderável no planejamento. Devemos então, através de técnicas de governo apropriadas, preparar-nos para enfrentar surpresas com planos de contingência, com rapidez e eficácia, desenvolvendo habilidades institucionais capazes de diminuir a vulnerabilidade do plano.

d. Mediação entre o passado e o futuro: o processo de planejamento estratégico se alimenta da experiência prática e do aprendizado institucional relacionados aos erros cometidos. Portanto será preciso desenvolver meios de gestão capazes de aprender com os erros do passado e colocar este conhecimento a serviço do planejamento.

e. Mediação entre o conhecimento e a ação: o processo de planejamento pode ser comparado a um grande cálculo que não só deve preceder a ação, mas presidí-la. Este cálculo não é obvio ou simples, é influenciado e dependente das múltiplas explicações e perspectivas sobre a realidade, só acontece, em última instância, quando surge a síntese entre a apropriação do saber técnico acumulado e da expertise política. É um cálculo técno-político, pois nem sempre a decisão puramente técnica é mais racional que a política, e vice-versa. O cálculo estratégico dissociado da ação, será completamente supérfluo e formal, por sua vez, se a ação não for precedida e presidida pelo cálculo estratégico então a organização permanecerá submetida à improvisação e ao ritmo da conjuntura.

Destes princípios derivam orientações teóricas para o cálculo estratégico, isto é, orientações gerais para a reflexão sobre quais metodologias deverão ser adotadas para modernização e renovação da prática de planejamento no setor público. A relação a seguir expressa a adequação mais próxima ao que seria um estilo mais participativo e democrático.

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1º O sujeito que planeja está incluído no objeto planejado. Este por sua vez é constituído por outros sujeitos/atores que também fazem planos e desenvolvem estratégias. Deste contexto surge o componente de incerteza permanente e o cálculo interativo que exige intensa elaboração estratégica e um rigoroso sistema de gestão. O caráter modular do enfoque estratégico deriva desta necessidade de redimensionar, agregar e combinar diferentes operações em diferentes estratégias.

2º O “diagnóstico” tradicional, único e objetivo, já não existe mais, no lugar surgem várias explicações situacionais. Como os demais atores possuem capacidades diferenciadas de planejamento, a explicação da realidade implica em diferentes graus de governabilidade sobre o sistema social.

3º Não há mais comportamentos sociais previsíveis e relações de causa-efeito estabelecidas. O “juízo estratégico” de cada ator determina a complexidade do jogo aberto e sem fim. A realidade social não pode mais ser explicada por modelos totalmente analíticos, a simulação estratégica assume nesse contexto uma relevância destacada.

4º O planejamento deve centrar sua atenção na conjuntura, no jogo imediato dos atores sociais, pois o contexto conjuntural do plano representa uma permanente passagem entre o conflito, a negociação e o consenso e é o momento onde tudo se decide. Na conjuntura concreta acumula-se ou não recursos de poder relacionados ao balanço político global da ações de governo. É por isso que “planeja quem governa” , e “governa” quem, de fato planeja. Quem tem capacidade de decisão e responsabilidade de conduzir as políticas públicas deve, obrigatoriamente, envolver-se no planejamento. A atividade de coordenação, assim, é indissociável do planejamento, que é , também, uma opção por um tipo de organização para a ação que refere-se a oportunidades e problemas reais.

5º Os problemas sociais são mal-estruturados, no sentido de que, não dominamos, controlamos e sequer conhecemos um conjunto de variáveis que influenciam os juízos estratégicos dos demais agentes sociais envolvidos. Não há portanto como determinar com exatidão as possibilidades de eficácia do plano ou os resultados esperados em cada ação. Governar com plano estratégico mais do que resolver problemas significa promover um intercâmbio de problemas quando nosso objetivo é que problemas mais complexos e de menor governabilidade cedam lugar a outros menos complexos e de maior governabilidade.

6º O planejamento não é monopólio do Estado, nem de uma força social situacionalmente dominante. O planejamento sempre é possível e seu cumprimento não depende de variáveis exclusivamente econômicas, qualquer ator, agente ou força social tem maior ou menor capacidade de planejamento e habilidades institucionais.

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Quadro-síntese dos dois grandes paradigmas de planejamento:

Fonte: apostila da Oficina de Planejamento Curso de Gestão Publica / UERGS, 2002.

A integração necessária entre Planejamento e gestão

Um governo não pode ser melhor que a organização que comanda, nem melhor que a seleção de problemas que prioriza para enfrentar, nos ensina Matus (1997). Por sua vez, a seleção de problemas e seu processamento tecno-político não podem ser melhores que o sistema de planejamento que os gera e alimenta. O sistema de planejamento está condicionado pelas regras de governabilidade e de responsabilidade do jogo organizacional. São estas regras que determinam o grau de descentralização e responsabilização de uma organização. Só uma verdadeira “revolução organizacional” é capaz de vencer a inércia da centralização burocrática da administração pública.

Se o processo de planejamento democrático só se completa na ação concreta e integral, então os sistemas de gestão devem sofrer as mudanças necessárias para abrigar e desenvolver os novos paradigmas do planejamento. Ainda segundo Matus,

ASPECTOS E PROCEDIMENTOS PLANEJAMENTO TRADICIONAL PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO PARTICIPATIVO

(1) Objeto do Planejamento

Situação passiva Situação ativa e complexa

(2) Explicação da realidade

Baseada em diagnósticos e leis

Apreciação situacional

(3) Concepção de Plano Normativo e prescritivo Jogadas sucessivas e apostas

(4) Análise estratégica Consulta de especialistas Análise de viabilidade técno-política

(5) Atores Sociais Genéricos Específicos e com trajetórias definidas

(6) Conceito de Operação

Ação isolada do plano Medição entre plano e ação

(7) Papel da Gestão Não é um problema do plano

É onde tudo se decide, momento central do plano.

(8) Agenda da direção Domínio das urgências e improvisação

Domínio das importâncias e do planejamento estratégico

(9) Prestação de Contas Não há ou tem função ritual. É sistemática e orienta a qualificação da gestão.

(10) Gerenciamento do Plano

Gerência por setores ou departamentos, domínio da

rotina

Gerência por Operações, domínio da criatividade,

intensivo em gestão.

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um sistema de gestão começa pela direção estratégica que apoia-se em um triângulo formado pela (a) configuração da agenda dos dirigentes, pelo (b) sistema de cobrança e prestação (é a “responsabilização por resultados” no modelo federal) de contas por desempenho e (c) pelo sistema de gerência por operações (o “programa” como centro de gestão). O ponto crucial é o sistema de pedido e prestação de contas, “...é isso que define se a organização participa de um jogo macroorganizacional de alta ou de baixa responsabilidade...se o sistema organizacional é de baixa responsabilidade, toda a gestão é medíocre e tende a permanecer em equilíbrio ultra-estável nesse nível de mediocridade”( Matus, 1997, p. 318). Isto é, se não há sistematicidade na cobrança de empenho (dos quadros e das instituições), então a agenda é tomada por casos de urgência e improvisação, a gerência não terá recursos para vencer a força da rotina dos sistemas que visem elevar a qualidade da gestão serão rejeitados.

Como já foi comentado, o Estado brasileiro sempre foi caracterizado pela dualidade congênita: entre um setor modernizante, uma burocracia weberiana, impessoal e objetiva sob o império da regra e da lei, convivendo lado a lado com os setores patrimonialistas, clientelistas, pre-capitalistas tributários das oligarquias regionais e das relações de patronagem. As estruturas organizacionais e operativas deste Estado sempre foram caracterizadas pela verticalidade, pela departamentalização excessiva, pela hierarquia autoritária. A centralização das decisões, aliada ao planejamento normativo e à formalização burocrática impediram a um só tempo o controle social (feito, inclusive, pelos parlamantares) e a adoção de procedimentos mais qualificados e modernos na prestação de serviços públicos.

A renovação do planejamento passa pela revolução na gestão do estado. Não há modernização gerencial sem a Reforma do Estado, porém a reforma real foi reduzida ao processo de transposição de valores do setor privado, foi incapaz de resistir aos lobbies das corporações, às demandas sociais e sobretudo, às pressões da agenda fiscal que impôs sobre os servidores públicos pesada conta do ajuste do setor público.

A suposição de que o ambiente público prescinde da construção política, de que a ação de governo pode ser conduzida como se dirige uma empresa em ambiente competitivo de mercado (através de um processo intenso de “agencificação”, por exemplo), acaba por despolitizar as relações de governo, fazendo crer que a “neutralidade” técnica do planejamento é algo ontologicamente possível. No contexto das políticas públicas o planejamento estratégico é parte de uma declaração situada e posicionada dos Governos sobre o enfrentamento de problemas altamente complexos, que envolvem intrinsecamente as sínteses contraditórias das diferentes construções políticas que se manifestam na sociedade. Daí a impossibilidade epistemológica de um planejamento estratégico público tecnicamente neutro ou simples adaptação das metodologias do planejamento empresarial-corporativo.

Um novo modelo de gestão, capaz de operar (viabilizar) um novo paradigma de planejamento público deve ser orientado para (a) incorporar parcelas crescentes de participação cidadã em todos seus momentos, da seleção de problemas ao debate tático e operacional da gestão pública, (b) recuperar o papel dos servidores como agentes públicos não-virtuais na (re)construção do Estado e (c) reformar o aparato

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administrativo sob o enfoque das práticas de trabalho e das formas organizativas com mais agilidade, flexibilidade e efetividade das políticas públicas.

Um dos pontos críticos do novo modelo de planejamento foi a adoção do sistema de gerentes com relativa autonomia para administrar (criativamente) os programas. A tese está correta embora lhe falte, na execução prática, alguns mecanismos que evitem o confronto destrutivo entre a esfera de competência gerencial e a estrutura pré-estabelecida dos rituais administrativos. Segundo Santana (2002), por exemplo,

“... os conflitos verificados no período 1996/1999 no Brasil em Ação se multiplicam no Avança Brasil. A compreensão de sua origem repousa no sistema político presidencialista vigente no Brasil, no qual o Presidente da República do Brasil depende de alianças com partidos políticos para construir uma base de sustentação política no Congresso que respalde suas condições de governabilidade. No processo de formação dessa base, o pacto político é referenciado não pelo programa de governo, mas pelas nomeações que cada partido político obtém geralmente nos 1º, 2º e 3º escalões dos Ministérios e nos outros órgãos governamentais. Assim, as prioridades políticas dos titulares dos órgãos em alguns casos não correspondem às do Governo, resultando que, sem governabilidade dos meios necessários para execução de seus programas, os gerentes tornam-se meros captadores de informações para alimentação do SIG”(p.6), grifos nossos.

Parece evidente que outros estímulos, garantias de autoridade e principalmente mecanismos de integração e diálogo permanente entre o gerente e o staff da estrutura formal da administração (Secretários, Diretores, etc...) deva ser a saída para superar a “mera captação de informação”. Com certeza, colocar os gerentes do PPA federal numa foto com o Presidente da República certamente não foi suficiente para resolver este imbroglio...

A integração necessária entre Planejamento e Orçamento

O planejamento é um processo, sem fim, nem começo. Metas e objetivos que nunca são atualizados, que não mudam, revelam completa inutilidade para o processo de liderança, de governo. Planejar é ter capacidade de fazer um cálculo estratégico que precede e preside o fazer, as ações, só tem sentido se pode informar o gerenciamento do dia-a-dia, com foco mos resultados, e menos nos meios. Esta “ponte” entre planejamento público democrático e gestão participativa, com foco nos resultados só pode ser construída através da integração com o orçamento público.

A desconexão do orçamento como instrumento efetivo de planejamento foi um dos sintomas mais emblemáticos da perda recente de governabilidade e capacidade de governar do Estado brasileiro. Entre os fatores responsáveis pela progressiva e sistemática divergência metodológica entre plano e orçamento pode-se registrar:

(a) o caráter genérico das metas definidas nos Planos Nacionais onde a “prioridade” recaia sobre as próprias funções de governo, obscurecendo a hierarquia de objetivos, ajustando-se nas conveniências político-corporativas e nas barganhas conjunturais.

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(b) a incompatibilidade entre a estrutura de contas contábeis dos orçamentos e dos planos dificultou a verificação da execução das diretrizes planejadas através da execução do orçamento, situação que só começou a mudar a partir da flexibilização da classificação funcional-programática (estabelecida pela lei 4.320/64) a partir de 1998. Note-se que até a reforma da Constituição de 1988 – que substituiu os antigos Orçamentos Plurianuais de Investimento pelo Plano Plurianual (PPA) - o orçamento fiscal era absurdamente esvaziado pela existência de outros dois orçamentos paralelos, das estatais e o orçamento monetário.

Outros fatores menores também contribuíram para que o orçamento público se tornasse no Brasil uma verdadeira peça de ficção, como a cultura inflacionária, o alto percentual de receitas vinculadas, a prática repetida de contingenciamentos lineares em função de ajustes fiscais permanentes (na ausência de critérios inteligentes de seletividade). A falta de transparência do orçamento público, que camufla muitas vezes as renúncias fiscais, a falta de controle social sobre a despesas públicas e as dificuldades de acompanhamento técnico somam-se aos problemas anteriores, bloqueando as possibilidades de uso do orçamento como resultado final do processo de planejamento e gestão democrática. Neste contexto os orçamentos não traduziam estratégias de enfrentamentos de problemas, nem os planos se viabilizaram no orçamento como meio de financiamento de curto prazo das atividades estatais, sejam elas resultantes de despesas de natureza continuada ou investimentos pontuais de caráter mais polarizador e estratégico.

Sendo o orçamento público por definição a forma monetária para alocação de bens e serviços públicos que o mercado não pode ou não deve ofertar a custos socialmente justos e eqüitativos, as soluções “ótimas” são virtualmente impossíveis. Não se pode precificar com precisão benefícios e custos de políticas claramente não mercantis ou eivadas de externalidades como as políticas sociais ou de justiça e segurança típicas do Estado (bens públicos puros). Olhando o processo desta maneira somente existe a possibilidade de construir “acordos possíveis” entre Governos e atores sociais constituídos, em soluções “sub-ótimas”, em outras palavras, o orçamento como instrumento de planejamento deixa de ser ferramenta meramente técnica – restrita ao universo contábil e fiscal – para se tornar verdadeiros “acordos políticos”. A opção pela formas participativas representa um avanço democrático considerável na celebração e legitimação social destes pactos e consensos.

A manutenção deste vínculo entretanto, na prática efetiva de governo, tem sido extremamente difícil no contexto da crise financeira prolongada em que vivem os governos federais e regionais no Brasil. Se a ênfase recai sobre o ajuste fiscal e a “administração do curto prazo” começa a predominar sobre qualquer outro critério de coordenação e planejamento então as secretarias e ministérios da fazenda, das finanças ou o sistema financeiro assumem um protagonismo pernóstico na coordenação das políticas. Quando este movimento institucional é consumado então perde-se definitivamente a possibilidade (e governabilidade) da vinculação entre a dotação orçamentária e as prioridades e metas estratégicas do governo.

A coordenação entre orçamento e plano feita em bases participativas exige a dupla democratização: do orçamento e do processo de planejamento. A participação popular na discussão do orçamento – através do “Orçamento Participativo” (onde as

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experiências municipais são as mais conhecidas) representa um esforço para criar condições institucionais favoráveis à emergência da cidadania em novas formas de gestão sócio-estatal onde a sistemática “partilha de poder” baseada em critérios objetivos, impessoais e universais são os elementos mais fundamentais.

A experiência internacional38 e boa parte da literatura sobre planejamento e orçamento39 têm sido convergentes em pelo menos duas recomendações para efetivar a vinculação entre as duas funções:

Ajustes metodológicos necessários: o orçamento deve se tornar um processo dentro do sistema de planejamento, para isso deve haver correspondência direta entre os programas – como proposta de ação e não classificação – de um e de outro. Os programas devem estar estruturados em produtos e resultados previstos com seus respectivos indicadores para acompanhamento e avaliação. Cada programa deve estar relacionado à identificação de macro-problemas concretos na esfera do projeto de governo. Só desta forma o orçamento possibilita a “gestão por programas” e não por setores ou departamentos.

Adaptações institucionais necessárias: aqui dois aspectos são relevantes, o primeiro é a reconstrução da capacidade de planejamento público e o segundo é o monitoramento da execução do plano. O cumprimento do primeiro objetivo pressupõe que a coordenação orçamentária esteja subordinada às agências e organismos de planejamento, imune à simplificação e distorção da “administração do curto prazo” própria dos organismos financeiros e fazendários. Não há sentido, entretanto, em manter separado ou desvincular a elaboração do planejamento de governo do orçamento que o viabiliza, sem que o mesmo processo de planejamento possa monitorar a execução orçamentária, em sintonia com o gerenciamento da despesa e os fluxos financeiros da atividade fazendária. Por contraste e negação, a pior solução institucional e gerencial possível seria aquela que isolasse a ação de planejamento da elaboração do orçamento e esta, por sua vez, do controle de sua execução.

A elaboração do orçamento deve ser atribuição do órgão de Planejamento. Esta possibilidade política se manifesta hoje na oportunidade de repensar o próximo plano plurianual (2004 – 2007) do Rio Grande do Sul (a cargo do próximo governo, 2003 –2006) como mais uma janela para modernização do planejamento e da gestão do Estado. Isto significa que o orçamento deve ser entendido como uma espécie de atualização anual do planejamento de longo prazo (rolling plan), para isso, por exemplo deverá haver absoluta equivalência entre os programas do orçamento e os programas do plano: a mesma construção metodológica, o mesmo significado, o mesmo sistema de monitoramento e tomada de decisão. Este novo modelo e planejamento – mais flexível, participativo e eficaz – deve combinar o ciclo de planejamento e gestão, integrar orçamento e planejamento. Esta estratégia é a mais adequada para conferir 38 Veja-se, por exemplo, Gault, D. Gil, R. Macias, J. e Rojano, A. (1999) Nueva gerência pública en acción: procesos de modernización presupuestal. Un análisis inicial en términos organizativos (Nueva Zeland, Reino Unido, Australia y Mexico) e Garnier, L. (2000) Función de coordinación de planes e políticas, ILPES/CEPAL. Santiago de Chile. 39 Conforme Affonso, R. (1989) A ruptura do padrão de financiamento do setor público e a crise do planejamento no Brasil durante os anos 80. Em “Seminário sobre Planejamento e Gestão, coordenação institucional da formulação, execução e avaliação da política econômica”, SEPLAN-PR, ILPES, CLAD, Brasília-DF e Core, F. (2000) Reforma gerencial dos processos de planejamento e orçamento, texto para discussão n. 44, ENAP, Brasília-DF.

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mais transparência orçamentária, para dentro e para fora do governo, na medida em que os ajustes, cortes e contingências financeiras ficam irremediavelmente vinculados à discussão de conteúdo, de programa e de estratégia de governo, menos sujeitas ao tráfico ocasional de influências, deste ou daquele nicho de poder.

O orçamento é historicamente um meio de viabilização das metas de planejamento. O orçamento viabiliza o plano, o planejamento sem orçamento é mera declaração abstrata de vontades políticas universais, enquanto que o orçamento sem planejamento é a subordinação da governabilidade e da capacidade de governar à lógica fiscalista e à dinâmica discricionária do caixa diário, às juntas de arbítrio financeiro, ao improviso da conjuntura.

A qualificação de processos participativos em escala estadual é melhor processada num organismo de planejamento que dialoga com múltiplos atores em escala regional, que acumula a experiência administrativa na formulação do desenvolvimento regionalizado, que pode combinar o processo participativo localizado com cenários mais amplos de desenvolvimento estratégico. A função de coordenação e articulação de um organismo de planejamento é maximizada quando pode ser consolidada (também) através do ordenamento orçamentário. E aqui é fundamental afirmar que a retomada do orçamento como função efetiva de planejamento não significa somente a sua subordinação à função-planejamento, mas sobretudo ao monitoramento e controle da sua execução. É óbvio que o controle da execução orçamentária exige uma sintonia muito fina entre os procedimentos da área de Planejamento e a área Fazendária40. Qual a eficácia de um processo que elabora o planejamento ma falha no controle de sua execução? Como ajustar o orçamento de acordo com o programa estratégico validá-lo pelo crivo da participação popular sem meios para controle real e prerrogativas sobre o ritmo, volume e prioridade na destinação de recursos ?

6. Conclusões

O modelo de gestão do Estado não pode estar dissociado de uma determinada concepção de Estado e Governo, de uma compreensão específica de quais são as tarefas de um governo transformador na disputa de uma outra dinâmica para o aparelho de Estado. Esta disputa está ritmada pela lógica da crise do Estado desenvolvimentista e pela tentativa – incompleta – de imposição de uma agenda neoliberal pelo bloco dominante, como manifestado no processo de privatização, no ajuste fiscal, na corrupção e na falta de participação democrática. No campo da gestão pública esta agenda se manifesta veladamente na chamada “nova administração pública” e na “gestão por resultados”, iniciativas que – indiretamente - mercantilizam o espaço de produção de políticas públicas e igualam as práticas de governo às práticas perversas da concorrência predatória dos mercados. Tamanho foi o aprofundamento

40 A S CP (S ecretar ia de Coordenação e Planej amento), cr iada nos anos ses senta, se cons tituiu como órgão capaz de garantir o aumento da capacidade de governo e poderá ser – j untamente com a FEE e a MET ROPLAN (suas organizações vinculadas) o organismo de governo responsável pela integração entre orçamento, plano e gestão.

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cego nesta direção que vários organismos já reconhecem a necessidade de correção de rumos (CLAD, 1998).

A crítica à privatização indiscriminada do Estado não deve diminuir a consciência crítica do pequeno avanço na modernização dos métodos de gestão e operação da máquina pública que a maioria dos governos padece, inclusive a atual gestão estadual. Pelo contrário, como a democracia e a participação popular devem ser colocadas no centro de um novo modelo, afirma-se que a modernização democrática do Estado deve incorporar tecnologias avançadas, instrumentos e processos gerenciais universais a serviço desta lógica. É notável como a ausência de eficácia gerencial e planejamento estratégico podem representar gargalos para o processo participativo no médio e longo prazo. Isto diz respeito, por exemplo, à universalização das práticas de planejamento participativo, das políticas públicas e do governo, ao monitoramento e avaliação de programas que garantam a transparência desejada ou à ação integrada entre órgãos públicos que otimiza sua eficácia e dá mais racionalidade à ação administrativa.

A ambição deste projeto transformador exige uma subversão completa das práticas gerenciais autoritárias, conservadores e – sobretudo – ineficazes, burocráticas e formais da administração pública. Um novo modelo de planejamento a partir dos acertos e erros cometidos pela experiência federal nos últimos oito anos pode ser adaptado à realidade gaúcha, retomando a melhor tradição do planejamento técnico e normativo com a perspectiva da participação e da democratização do aparelho de Estado.

Segue um conjunto de propostas tópicas sobre os temas de planejamento e gestão pública41 que seriam imprescindíveis numa agenda de debates se o objetivo fosse o compromisso com a reforma democrática do Estado.

(1) Sobre a participação e o controle social:

• Incorporar o uso efetivo quando estabelecidas grandes polêmicas sociais os instrumentos de aferição da opinião pública previstos constitucionalmente como a consulta, o referendum e o plebescito.

• A criação de conselhos (municipais, federais, nacionais) é uma das estratégias para implementar o controle social e a transparência de aplicação dos fundos públicos. Entretanto a maioria deles são formais, burocráticos e pouco efetivos em sua missão original. Cabe a implementação de um espaço de debate e síntese político-institucional com os diversos Conselhos governamentais previstos em lei para encontrar alternativas de revitalização destes espaços.

41 Par te s ignificativa des tas propostas foram debatidas no inter ior da S ecretar ia da Coordenação e Planej amento com os servidores Gláucia Campregher , Afonso Araúj o F. e Aragon Dasso Jr .

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• Implementar novos instrumentos de controle social entre outros, criação de uma ouvidoria geral do Estado, criação de um amplo cadastro de cidadãos voluntários para avaliação das políticas públicas como detalhado anteriormente.

• Criar um “observatório social” organizado sob a forma de uma rede estadual com a finalidade de propor políticas de erradicação da corrupção na esfera pública.

• Organizar um “Congresso das Regiões” permanentes - com a contribuição dos COREDES - que promovam o debate e deliberem encaminhamentos sobre a atual regionalização da prestação de serviços e projetos de desenvolvimento regional (combinado com o OP), seus limites científicos e políticos.

(2) Sobre a capacitação e o treinamento dos servidores públicos:

• O Governo deve promover amplo e profundo processo de capacitação gerencial para reforçar a capacidade de governo, modernizar os procedimentos administrativos e construir os valores democráticos da participação e da ética, neste sentido os projetos da Escola de Governo e da articulação com as escolas setoriais e dos cursos da UERGS voltados para a gestão ganham especial prioridade.

• Universalizar os Programas de Treinamento de Ingresso dos servidores públicos vinculando, de uma forma geral, à realização dos concursos públicos.

• Efetivar a criação da Escola de Governo para que ela possibilite a formação de quadros gerencias, gestores públicos, servidores em gerais e demandas específicas para implementação de políticas publicas e projetos especiais, inclusive com quotas estabelecidas para indicação de quadros gestores a partir dos partidos políticos atuantes no estado.

(3) Sobre a política de Recursos Humanos:

• Equiparar e racionalizar – de forma progressiva e definitiva – os planos de carreira e as respectivas matrizes salariais da administração direta e indireta.

• Estabelecer a política salarial a partir de uma nova matriz salarial que reduza desigualdades progressivamente através de reajustes seletivos e diferenciados, limitada pelo teto constitucional, desvinculada da receita.

(4) Sobre a gestão democrática e participativa:

• O Governo deve adotar como princípio organizador da ação política-administrativa a nível central e em cada Secretaria os valores associados ao Planejamento Estratégico Participativo, com a participação organizada do funcionalismo e suas

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entidades. A generalização da cultura de planejamento é indispensável para garantir a gestão por projetos, a participação funcional e a eficácia da ação governamental. A mudança de padrões comportamentais, base da sustentação de um novo modelo de planejamento e gestão, só será efetiva, contudo, se amplas parcelas do funcionalismo estadual forem capacitadas sistematicamente.

• O processo de elaboração do Plano Plurianual, em 2003, deve ser priorizado como uma oportunidade privilegiada para democratizar o planejamento estratégico e de médio e longo prazo do Governo, organizar a integração de projetos nas secretarias, com o Orçamento Participativo e influenciar os sistemas de gestão pública. Deve-se aumentar o grau de compatibilização metodológica com o PPA federal pois as duas esferas de governo possuem muitas competências comuns, expressivo volume de transferências intergovernamentais e negociam resultados setoriais sistematicamente.

(5) Sobre a modernização gerencial:

• O Governo deve adotar o princípio da Gestão por Programas superando a falta de articulação administrativa e gerencial atualmente existente. Este princípio deve orientar a modernização do sistema de gestão, baseado em resultados e na participação dos envolvidos (dentro e fora do governo), em direção à responsabilização coletiva.

• O sistema de informação gerencial (“MAG”- Monitoramento das Ações Estratégicas na atual gestão, “Caderno de Metas” na gestão anterior, etc...) deve ser estendido a todos projetos previstos pelo PPA e utilizado como forma de publicização, suporte à informação interna e controle social dos projetos.

• O sistema de acompanhamento da administração indireta (empresas, fundações e autarquias) - deve ser implantado desde o início da próxima gestão, de forma universal para toda administração indireta, iniciando progressivamente naquelas empresas com maior participação na despesa pública, focado na avaliação de desempenho e resultados, conforme o planejamento estratégico do governo.

• Implantar centrais de serviço ao cidadão (Tudo Fácil), obedecendo a lógica da regionalização administrativa do Estado, aproximando o Governo e a Administração Pública do cidadão, em todas as regiões. Estas centrais de atendimento podem constituir-se na base de Centros Administrativos Regionais para racionalizar despesas de locação e instalação dos diversos órgãos públicos.

• O e-governo deve ser implantado da forma mais amplo possível para possibilitar modernização gerencial, gestão das informações, acesso aos serviços e racionalização de despesas. Esta tecnologia contribui significativamente para a maior transparência administrativa e controle social. Poderá no futuro estar disponível em centenas de pontos de acesso em escolas públicas, centros regionais, etc., distribuídos por todo Estado para o ensino não-presencial.

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(6) Sobre a reestruturação institucional:

• O funcionamento do governo deve ser orientado prioritariamente pela existência de fóruns inter-secretarias - Fóruns de Desenvolvimento, Gestão e Participação, Políticas Sociais e Infraestrutura - que horizontalizem a discussão de políticas e que promovam a integração de projetos e que sejam deliberativos sempre que necessário. Tais fóruns serão formalizados e institucionalizados internamente, funcionando com responsáveis específicos, relatorias próprias e informes, agendas prévias e distribuição de tarefas, reportando-se diretamente à Coordenação de Governo. O funcionamento dos fóruns deve adotar metodologias participativas de trabalho, voltadas para o controle dos resultados previstos, adotando formas criativas e mais gerenciais de solução de problemas, indo além das formalidades burocráticas.

• A consolidação progressiva da recuperação da capacidade de planejamento do Estado, a democratização das técnicas e instrumentos e a necessidade de mais governabilidade e capacidade de governo só podem progredir caso as áreas de orçamento, gestão e planejamento estejam funcionalmente e politicamente integradas. A situação ideal, a exemplo do governo federal, seria a integração administrativa e funcional das três áreas numa hipotética “Secretaria de Planejamento e Gestão Estratégica” que poderia ter como órgãos vinculados o suporte de tecnologia da informação (PROCERGS), a área de capacitação e treinamento (FDRH), suporte para produção estatística e montagem de cenários e estudos macro-econômicos e sociais (FEE), apoio para gestão do planejamento regional e urbano do desenvolvimento (METROPLAN) e o órgão de apoio à gestão de RH (IPE).

• Priorizar os esforços para efetivar a participação do estado do Rio Grande do Sul no Programa Nacional de apoio à Modernização do Planejamento e da Gestão do Distrito Federal e dos Estados (PNAGE) em fase de preparação com o Banco Mundial e o Ministério de Planejamento. Os recursos desta cooperação financeira são fundamentais para modernização dos instrumentos de planejamento e gestão pública. Na fase inicial de preparação deste programa o Estado apresentou 17 projetos num total de R$ 95,8 milhões.

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